Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1251/22.2POLSB.L1-9
Relator: JORGE ROSAS DE CASTRO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MENOR
VITIMA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: 1. Quando os atos de violência doméstica dentro do casal são presenciados por menor, ocorre a agravação prevista pelo art. 152º, nº 2, alínea a) do Código Penal; o problema que se põe é o de saber se, além dessa agravação, se deve ou não o agente ser punido pela prática de um crime autónomo de violência doméstica perpetrado na pessoa do menor, face à circunstância de este ter estado exposto aos maus tratos infligidos sobre a vítima direta dos mesmos.
2. Antes da entrada em vigor da Lei nº 57/2021, de 16/08 havia já quem sustentasse que, quando exposto a uma situação de violência doméstica entre adultos, o menor, se categorizável como «pessoa particularmente indefesa», ao abrigo do art. 152º, nº 1, alínea d) do Código Penal, era, ele próprio, uma vítima de um crime autónomo de violência doméstica, ainda que muitas vezes escondida, esquecida, desconhecida ou silenciosa.
3. Essa posição teve algum reconhecimento jurisprudencial e doutrinal e quadrava bem com o cumprimento pelas autoridades nacionais da obrigação positiva de proteção que se lhes impõe quanto aos menores.
4. Havia contudo argumentos ponderosos no sentido de considerar que a legislação penal não contemplava a existência de um crime autónomo de violência doméstica nos casos da exposição da criança a situações de maus tratos entre adultos.
5. O legislador veio entretanto clarificar conceitos na Lei nº 57/2021, de 16/08, operando uma precisão no conceito de «vítima», que consta do art. 67º-A, nº 1 iii) do Código de Processo Penal e do art. 2º, alínea a) da Lei nº 112/2009, de 16/09, e introduzindo a atual alínea e) ao nº 1 do art. 152º do Código Penal.
6. Se dúvidas antes havia, ficaram dissipadas: todas as crianças, ainda que apenas expostas à violência doméstica entre adultos, são, também elas, potenciais vítimas de um crime autónomo de violência doméstica.
7. No que respeita a castigos sobre os menores, é conhecido todo um lastro doutrinário e jurisprudencial que, tendo por referência o poder/dever de correção ou educação sobre as crianças ou ideias de adequação social, toleram ou admitem, à luz de certos critérios de proporcionalidade, o recurso a alguns castigos sobre os menores.
8. Quando se trata de castigos ou gestos que atinjam a integridade física das crianças e/ou que tenham por motivação ou efeito a sua humilhação, ainda que sob uma eventual e pretensa intenção educativa, entramos no campo da violação de um direito fundamental de todas as pessoas, destas nada justificando que se excluam as crianças como sujeitos de direito que são, a saber e nomeadamente, o direito à integridade física e moral, devendo portanto rejeitar-se a admissibilidade de tais práticas.
9. É essa a orientação que resulta da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e das recomendações do Comité dos Direitos das Crianças das Nações Unidas e do Comité de Ministros do Conselho da Europa, ao abrigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, da Convenção sobre os Direitos da Criança e da Carta Social Europeia, respetivamente.
10. E essa orientação corresponde a uma nova cultura da infância, que vem fazendo escola em nações que se encontram nesta matéria na vanguarda, que têm legislação proibitiva dos castigos físicos e psíquicos dos pais em relação aos filhos.
11. Sublinhe-se, neste contexto, que o art. 152º, nº 1 do Código Penal refere-se especificamente aos «castigos corporais» como potencialmente relevando do conceito de «maus tratos».
12. Uma palmada na zona da anca que provoca dores e deixa uma marca avermelhada, infligida pelo pai a uma criança de quatro anos de idade, em si mesma, se fosse o único facto a considerar, muito possivelmente conter-se-ia dentro das linhas de fronteira de uma ofensa à integridade física, prevista pelo art. 143º, nº 1 do Código Penal.
13. Porém, se associada a outros factos de perfil agressivo, já pode ser atingido o padrão geral de gravidade que releva do universo próprio da violência doméstica, sob o conceito de «maus tratos físicos ou psíquicos», se tudo no seu conjunto revelar uma degradante desconsideração pelo bem-estar, pela tranquilidade, pelo equilíbrio e pela dignidade do menor.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

1 – RELATÓRIO
Pelo Juízo Local Criminal de Lisboa (Juiz 12) foi proferida sentença em 1 março de 2024, condenando o arguido com o seguinte dispositivo (transcrição na parte relevante):
«Face ao exposto, julgo a acusação parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência:
a. Absolvo o arguido AA, pela prática de um crime violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) do Código Penal;
b. Condeno o arguido AA, pela prática de um crime violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea a) e c) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução por 2 anos, sujeita às seguintes regras de conduta:
- manter-se afastado da residência e do local de trabalho da ofendida; e
- proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida, sem prejuízo dos contactos estritamente necessários para o exercício das responsabilidades parentais;
c) Condenar o arguido AA, no pagamento à ofendida, BB, a título de indemnização civil por danos não patrimoniais causados, da quantia de € 1000,00.
d) Condeno o arguido, nas custas criminais do processo – art.º 514.º, n.º 1 do Cód. Proc. Penal, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC - (artigos 374.º e 513.º do Cód. Proc. Penal e art.º 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais);
*
Sem custas cíveis – artigo 4º, nº 1, alínea n) do RCP.»
A Assistente BB interpôs recurso da sentença, o qual termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1.ª) Não se conforma a Assistente/Recorrente da absolvição do arguido pela prática de um crime de violência doméstica perpetrado na pessoa do menino CC, filho do casal, porquanto, o Tribunal a quo decretou matéria probatória provada suficiente para o condenar quanto a esta factualidade;
2.ª) Matéria probatória que se encontra descrita, mormente, nos factos 4, 9, 10 e 14 dos factos provados e que descrevem, sem margem para dúvida, actos de violência perpetrados no menino CC, como tal definidos na norma do artigo 152.º do Código Penal;
3.ª) A Assistente/Recorrente não se conforma porque, se o arguido cometeu os factos, os mesmos foram considerados na acusação pública, foram dados por provados pelo Tribunal a quo, deviam ter os efeitos jurídicos causais que se traduzem numa condenação pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa do CC, menino de 3 anos que foi objecto de várias e repetidas agressões – físicas, psicológicas e emocionais – por parte do seu pai.
4.ª) Em sede de fundamentação, o Tribunal a quo desconsiderou completamente a prática do crime de violência doméstica sobre o menino CC, ao tempo com 3 anos de idade, não obstante os factos 4, 9, 10 e 14 da matéria probatória ter considerado o seguinte:
“4. O arguido AA, em datas não apuradas em concreto, mas certamente entre o mês de Maio de 2019 e Janeiro de 2022, no interior da residência comum, enquanto o seu filho CC chorava, dirigiu a BB as seguintes palavras:
- “Cala-me esse caralho, só sabe é chorar”.
(…)
9. Neste mesmo dia ... Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA dirigiu-se a BB, que se encontrava a amamentar CC, e num tom de voz elevado, audível por todos os que por ali passassem, disse-lhe:
- “Deixa de dar essa merda ao miúdo. O miúdo já não tem idade para estar a mamar. Tira essa merda ao miúdo”.
10. Em acto contínuo, o arguido AA, exercendo força, retirou CC, do colo de BB, enquanto estava a mamar, provocando dores na mama desta.
14. Em dia não apurado em concreto, mas certamente entre o dia ... Janeiro de 2023 e o dia … de Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA, por motivo não determinado, desferiu uma palmada na zona da anca do seu filho CC, deixando-lhe uma marca avermelhada naquela zona e provocando-lhe dores.”
5.ª) Não é conhecido o raciocínio para absolver o arguido deste crime, mas o Tribunal a quo valorou positivamente as declarações da ofendida/assistente, que confirmou a prática reiterada das agressões sobre o filho CC, não só com a palmada no rabo/anca por parte do progenitor no facto descrito em 14 da matéria probatória dada por provada, mas também com palmadas na cara do menino, ainda bebé e, mais grave, o facto de ter arrancado o bebé do colo e mama da mãe enquanto amamentada, ao mesmo tempo que gritava “Deixa de dar essa merda ao miúdo”.
6.ª) Pelo que, não pode a Assistente/Recorrente conformar-se com a absolvição do arguido da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, n.º 1 alínea c) 2 n.º 2, do Código Penal.
7.ª) As referidas condutas do arguido foram-no conscientes e dolosas e colocaram em risco, de modo relevante, a saúde física e psíquica do menor, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto criança e ser humano, inseridos numa realidade parental que se quereria harmoniosa e protetora.
8.ª) O Tribunal a quo fez uma compartimentação dos factos, o que esvazia, na panorâmica geral dos factos, a gravidade que os mesmos tiveram: não só a forte palmada no rabo/anca do bebé, deixando esta parte marcada com uma mancha vermelha (o que atesta a violência do acto), mas também, estando demonstrado que, não obstante a idade da criança e de este já não necessitar da amamentação como refeição, não estando dependente dela, apesar de continuar a ser amamentada, o que representa um momento de maior ligação à mãe, a quebra deste benefício de forma violenta, como foi, traduz também um acto de violência gratuita que põe em causa o normal e salutar desenvolvimento da criança e cai no âmbito da norma sancionatória da violência doméstica.
10.ª) Contudo, o Tribunal a quo não escrutinou em sede de fundamentação quer da matéria de facto quer da matéria de Direito a razão de ciência dessa absolvição,
11.ª) De facto, o Tribunal a quo deveria ter valorizado a circunstância desses atos – a forte palmada e o brusco e violento puxão da criança dos braços da mãe enquanto o estava a amamentar – terem sido perpetrados pelo arguido, além do mais, contra um menor, conferindo uma especial censurabilidade ou perversidade à sua conduta, sendo certo que o menino CC, com menos de 4 anos de idade, é uma pessoa particularmente indefesa, e a panorâmica geral relevam de forma a que a conduta do arguido, deveria, pelo menos ter sido integrada no tipo qualificado, p. e p. pelo artigo 145.º, n.ºs 1, alínea a) e 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal.
12.ª) E não se diga nem se ouse aludir que a conduta do arguido poder-se-ia considerar justificada à luz de um pretenso poder de correção, ocorrendo uma exclusão da ilicitude (artigo 31.º, n.º 1 e 2 do Código Penal), porque o poder de correção dos pais e educadores não abrange a aplicação de castigos corporais de pressão, coacção ou humilhação, inexistindo qualquer disposição legal donde se possa retirar tal conclusão, uma vez que, aos pais, para educarem os filhos, não é permitido agredi-los, ofendê-los na sua dignidade, na sua integridade física e psíquica ou na sua liberdade.
13.ª) O poder de correção, este sempre imporia, que o agente atue com essa finalidade e, por outro, que os castigos infligidos sejam criteriosamente ponderados e proporcionais à falta ou faltas cometidas, o que é de todo incompatível com a violência física, com castigos corporais ou com castigos humilhantes e atentatórios da dignidade do menor, pois estes nunca serão adequados ou justificados pelo dever de educar – o que não sucedeu, de todo, com o arguido dos autos.
Pelo que,
14.ª) Ao atingir o corpo do seu filho de 3 anos com uma forte palmada, conforme descrito nos factos provados, o arguido sabia que molestava fisicamente o seu filho e lhe causava, como causou, dor e padecimento, o que quis.
15.ª) Dessa agressão em causa resultou dor e padecimento para o menino CC, que, com apenas 3 anos de idade, não fez nada para merecer tal palmada, ao ponto de o deixar marcado na zona do rabo/anca.
16.ª) Acresce que as expressões mencionadas e que o arguido utilizou no dito episódio em que a Assistente amamentava o seu filho, eram adequadas e susceptíveis de atingir e ofender como ofenderam a honra e a consideração que lhe são devidas e, todavia, quis agir de forma descrita.
17.ª) E ao ter arrancado à força o menino CC dos braços da mãe enquanto esta o amamentava, nas circunstâncias em que aconteceu e que melhor se encontram descritas nos factos 4, 9 e 10, constitui em si mesmo, um acto brutal e cruel de malvadez, porquanto, enquanto apelidava o seu próprio filho de “caralho” (“Cala-me esse caralho, só sabe é chorar”); e também não se coibia de designar de “merda” ao leite materno enquanto o menino amamentava e, ainda assim, o tirava do colo da mãe com força e à bruta, separando mãe e filho neste acto de valiosa importância para o menor, impondo a sua vontade sobre a Assistente e sobre o seu filho menor, através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade, humilhação, tudo provocado pelo arguido, que torna num inferno a vida daquele concreto ser humano.
18.ª) Ao praticar os factos descritos e dados por provados pelo Tribunal a quo, o arguido agiu sempre com a intenção de maltratar física e psicologicamente a Assistente e o menino CC, tendo-os insultado, ameaçado e intimidado para melhor assegurar o êxito das suas intenções atingindo-a na sua integridade física, na sua honra e dignidade, o que conseguiu.
19.ª) O arguido contava, para a consumação da violência descrita, com a sua superior força física, a resignação e o medo dos ofendidos, servindo-se da intimidade da vida familiar para praticar tais factos de forma repetida, apesar de saber que não podia tratar a Assistente e o seu filho (ao tempo) com apenas 3 anos de idade da forma descrita.
20.ª) O arguido agiu em todos os momentos com vontade livre e consciente, bem sabendo que os seus comportamentos eram e são proibidos e punidos por lei penal.
Consequentemente,
21.ª) A prova que se produziu em julgamento e toda aquela que se encontra junta aos autos permite atestar que o arguido, nas circunstâncias de tempo, modo e espaço descritas em sede de fundamentação de facto da decisão recorrida agrediu de forma violenta e totalmente gratuita o seu filho, pelo menos, em duas ocasiões, manifestando-se de forma física e emocional no menino CC, ferindo-lhe profundamente a sua dignidade e condição de ser humano.
E,
22.ª) Para uma justa e correcta reapreciação da decisão em crise, impõe-se convocar perante V. Exas., Venerandos Desembargadores, que se substituam ao Tribunal a quo na condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) do Código Penal na pessoa de CC, filho do casal aqui contendente, como é da mais Elementar Justiça.
Por outro lado,
23.ª) Não se pode conformar a Assistente com o montante fixado a título de indemnização de € 1000,00 por danos não patrimoniais.
24.ª) O arguido, nunca se coibiu em tratar a Assistente, sua mulher ao tempo dos factos e o ofendido CC, seu filho, de forma vil, cruel, degradante e desumano, rebaixando-os sempre que pôde, quer pela via do insulto ou da má-educação quer ainda por via da coacção e da violência física.
25.ª) Dos autos resultam evidenciadas as marcas de violência física e psicológica de que a Assistente foi vítima, tendo-a deixado perturbada, ansiosa e nervosa pelo trauma de ter sido violentada e agredida pelo seu marido.
