Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
8653/2006-3
Relator: CARLOS DE SOUSA
Descritores: JOGO CLANDESTINO
JOGO DE FORTUNA E AZAR
MÁQUINA DE JOGO
PRÉMIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/07/2007
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – Para a verificação do crime de jogo ilícito p. p. pelo art. 108.º, n.º 1, do DL 422/89, de 2/12, não basta provar-se que as máquinas desenvolvem “temas próprios dos jogos de fortuna e azar”, em que os resultados são pontuações que “dependem … fundamentalmente da sorte”.
II – Com a alteração àquele diploma operada pelo DL 10/95, de 19/01, o cerne da distinção entre crime e contra-ordenação, em matéria de jogo, passou a colocar-se não já na relevância da sorte ou azar para obtenção do resultado, mas antes na natureza dos prémios atribuídos.
III – Assim, quando tais prémios consistem em dinheiro, estar-se-á perante ilícito criminal, ao passo que a atribuição de prémios de outra natureza caracteriza o ilícito de mera ordenação social.
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – No presente processo comum (juiz singular), nº 458/01.0PAMTJ, do 3º Juízo do T. J. Comarca do Montijo, que o MºPº move contra os arguidos (C), (L) e outros, por sentença de 14/10/2004, foi julgada parcialmente procedente a acusação e, em consequência, decidiu-se, além do mais: condenar aqueles dois arguidos, (C) e (L), pela prática em co-autoria de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo artº 108º, nº 1, com referência aos artºs 1º, 3º e 4º, todos do D.L.nº 422/89, de 2/12, na redacção que lhe foi dada pelo D.L.nº 10/95, de 19/1, respectivamente:
- o arguido (C) na pena de multa de 200 (duzentos) dias, à taxa diária de € 5 (cinco euros), o que perfaz o montante de € 1.000 (mil euros), a que corresponde a prisão subsidiária de 133 (cento e trinta e três) dias; e
- o arguido (L) na pena de multa de 300 (trezentos) dias, à taxa diária € 10 (dez euros), o que perfaz o montante de € 3.000 (três mil euros), a que corresponde a prisão subsidiária de 200 (duzentos) dias.
Tendo ainda absolvido os outros dois arguidos (CA) e (AG), ids. nos autos).
II – A) Inconformado, recorre o arguido (L) para esta Relação, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões (como se transcreve):
« 1 – Uma decisão condenatória do acusado tem como premissa o alcance da certeza sobre a sua culpabilidade, não sendo bastante a dúvida ou a incerteza, por mais ténues que se afigurem.
Ao julgador impõe-se ...que evidencie os meios de prova em que assentou a sua convicção ...que expresse de forma clara qual foi o processo lógico-dedutivo que permitiu alcançar a certeza quanto à prática do facto, por forma a garantir a compreensão e razoabilidade do mesmo, tendo assim violado o disposto no Artº 127º CPP;
2 – Em Direito Processual Penal vigora o princípio da prova plena em desfavor do arguido e não basta a prova parcial ou indiciária da sua culpabilidade;
3 – Foi ainda violado o disposto no Artº 32º nº 2 da CRP, face a não ter sido respeitado o princípio in dúbio pro reo na actividade de produção de prova;
4 – Quanto ao erro notório na apreciação da prova, tende-se que o presente recurso não tem um carácter meramente impugnativo das questões que ao recorrente dizem respeito, mas num espírito mais amplo, de apreciação crítica a toda a evolução processual em causa;
5 – O recorrente vinha acusado de um crime de co-autoria material pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. p. no artº 108º, nº 1, com referência aos artºs 1º e 3º, nº 1, do Dec.-Lei Nº 422/89, de 2 Dez., alterado e republicado em anexo ao Dec.-Lei Nº 10/95, de 19 Jan., e não se tendo provado, quanto a este arguido, quaisquer factos que, objectiva e subjectivamente, preencham esse tipo de crime, impõe-se a absolvição do recorrente, do crime de que vinha acusado;
NESTES TERMOS DEVERÁ SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, REVOGANDO-SE A SENTENÇA ORA RECORRIDA, COM O QUE SE FARÁ    A MAIS LÍDIMA JUSTIÇA ! »
                                                           *
            B) O digno Magistrado do Ministério Público respondeu, concluindo (sem articular) que a douta sentença recorrida se mostra “conforme à lei e ao direito”, pelo que “deve ser integralmente confirmada”, “negando-se provimento ao recurso”.
                                                                       *
            C) Após diligências (inúteis) para notificar pessoalmente da sentença um dos co-arguidos, o absolvido (CA) – com o que decorreram quase dois anos (OUT/04 a OUT/06 - cfr. fls. 216 a 254) – foram, finalmente, os autos remetidos a esta Relação, a Exmª PGA apôs o seu visto, reservando a sua posição para as suas alegações orais a produzir em audiência.
                                                                      *
III – Colhidos os vistos, cumpre decidir.
A) Do âmbito do recurso.
Como é jurisprudência corrente, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões do recorrente – por todos, Ac. STJ de 24/03/99 (C.J., Acs. STJ, VII, tomo I, p. 247), e resulta do princípio da cindibilidade dos recursos (artºs 403º e 412º, nº 1, do CPP).
Assim, o recorrente suscita o vício do erro notório na apreciação da prova – v. 1ª a 4ª conclusões – e, de acordo com o princípio in dúbio pro reo, pede a sua absolvição.
Implicitamente, coloca-se a questão da qualificação jurídico-penal dos factos (cfr. III da motivação), v.g. da prática pelo recorrente da contra-ordenação, modalidade afim dos jogos de fortuna ou azar, p. e p. pelos artºs 159º, nºs 1 e 2, 160º e 163º, nº 1, todos do DL 422/89, de 2/12 (red. DL 10/95, de 19/1) ? Ou antes do crime por que foi condenado, p. e p. pelos citados artºs  1º, 3º, 4º, nº 1, als. f) e g), e 108º do mesmo diploma legal ?
No caso de se tratar da citada contra-ordenação, haverá que apurar se o respectivo procedimento se mostra extinto, por prescrição: prazo prescricional normal é de um ano – cfr. artº 27º al. b) do RGCO (D.L. 433/82, red. D.L. 244/95, de 14/9, D.L. 323/01, de 17/12 e Lei 109/01, de 24/12); pelo que já terá decorrido o prazo do nº 3 do artº 28º desse RGCO (prazo normal acrescido de metade, ressalvado o prazo suspensão da prescrição) ?
Neste caso, deve a decisão aproveitar ao co-autor, (C), não recorrente (artº 402º, nº 2-a), do CPP) ?
*
B) Para ponderar e decidir tais questões, passamos a transcrever o texto da sentença recorrida na parte pertinente:
« a) Descrição e Fundamentação
Discutida a causa, o Tribunal tem como provados os seguintes factos:
1. Desde há cerca de 11 anos, o arguido (C) é proprietário do estabelecimento de café-pastelaria  denominado “...”, sito na Rua..., explorando-o directamente.
2. Desde o início de Setembro de 2001, embora em data não concretamente apurada, com o acordo e consentimento do arguido (C), o arguido (L) colocou no estabelecimento, referido em 1., duas máquinas eléctricas de jogos de sua pertença para serem exploradas pelo arguido (C), as quais ficaram expostas ao público, até á sua apreensão em 14 de Outubro de 2001[1].
3. Os lucros da sua exploração eram divididos entre os arguidos (C) e (L) na proporção de metade para cada um.
4. Uma das máquinas é constituída por móvel preto com estrutura de madeira. Na parte superior tem um painel rectangular com os dizeres “Super Video IDSA”, apresenta um ecrã vídeo protegido por vídeo, a que se segue uma consola com 6 botões de várias cores e 2 joysticks; na sua parte inferior apresenta dois dispositivos destinados à introdução de moedas, munidos de 1 ranhura cada, para moedas de 100$00, a que se segue o cofre respectivo.
5. As máquina referida em 4. desenvolvia um jogo com as características de video-poker, designado de “P Block”, diferindo em que em vez de cartas, aparece no ecrã, de forma aleatória e dispostos em linha, um conjunto de cinco figuras “quadrados” distribuídos por quatro cores (azul, amarelo, rosa e verde) sendo cada cor numerada de 1 a 13.
6. Podiam aparecer 4 figuras com o nº 1, 4 figuras com o n.º 2, e assim sucessivamente até ao número 13, por cada cor.
7. O número 1 corresponde ao ÁS e o número 13 ao Rei, sendo que os números intermédios correspondem às demais cartas do naipe de um baralho.