26.ª) Resulta demonstrada também a brutalidade assinalável das agressões verbais com que se dirigia à Assistente e, mais grave, a forma como tratava o menino CC, apelidando-o de “caralho” e designando o leite materno de “merda”, o que, mais do que problemas na definição de personalidade, concretiza muito bem como é que o Arguido olhava para a sua mulher e para o seu filho, tratando-os abaixo de lixo, com total indignidade e desrespeito pela pessoa humana.
27.ª) Na maioria das vezes, as agressões e os insultos passavam-se na frente do filho, que não obstante ter ainda terna idade, manifesta-se através do choro compulsivo, como bem atesta o Arguido quando referiu: “Cala-me esse caralho, só sabe é chorar”.
28.ª) Ficou igualmente demonstrado e resulta da Douta Sentença recorrida o total desvalor dado pelo Arguido ao processo penal e às acusações que lhe eram no mesmo dirigidas, preferindo manter-se em silêncio durante o julgamento, rindo-se e suspirando ironicamente enquanto a Assistente prestava o seu depoimento e, não obstante a gravidade e especial perversidade da conduta do Arguido e dos gravíssimos danos que, com a mesma, provocou na Assistente e no ofendido CC, o mesmo continua a não assumir as consequências das suas ações ou a reconhecer o mal que, pelas mesmas, causou.
29.ª) Motivo pelo qual, se impunha que, a ser suspensa a execução da pena de prisão em que foi condenado, a mesma ficasse dependente do pagamento, pelo Arguido, do montante de indemnização em que foi condenado, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 51.º do CPP, uma vez que, sem que se subordine a suspensão da pena de prisão ao pagamento voluntário da indemnização a que vai condenado, não haverá qualquer consciencialização sobre o desvalor das condutas de violência nas relações de intimidade.
30.ª) Ficou amplamente demonstrada a gravidade e extensão dos danos não patrimoniais infligidos a ambos os Ofendidos pelo Arguido, sem esquecer que um dos Ofendidos foi sua mulher e o Outro Ofendido é o seu filho menor.
31.ª) O valor atribuído de € 1.000,00 a título indemnizatório é francamente baixo e irrisório, por um lado, porque não cobre a extensão dos danos sofridos pela Assistente e, por outro, porque não tem em conta a penalização que deve ser concretizada pela prática do crime de violência doméstica sobre o menino CC.
32.ª) Assim, perante a prática de dois crimes dolosos, um sobre a pessoa da Assistente e outro sobre a pessoa do Ofendido CC, em que o grau de culpa do agente se mostra muito elevado e em que as suas consequências não se podem deixar de se considerar como muito relevantes.
33.ª) Pelo que, tomando em consideração o que se apurou quanto à situação socioeconómica de ambos, mostra-se adequado o quantum de € 2.500,00 por cada um dos crimes, fixando-se o valor total de € 5.000,00.
Nestes termos, nos melhores e demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente Recurso da Assistente BB obter Provimento e, em consequência, ser o arguido condenado também pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) do Código Penal na pessoa de CC, filho do casal aqui contendente.
Consequentemente, deverá ser fixada uma indemnização pela prática de dois crimes dolosos, um sobre a pessoa da Assistente e outro sobre a pessoa do Ofendido CC, em que o grau de culpa do agente se mostra muito elevado e em que as suas consequências não se podem deixar de se considerar como muito relevantes.
Assim sendo, e tomando em consideração o que se apurou quanto à situação socioeconómica de ambos, mostra-se adequado o quantum de € 2.500,00 por cada um dos crimes, fixando-se o valor total de € 5.000,00, ficando a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao pagamento voluntário da indemnização.»
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
«1 - Por Sentença, proferida nos autos supra referenciados, foi julgada parcialmente procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público no processo à margem identificado e, em consequência, foi o arguido AA absolvido da prática de um crime de violência doméstica agravada (na pessoa de seu filho CC) p. e p. pelo art. 152º nº 1 al. d) e 2 al. a) do Cód. Penal.
2 - Foi todavia, condenado o arguido pela prática de um crime de violência doméstica agravado p. e p. pelo art. 152º nº 1 als. a) e c) e nº 2 al. a) do Cód. Penal (na pessoa de BB).
3 – Na Douta Sentença – e na parte que ora interessa – foram os seguintes os factos dados como provados:
“1. O arguido AA e BB contraíram matrimónio, um com o outro, no dia ... de ... de 2017, fixando residência comum na ....
2. Desse relacionamento nasceu um filho em comum – CC, no dia ... de ... de 2018.
4. O arguido AA, em datas não apuradas em concreto, mas certamente entre o mês de Maio de 2019 e Janeiro de 2022, no interior da residência comum, enquanto o seu filho CC chorava, dirigiu a BB as seguintes palavras:
- “Cala-me esse caralho, só sabe é chorar”.
9. Neste mesmo dia ... Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA dirigiu-se a BB, que se encontrava a amamentar CC, e num tom de voz elevado, audível por todos os que por ali passassem, disse-lhe:
-“Deixa de dar essa merda ao miúdo. O miúdo já não tem idade para estar a mamar. Tira essa merda ao miúdo”.
10. Em acto contínuo, o arguido AA, exercendo força, retirou CC, do colo de BB, enquanto estava a mamar, provocando dores na mama desta.
14. Em dia não apurado em concreto, mas certamente entre o dia ... Janeiro de 2023 e o dia … de Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA, por motivo não determinado, desferiu uma palmada na zona da anca, do seu filho CC, deixando-lhe uma marca avermelhada naquela zona e provocando-lhe dores.”
4 – Foram, todavia, dados por não provados os seguintes factos - na parte que ora interessa – designadamente os seguintes:
“l) Sabia o arguido AA que, ao actuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, a quem cabia a sua educação, dever de cuidado e segurança, por ser o seu progenitor, e legal representante, o fazia perante uma criança, que devido à sua tenra idade, não detinha capacidade para reagir a tais actos, o qual, apesar disso, o obrigava a assistir e, mesmo, a sofrer.
m) O arguido AA bem sabia que, ao actuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, fazendo-o num tom de voz elevado, com demonstrações verbais e não verbais de agressividade, lhe provocavam sentimentos de angústia, manifestando-o com choro compulsivo, perturbando o seu processo de vinculação e o seu saudável crescimento psíquico e emocional, conformando-se com esse resultado.”
5 – Afigura-se-nos, concordando neste ponto com o invocado pela assistente, que existe contradição entre os factos dados por provados sob os nºs. 4, 9, 10 e 14, e os factos dados por não provados relativos ao elemento subjectivo do tipo de ilícito de violência doméstica relativamente ao menor CC (factos não provados sob as als. l) e m)).
6 – Tendo o Tribunal a quo dado como provados os factos supra transcritos sob os pontos 4), 9), 10) e 14) decorre, das regras da experiência comum e daqueles factos objectivos provados, que teria de dar como provados os factos relativos ao elemento subjectivo do crime de violência doméstica em relação ao menor CC, ou seja, teria de dar como provados as alíneas l) e m) dos factos dados como não provados.
7 – Essa contradição que se verifica no que concerne ao elemento subjectivo do crime relativamente ao menor CC, face aos factos provados nos nºs. 4, 9, 10 e 14 da matéria de facto, leva-nos a entender que, para além da salientada contradição, se verifica igualmente erro notório na apreciação da prova produzida em Audiência de Julgamento.
8 – Em nosso entender o Tribunal a quo não poderia ter dado como não provados os factos relativos ao elemento subjectivo do tipo de ilícito de violência doméstica (em relação ao menor CC) tendo em conta que deu como provados relativos aos elementos objectivos do aludido tipo legal (pontos 4, 9, 10 e 14 dos factos provados).
9 – Os aspectos relativos ao elemento subjectivo do tipo de crime de violência doméstica (relativamente ao menor CC) retiram-se dos elementos objectivos dados como provados nos pontos 2, 4, 9, 10 e 14.
10 – Face ao erro notório na apreciação da prova, deve o Tribunal ad quem considerar como provados os factos constantes das alíneas l) e m) dos factos não provados, nos seguintes termos (e em face dos factos dados como provados nos pontos 2), 4), 9) 10) e 14):
- Sabia o arguido AA que, ao actuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, a quem cabia a sua educação, dever de cuidado e segurança, por ser o seu progenitor, e legal representante, o fazia perante uma criança, que devido à sua tenra idade, não detinha capacidade para reagir a tais actos, o qual, apesar disso, o obrigava a assistir e, mesmo, a sofrer (alínea l).
- O arguido AA bem sabia que, ao actuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, fazendo-o num tom de voz elevado, com demonstrações verbais e não verbais de agressividade, lhe provocavam sentimentos de angústia, manifestando-o com choro compulsivo, perturbando o seu processo de vinculação e o seu saudável crescimento psíquico e emocional, conformando-se com esse resultado (alínea m).
11 – Mostram-se violados na Douta Sentença os artigos invocados pela assistente e ainda os arts. 127º e 410º nº 2 al. c) do Cód. Proc. Penal.
12 – Deve, pois, a Sentença ora recorrida ser substituída por outra que, dando como provados os factos relativos ao elemento subjectivo do crime de violência doméstica agravada nos termos que se acabaram de explanar, condene também o arguido pela prática de factos que integram o referido crime p. e p. pelo art. 152º nº 1 al. d) e nº 2 al. a) do Cód. Penal (na pessoa do seu filho menor CC).
13 – O tipo de penas em concreto a aplicar ao arguido devem ser de prisão, suspensas na respectiva execução. O mesmo se devendo decidir em sede de cúmulo jurídico de ambas as penas.
14 – Ao contrário do entendimento da assistente, não se nos afigura que a pena de única de prisão suspensa na respectiva execução deva ser subordinada ao dever de pagamento das indemnizações.»
O Arguido apresentou resposta, na qual verteu as seguintes conclusões (transcrição):
«1. A Assistente/Recorrente vem recorrer da douta Sentença que absolveu o Arguido /Recorrido quanto ao crime de violência doméstica perpetrado na pessoa do CC, filho do casal, bem como quanto ao montante atribuído a título indemnizatório.
2. A Assistente/Recorrente alega existir matéria provada que permitiria decisão diferente.
3. Invocando que os factos provados nos Pontos 4, 9, 10 e 14 contradizem os factos não provados nas alíneas m), n), p) e q) da matéria de facto não provada.
4. A Assistente/Recorrente alega uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, alegando que o Arguido/Recorrido deveria ter sido condenado também quanto ao filho de ambos.
5. Porém, não existe qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão proferida.
6. Da análise exaustiva e criteriosa do texto da decisão recorrida não resulta a existência de vícios/nulidades. Consequentemente, não se pode proceder a qualquer alteração da matéria de facto fixada, efectuada que foi com respeito pelas regras da experiência comum (usada na valoração da prova produzida).
7. E na impossibilidade de alteração da matéria de facto por não existir causa que a justifique (atente-se que a recorrente não procedeu à impugnação nos termos das alíneas do nº 3 do art° 412°) e a decisão não enfermar de vícios/ nulidades.
8. O recurso deve assim, ser rejeitado liminarmente.
9. Ainda assim importa sublinhar em Defesa do aqui Recorrido: O recurso da matéria de facto não está previsto na lei com vista à repetição do julgamento na segunda instância.
10. Outrossim, foi concebido e deve ser usado como remédio jurídico quando o julgamento realizado seja manifestamente erróneo. Deste modo, o tribunal de recurso apenas intervém de forma a corrigir erros de julgamento de facto, devendo proceder à sua correção se for caso disso.
11. No caso dos autos e percorrido o texto da sentença recorrida, é notório que o Tribunal a quo não teve qualquer dúvida relativamente aos factos dados como não provados e provados, referente ao arguido, evidenciando, na sua exposição motivacional uma posição segura relativamente à sua não ocorrência, com base nos quais veio a absolver o arguido do crime de violência doméstica com referência ao seu filho, CC.
12. Analisada a decisão verifica-se que não existe qualquer contradição na matéria de facto, nem entre esta e a sua motivação. A decisão de facto e respetiva motivação são perfeitamente sequenciais e lógicas, assentando num exame crítico da prova vertido num discurso claro e lógico.
13. Tal como resulta claramente do texto da decisão recorrida, foram apurados todos os factos objetivos e subjetivos necessários para o não preenchimento do tipo legal de crime (violência doméstica sobre o filho) por cuja prática o arguido foi absolvido, não se mostrando qualquer omissão de averiguação dos respetivos elementos constitutivos.
14. Não houve da parte do Tribunal a quo qualquer falha ou desrespeito das regras legais e dos princípios gerais de direito na valoração da prova, não padecendo, por isso, a decisão de qualquer erro na apreciação da prova.
15. Ou seja, do texto da decisão conclui-se sem qualquer margem para dúvidas que a valoração da prova produzida em audiência, documentos e declarações da assistente, arguido e depoimento das testemunhas, não violou qualquer regra da experiência ou da lógica.
16. O que resulta da decisão de facto é que o tribunal se convenceu que os factos ocorreram do modo que verteu nos factos provados e não provados, tendo atribuído credibilidade diferente às testemunhas, assistente, arguido indicando isso mesmo na fundamentação da decisão de facto e justificado por que razão umas lhe mereceram credibilidade e outras não.
17. O Tribunal a quo é sempre o que se encontra mais apto para apreciar a prova, pois é este que ouve e vê as testemunhas, as suas reações, as suas pausas, os seus gestos.
18. A assistente quer extrapolar factos, para serem objeto de uma errada visão da realidade, que se enverede por um caminho persecutório implacável, e cego, despido de qualquer objetividade e rigor, na interpretação enviesada que faz da realidade dos factos e na errada interpretação, que leve a uma condenação criminal totalmente infundada.
19. O Tribunal não julga com base em suposições e incertezas, mas sim com base em prova que seja segura, lógica e coerente, o que não sucedeu nas declarações prestadas pela assistente, chegando a contradizer-se com o depoimento das testemunhas de acusação.
20. Assim, o depoimento da Assistente afigurou-se hesitante, comprometido, inseguro e incongruente, sem credibilidade no que diz respeito ao filho de ambos.
21. Tendo ficado plasmado na Sentença: “...o depoimento da ofendida deixou muitas dúvidas por o que já se disse supra. Com efeito é incompreensível que venha agora em plena audiência afirmar que o arguido dava palmadas com frequência na face do seu filho ainda bebé e não tenha denunciado tal facto em inquérito face à gravidade do mesmo quando comparado com uma palmada na anca, sendo que nem a mãe da ofendida que prestou um depoimento muito parcial afirmou este facto.”