8. Às cores azul, amarelo, rosa e verde correspondem, por convenção, os naipes de copas, espadas, ouros e paus, respectivamente.
9. Após a introdução de moedas de 100$00, decide-se o número de apostas e dá-se início ao jogo através do accionamento da tecla “start” – um dos joysticks – surgindo logo, de modo simultâneo, de forma aleatória e dispostas em linha, na base do ecrã, as cinco figuras “quadrados”, distribuídas por quatro cores, sendo cada cor numerada de 1 a 13.
10. A fixação das figuras era feita pressionando o botão correspondente à figura escolhida, o que provocava o aparecimento automático de uma luz mais intensa sobre a figura; mudando o jogador de ideias e não querendo fixar a figura, poderia pressionar de novo o botão, voltando a luz a ter a intensidade normal.
11. Surgindo, logo à partida, duas ou mais figuras com o mesmo número mas de cores diferentes, ou qualquer outra combinação susceptível de dar prémio, era a própria máquina que fixava tais combinações através do aparecimento automático da luz mais intensa sobre as figuras.
12. Saindo uma combinação premiada, surgia automaticamente na parte superior do ecrã a informação do número de pontos ganhos e ao lado da legenda “P Block” aparecia um símbolo correspondente à combinação premiada.
13. Na situação descrita em 12., o jogador poderia optar por tentar dobrar o ganho obtido ou ficar com os pontos já ganhos.
14. O objectivo do jogo desenvolvido por ambas as máquinas era, tal como no vídeo-poker, o de conseguir combinações premiadas, tais como sequência real, sequência numérica, sequência de cor, fullen, trios, pares.
15. Ambas as máquinas aceitavam um número indeterminado de moedas de 100$00.
16. A cada moeda de 100$00 introduzida correspondiam 10 pontos.
17. Cada jogada permitia 1 a 50 apostas.
18. A segunda máquina diferia da acima descrita por estar integrada em móvel de cor castanha, contendo na parte superior um painel rectangular com os dizeres “SPORT GALAXI ATASA”.
19. O jogo desenvolvido era o descrito nos pontos 5. a 14..
20. Junto com a máquina referida em 18 estão 2 comandos à distância, sendo que um deles não funciona e o outro serve para creditar pontos, creditando 100 pontos cada vez que é pressionado.
21. A máquina referida em 18. aceitava 2 a 80 apostas por jogada.
22. O ritmo e velocidade do jogo desenvolvido em ambas as máquinas era igual ao das máquinas dos casinos.
23. Nenhuma das máquinas tinha qualquer referência exterior quanto à origem, fabricante, número de fabrico ou de série.
24. Os prémios que podiam ser atribuídos, em função dos pontos obtidos, encontravam-se afixados num cartaz por detrás do balcão do estabelecimento, em local de fácil visibilidade para o público.
25. Os prémios eram constituídos por isqueiros, porta-chaves e máquinas calculadoras.
26. Antes da data referida em 2, o arguido (C) já tinha tido outras máquinas de jogos no seu estabelecimento, embora com jogos diversos.
27. O arguido (C) tinha conhecimento do teor dos jogos desenvolvidos por ambas as máquinas e do papel neles desempenhado pelo factor sorte.
28. À data dos presentes factos, o arguido (L) era sócio gerente de uma sociedade comercial denominada “..., Ld.ª”, que se dedicava à exploração de máquinas de diversão e jogos lícitos em estabelecimentos próprio ou de terceiros.
29. O arguido (L) tinha conhecimento do teor dos jogos desenvolvidos por ambas as máquinas e do papel neles desempenhado pelo factor sorte.
30. Em 13 de Outubro de 2001, os arguidos (AG) e (CA) encontravam-se no interior do estabelecimento comercial referido em 1, jogando cada um numa das máquinas referidas em 2.
31. O arguido (AG) era cliente habitual do estabelecimento comercial.
32. Jogava na máquina, como descrito, com o intuito de se divertir e motivado por curiosidade.
33. O arguido (AG) tinha conhecimento do teor do jogo desenvolvido pelas referidas máquinas e do papel nele desempenhado pelo factor sorte.
34. Os arguidos (C) e (L) agiram livre e conscientemente, em comunhão de esforços e de intenções, com intuito de retirarem lucro da actividade e bem sabendo que o jogo desenvolvido pelas máquinas referidas em 4. e 18. só podia ser explorado nos locais legalmente autorizados e bem assim que as suas condutas eram punidas e proibidas por lei.
Mais se provou:
35. O arguido (C) aufere mensalmente uma quantia média de 900 euros.
36. É casado, sendo a sua esposa doméstica, não auferindo quaisquer rendimentos.
37. Tem um filho de 10 anos, estudante.
38. Tem como habilitações literárias a 4ª classe.
39. O arguido (C) não tem antecedentes criminais.
40. O arguido (L) aufere, na sua actividade profissional, a quantia mensal média de 1500 euros.
41. É casado, auferindo a sua esposa a quantia mensal média de 500 euros.
42. O seu agregado familiar é ainda composto por 2 filhos, de 6 e 16 anos, ambos estudantes, que sustenta.
43. Suporta a quantia mensal de 650 euros a título de renda da casa.
44. O arguido (L) é titular de uma quota social da sociedade referida em 28, no valor nominal de 160.000 euros.
45. O arguido (L) tem averbado no seu registo criminal uma condenação na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 5 euros, num total de 400 euros, pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, p. e p. pelo DL 422/89 de 2/12, praticado em 01-03-1998, por sentença condenatória proferida em 18-03-2004, transitada em julgado em 02-04-2004, proferida por este 3º juízo do Tribunal Judicial da Comarca do Montijo.
46. O arguido (AG) é aglomerador de cortiça.
47. Aufere mensalmente, na sua actividade profissional, a quantia de 900 euros.
48. É casado, auferindo a sua esposa a quantia mensal de 750 euros.
49. O seu agregado familiar é ainda composto por 2 filhos, de 10 e 4 anos, ambos estudantes.
50. Suporta a quantia mensal de 400 euros a título de renda de casa.
51. Tem como habilitações literárias o 2º ciclo completo.
52. Não tem antecedentes criminais.
53. O arguido (CA) não tem antecedentes criminais. »
*
« b) Nada mais resultou provado, não tendo resultado provados os factos constantes da acusação e incompagináveis com os ora dados como provados, nomeadamente, que
1. Os arguidos (AG) e (CA) sabiam que o jogo desenvolvido pelas referidas máquinas só podia ser explorado nos locais legalmente autorizados.
2. Os arguidos (AG) e (CA) tinham já introduzido algumas moedas de 100$00 e tinham já a seu favor vários pontos acumulados. »
*
« c) Motivação
O Tribunal fundou a sua convicção sobre a matéria dada como provada baseando-se nas declarações dos arguidos, prestadas em audiência de julgamento; na prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, bem como na prova documental junta aos autos.
Concretizando, relativamente ao ponto 1 da matéria provada, levou-se em conta o alvará municipal de fls. 50 relativo ao estabelecimento em causa, bem como as declarações do arguido (C), proprietário do referido estabelecimento.
Relativamente aos pontos 2 e 3, a convicção do Tribunal resultou das declarações prestadas pelos arguidos (C) e (L), ambos intervenientes directos em tais factos, pelo que deles tinham conhecimento directo. Ambos confirmaram o modo como as máquinas foram colocadas no estabelecimento do primeiro e a proporção da divisão dos lucros.
No que se refere à descrição das máquinas e do teor dos jogos por estas desenvolvidos (pontos 4 a 23 da matéria provada), valoraram-se fundamentalmente os relatórios (fls. 54 a 61) elaborados pela Inspecção-Geral dos Jogos, por ser entidade independente e idónea, possuidora dos conhecimentos técnicos adequados a uma correcta avaliação de tais matérias. Foram também levados em conta os depoimentos da testemunha (H), sub-chefe da PSP, sem interesse directo na causa e que revelou ter conhecimento directo dos factos por ter sido o agente que se deslocou ao local e levantou o respectivo auto de notícia.
Relativamente aos prémios susceptíveis de serem atribuídos pelo jogo, foram levadas em conta as declarações do arguido (C), que confirmou o constante dos pontos 24 e 25 da matéria provada, bem como o depoimento da testemunha (H), que tendo estado no local se apercebeu de tal realidade.