22. Bem como: “...o depoimento da ofendida que se pautou por muitas faltas de memória, foram contrariadas pelo depoimento da sua mãe, a testemunha DD, avó do menor.”
23. Atente-se que: “Com a redação do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, veio o legislador legitimar a jurisprudência que já vinha entendendo que os maus tratos que integrem a prática de crime de violência doméstica se podiam reportar a situações de agressão (física ou psicológica) reiterada e continuada no tempo, ou a agressões únicas, mas de gravidade tal que possibilitem a afirmação de que foram praticadas por especial malvadez ou grave disfunção do agente.” - AD. TRP, 927/20.3KRPRT.P1, Real. Maria Deolinda Dionísio, 02-02-2022, in www.dgsi.pt.
24. Pelo que, nos presentes autos, não se provou de forma alguma que a conduta do aqui Recorrido tenha preenchido o tipo legal do crime de violência doméstica quanto ao seu filho, CC.
25. Não existindo nos presentes autos, elementos probatórios essenciais, fiáveis, isentos e credíveis que permitam ao Tribunal, sem qualquer margem de dúvida, condenar o ora Recorrido nos termos pretendidos pela Assistente.
26. Donde se conclui, não existir na Douta Sentença recorrida qualquer razão, de facto ou de Direito, que mereça ser apreciada de forma distinta à proferida, mantendo-se na integra a Douta Sentença por ser conforme ao Direito e à Justiça.»
Uma vez remetidos os autos a este Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer corroborando a posição que fora manifestada pela resposta ao recurso que fora apresentada pelo Digno Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância.
Cumprido o preceituado pelo art. 417º/2 do Código de Processo Penal, o Arguido respondeu a esse parecer, mantendo a posição que vertera anteriormente e sublinhando que uma alteração da matéria de facto no sentido propugnado pela Assistente e pelo Ministério Público significaria uma violação do princípio in dubio pro reo, assim concluindo que deve confirmar-se a sua absolvição no que ao crime de violência doméstica na pessoa do filho respeita.
Não se mostra requerida a realização de audiência.
Proferido despacho liminar, foram colhidos os “vistos” e teve lugar a conferência.
*
2 - FUNDAMENTAÇÃO
2.1 Questões a tratar
Suscita o recurso interposto várias problemáticas; em síntese:
a. Se a sentença padece de um erro notório na apreciação da prova, na parte em que se deram como não provados os factos descritos em l) e m), tendo em conta a factualidade que se deu como provada sob os pontos 4, 9, 10 e 14;
b. Se deve o Arguido ser (também) condenado por um crime de violência doméstica perpetrado na pessoa do menor CC e na afirmativa em que pena(s);
c. Se deve ser aumentado o valor indemnizatório arbitrado à Assistente e no mesmo montante fixado um valor indemnizatório ao menor CC;
d. Se deve a suspensão da execução da pena de prisão ser acompanhada da imposição da obrigação de pagamento das indemnizações estabelecidas.
2.2 A sentença recorrida
Constam da sentença recorrida as seguintes passagens quanto à fundamentação de facto (transcrição):
«III – Fundamentação de Facto
A) Factos Provados
Da instrução e discussão da causa e com interesse para a boa decisão da mesma resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido AA e BB contraíram matrimónio, um com o outro, no dia ... de ... de 2017, fixando residência comum na ...
2. Desse relacionamento nasceu um filho em comum – CC, no dia ... de ... de 2018.
3. A partir do mês de Maio de 2019, que a vida em comum do casal, passou a ser pautada por episódios de violência verbal, no decurso dos quais, o arguido AA, no interior da residência comum, com uma frequência semanal, dirigiu a BB, sua esposa e mãe do seu filho, as seguintes palavras:
- “És uma puta”.
4. O arguido AA, em datas não apuradas em concreto, mas certamente entre o mês de Maio de 2019 e Janeiro de 2022, no interior da residência comum, enquanto o seu filho CC chorava, dirigiu a BB as seguintes palavras:
- “Cala-me esse caralho, só sabe é chorar”.
5. Entre os meses de Janeiro e de Agosto de 2022, o arguido AA, no decurso de discussões entre o casal, dirigiu a BB as seguintes palavras:
- “sua puta”;
- “sua vaca”
- “Dá-me metade do valor da casa que eu vou-me embora”.
6. No mês de Agosto de 2022, o arguido AA, no decurso de uma discussão com BB, no interior da residência comum, agarrou aquela pelo pescoço, ao mesmo tempo que lhe dizia:
- “És uma puta”.
7. No dia … de
8. Dezembro de 2022, da parte da tarde, em hora não determinada, o arguido AA, no interior da residência comum, após uma discussão, dirigiu a BB as seguintes palavras:
- “Tu és maluca, não bates bem da cabeça”.
8. De seguida, o arguido AA agarrou o braço de BB, exercendo força, e empurrou a mesma contra o sofá, provocando-lhe dores.
9. Neste mesmo dia ... Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA dirigiu-se a BB, que se encontrava a amamentar CC, e num tom de voz elevado, audível por todos os que por ali passassem, disse-lhe:
- “Deixa de dar essa merda ao miúdo. O miúdo já não tem idade para estar a mamar. Tira essa merda ao miúdo”.
10. Em acto contínuo, o arguido AA, exercendo força, retirou CC, do colo de BB, enquanto estava a mamar, provocando dores na mama desta.
11. Ainda neste dia ... Janeiro de 2023, pelas 21:30 horas, no interior da residência comum, o arguido AA, no decurso de uma discussão com BB, empurrou-a, provocando a sua queda ao chão.
12. Em sequência da conduta do arguido AA, BB sentiu fortes dores e sofreu as seguintes lesões/sequelas:
- “Membro inferior esquerdo: equimose roxa na região na anca, com 8x3cm”.
13. Tais lesões/sequelas descritas, vieram a ser causa directa e necessária de um período de doença, para BB, fixável em 8 (oito) dias, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional, não resultando, em condições normais, quaisquer consequências permanentes.
14. Em dia não apurado em concreto, mas certamente entre o dia ... Janeiro de 2023 e o dia … de Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA, por motivo não determinado, desferiu uma palmada na zona da anca, do seu filho CC, deixando-lhe uma marca avermelhada naquela zona e provocando-lhe dores.
15. O arguido AA saiu da residência comum, de forma permanente, no dia 25 de Fevereiro de 2023.
16. Ao actuar da forma descrita, o arguido AA, molestando física e psicologicamente BB, faltou ao respeito e consideração devidos para com a sua esposa, e mãe do seu filho, fazendo-a viver em permanente sobressalto e angústia, bem sabendo que as suas condutas são idóneas a provocar-lhe medo e ansiedade.
17. O arguido AA, ao comportar-se da forma descrita sabia que molestava no seu corpo, e na sua saúde, BB, sua esposa e mãe do seu filho e que o fazia, além do mais, no interior da residência comum.
18. Mais sabia o arguido AA que ao comportar-se da forma descrita, afectava a dignidade pessoal de BB, sua esposa e mãe do seu filho, bem como, punha em causa o equilíbrio psicológico, físico e emocional, daquela, pois que a submetia a grande sofrimento psíquico e físico, o que quis e conseguiu.
19. O arguido AA também não desconhecia que, a reiteração do seu comportamento e a forma como o mesmo se prolongou no tempo, punha em causa a paz familiar, indispensável ao saudável convívio entre os membros familiares, impedindo-a de se verificar.
20. Contudo, o arguido quis sempre agir da forma que se descreveu, o que fez deliberada, livre e conscientemente, embora ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
Mais se provou que:
21. Do relatório realizado em 30.10.2023, pelos Serviços de Assessoria ao Tribunal no âmbito do processo de alteração das responsabilidades parentais relativas ao menor CC, consta nas conclusões o seguinte: Nos momentos com o filho AA revelou sensibilidade e responsabilidade afectiva, consciente das responsabilidades do filho, respondendo aos sinais comportamentais mais expressivos por parte de CC. Respeitou o ritmo de CC durante as brincadeiras, mantendo-se envolvido e empenhado na interacção. A dinâmica entre ambos foi marcada pela cumplicidade, negociação e respeito. Pelo exposto e na sequência do observado, é parecer esta equipa que, apesar de se tratar de um contexto de observação pouco natural, a interacção foram vividos por CC com entusiamo, mostrando-se descontraído na interacção com o AA e não se observando indicadores de desconforto ou recusa em estar com o pai.”
22. O arguido faz conteúdos para redes sociais, auferindo o salário mensal de € 1.100,00.
23. Vive sozinho em casa arrendada, pagando de renda o valor mensal de €350,00.
24. De habilitações literárias tem o 12º ano de escolaridade.
25. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
B) Factos Não Provados
Com relevância para a decisão da causa não resultaram por provar quaisquer factos, com relevância para a boa decisão da causa.
a. Nas circunstâncias mencionadas em 3., o arguido dirigiu à ofendida as expressões:
- “És filha de uma puta”; - “Cabra”.
b. Os factos a que alude o ponto 4 ocorreram em pelo menos duas ocasiões.
c. Nas circunstâncias aludidas em 5., com uma frequência diária, o arguido proferiu também as seguintes expressões:
- “Vou-te fazer a vida negra”;
- “Vou-te tirar tudo”;
- “A minha intenção é pôr-te maluca”;
- “Vou-te deixar na merda”;
- “Se me deres o que eu quero eu saio já”;
- “Levo o menino e vou-me embora”;
- “Vou fazer tudo para tu perderes tudo, incluindo o trabalho”;
- “Sua cadela”;
- “Eu dou cabo de ti”;
- “Vai para o caralho, estou farto desta merda”;
- “Até nos separarmos vai ser assim”.
d. Enquanto o arguido AA assim actuava, CC, seu filho menor, de 3 anos de idade, ao presenciar tal situação, chorou de forma contínua e num tom de voz elevado, audível por todos os que por ali passassem.
e. Nas circunstâncias mencionadas em 6., o arguido também dirigiu á ofendida expressão:
- “És uma cabra”.
f. Nas circunstâncias aludidas em 7., o arguido também disse:
- “Vou dizer que não és boa da cabeça, não tens capacidade para tomar conta do teu filho”.
g. No dia ... Janeiro de 2023, em hora não determinada, o arguido AA, depois de BB lhe ter pedido para “parar de lhe bater”, caso contrário ia apresentar queixa, respondeu-lhe:
“Hei-de foder-te a cabeça toda que não vais trabalhar mais na tua vida. Se fores apresentar queixa digo que foste tu a bater com a cabeça nas paredes”.
h. A ofendida BB pediu ao arguido para “parar de lhe bater”, caso contrário ia apresentar queixa.
i. Nas circunstâncias aludidas em 10, CC estava doente, com diarreia e vómitos.
j. Como sequência da conduta do arguido AA, CC, seu filho menor, passou a padecer de vómitos, de diarreia, de cólicas e de crises de ansiedade.
k. Em consequência das palavras proferidas pelo arguido AA, BB sentiu grande inquietação e temeu pela sua integridade física e mesmo pela sua vida, pois acreditou, que aquele seria capaz de levar por diante o mal que lhe anunciava.
l. Sabia o arguido AA que, ao actuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, a quem cabia a sua educação, dever de cuidado e segurança, por ser o seu progenitor, e legal representante, o fazia perante uma criança, que devido à sua tenra idade, não detinha capacidade para reagir a tais actos, o qual, apesar disso, o obrigava a assistir e, mesmo, a sofrer.
m. O arguido AA bem sabia que, ao actuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, fazendo-o num tom de voz elevado, com demonstrações verbais e não verbais de agressividade, lhe provocavam sentimentos de angústia, manifestando-o com choro compulsivo, perturbando o seu processo de vinculação e o seu saudável crescimento psíquico e emocional, conformando-se com esse resultado.
C) Motivação
O arguido advertido no direito ao silêncio optou por não prestar declarações,
Nesta senda, quanto aos factos constantes dos pontos 1 e 2, o Tribunal fundou a sua convicção no teor dos assentos de nascimento de fls. 143, 145 e 147, e no depoimento da ofendida, BB quanto à residência da família que explicou ter sido fixada apenas a partir de Maio de 2018.
Para prova dos factos a que aludem os pontos 3 a 12, 14 a 17, atendeu-se ao depoimento da assistente, BB, que, tendo conhecimento directo dos factos, porquanto é ofendida nos presentes autos, relatou de forma perturbada, espontânea e esclarecedora, se bem que com muitos lapsos de memória derivados do que foi possível observar da circunstância de querer passar muita informação, tendo por isso enorme dificuldade em concentrar-se, mas ainda assim deu nora do que foi a sua vida com o arguido, referindo que os problemas do casal se ficaram a dever sobretudo ao vicio do jogo do arguido e à necessidade do arguido de ter mais dinheiro do que o que auferia pelo seu trabalho, tendo os problemas começado quando começou a controlar a conta bancária e com o nascimento do filho.
Relatou que as agressões físicas começaram a surgir em Agosto de 2022, nas férias no ... e que até aí ocorriam muitas discussões nas quais o arguido dizia as expressões que constam destes pontos em tom de voz muito alto, perturbando toda a vizinhança que com muita regularidade chamava a policia. Relatou o episódio de Agosto de 2022, em que estavam de férias no ... e que num determinado dia o arguido decide saír com os “amigos do jogo”, deixando-a sózinha com o filho, sem o carro. Quando confrontado com esta situação o arguido agarrou-a pelo pescoço ao mesmo tempo que proferia expressões injuriosas. Relatou também o episódio ocorrido em Dezembro de 2022 em que o arguido, com força a empurra contra o sofá, causando-lhe dores e o episódio que ocorreu em Janeiro de 2023 quando o arguido arrancou o filho da sua mama quando o estava a amamentar, fazendo ferida. Referiu-se ainda a um outro episódio também ocorrido em Janeiro de 2023, em que com um empurrão do arguido é atirada contra o rodapé, tendo ficado com uma equimose na anca e sem se conseguir mexer no dia seguinte em que decide ir ao Hospital. Contou ainda que o arguido tinha por hábito dar palmadas no filho, inclusivé na cara, relatando um episódio de uma palmada na anca, que deixou marca no corpo da criança, causando-lhe dores.
Não obstante o depoimento da ofendida ter tido muitos lapsos de memória, tendo sido necessário muitas insistências para que concretizasse os factos acrescida da circunstância estranha de ter relatado um facto que não relatou em inquérito com enorme gravidade (o arguido dar com regularidade palmadas na cara do filho, na altura em que era um bébé), o tribunal deu como provados todos estes factos, desde logo porque foram aliás corroborados por todas as vizinhas, não se vislumbrando qualquer razão para todas estas pessoas tenham vindo aqui relatar factos que não correspondessem á verdade, não tendo tal forma de prestar depoimento colocado em causa tudo o mais relatado pela ofendida, com excepçao para os factos que envolvem o filho, como se justificará infra.
Com efeito e quanto aos factos em análise, o depoimento da ofendida foi corroborado quanto às expressões pelo depoimento da testemunha EE, vizinha do arguido e da ofendida, que referiu ter chamado a polícia mais de 10 vezes, relatando que ao fim de semana era pior, se bem que para o fim da relação já era todos os dias. Ouviu o arguido chamar porca e vaca à ofendida, puta e que não prestava e esta a dizer “AA para”. Não sabe se o arguido batia na ofendida, mas a verdade é que esta andava sempre muito tapada, mesmo no Verão. Referiu ainda que a criança chorava muito.
A testemunha FF, também vizinha do arguido e da ofendida (o quarto desta testemunha é ao lado do quarto do arguido e da ofendida) referiu que ouvia as discussões que normalmente começava à sexta-feira e que o arguido chamava vaca e puta de merda à ofendida e que ela não valia nada como mulher nem como mãe. Esta testemunha afirmou a expressão que consta do ponto 4, referindo que ouviu o arguido dizer “cala-me esse caralho. Eu quero dormir” e a expressão constante do ponto 5, referindo que ouviu o arguido dizer para a ofendida: “Tens um bom remédio. Dá-me a minha parte na casa que eu vou-me embora”. Esta testemunha disse ainda que ouviu muitas vezes a ofendida dizer para o arguido para ele parar, dizendo em concreto: “para. Estás a magoar-me”
O depoimento da testemunha GG, também vizinha do arguido e da ofendida, corroborou igualmente o depoimento da ofendida, tendo afirmado ter ouvido o arguido dizer à ofendida que “não está bem da cabeça. És uma estupida. Estás parva”.
Relevante foi o depoimento da testemunha HH, que com conhecimento directo dos factos, logrou convencer o Tribunal, tendo prestado um depoimento muito seguro e claro, com a preocupação em afirmar apenas o que sabia, dando nota de que conhecia o arguido por ter sido colega do seu neto e que também conhecia a ofendida por causa do seu anterior marido.
Esta testemunha relatou ao Tribunal a ofendida lhe ligou muitas vezes a pedir-lhe ajuda e a queixar-se ter sido agredida pelo arguido. Referiu que a ofendida lhe telefonava a chorar e que o filho também chorava muito. Disse ter ouvido o arguido dizer à ofendida que ela era uma “puta” e “para ir para o caralho”. Relatou ainda que ouviu o CC dizer que o arguido bateu na mãe, afirmação que foi coincidente com o depoimento da testemunha DD, mãe da ofendida, que quanto aos demais factos prestou um depoimento muito parcial, quanto a este foi coincidente com o desta testemunha, motivo pelo qual se considerou nesta parte este depoimento.
Os factos a que aludem os pontos 12 e 13, atendeu-se à nota de alta de urgência de fls. 77 e ao relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 118 a 119 verso, 127 a 128 verso.
Quanto ao elemento subjectivo constante dos pontos 16 a 20 -, o Tribunal conjugou a prova produzida com as regras da experiência comum, as quais permitem concluir que o arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, mas que não obstante quis empreendê-las. Com efeito, tendo o arguido agido voluntariamente, tem necessariamente consciência que, com as suas condutas ofendia psiquicamente a ofendida, causando-lhe sofrimento.
A provado facto a que alude o ponto 21, resulta do teor do relatório da ... ao Tribunal junto no decurso da audiência pelo arguido.
No que respeita aos antecedentes criminais do arguido, a convicção do Tribunal atendeu ao teor do Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
Quanto aos factos dados como não provados e constantes das alíneas a), b), e) a h) e k), assim foram considerados por não ter sido produzida prova suficiente e/ou consistente quanto aos mesmos pois nenhuma testemunha os afirmou.
No que se refere aos factos constantes da alínea d), j), l) e m) assim resultaram porque do depoimento da ofendida não foi possível afirmar estes factos. Dos depoimentos das testemunhas resulta que a criança chorava muito. Contudo não se apurou se o choro da criança era causado pelas condutas do arguido ou do arguido e da ofendida ou por qualquer outro motivo, designadamente por estar doente. Quanto aos alegados efeitos que as condutas do arguido causariam no filho, o depoimento da ofendida deixou muitas dúvidas por o que já se disse supra. Com efeito é incompreensível que venha agora em plena audiência afirmar que o arguido dava palmadas com frequência na face do seu filho ainda bebé e não tenha denunciado tal facto em inquérito face à gravidade do mesmo quando comparado com uma palmada na anca, sendo que nem a mãe da ofendida que prestou um depoimento muito parcial afirmou este facto. O que disse assim como o pai da ofendida, pessoas que estavam todos os dias com a criança, foi que o arguido dava palmadas no “rabinho”. Na cara, não. Disseram estas testemunhas. Perante este exagero de palmadas que poderá ser apenas discursivo como é típico de um determinado grupo social (lembro que em determinada altura a ofendida disse que foi a um número absurdo de consultas com o filho (obviamente que esta frase não pode ser levada á letra) e considerando ainda o que é referido no relatório mencionado no ponto 21, na dúvida, ao Tribunal não restou outra alternativa que não fosse dar estes factos como não provados.
Quanto às alíneas c) e i), assim resultaram porque o depoimento da ofendida que se pautou por muitas faltas de memória, foram contrariadas pelo depoimento da sua mãe, a testemunha DD, avó do menor, que referiu que o menino não tomava nada para a ansiedade, esclarecendo que os medicamentos que toma são medicamentos normais. Nas suas palavras “ele está calmo, connosco”.
Cumpre ainda fazer uma breve referência aos demais depoimentos apenas para consignar que não tinham conhecimento directo dos factos e destes depoimentos resulta que a causa dos desentendimentos entre arguido e ofendida seria a enorme interferência dos sogros do arguido na vida do casal. De facto os pais da ofendida estavam demasiado presentes na vida deste casal, ao ponto de se acharam donos da sua vida ao afirmaram os dois “sustentamos esta casa”, “onde está o dinheiro”. Mas tal circunstância que foi muito prejudicial à ofendida nesta como poderá a vir a ser em futuras relações não justifica minimamente as condutas do arguido e sobejamente demonstradas nestes autos, como parece ser a opinião do irmão do arguido.
Aqui chegados cumpre ainda referir que não podemos olvidar e por isso impõem-se muitas cautelas, que por de trás de todas estas condutas estão partilhas de bens pelo divórcio do arguido e da ofendida que segundo transpareceu não irão ser fáceis pois têm por base doações feitas pelos sogros do arguido, está também a regulação das responsabilidades parentais do CC cuja alteração foi suscitada pela ofendida, o alegado problema de jogo do arguido e também a circunstância que o arguido não aceita que é o filho já com 5 anos de idade ainda se encontrar a mamar.»
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Da sentença recorrida constam em seguida as seguintes considerações sobre o enquadramento jurídico-penal dos factos (transcrição):
«O arguido vem acusado da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas a) e c) e n.º 2, do Código Penal e de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) do Código Penal.
Prevê o artigo 152.º do Código Penal que comete tal crime “1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge; (…) c) a progenitor de descendente comum em 1.º grau; d) a pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite”.
O n.º 2, alínea a) acrescenta que “No caso previsto no número anterior, se o agente praticar facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
O bem jurídico tutelado pelo preceito supra citado, e no que concerne aos maus tratos infligidos a cônjuge ou a quem viva em relação análoga, como refere Taipa de Carvalho “não está na protecção da comunidade familiar, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana; assim, “deve dizer-se que o bem jurídico protegido por este tipo de crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que, pode ser afectado por toda uma multiplicidade de comportamentos que (…) afectem a dignidade pessoal do cônjuge.”1
Resulta da factualidade provada que, o arguido ofendeu a ofendida, por várias vezes, quer física, quer verbalmente, sendo que os últimos episódios ilustram bem o desprezo do arguido pela integridade física de um ser humano, designadamente ao puxar o filho quando este se encontrava a ser amamentado pela ofendida, ferindo com essa conduta o peito da ofendida e causando-lhe com toda a certeza dores muito fortes.
Quanto ao elemento subjectivo trata-se de um tipo de crime doloso o qual pode revestir modalidade diversa consoante a conduta em causa, sendo que quanto aos maus tratos psíquicos bastará o dolo de perigo de afectação da saúde e o bem-estar da ofendida.
Como se provou, o arguido agiu sempre de forma livre e conscientemente, sabendo que não podia actuar daquela forma e que causava medo à ofendida, que era sua companheira. Agiu do modo descrito alheio aos seus deveres, sabendo que estava obrigado a respeitar a ofendida, actuando assim com dolo directo.
Face ao exposto, porque o arguido actuou ilícita e culposamente, deve o mesmo ser condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto no artigo 152.º, n.º 1, alínea a) e c) e n.º 2, alínea a) do Código Penal.
Não se verificam nos autos quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa do arguido.
*
Vem ainda o arguido acusado da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pessoa do seu filho CC.
Ora, em face da matéria de facto dada como provada, evidente se me afigura não poder a douta acusação pública deixar de improceder quanto a este crime.
Com efeito, não se provou que o arguido tenha praticado quaisquer factos que integrem maus tratos físicos ou psíquicos, reiterados ou apenas um isolado, na pessoa do seu filho, desconhecendo-se as circunstâncias em que ocorreu a palmada na anca, pelo que não estão preenchidos, desde logo, os elementos objectivos do tipo de crime.
Pelo exposto, por não ter resultado provada a factualidade que, a provar-se, integraria os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1 alínea d) e nº 2 do Código Penal, terá o arguido que ser absolvido da prática deste crime que lhe é imputado.»
*
2.3 Conhecendo do mérito do recurso
2.3.1 Da matéria de facto
2.3.1.1 Delimitação dos termos do recurso quanto à matéria de facto
É sabido que as Relações podem conhecer de facto e de direito (art. 428º do Código de Processo Penal – todas as normas doravante citadas sem indicação do diploma a que se referem devem ser reportadas a este diploma).
Assiste portanto aos sujeitos processuais o direito de recurso para a Relação em matéria de facto e/ou de direito.
Não se trata, porém, de um direito absoluto, seja no sentido em que pode a lei prever a irrecorribilidade de certas decisões, seja no sentido em que, em caso de recorribilidade, pode o exercício do direito de recurso estar legalmente sujeito a condicionamentos e requisitos próprios [Acs. do TC nºs 390/04 e 377/03, www.tribunalconstitucional.pt ; cfr. ainda Germano Marques da Silva e Henrique Salinas, in Constituição Portuguesa Anotada (org. Jorge Miranda e Rui Medeiros), tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora (2010), pgs. 715 e sgs]. A definição das margens de irrecorribilidade e, onde o recurso for admissível, dos requisitos a observar pelo recorrente para o exercício legítimo e regular do direito de recurso, constitui tarefa em que o legislador goza de uma ampla margem de apreciação; ponto é que tais requisitos e limites tenham subjacente uma finalidade legítima e não afetem a substância do direito [Acs. do TEDH Y.B. v. Russia, nº 71155/17, de 20/07/2021 (§ 40) e Rostovtsev v. Ukraine, nº 2728/16, de 25/07/2017 (§ 27), in https://hudoc.echr.coe.int/#{%22documentcollectionid2%22:[%22GRANDCHAMBER%22,%22CHAMBER%22]}].
Adentro o sistema de recursos existente no Código de Processo Penal, é consabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias:
(i) através do âmbito dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, os quais terão de resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou mediante o recurso às regras da experiência comum, e integrar-se nos casos estritos para que aponta a norma (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou erro notório na apreciação da prova); ou
(ii) através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal, circunstância em que o que está em debate são os erros na apreciação da prova que vão já além do texto da decisão, estendendo-se ao que pode extrair-se da prova produzida, sempre tendo presentes os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto por aqueles nºs 3 e 4.
Neste último domínio - da chamada impugnação ampla da matéria de facto - o que se procura é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida (cfr. Ac. do STJ de 31.05.2007, relatado por Simas Santos, in www.dgsi.pt – todos os acórdãos doravante citados sem indicação da fonte de pesquisa deverão ser reportados a este sítio).
Convém todavia ter presente que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efetuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso. No objeto do recurso não está pois contida uma reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se tais pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os que forem indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (cfr. Ac. do STJ de 10/01/2007, relatado por Henriques Gaspar).
Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia e possibilita-se o seu conhecimento pela Relação.
O legislador pretende que o recorrente identifique claramente os erros de julgamento que aponta à decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto, indicando os pontos que reputa incorretamente julgados na decisão proferida e os meios probatórios que sustentam a sua censura (cf. sobre toda esta matéria vide ainda o Ac. da RE de 02/02/2016, relatado por Fernando Ribeiro Cardoso); sendo que, quando as provas hajam sido gravadas, essa especificação deve fazer-se por referência ao consignado na ata da audiência de julgamento, devendo ser identificadas concretamente as passagens em que se funda aa impugnação, como exigido pelo art. 412º, nº 4.
Por razões que se prendem em particular com a ausência de imediação e de oralidade, o poder de apreciação do Tribunal de recurso não é equivalente a um segundo julgamento, não podendo pois esperar-se que aí seja encetada uma alteração da matéria de facto provada apenas por ser possível uma outra análise da prova; essa alteração deverá ocorrer apenas se a análise da prova o impuser, como decorre do art. 412.º, n.º 3 b) e c) do CPP, o que significa que não basta contrapor-se à convicção do julgador uma outra convicção diferente para provocar uma modificação na decisão de facto, sendo necessário demonstrar-se que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados é, pelo menos, desprovida de razoabilidade (cfr. sobre esta matéria, entre tantos outros, os Acs. da RL de 10.10.2007 e da RE de 1.04.2008, relatados por Carlos de Almeida e Ribeiro Cardoso; sobre a não imperatividade constitucional de um sistema de «segundo julgamento», vide o Ac. do TC n.º 59/2006, in www.tribunalconstitucional.pt).
E note-se que, não havendo essa menção em qualquer espaço das alegações de recurso, não se cuida de uma insuficiência que pudesse ser suprida por via de um convite a formular nos termos do art. 417º, nº 3, já que um tal convite não se dirigiria apenas às conclusões, mas à própria motivação, que é insuscetível de correção [cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora (2011), pg. 1155].
Ora, no caso concreto, entendemos que a Recorrente, embora o não afirme de forma aberta e clara, põe em causa a decisão tomada pelo Tribunal a quo em matéria de facto, ao defender que as condutas do Arguido a que se refere, vertidas nos pontos 4, 9, 10 e 14 dos factos provados, foram perpetradas de forma «consciente e dolosa», aspetos estes que em si mesmos não encontram expressão nos factos provados, como o evidenciam os factos não provados descritos sob as alíneas l) e m).