Quanto ao conhecimento que os arguidos (C) e (L) tinham do conteúdo dos jogos (pontos 27 e 29 da matéria provada), levou-se em conta não só as declarações prestadas por estes em audiência de julgamento, como as próprias regras de experiência comum. Assim, o arguido (C) admitiu conhecer o teor do jogo desenvolvido pelas máquinas, explicitando mesmo ter consciência que o mesmo dependia exclusivamente da sorte e não da perícia do jogador. O arguido (L) não foi tão explícito, apenas admitindo que conhecia em geral o mecanismo do jogo, embora de modo não exaustivo. Referiu ainda saber que havia lugar a prémios consoante a pontuação obtida. Relativamente ao arguido (L), o Tribunal ficou com a convicção de que conhecia o teor dos jogos, não só pelo que afirmou, como também pelo facto de, sendo profissional desta área, ser pouco crível que não tenha conhecimento dos jogos em que negoceia.
O mesmo se diga quanto ao ponto 34 da matéria provada, relativo à consciência da ilicitude. Com efeito, embora o arguido (L) tenha afirmado não ter consciência da inadmissibilidade da exploração dos jogos aqui em causa fora de estabelecimento especialmente autorizados para tal, não podemos ter tal declaração por séria e verosímil. Efectivamente, sendo o arguido sócio gerente de uma sociedade que explora comercialmente máquinas de jogo, não é minimamente credível que não conheça as limitações legais a essa actividade[2][1]. Tal convicção do Tribunal foi reforçada pelo facto de o arguido na altura da prática dos factos já ter visto ser levantado um auto por factos idênticos, no âmbito do processo n.º 137/98 julgado neste juízo.
Também quanto ao arguido (C), embora tenha negado, o Tribunal desvalorizou tal negação, formando a sua convicção com base nas regras de experiência comum e de razoabilidade. Efectivamente, também não parece credível, nem sequer razoável, que um comerciante que dirige e explora uma cafetaria, há cerca de 11 anos, que já teve outras máquinas de diversão, desconheça a lei e ignore as condições de funcionamento dos estabelecimentos comerciais e de exploração de máquinas em estabelecimentos comerciais. Por estes motivos ficou o Tribunal convicto de que o arguido não desconhecia a proibição de explorar tais jogos num estabelecimento como o dos presentes autos.
Relativamente ao ponto 30 da matéria provada, foram os factos admitidos pelo arguido (AG) – quanto a si – e confirmados pela testemunha (H) em audiência. Levou-se também em conta o auto de notícia elaborado por esta última testemunha, a fls. 4 e 4 verso.
Os pontos 31 a 33 foram dados como provados por terem sido admitidos pelo arguido (AG), de modo credível e sincero.
O Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria relativa às condições socio-económicas dos arguidos com base nas declarações destes e, concretamente quanto ao ponto 44, com base na certidão do registo comercial de fls. 38 a 43 verso.
Os factos relativos aos antecedentes criminais dos arguidos resultaram provados em virtude dos certificados de registo criminal respectivos, juntos aos autos.
Quanto à matéria não provada, deve-se à inexistência de prova susceptível de formar a convicção do Tribunal sobre a sua veracidade, sendo que, especificamente quanto ao ponto 1, o Tribunal considerou não existirem elementos suficientes para permitir um juízo probatório análogo ao formulado relativamente aos arguidos (C) e (L).» - nossos sublinhados.
                                                           *
C) Começamos, entretanto, por abordar os vícios do artº 410º, nº 2 do CPP os quais, como se sabe, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum.
Ora, sendo tais vícios do conhecimento oficioso deste tribunal de recurso (cfr. Ac. Pl. Sec. Crim. STJ de 19/10/95, in DR I-A Série, de 28/12/95), atento o texto acima transcrito, apenas diremos que não vislumbramos nenhum deles.
Mas como o recorrente suscita, expressamente, o vício da alínea c), erro notório na apreciação da prova, iremos abordá-lo mais detalhadamente.
Neste aspecto, vem sendo afirmado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores que: « Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se constata erro de tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, o que deve ser demonstrado a partir do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.» - Ac. STJ de 17/12/97 (BMJ 472/407);
Ou que: « O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica do homem médio, não se poderiam ter verificado ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos.» - Ac. STJ de 2/06/99 (Proc. nº 354/99).