Esta discordância quanto aos factos integradores da consciência da ilicitude e do dolo é todavia afirmada pela Recorrente sem que concomitantemente especifique, seja na motivação, seja nas conclusões, quaisquer passagens da prova, como se lhe exigiria no quadro de uma impugnação ampla da matéria de facto, ao abrigo do art. 412º, nº 3, alínea b) e 4 do Código de Processo Penal.
Estamos em crer, em qualquer caso, que da economia da peça recursória resulta a invocação de uma contradição entre factos provados e não provados, cabível no quadro do art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, como melhor explicaremos de seguida.
Entende a Recorrente que o Arguido devia ter sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa do filho de ambos, CC.
Aponta para o efeito os factos dados como provados sob os pontos 4, 9, 10 e 14 e diz que as referidas condutas foram conscientes e dolosas e colocaram em risco, de modo relevante, a saúde física e psíquica do menor, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto criança e ser humano; mais diz que a palmada que o Arguido desferiu no filho, mencionada no ponto 14 dos factos, nunca poderia justificar-se ao abrigo de um suposto poder de correção.
Ora, cumpre então notar que aqueles pontos 4, 9, 10 e 14 contêm a descrição de factos que poderão eventualmente relevar para a integração dos requisitos objetivos da incriminação; e que os factos que relevariam para a integração dos requisitos subjetivos da mesma foram dados pelo Tribunal a quo como não provados.
Concretizando o que vimos de expor, tenha-se com efeito em atenção o teor dos factos vertidos nos pontos 4, 9, 10 e 14, bem assim, a título de enquadramento geral, dos pontos 1 e 2:
«
1. O arguido AA e BB contraíram matrimónio, um com o outro, no dia ... de ... de 2017, fixando residência comum na Rua …, em Lisboa.
2. Desse relacionamento nasceu um filho em comum – CC, no dia ... de ... de 2018.
(…)
4. O arguido AA, em datas não apuradas em concreto, mas certamente entre o mês de Maio de 2019 e Janeiro de 2022, no interior da residência comum, enquanto o seu filho CC chorava, dirigiu a BB as seguintes palavras:
- “Cala-me esse caralho, só sabe é chorar”.
(…)
9. Neste mesmo dia ... Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA dirigiu-se a BB, que se encontrava a amamentar CC, e num tom de voz elevado, audível por todos os que por ali passassem, disse-lhe:
- “Deixa de dar essa merda ao miúdo. O miúdo já não tem idade para estar a mamar. Tira essa merda ao miúdo”.
10. Em acto contínuo, o arguido AA, exercendo força, retirou CC, do colo de BB, enquanto estava a mamar, provocando dores na mama desta.
(…)
14. Em dia não apurado em concreto, mas certamente entre o dia ... Janeiro de 2023 e o dia … de Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA, por motivo não determinado, desferiu uma palmada na zona da anca, do seu filho CC, deixando-lhe uma marca avermelhada naquela zona e provocando-lhe dores.»
E olhemos agora os factos considerados não provados com relevo nesta matéria:
«(…)
l) Sabia o arguido AA que, ao actuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, a quem cabia a sua educação, dever de cuidado e segurança, por ser o seu progenitor, e legal representante, o fazia perante uma criança, que devido à sua tenra idade, não detinha capacidade para reagir a tais actos, o qual, apesar disso, o obrigava a assistir e, mesmo, a sofrer.
m) O arguido AA bem sabia que, ao actuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, fazendo-o num tom de voz elevado, com demonstrações verbais e não verbais de agressividade, lhe provocavam sentimentos de angústia, manifestando-o com choro compulsivo, perturbando o seu processo de vinculação e o seu saudável crescimento psíquico e emocional, conformando-se com esse resultado.»
Dito isto, é manifesto que o Tribunal a quo não deu como provados factos que pudessem integrar os requisitos subjetivos da incriminação pelo que, defendendo o Recorrente que as condutas descritas sob os pontos 4, 9, 10 e 14 tiveram lugar de forma «consciente e dolosa», é manifesto ser sua intenção questionar as conclusões a que a sentença recorrida chegou também no plano dos factos.
Não o disse de forma clara, mas compreende-se, da economia global da peça recursória e designadamente das suas conclusões, que esse é um seu intuito, como aliás bem o compreendeu o Ministério Público na resposta ao recurso, sublinhando que a sentença recorrida padece de um erro notório na apreciação da prova, enquadrável no art. 410º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal, traduzida numa contradição entre os factos dados como provados nos pontos 4, 9, 10 e 14 e os factos dados como não provados nas alíneas l) e m).
Assim é que, no que respeita à matéria de facto, apreciaremos se se verifica ou não a apontada contradição no texto da decisão recorrida.
Do que se trata, em síntese, é de saber se existe ou não uma incompatibilidade clara entre os apontados factos objetivos provados e os apontados factos subjetivos não provados, na certeza de que, evidenciando-se essa incompatibilidade, estaremos na verdade diante um «erro notório na apreciação da prova» que «result[a] do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum», caso em que se verifica o vício previsto pelo art. 410º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal [Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora (2011), pg. 119].
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2.3.1.2 Sobre o erro notório na apreciação da prova
Nos termos que deixámos enunciados em 2.3.1.1, a questão que se nos coloca é então a de saber se existe ou não uma clara incompatibilidade entre os factos considerados provados que relevam dos requisitos objetivos da incriminação e os factos considerados não provados que relevam dos requisitos subjetivos da mesma.
E parece-nos que essa incompatibilidade se verifica, com efeito.
Como é sabido, matérias ligadas à consciência com que o Arguido agiu, à forma como no seu espírito representou os factos, e à vontade e à intenção com que lhes deu execução, tudo isto são aspetos que relevam do seu «mundo interior» e que, na ausência de uma confissão, apenas podem por norma ser extraídos a partir dos factos objetivos que se tenham por assentes, compreendidos à luz das regras da experiência comum.
Ora, com a ressalva a que adiante aludiremos, os factos objetivos dados como provados, compreendidos à luz das regras da experiência comum, induzem a clara perceção de que também como tal devem ser considerados os factos que relevam dos requisitos subjetivos da incriminação que se achavam sob discussão.
Na verdade, as palavras ditas, o tom e o nível de voz usado e os gestos de perfil agressivo que se deu como provado terem sido protagonizados pelo Arguido, posto que diante do filho CC ou mesmo sobre este diretamente incidentes, não podiam, à luz das regras da experiência comum, deixar de causar no segundo os sentimentos de angústia e perturbação que se deu como não provado que tivessem ocorrido [alínea m) dos factos não provados].
E do mesmo passo, em face de tais condutas e sendo o Arguido pai do menor CC, não se vê como, de novo à luz das regras de experiência comum, deixar de dar como provado que o primeiro sabia que, fazendo o que fazia na presença do segundo, cabendo-lhe a sua educação, dever de cuidado e segurança, atuava perante uma criança que não tinha capacidade para reagir a tais atos a que era obrigado a assistir e mesmo a sofrer [alínea l) dos factos não provados].
Assim é que, reconhecendo-se a existência de um erro notório na apreciação da prova, encetar-se-á o correspondente suprimento, o qual será no sentido de desde já, porque possível, dar a matéria contida naquelas alíneas l) e m) como provada (cfr. art. 426º, nº 1 do Código de Processo Penal).
A única ressalva a este procedimento reporta-se a um aspeto que consta da alínea m) e que entendemos dever continuar intocado como não provado.
Referimo-nos à asserção segundo a qual o menor CC manifestava os seus sentimentos de angústia com «choro compulsivo».
Lê-se na motivação da matéria de facto lavrada pelo Tribunal a quo que «não se apurou se o choro da criança era causado pelas condutas do arguido ou do arguido e da ofendida ou por qualquer outro motivo, designadamente por estar doente».
Ora, a dúvida expressa pelo Tribunal a quo não é totalmente desrazoável, à luz das regras da experiência comum, pelo que a eventual passagem deste detalhe fáctico da matéria não provada para a matéria provada dependeria da especificação, pela Recorrente, nos termos do preceituado pelo art. 412º, nºs 3, alínea b) e 4 do Código de Processo Penal, de meios de prova dos quais derivasse a afirmação de que a causa do choro compulsivo eram os sentimentos de angústia provocados pelos comportamentos do Arguido, especificação que sabemos não ter sido feita, como já atrás dito.
Em suma, com ressalva deste pormenor, a matéria de facto descrita nas alíneas l) e m) passará para os factos provados.
E a tanto não se objete com a invocação, feita pelo Arguido em resposta ao douto parecer do Sr. Procurador Geral Adjunto, do princípio in dubio pro reo.
O in dubio pro reo é convocável em matéria de prova quando o tribunal se encontre numa situação de dúvida razoável quanto a algum ponto da matéria de facto, circunstância em que a deve resolver em benefício do arguido, na lógica concretização do direito à presunção de inocência previsto pelo art. 32º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa; e, inversamente, já não colhe pertinência o in dubio pro reo quando o tribunal, com apoio nos meios de prova disponíveis e lendo-os criticamente à luz das regras da experiência comum, não tem qualquer dúvida razoável quanto aos factos a deles extrair ou, tendo-a tido em algum momento, a esclareceu, convencendo-se positivamente do facto em causa (entre tantos outros, vide o Acs. do STJ de 7.11.2002, da RC de 12.09.2018 e da RP de 28.10.2015, relatados por Oliveira Guimarães, Orlando Gonçalves e Ernesto Nascimento, respetivamente, in www.dgsi.pt).
No caso concreto, não se evidencia que o Tribunal a quo tenha sentido qualquer dúvida não esclarecida pela leitura conjugada da prova à luz das regras da experiência comum, a propósito dos factos que deu como provados e nomeadamente com os que descreve nos pontos 4, 9, 10 e 14 (nem se evidencia, acrescente-se, que a prova lhe impusesse tal dúvida); não há assim, nessa matéria, qualquer reserva que possa dirigir-se à decisão recorrida a partir da ótica do princípio in dubio pro reo.
E o que ora se enceta, em termos de alteração de matéria de facto não provada para matéria de facto provada, é apenas o que resulta, como atrás expusemos, da supressão de um erro notório na apreciação da prova, neste sentido: dados regularmente como provados os factos descritos sob os pontos 4, 9, 10 e 14, as regras da experiência comum impõem que os factos descritos sob as alíneas l) e m), com a exceção atrás mencionada, o sejam também.
Não se nota portanto qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
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2.3.1.3 O rearranjo da matéria de facto
Face ao expendido nos pontos 2.3.1.1 e 2.3.1.2, aditar-se-ão os factos 20-A e 20-B à matéria de facto provada, a qual passará a ter a seguinte configuração:
1. O arguido AA e BB contraíram matrimónio, um com o outro, no dia ... de ... de 2017, fixando residência comum na ...
2. Desse relacionamento nasceu um filho em comum – CC, no dia ... de ... de 2018.
3. A partir do mês de Maio de 2019, que a vida em comum do casal, passou a ser pautada por episódios de violência verbal, no decurso dos quais, o arguido AA, no interior da residência comum, com uma frequência semanal, dirigiu a BB, sua esposa e mãe do seu filho, as seguintes palavras:
- “És uma puta”.
4. O arguido AA, em datas não apuradas em concreto, mas certamente entre o mês de Maio de 2019 e Janeiro de 2022, no interior da residência comum, enquanto o seu filho CC chorava, dirigiu a BB as seguintes palavras:
- “Cala-me esse caralho, só sabe é chorar”.
5. Entre os meses de Janeiro e de Agosto de 2022, o arguido AA, no decurso de discussões entre o casal, dirigiu a BB as seguintes palavras:
- “sua puta”;
- “sua vaca”
- “Dá-me metade do valor da casa que eu vou-me embora”.
6. No mês de Agosto de 2022, o arguido AA, no decurso de uma discussão com BB, no interior da residência comum, agarrou aquela pelo pescoço, ao mesmo tempo que lhe dizia:
- “És uma puta”.
7. No dia  … de Dezembro de 2022, da parte da tarde, em hora não determinada, o arguido AA, no interior da residência comum, após uma discussão, dirigiu a BB as seguintes palavras:
- “Tu és maluca, não bates bem da cabeça”.
8. De seguida, o arguido AA agarrou o braço de BB, exercendo força, e empurrou a mesma contra o sofá, provocando-lhe dores.
9. Neste mesmo dia ... Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA dirigiu-se a BB, que se encontrava a amamentar CC, e num tom de voz elevado, audível por todos os que por ali passassem, disse-lhe:
- “Deixa de dar essa merda ao miúdo. O miúdo já não tem idade para estar a mamar. Tira essa merda ao miúdo”.
10. Em acto contínuo, o arguido AA, exercendo força, retirou CC, do colo de BB, enquanto estava a mamar, provocando dores na mama desta.
11. Ainda neste dia ... Janeiro de 2023, pelas 21:30 horas, no interior da residência comum, o arguido AA, no decurso de uma discussão com BB, empurrou-a, provocando a sua queda ao chão.
12. Em sequência da conduta do arguido AA, BB sentiu fortes dores e sofreu as seguintes lesões/sequelas:
- “Membro inferior esquerdo: equimose roxa na região na anca, com 8x3cm”.
13. Tais lesões/sequelas descritas, vieram a ser causa directa e necessária de um período de doença, para BB, fixável em 8 (oito) dias, sem afectação da capacidade de trabalho geral e profissional, não resultando, em condições normais, quaisquer consequências permanentes.
14. Em dia não apurado em concreto, mas certamente entre o dia ... Janeiro de 2023 e o dia 24 de Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA, por motivo não determinado, desferiu uma palmada na zona da anca, do seu filho CC, deixando-lhe uma marca avermelhada naquela zona e provocando-lhe dores.
15. O arguido AA saiu da residência comum, de forma permanente, no dia 25 de Fevereiro de 2023.
16. Ao actuar da forma descrita, o arguido AA, molestando física e psicologicamente BB, faltou ao respeito e consideração devidos para com a sua esposa, e mãe do seu filho, fazendo-a viver em permanente sobressalto e angústia, bem sabendo que as suas condutas são idóneas a provocar-lhe medo e ansiedade.
17. O arguido AA, ao comportar-se da forma descrita sabia que molestava no seu corpo, e na sua saúde, BB, sua esposa e mãe do seu filho e que o fazia, além do mais, no interior da residência comum.
18. Mais sabia o arguido AA que ao comportar-se da forma descrita, afectava a dignidade pessoal de BB, sua esposa e mãe do seu filho, bem como, punha em causa o equilíbrio psicológico, físico e emocional, daquela, pois que a submetia a grande sofrimento psíquico e físico, o que quis e conseguiu.
19. O arguido AA também não desconhecia que, a reiteração do seu comportamento e a forma como o mesmo se prolongou no tempo, punha em causa a paz familiar, indispensável ao saudável convívio entre os membros familiares, impedindo-a de se verificar.
20. Contudo, o arguido quis sempre agir da forma que se descreveu, o que fez deliberada, livre e conscientemente, embora ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
20-A. Sabia o arguido AA que, ao actuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, a quem cabia a sua educação, dever de cuidado e segurança, por ser o seu progenitor, e legal representante, o fazia perante uma criança, que devido à sua tenra idade, não detinha capacidade para reagir a tais actos, o qual, apesar disso, o obrigava a assistir e, mesmo, a sofrer.
20-B. O arguido AA bem sabia que, ao actuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, fazendo-o num tom de voz elevado, com demonstrações verbais e não verbais de agressividade, lhe provocavam sentimentos de angústia, perturbando o seu processo de vinculação e o seu saudável crescimento psíquico e emocional, conformando-se com esse resultado.
21. Do relatório realizado em 30.10.2023, pelos Serviços de Assessoria ao Tribunal no âmbito do processo de alteração das responsabilidades parentais relativas ao menor CC, consta nas conclusões o seguinte: Nos momentos com o filho AA revelou sensibilidade e responsabilidade afectiva, consciente das responsabilidades do filho, respondendo aos sinais comportamentais mais expressivos por parte de CC. Respeitou o ritmo de CC durante as brincadeiras, mantendo-se envolvido e empenhado na interacção. A dinâmica entre ambos foi marcada pela cumplicidade, negociação e respeito. Pelo exposto e na sequência do observado, é parecer esta equipa que, apesar de se tratar de um contexto de observação pouco natural, a interacção foram vividos por CC com entusiamo, mostrando-se descontraído na interacção com o AA e não se observando indicadores de desconforto ou recusa em estar com o pai.”
22. O arguido faz conteúdos para redes sociais, auferindo o salário mensal de € 1.100,00.
23. Vive sozinho em casa arrendada, pagando de renda o valor mensal de €350,00.
24. De habilitações literárias tem o 12º ano de escolaridade.
25. O arguido não tem antecedentes criminais registados.
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2.3.2 Do enquadramento jurídico-penal dos factos
2.3.2.1 Do alegado crime de violência doméstica perpetrado na pessoa do menor CC
Defende a Assistente que os factos integram (ainda) a prática, pelo Arguido, de um crime de violência doméstica na pessoa do filho menor de ambos, CC, pelo qual fora também acusado.
Atentemos na parte da fundamentação de direito em que o Tribunal a quo justificou a absolvição do Arguido neste domínio:
«Vem ainda o arguido acusado da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pessoa do seu filho CC.
Ora, em face da matéria de facto dada como provada, evidente se me afigura não poder a douta acusação pública deixar de improceder quanto a este crime.
Com efeito, não se provou que o arguido tenha praticado quaisquer factos que integrem maus tratos físicos ou psíquicos, reiterados ou apenas um isolado, na pessoa do seu filho, desconhecendo-se as circunstâncias em que ocorreu a palmada na anca, pelo que não estão preenchidos, desde logo, os elementos objectivos do tipo de crime.
Pelo exposto, por não ter resultado provada a factualidade que, a provar-se, integraria os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.º 1 alínea d) e nº 2 do Código Penal, terá o arguido que ser absolvido da prática deste crime que lhe é imputado.»
Pelas razões que alinharemos de seguida, afigura-se-nos, como propugnado pela Assistente e pelo Ministério Público, que deve ser revertida a absolvição.
§ 1 - O crime de violência doméstica – considerações gerais
O tipo legal de crime de violência doméstica previsto pelo art. 152º do Código Penal é exigente, no sentido em que demanda a presença de algo que seja configurável como «maus tratos», e é do mesmo passo abrangente quanto aos seus modos possíveis de cometimento, dado que os apontados «maus tratos» podem ser «físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais», o que significa que é bem possível estarmos diante uma situação jurídico-penal de «violência doméstica» em relação à qual, se detalhados atomisticamente os respetivos factos concretizadores, são também convocáveis um ou vários outros tipos legais de crime. Não indo mais longe, pense-se a título exemplificativo nos crimes de ofensa à integridade física (arts. 143º, 144º e 145º), de ameaça (art. 153º, nº 1), de coação (art. 154º, nº 1), de injúria (art. 181º) e de perseguição (art. 154º-A, nº 1).
Como critérios prático-jurídicos diferenciadores do que prefigurará já um crime de violência doméstica e não apenas um ou vários dos tais outros ilícitos, têm sido avançadas algumas formulações, todas elas buscando com pertinência a caracterização do conceito de «maus tratos», tais como:
- que exista um tratamento degradante ou humilhante que elimine ou limite claramente a condição e a dignidade humana da vítima (Ac. da RP de 29/02/2012, relatado por Joaquim Gomes, in www.dgsi.pt - todos os acórdãos doravante citados sem indicação da fonte de pesquisa deverão ser reportados a este sítio);
- que haja uma relação de domínio que deixe a vítima em situação degradante ou a viver um estado de agressão permanente (Ac. da RE de 11.07.2019, relatado por Carlos Berguete Coelho);
- quando for possível formular o juízo de que o agente manifestou desprezo, desejo de humilhar, ou especial desconsideração pela vítima (Ac. da RC de 18.05.2022, relatado por Paulo Guerra);
- que os atos tenham um caráter particularmente violento ou denunciem uma configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma (Acs. RE de 24.02.2015, relatado pelo Exmo. Sr. Juiz Desembargador Proença da Costa, e da RC de 07.02.2018, relatado por Brízida Martins).
Pela nossa parte, o ponto de partida nesta matéria há de ter presente o bem jurídico protegido e o carácter especialmente desvalioso da conduta do agente para com a vítima.
Neste contexto, é incontornável reconhecer que o crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher: está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física, psíquica e emocional e a sua liberdade de determinação, que são ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças, perseguições, injúrias ou de outros ilícitos, mas também e porventura essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e/ou humilhação [cfr. Ac. RG de 4.06.2018, relatado por Jorge Bispo; cfr. ainda Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, parte especial, tomo I, Coimbra Editora, pg. 332 e Conde Fernandes, “Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal», Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, n.º 8, pág. 305.].
A previsão e a efetiva aplicação de um regime jurídico-penal que atenda adequadamente a esta realidade específica da violência doméstica constitui aliás o cumprimento, pelo Estado, da obrigação positiva que assumiu internacionalmente de proteger a integridade física e psíquica das pessoas sob sua jurisdição, ao abrigo, desde logo, do artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (cfr. Ac. do TEDH no caso A. v. Croatia, nº 55164/08, de 14.10.2010, §§ 55 e 59 a 61, in motor de busca HUDOC). E em linha semelhante, de resto, no que concerne à Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, mais conhecida como Convenção de Istambul, que prevê aí um conceito alargado de «violência doméstica» como sendo «todos os atos de violência física, sexual, psicológica ou económica que ocorrem no seio da família ou do lar ou entre os atuais ou ex-cônjuges ou parceiros, quer o infrator partilhe ou tenha partilhado, ou não, o mesmo domicílio que a vítima» [art. 3º/b)] e que prevê como objetivos da Convenção, entre outros, «(…) prevenir, processar criminalmente e eliminar a violência doméstica».
§ 2 – A violência doméstica sobre os menores – considerações gerais
Este universo jurídico tem particularidades no que concerne ao conceito de «maus tratos», quando o caso envolve um menor, e nomeadamente um menor filho do casal no seio do qual surgem episódios de violência doméstica.
Isto porque podemos ter – digamo-lo em jeito de aproximação simplificada - uma de duas situações ou ambas:
i. um dos progenitores inflige «maus tratos» sobre a criança;
ii. um dos progenitores inflige maus tratos sobre o outro progenitor, mas que é presenciado pela criança.
Na primeira destas situações, é inequívoca a possível perfectibilização de um crime de violência doméstica na pessoa do menor, por via do art. 152º, nºs 1, alínea d) e nº 2, alínea a) [«contra menor»] do Código Penal, perfectibilização essa que resulta corroborada e reforçada, com a entrada em vigor, em 17 de agosto de 2021, da Lei nº 57/2021, de 16/08, que introduziu uma alínea e) no nº 1 do citado artigo 152º. Recorde-se que esta alínea elege como vítima potencial de um crime de violência doméstica o «menor que seja seu [do agente] descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite», com isso alargando-se o âmbito normativo de proteção da violência doméstica a todos os «menores descendentes», mesmo que a vítima não seja categorizável como «particularmente indefesa», com o sentido previsto pela alínea d) da norma, e mesmo que, acrescente-se, não coabite com o agente, como nesta alínea também se exigia (alargamento esse que no caso concreto sempre seria irrelevante, dado que o menor CC não só «coabitava» com o Arguido como, pela sua muito jovem idade, é inequivocamente uma pessoa «particularmente indefesa»).
Na segunda das situações que indicámos, isto é, naquela em que um dos progenitores inflige maus tratos sobre o outro progenitor, mas que são presenciados pelo menor, foi-se travando uma discussão, como se sabe, sobre a abordagem jurídica mais acertada a fazer: é sabido que os maus tratos sobre o outro adulto, integrando-se este nas categorias previstas nas alíneas a) a c) do nº 1 da norma, é punido mais gravosamente, ao abrigo do seu nº 2, na medida em que o(s) ato(s) seja(m) praticados «na presença de menor»; o problema que se punha era porém o de saber, além dessa agravação, se devia ou não o agente ser punido pela prática de um crime autónomo de violência doméstica perpetrado na pessoa do filho, face à circunstância de este ser exposto aos maus tratos infligidos sobre a vítima direta dos mesmos.
Antes da entrada em vigor da Lei nº 57/2021, de 16/08, havia já quem sustentasse (e é essa aliás a nossa posição), que o menor exposto a uma situação de violência doméstica entre adultos, se categorizável como «pessoa particularmente indefesa», no quadro da alínea d) do nº 1 do art. 152º do Código Penal, era já, ele próprio, uma vítima de um crime autónomo de violência doméstica, ainda que muitas vezes escondida, esquecida, desconhecida ou silenciosa (Ana Isabel Sani e Diana Cardoso, A exposição da criança à violência interparental: uma violência que não é crime, in “Revista Julgar online”, 2013, pgs. 2-3).
Essa orientação teve aliás algum reconhecimento jurisprudencial e doutrinal [Acs. da RL de 19/06/2019 e da RE de 7/05/2019, relatados respetivamente por A. Augusto Lourenço e Ana Barata Brito; cfr. ainda Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 5ª edição atualizada, Universidade Católica Editora (2022), pg. 660]; e quadra bem, diga-se, com o cumprimento pelas autoridades nacionais da obrigação positiva de proteção que se lhes impõe quanto aos menores nesse contexto (cfr. Ac. do TEDH Eremia v. the Republico of Moldova, nº 3564/11, de 28/05/2013, §§ 73-79).
Não se ignora, todavia, que havia argumentos ponderosos no sentido de considerar que a legislação penal não contemplava a existência de um crime autónomo de violência doméstica nos casos de exposição da criança a situações de maus tratos entre adultos.
Pense-se no conceito de «vítima» previsto pela Lei nº 112/2009, de 16/09, na sua versão originária, que se manteve aquando das alterações introduzidas pela Lei nº 129/2015, de 3/09: «a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal».
Pense-se ainda no conceito de «vítima» previsto pelo art. 67º-A, nº 1, alínea a) i) do Código de Processo Penal, na redação originária introduzida pela Lei nº 130/2015, de 4/09: «a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime».
Pense-se por fim no teor literal do art. 152º do Código Penal, na redação vigente até à Lei nº 57/2021, de 16/08, de cuja alínea a) do n.º 2 é possível inferir-se um resultado interpretativo de acordo com o qual, não sendo a criança diretamente visada pela atuação do agente, a sua exposição a um contexto de violência pode ser vista apenas como fator agravante da punição do crime que tem outrem como vítima.
Tornaram-se entretanto particularmente visíveis as repercussões sobre as crianças da sua exposição ao fenómeno da violência doméstica entre adultos, face à emergência de vozes, provindas nomeadamente da psicologia e da sociologia, mas também do direito, que foram sustentando, no fundo, que «a exposição da criança à violência interparental constitui uma das flagrantes formas de vitimação infantil» [vide sobre a matéria Ana Isabel Sani e Diana Cardoso, ob. cit., pgs. 2-3; e Margarida Santos, A criança vítima (autónoma) do crime de violência doméstica – dúvidas e perspetivas à luz da norma penal e da prática judiciária, in https://ebooks.uminho.pt/index.php/uminho/catalog/download/30/71/830?inline=1; e o Ac. da RP de 5/06/2024, relatado por Lígia Trovão].
E é com efeito indiscutível e hoje por todos reconhecido que a violência doméstica representa um dos mais importantes fatores de perigo para a saúde, desenvolvimento, segurança e educação das crianças.
Assim é que o legislador veio entretanto clarificar conceitos na Lei nº 57/2021, de 16/08; como?
Por um lado, operou uma precisão no conceito de «vítima», que consta do art. 67º-A, nº 1 iii) do Código de Processo Penal, aí se lendo que é considerada vítima «a criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica»; e fez o mesmo no art. 2º, alínea a) da Lei nº 112/2009, de 16/09, aí passando a ser definida como vítima «a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica».
E por outro lado, introduziu-se a atual alínea e) ao nº 1 do art. 152º do Código Penal, que especifica como potencial vítima «menor que seja seu [do agente] descendente ou de uma das pessoas referidas nas alíneas a), b) e c), ainda que com ele não coabite».
Ao assim proceder, pôs o legislador fim às dúvidas que no regime anterior a 17 de agosto de 2021 se colocavam, terminando no fundo com a pouco rigorosa distinção que se fazia entre crianças vítimas de violência doméstica e crianças expostas à violência doméstica (Ac. do STJ de 2/05/2024, relatado por Pedro Branquinho Dias). Se dúvidas antes havia, ficaram dissipadas – todas as crianças, ainda que apenas expostas à violência doméstica entre adultos, são, também elas, vítimas de um crime de violência doméstica.
§ 3 - O caso concreto
Lendo a acusação que se mostra deduzida contra o Arguido, no que ao menor CC diz respeito, percebe-se que a sua lógica é a de lhe imputar o ilícito quer por gestos diretamente incidentes sobre a Assistente, sua mãe, a que ele esteve exposto, quer por gestos que o atingiram diretamente.