Ou ainda, na modalidade que parece, aparentemente, enquadrar-se na alegação do recorrente, na medida em que invoca a violação do princípio in dubio pro reo:
« Só existe erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal. Nesta perspectiva, a violação do princípio in dúbio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida se extrair, por forma mais do que óbvia, que o colectivo optou por decidir, na dúvida, contra o arguido.» - Ac. STJ de 15/04/98 (BMJ 476/82).
Ora, atenta tal jurisprudência, entendemos que não se verifica tal vício, o mesmo não é patente do texto da decisão recorrida.
Nomeadamente, tendo em devida conta a motivação da decisão recorrida, acima transcrita, podemos concluir que, no caso, à Mmª Juiz a quo não se colocaram dúvidas, razoáveis e sérias, de molde a fazer funcionar o dito princípio in dúbio..., mormente no que concerne aos factos dados como provados acima descritos e, especialmente, nos respeitantes ao ora recorrente.
Ao invés do alegado, não se evidencia a violação de qualquer regra de experiência comum, não se mostra, assim, violado o princípio da livre apreciação da provaartº 127º do CPP.
Antes pelo contrário, a douta sentença recorrida especifica os fundamentos da matéria de facto, explicitando claramente o raciocínio lógico que lhe subjaz.
Em suma, trata-se de uma sentença que não é arbitrária, nem caprichosa, pois a convicção do(a) julgador(a) está motivada e fundamentada, alicerçando-se em critérios objectivos, claros e compreensíveis.
Tem-se, assim, por assente a matéria de facto acima transcrita.
                                                           *
D) Da qualificação jurídico-penal dos factos apurados.
1. Começamos por realçar que os jogos desenvolvidos pelas duas máquinas eléctricas que o recorrente (L) explorava, juntamente com o co-arguido (C), no aludido café/pastelaria “...”, desde o início de Setembro de 2001 e até estas serem apreendidas, em 13/10/2001, dizíamos, esses jogos eram jogos de POKER, ou de vídeo-poker.
Não há dúvidas, pois, que estamos perante duas máquinas que desenvolvem “temas próprios dos jogos de fortuna ou azar”; no caso, o poker – cfr. factos provados 4. a 17. e 18. a 22.; vide os citados relatórios da IGJ, a fls. 54-57 e 58-61.
Por outro lado, já vimos que aquelas máquinas não pagam, directamente, prémios em fichas ou moedas, muito embora, desenvolvam “temas próprios dos jogos de fortuna ou azar e/ou, com é da natureza do próprio jogo – poker – os resultados são pontuações que “dependem ...fundamentalmente da sorte” – cfr. al. g) do nº 1 do artº 4º do D.L.nº 422/89, de 2/12.
Contudo, isto não basta para que, actualmente, se considere a conduta apurada como integrando o crime previsto no citado artº 108º nº 1 daquele mesmo diploma legal.
2. A nossa posição era, como explicitámos no Ac. TRL de 16/02/05 (Proc. nº 9689/04 – também do ora relator), em breve resenha sobre a evolução legislativa e, nesta matéria (jogo ilícito), sobre o aparecimento da figura das modalidades afins do jogo de fortuna ou azar e a opção pela inclusão de certas condutas como delitos de mera ordenação social:
«... Como já acontecia com o D.L. nº 48.912, de 18/3/69 (entretanto revogado, cfr. artº 7º do D.L.nº 10/95), os jogos de fortuna e azar são apenas aqueles que «dependem exclusivamente da sorte», aí se incluindo as máquinas automáticas que desenvolvem jogos para cujos resultados não influa a perícia do jogador, desde que atribuíssem fichas ou dependessem da sua utilização (cfr. artºs 1º e 4º-3).
Não as atribuindo, nem deles dependendo, estava-se, então, apenas perante «modalidades afins do jogo de fortuna ou azar» (cfr. seu artº 43º).
Depois, os D.L. nºs 21/85 e 22/85, ambos de 17/1, face aos «resultados nefastos que, da prática descontrolada do jogo, decorriam para a sociedade» e considerando que a anterior solução legislativa no que respeita às máquinas de diversão se mostrara ineficaz para «prevenir e reprimir o seu emprego na prática de jogo ilícito», introduz-se, adita-se, ao rol de jogos de fortuna ou azar as « máquinas automáticas mecânicas, eléctricas ou electrónicas que, não pagando directamente prémios em dinheiro, fichas ou coisas com valor económico, desenvolvem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte. » - cfr. redacção então dada pelo DL 22/85 ao artº 4º, nº 4 daquele D.L.nº 48.912. Aí se passando a punir com prisão de 6 meses a 2 anos, os que infringissem o disposto no seu artº 2º, «...explorando jogos de fortuna ou azar, incluindo máquinas automáticas referidas na alínea 4ª do artigo 4º...» - cfr. seu artº 56º.