Elucidativo disto que vimos de dizer é o que se lê no ponto 23) da acusação, que a sentença recorrida deu como não provado sob a alínea l) e que supra concluímos dever ser transposto para os factos provados:
«Sabia o arguido AA que, ao atuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, a quem cabia a sua educação, dever de cuidado e segurança, por ser o seu progenitor, e legal representante, o fazia perante uma criança, que devido à sua tenra idade, não detinha capacidade para reagir a tais atos, o qual, apesar disso, o obrigava a assistir e, mesmo, a sofrer
E na verdade, lendo a factualidade em apreço, percebe-se que há vários gestos de perfil agressivo que tiveram por alvo direto a Assistente e foram considerados como relevando de «maus tratos» à mesma e integradores de um crime de violência doméstica na pessoa dela, pelo qual o Arguido foi condenado em 1ª Instância sem que a esse segmento decisório tenha sido deduzido recurso, aos quais o menor CC esteve exposto.
Referimo-nos em particular aos seguintes:
(4) O Arguido AA, em datas não apuradas em concreto, mas certamente entre o mês de Maio de 2019 e Janeiro de 2022, no interior da residência comum, enquanto o seu filho CC chorava, dirigiu a BB as seguintes palavras:
- “Cala-me esse caralho, só sabe é chorar”.
(9) N(o) dia ... Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA dirigiu-se a BB, que se encontrava a amamentar CC, e num tom de voz elevado, audível por todos os que por ali passassem, disse-lhe:
- “Deixa de dar essa merda ao miúdo. O miúdo já não tem idade para estar a mamar. Tira essa merda ao miúdo”.
(10) Em acto contínuo, o arguido AA, exercendo força, retirou CC, do colo de BB, enquanto estava a mamar, provocando dores na mama desta.
Aliás, esta factualidade, quanto ao menor CC, vai além da mera exposição a gestos agressivos, desrespeitosos e de desconsideração ou desprezo do Arguido para com a Assistente: vai, alguma dela, atingir diretamente também o próprio menor, na medida em que em todos aqueles momentos era ele, menor, alguém de algum modo visado pelas palavras ou gestos do Arguido:
- no momento retratado em (4), o Arguido, para além de se ter referido ao filho como «caralho», disse dele que «só sabia chorar»;
- no momento retratado em (9), o Arguido queria que a Assistente privasse o filho da amamentação, referindo-se ao leite materno como «merda» e referindo-se ao filho dizendo que «já não tem idade para estar a mamar»;
- no momento retratado em (10), o Arguido, com força, retirou o filho do colo da mãe, interrompendo a amamentação.
Para além do exposto, há ainda uma outra situação com potencial relevo incriminador, que é a descrita, na sua linearidade objetiva, no ponto 14 dos factos provados:
«Em dia não apurado em concreto, mas certamente entre o dia ... Janeiro de 2023 e o dia … de Janeiro de 2023, no interior da residência comum, o arguido AA, por motivo não determinado, desferiu uma palmada na zona da anca, do seu filho CC, deixando-lhe uma marca avermelhada naquela zona e provocando-lhe dores.»
Do que se trata aqui é de uma palmada, por motivo não determinado, na zona da anca que deixou uma marca avermelhada e provocou dores.
Estamos diante um facto com relevo criminal?
Não se sabendo o motivo para esse gesto do Arguido, o que temos é o atingimento da integridade física do menor CC sob a aparência externa de um castigo corporal.
É conhecido todo um lastro doutrinário e jurisprudencial nesta matéria que, tendo por referência o poder/dever de correção ou educação sobre as crianças ou ideias de adequação social, toleram ou admitem, à luz de certos critérios de proporcionalidade, o recurso a alguns castigos sobre os menores, mormente os de ordem física (cfr. sobre esta matéria, II, “A criança como sujeito de direitos e o poder de correcção”, Julgar, 2008, nº 4, pgs. 95 e seguintes e o Ac. da RP de 02/04/2014, relatado por José Piedade).
Ora, entendemos que quando se trata de castigos ou gestos que atinjam a integridade física das crianças e/ou que tenham por motivação ou efeito a sua humilhação, ainda que sob uma eventual e pretensa intenção educativa, entramos no campo da violação de um direito fundamental de todas as pessoas, destas nada justificando que se excluam as crianças, como sujeitos de direito, a saber e nomeadamente, o direito à integridade física e moral, previsto pelo art. 25º/1 da Constituição da República Portuguesa, e que tem ainda o apoio do Código Civil, quando preceitua no seu art. 70º/1 que «a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral».
Acrescente-se que o Estado português ratificou a Convenção sobre os Direitos da Criança, que no seu art. 19º, nº 1 prescreve que «os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à proteção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada», bem se justificando que adiramos, em todos os planos, a uma nova cultura da infância, que vem fazendo escola em nações nesta matéria de vanguarda, como é o caso da Suécia, da Alemanha, da Finlândia, da Dinamarca, da Noruega e da Áustria, que têm legislação proibitiva dos castigos físicos e psíquicos dos pais em relação aos filhos (cfr. II, ob. cit., pg. 99).
Repare-se que na leitura que faz sobre aquele art. 19º, o Comité dos Direitos das Crianças das Nações Unidas define o castigo corporal como «qualquer punição que envolva força física orientada para causar algum nível de dor ou desconforto, ainda que leve» (tradução livre que fazemos a partir do original que pode ser lido in https://www.refworld.org/legal/general/crc/2007/en/41020, § 11).
E no mesmo sentido desenvolve-se a interpretação feita do art. 17º da Carta Social Europeia pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa, em 17 de junho de 2015, propugnando a proibição de todo o tipo de castigos corporais (vide texto integral in https://search.coe.int/cm#{%22CoEIdentifier%22:[%2209000016805c3277%22],%22sort%22:[%22CoEValidationDate%20Descending%22]}.
E para aí aponta claramente também a jurisprudência do TEDH (Acs. do TEDH K.U. v. Finland, nº 2872/01, de 2/12/2008, § 46; Bouyid v. Belgium [GC], nº 23380/09, de 28/09/2015, §§ 52, 53 e 109; vide ainda com interesse o clássico Ac. Tyrer v. the United Kingdom, nº 5836/72, de 25/04/1978, § 31).
De resto, sublinhe-se que o art. 152º, nº 1 do Código Penal refere-se especificamente aos «castigos corporais» como potencialmente relevando do conceito de «maus tratos».
No caso concreto, fosse aquela palmada o único facto a considerar e muito possivelmente não ultrapassaria as linhas de fronteira de uma ofensa à integridade física do menor CC, prevista pelo art. 143º, nº 1 do Código Penal.
Porém, se o lermos associadamente à restante factualidade a que antes aludíramos, chegamos a um padrão geral de gravidade que já releva do universo próprio da violência doméstica, sob o conceito de «maus tratos físicos ou psíquicos», pois o que tudo no seu conjunto revela é uma degradante desconsideração pelo bem-estar, pela tranquilidade, pelo equilíbrio e pela dignidade do menor CC, no dizer do Arguido, «esse caralho» que «só sabe chorar», que se amamenta fora da idade com o que classifica de «merda», a quem pela força retira da mama da Assistente e dá uma palmada que deixa uma marca vermelha e provoca dores.
Estamos em crer, em suma, que a factualidade em apreço integra suficientemente os requisitos objetivos do crime de violência doméstica pelo qual o Arguido vinha acusado.
Por outro lado, mostram-se também preenchidos os requisitos subjetivos da incriminação, na medida em que sabe-se que o Arguido quis sempre agir da forma descrita e que o fez de modo deliberado, livre e consciente, ciente de que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal (facto 20); e que além disso sabia que, ao atuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, a quem cabia a sua educação, dever de cuidado e segurança, por ser o seu progenitor, e legal representante, o fazia perante uma criança, que devido à sua tenra idade, não detinha capacidade para reagir a tais atos, o qual, apesar disso, o obrigava a assistir e, mesmo, a sofrer (facto 20-A); e que bem sabia ainda que, ao atuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, fazendo-o num tom de voz elevado, com demonstrações verbais e não verbais de agressividade, lhe provocava sentimentos de angústia, perturbando o seu processo de vinculação e o seu saudável crescimento psíquico e emocional, conformando-se com esse resultado (facto 20-B).
Em síntese, será o Arguido condenado pela prática do crime de violência doméstica pelo qual vinha acusado na pessoa do seu filho CC (na versão agravada do nº 2, alínea a) do art. 152º do Código Penal, face à circunstância de os factos terem tido lugar «no domicílio da vítima» e em qualquer caso «contra menor»).
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2.3.2.3 Do concurso de crimes
A regra a atender em matéria de concurso de crimes é a plasmada no nº 1 do art. 30º do Código Penal, que nos diz que «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».
O critério determinante a atender é pois o dos tipos legais violados ou o do número de vezes que um mesmo tipo legal é violado – e efectivamente violado, o que nos remete para a consagração de um critério teleológico, que se prende com o bem jurídico, que o mesmo é dizer, haverá via de regra tantos crimes quantos os bens jurídicos ofendidos, ou tantos crimes quantas as vezes em que for atingido um mesmo bem jurídico (Ac. do STJ de 27.05.2010, relatado por Henriques Gaspar).
Por outro lado, ocorre ainda atentar a que no art. 30º o legislador não se abstrai do juízo de censura de que o agente é passível, ou seja, se a conduta em apreço se subsumir diversas vezes ao mesmo preceito incriminador, ou a diversos preceitos incriminadores que protejam essencialmente o mesmo bem jurídico, é a unidade ou pluralidade do juízo de censura que vai determinar se estamos perante um ou mais crimes (Ac. da RL de 16/03/2004, relatado por Pulido Garcia).
No caso concreto, pelo já exposto, deve ao Arguido ser dirigido um juízo de censura autónomo pelos gestos que tinham por alvo o menor CC ou que de qualquer modo o atingiram, pessoa que não podia deixar de ser considerada, percebida e respeitada nas suas individualidade e dignidade – uma vítima, em suma.
2.3.2.3 A determinação da medida da pena para o crime de violência doméstica que teve o menor CC como vítima
Sendo proferida decisão condenatória pela Relação na sequência de uma sentença absolutória em 1ª Instância, importa determinar a medida da pena (cfr. Ac. do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 4/2016, in DR I Série, de 22/02/2016).
Vejamos então.
Ao crime de violência doméstica em apreço é aplicável uma pena de prisão entre dois e cinco anos [art. 152º, nº 2, alínea a) do Código Penal].
A punição penal visa a proteção de bens jurídicos (a chamada prevenção geral positiva) e a reintegração do agente na sociedade (a chamada prevenção especial positiva) – art. 40º/1 do Código Penal (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, pgs. 227 e ss.).
E no contexto dos ditames decorrentes do art. 71º do Código Penal, aderimos à conceção doutrinária que propugna que em sede de determinação da medida da pena o tribunal deve encontrar o quantum correspondente à culpa do agente, o qual funcionará como ponto absolutamente inultrapassável; fixado esse limite, o tribunal deve buscar o ponto mínimo aquém do qual nenhuma pena satisfaria as exigências de proteção do bem jurídico violado, interpretadas tais exigências através da necessidade de restabelecer a confiança comunitária na validade e vigência da norma infringida; e como último passo o tribunal deve procurar, entre o mínimo e o máximo que se avançaram, a medida ótima de pena, tendo em atenção os princípios da prevenção especial positiva (Figueiredo Dias, ob. cit., pgs. 227 e ss.).
Aqui chegados, estamos diante um universo que gera um profundo desconforto social, pela infeliz frequência com que ocorre este tipo de crime, pelos efeitos penosos que lhe estão associados e pela consabida dificuldade em pôr cobro a este fenómeno. As exigências da punição pela via da prevenção geral são destarte e de um modo geral elevadas em matéria de violência doméstica, não sendo o caso exceção, tendo em conta, ainda, a particularmente baixa idade da vítima.
Em matéria de prevenção especial positiva, por sua vez, importa realçar, de favorável ao arguido, os factos de não ter antecedentes criminais e de estar profissionalmente inserido; para além disso, não podemos deixar de ter em conta que da economia global dos factos resulta que os gestos de perfil violento protagonizados pelo Arguido tinham de um modo geral o seu foco na pessoa da Assistente e não na do menor CC, admitindo-se portanto que, cessada que se mostra a relação com aquela, cesse também em boa medida a possível emergência de novas situações problemáticas com o filho.
A culpa do arguido, por fim, não pode deixar de ser vista em qualquer caso como elevada, tendo especialmente em atenção a muito tenra idade do filho, que o devia ter demovido da prática de atos do jaez dos apurados.
Tudo visto e ponderado, e não esquecendo que nos cabe situar o crime em apreço dentro do espectro amplo de situações a que é potencialmente aplicável a moldura penal em causa, entendemos apropriado fixar a pena em ponto não superior à pena estabelecida para o crime que teve a Assistente por vítima e que coincide com o mínimo legal: 2 anos de prisão.
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2.3.2.4 A pena única
Procurando neste instante fixar a pena única a aplicar, temos que poderá ela situar-se entre dois e quatro anos de prisão - art. 77º, nº 2 do Código Penal.
Nos termos que ressaltam do nº 1 daquela norma, há que ponderar em conjunto todos os factos e a personalidade do arguido.
O que se revela decisivo neste domínio é uma visão de conjunto de todos os factos, no âmbito da qual haverá que ponderar nomeadamente o seguinte: (a) a relação dos crimes entre si e no seu contexto, designadamente tendo em vista apurar se estamos diante alguém que revela uma inclinação criminosa ou antes de alguém que apenas perpetrou delitos ocasionais; (b) a forma de comissão dos crimes; (c) a natureza dos bens jurídicos atingidos e a sua maior ou menor diversidade; (d) e o efeito da pena no comportamento ulterior do arguido (Ac. do STJ de 9.01.2008, in CJSTJ 2008, t. I, pgs. 182-3).
Ora, para além de tudo quanto fomos dizendo, importa aqui sublinhar o contexto específico em que se insere a atuação do Arguido, a saber, o da relação conflituosa que mantinha com a esposa, bem assim como a circunstância de, na sua quase totalidade, os gestos aqui em causa terem sido direcionados mais particularmente à Assistente.
Tudo visto e ponderado, entendemos ajustado fixar a pena única em 2 anos e 6 meses de prisão.
2.3.2.5 A (eventual) pena de substituição
Fixada a pena única em 2 anos e 6 meses de prisão, não podemos deixar de ter em atenção o que resulta do art. 50º do Código Penal, quando nos diz no seu nº 1 que o tribunal «suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Ao invés do que a leitura do preceito a uma primeira aproximação sugere, não se trata aqui de uma verdadeira opção do tribunal, que este poderá arbitrariamente usar ou não; do que se trata é antes de um efetivo poder-dever, no sentido em que, se o conjunto das circunstâncias do caso permitirem perceber que a simples ameaça de execução da prisão, porventura com a imposição de deveres ou regras de conduta, satisfará suficientemente as exigências da punição, impõe-se ao tribunal que determine a suspensão da execução da pena de prisão, posto que o nosso sistema assenta como se sabe num princípio de liberdade, que apenas pode ser coartada se esta solução for de todo incontornável.
Para que o tribunal enverede pela suspensão da execução da pena de prisão é contudo essencial que, à luz de todos os elementos disponíveis, emita um prognóstico favorável relativamente ao comportamento ulterior do arguido; e é essencial ainda que, concluindo o tribunal por um tal juízo favorável, as necessidades de reprovação e de prevenção do crime não se oponham ao recurso a esta figura (Figueiredo Dias, ob. cit., pgs. 342 a 344).
Ora, merece-nos aqui destaque tudo quanto de favorável ao Arguido e ao prognóstico quanto ao seu rumo ulterior mencionámos: o não ter antecedentes criminais; o estar profissionalmente inserido; e o facto de haver terminado a relação que mantinha com a Assistente.
Neste circunstancialismo, as necessidades de reprovação e de prevenção do crime, conquanto obviamente presentes, não têm neste momento peso suficiente ao ponto de impor a efetividade da pena de prisão.
Suspender-se-á em suma a execução da pena de prisão, pelo período correspondente à pena de prisão aplicada (2 anos e 6 meses), período este que se tem por necessário (e suficiente, adequado e proporcional) em ordem a garantir a efetiva consistência da mudança comportamental do arguido (art. 50º, nº 5), associando-se porém a suspensão às condições em seguida indicadas.
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Aquando da condenação havida em primeira instância pela prática do crime de violência doméstica na pessoa da Assistente, o Tribunal a quo fez subordinar a suspensão da execução da pena de prisão às seguintes regras de conduta:
- manter-se afastado da residência e do local de trabalho da ofendida;
- proibição de estabelecer contactos, por qualquer meio, com a ofendida, sem prejuízo dos contactos estritamente necessários para o exercício das responsabilidades parentais.
A aplicação dessas regras de conduta, bem assim como a condenação em si mesma, não foram questionadas no presente recurso, e na verdade entendemos que as mesmas são ajustadas.
É mister que o Arguido seja apartado da vida da Assistente, condição essencial ao reequilíbrio e proteção desta e à pacificação social, salvaguardando-se apenas a possibilidade de contactos na medida indispensável ao exercício das responsabilidades parentais.
O que se mostra posto em causa neste recurso com relevo é saber se a suspensão da execução da pena – neste caso da pena única – deve ou ser condicionada ainda à obrigação de pagamento de uma indemnização às vítimas.
De acordo com o preceituado pelo art. 51º, nº 1 do Código Penal, «a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente: a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea;».
A partir do momento em que estejamos diante crimes que tenham vítimas concretamente individualizadas, ocorre ponderar seriamente a subordinação da suspensão a uma obrigação de pagamento da indemnização arbitrada ou pelo menos de parte dela.
Na verdade, essa ligação estabelecida entre o cumprimento da reparação indemnizatória fixada ou de parte dela e a suspensão da execução da pena de prisão é uma forma de reforçar no espírito do Arguido a importância da reparação do mal do crime e, com isso, dos bens e valores que feriu, com isso induzindo-o a uma perceção real e acrescida de que é essencial reconhecer o que de errado fez e sobretudo de que é essencial não reiterar em condutas semelhantes.
E do mesmo passo, uma tal ligação é adequada ainda, particularmente em casos como estes que relevam do universo da violência doméstica, a que a comunidade perceba que o sistema de justiça penal cuida ainda dos bens jurídicos atingidos e das vítimas em causa e tudo faz para que o agente adquira verdadeira consciência dos males que causou, primeiro passo, por norma, para que não haja reiteração nas condutas proibidas.
Ponto é que o cumprimento do dever imposto seja «razoavelmente de lhe exigir» - art. 51º, nº 2 do Código Penal.
Do que se trata aqui é de formular um juízo de prognose sobre a tal razoabilidade acerca da satisfação daquele dever, tendo em conta a concreta situação económica, presente e futura, do Arguido (cfr. sobre a matéria o Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência nº 8/2012, in DR, I Série de 24/10/2012).
Ora, importa neste domínio ter presente o que resulta dos factos, a saber, que o Arguido aufere o salário mensal de € 1.100,00; que vive sozinho em casa arrendada, pela qual paga o valor mensal de € 350,00; e que tem o 12º ano de escolaridade.
Para além disso, é sabido que o Arguido é pai do menor CC, nascido em ... de ... de 2018, impondo-se-lhe portanto que haja de contribuir para o seu sustento.
Face aos padrões atuais do custo de vida, afigura-se-nos altamente improvável que o Arguido, mesmo dentro de um comportamento quotidiano de contenção de gastos, consiga, sem esforço excessivo, amealhar alguma poupança.
Nessa medida, entendemos que impor-lhe a obrigação de pagamento de uma quantia indemnizatória como condição para a suspensão da execução da prisão não passaria o crivo legal da razoabilidade.
Não o faremos, em suma, com o que improcede o recurso, nesta parte.
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2.3.2.6 As (eventuais) penas acessórias
De acordo com o preceituado pelo nº 4 do art. 152º, «(…) podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica»; acrescenta o nº 5 da norma que «a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância»; e preceitua por fim o nº 6 que «quem for condenado por crime previsto no presente artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício de responsabilidades parentais, da tutela ou do exercício de medidas relativas a maior acompanhado por um período de 1 a 10 anos».
Subjacente à aplicação de qualquer destas penas acessórias está um juízo de perigosidade do arguido.
O Tribunal a quo, em sede de condenação do Arguido pelo crime de violência doméstica na pessoa da Assistente, decidiu não aplicar qualquer pena acessória; justificou a sua posição nos seguintes termos:
«Estas penas acessórias não revestem carácter automático, devendo a sua necessidade ser apurada com referência às especificidades do caso concreto.
Ora, no caso em apreço, considerando as condições fixadas para a suspensão da execução da pena de prisão, entendo que a necessidade de que o mesmo seja sujeito à pena acessória de proibição de contactos, de modo a que a ofendida possa alcançar a necessária tranquilidade, já se encontra devidamente acautelada, pelo que não é de aplicar esta pena acessória.»
Ora, consideradas as circunstâncias do caso concreto, afigura-se-nos ser de subscrever o decidido pelo Tribunal a quo, mesmo tendo presente o novo quadro decorrente da condenação do Arguido, agora, pela prática de um crime de violência doméstica na pessoa do filho CC, visto que a realidade material global em causa não se modificou de forma substancial.
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2.3.3 O (eventual) arbitramento de uma indemnização
O Tribunal a quo condenou o Arguido a pagar à Assistente a quantia de € 1.000,00 a título de indemnização pelos danos decorrentes do crime de violência doméstica sobre ela praticado.
Pretende a Assistente neste recurso que esse montante seja elevado para € 2.500,00; e pretende ainda que seja fixado montante idêntico para indemnização ao menor CC pelos danos para este decorrentes do crime de violência doméstica de que ele próprio foi vítima.
Vejamos.
No que respeita à indemnização arbitrada à Assistente, o Tribunal a quo fixou-a, como se sabe, em € 1.000,00.
E a fundamentação que expressou foi esta:
«Diz o artigo 21.º da Lei 112/2009 que “1 - À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.”.
Dispõe o artigo 82º-A, nº 1 do CPP que não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
Assim, em face da ausência de oposição expressa da ofendida, há que arbitrar uma indemnização à vítima pelos danos causados pela prática do crime de violência doméstica.
O pedido de indemnização civil por danos emergentes da prática de crime é, por regra, obrigatoriamente deduzido no processo penal e trata-se, no essencial, de uma acção cível enxertada na acção penal.
A obrigação de indemnizar depende, por isso, da verificação dos requisitos gerais da lei civil, sendo que o facto ilícito gerador da responsabilidade é o crime objecto do processo penal.»
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Tratando-se de responsabilidade civil por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar depende da verificação dos requisitos previstos no artigo 483.º do Código Civil, a saber:
- A ocorrência de um facto voluntário facto voluntário.
- O carácter ilícito desse facto.
- A imputação do facto ao agente a título de culpa.
- A ocorrência de danos.
- Nexo causal entre os danos e a conduta do agente.
No caso concreto, o facto ilícito corresponde ao tipo criminal imputado ao arguido e cujos factos resultaram demonstrados. De facto, como referido supra, a ilicitude resulta, in casu, do facto de o arguido ter causado danos psíquicos à ofendida, conduta essa que, para além de integrar a prática de um crime, configura um ataque à integridade psíquica de outrem que mais não é do que um direito absoluto.
Quanto à culpa, resulta evidente que o arguido actuou com dolo directo, querendo e conseguindo o resultado criminoso, quando lhe era exigível que agisse de outra forma mais conforme ao Direito.
Quanto aos danos, há a elencar o medo sentido pela ofendida, as ofensas à sua integridade física e a ofensa à sua honra e consideração que foram afectadas.
Ademais, resultou evidentemente demonstrado que os danos sofridos pela ofendida foram causados pela conduta do agente.
Assim, no caso concreto, esse nexo é de verificação evidente, pois foi dado como provado que aqueles sentimentos resultaram dos actos dos factos praticados pelo arguido.
Os danos não patrimoniais em causa nos presentes autos são, no essencial, danos físicos e psíquicos tipicamente decorrentes de maus-tratos físicos e psíquicos.
Na fixação da obrigação de indemnizar relativamente aos danos não patrimoniais, as regras são diferentes da vulgar indemnização por danos patrimoniais.
Por um lado, nem todos os danos são indemnizáveis, mas apenas aqueles que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, não se justificando a tutela no caso de meros incómodos ou arrelias.
Por outro lado, à falta de uma correspondência pecuniária imediata, a fixação da indemnização terá de fazer-se recorrendo à equidade.
No caso concreto, tendo em conta o critério legal, considera-se que os danos não patrimoniais descritos merecem a tutela do direito, para tanto sendo suficientemente graves, já que excedem, em grande medida, meros incómodos.
Pelo exposto, e atenta a factualidade provada e as condições económicas do demandado, julga-se adequado à reparação dos danos sofridos fixar o montante da indemnização de tais danos em € 1.000,00.»
No que especificamente respeita à situação da Assistente, não vemos razões para nos distanciarmos dos fundamentos gerais do arbitramento oficioso de uma indemnização bem enunciados pela sentença recorrida.
E quanto ao exato montante arbitrado, se é certo que o mesmo se mostra objetivamente baixo, se consideradas a natureza e a gravidade do crime em causa e as suas particularidades concretas, não é menos verdade que importa ter presente as condições económico-financeiras do Arguido, a que já atrás aludimos e que são categorizáveis como algo precárias.
Ainda assim, estamos em crer que não será excessivo subir um pouco o valor indemnizatório, para um patamar mais apropriado à reparação do sério mal causado, traduzido, em síntese, no sofrimento físico e psíquico associado a gestos de perfil muito censurável e que se prolongaram no tempo.
Fixaremos a indemnização à Assistente em € 1.800,00.
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No que respeita ao menor CC, importa convocar para este espaço, mutatis mutandis, tudo quanto pelo Tribunal a quo foi dito a respeito dos fundamentos gerais da indemnização arbitrada à Assistente e que acima transcrevemos.
De todo o modo, olhando a situação agora do menor, é relativamente escassa a matéria de facto apurada em termos de danos por ele especificamente sofridos.
Sabe-se em qualquer caso que sentiu dores com a palmada que o Arguido lhe desferiu; que sentiu angústia com as condutas do Arguido; e que por via delas perturbou-se o seu processo de vinculação e o saudável crescimento psíquico e emocional.
Estando, também aqui, perante um conjunto de danos que não é facilmente mensurável, afigura-se-nos apropriado, porque necessário, adequado e proporcional, arbitrar uma indemnização ao menor CC de € 800,00.
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3 - DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, nos seguintes termos:
A. Julga-se verificado um erro notório na apreciação da prova, nos termos do art. 410º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal, que se supre determinando a passagem dos factos em seguida descritos da matéria não provada para a matéria provada, factos que se aditam a esta última sob os nºs 20-A e 20-B, com os seguintes teores:
20-A. Sabia o arguido AA que, ao atuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, a quem cabia a sua educação, dever de cuidado e segurança, por ser o seu progenitor, e legal representante, o fazia perante uma criança, que devido à sua tenra idade, não detinha capacidade para reagir a tais atos, o qual, apesar disso, o obrigava a assistir e, mesmo, a sofrer.
20-B. O arguido AA bem sabia que, ao atuar conforme descrito, na presença do filho menor, CC, fazendo-o num tom de voz elevado, com demonstrações verbais e não verbais de agressividade, lhe provocavam sentimentos de angústia, perturbando o seu processo de vinculação e o seu saudável crescimento psíquico e emocional, conformando-se com esse resultado.
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B) Revoga-se a sentença recorrida, na parte em que absolveu o Arguido da prática de um crime de violência doméstica na pessoa do filho CC, previsto pelo art. 152º, nºs 1, alínea d) e 2, alínea a) do Código Penal, crime este pelo qual vai agora condenado na pena de 2 (dois) anos de prisão, sem prejuízo do determinado em C).
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C) Fixa-se ao Arguido, pela prática do crime descrito em B) e pela prática do crime de violência doméstica na pessoa da Assistente, previsto pelo art. 152º, nºs 1, alíneas a) e c) e 2, alínea a) do Código Penal, a pena única de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, que se suspende na sua execução por idêntico período, impondo-se-lhe as seguintes regras de conduta:
C.1) Manter-se afastado da residência e do local de trabalho da ofendida;
C.2) Proibição de estabelecer contactos, por qualquer meio, com a ofendida, sem prejuízo dos contactos estritamente necessários para o exercício das responsabilidades parentais.
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D) Altera-se a quantia indemnizatória arbitrada à Assistente BB, condenando-se o Arguido AAa pagar-lhe a quantia de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros), pelos danos decorrentes do crime de violência doméstica de que foi vítima.
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E) Condena-se o Arguido AAa pagar ao menor CC a quantia de € 800,00 (oitocentos euros), a título indemnizatório pelos danos decorrentes do crime de violência doméstica de que foi vítima.
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Custas penais do recurso pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) unidades de conta [arts. 513º, nºs 1, parte final, e 3 do Código de Processo Penal, e 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a este anexa].
Não são devidas custas cíveis, por não ter chegado a existir na altura processualmente própria um pedido de indemnização civil.
Registe e notifique.
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Lisboa, 11 de julho 2024
Os Juízes Desembargadores (processado a computador pelo relator e revisto por todos os signatários; assinaturas eletrónicas)
Jorge Rosas de Castro
Micaela Pires Rodrigues
Maria João Lopes


1. Comentário Conimbricense ao Cód. Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 332