Acontece que, entretanto, com o citado D.L. 422/89, de 2/12, pretendeu o legislador dar maior coerência à disciplina actual do jogo, redefinindo os jogos de fortuna ou azar, passando a incluir neles os de resultado contingente, ou seja, os de resultado «...assente exclusiva ou fundamentalmente na sorte» e para além disso a exploração dos jogos em máquinas que pagassem directamente prémios em fichas ou moedas, bem como os jogos em máquinas que «..., não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvem temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte » - cfr. artº 4º.
De qualquer modo, antes da alteração operada pelo mencionado D.L.nº 10/95, de 19/1, era claro que, como se dispunha no artº 1º daquele D.L.nº 422/89, de 2/12:
« Jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte. » - nosso realce.
Sendo ainda certo que, na alínea g) do nº 1 do artº 4º desse DL 422/89 já se dispunha que: « São jogos de fortuna ou azar os jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte. »
E, ainda na versão originária (aliás, não alterada pelo citado D.L.nº 10/95), já no artº 108º daquele D.L.nº 422/89 se consignava:
« 1. Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até 2 anos e multa até 200 dias. ...»
Locais esses que, em regra, são os casinos permitidos em zonas de jogo definidas por lei (cfr. seu artº 3º).
Por outra via, com a redacção operada pelo citado D.L.nº 10/95, de 19/1, visou-se criar «... um enquadramento susceptível de melhorar as condições de exploração da actividade e de assegurar uma efectiva repressão das infracções, através do reforço da responsabilidade das concessionárias, dos seus administradores, trabalhadores e frequentadores. »
Mas, no essencial, manteve-se o regime jurídico então vigente, optando-se por englobar as normas relativas às modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar no aludido D.L. 422/89, «...revogando-se assim por completo o Decreto-Lei nº 48.912, de 18 de Março de 1969...» - preâmbulo do Dec.-Lei nº 10/95, de 19/1. »
3. Apesar de tudo, é com a alteração operada pelo D.L.nº 10/95, de 19 de Janeiro (no D.L.nº 422/89, de 2/12), que o cerne da distinção entre crime e contra-ordenação, neste âmbito, passa a colocar-se, não já na relevância da sorte ou azar para a obtenção do resultado, mas antes na natureza dos prémios atribuídos.
Esta posição é a que vem sendo, há muito, defendida em inúmeras declarações de voto pelo Ex.mo Desembargador Presidente desta 3ª Secção – veja-se, nomeadamente, a declaração de voto que o mesmo proferiu no Ac. TRL de 26/10/05 (proc. 7610/05-3ª, in Col. Jur., Ano XXX, Tomo IV, págs. 147 a 152).
Assim, aí a maioria dos subscritores (o relator, dr. Carlos Rodrigues Almeida, e os adjuntos, drs. Horácio Telo Lucas e António Rodrigues Simão), propenderam para a tese ali sumariada de que: “I - No regime legal vigente são unicamente jogos de fortuna ou azar aqueles cuja exploração é autorizada nos casinos (nºs 1 e 3 do artº 4º do DL nº 422/89, de 2 de Dezembro, na redacção actual)”.
O ora relator vinha, entretanto, seguindo a tese maioritária, mas, após uma mais ponderada reflexão, chegou à conclusão de que aquela é redutora, pecando mesmo por petição de princípio.
Aceitamos, pois, convictamente, que a tese defendida pelo Ex.mo Desembargador Cotrim Mendes – a qual, aliás, vem sendo mais amiúde defendida pelos dignos magistrados do MºPº junto desta Relação de Lisboa – é a que é mais clara e consentânea com os fins propostos pelo legislador, especialmente o do D.L.nº 10/95, de 19/1.
Temos assim por mais correcta a posição melhor evidenciada na declaração de voto, no Rec. nº 6170/06-3, em que se explicita que:
«...A exploração ilícita de jogo só constitui crime quando haja pagamento de prémios em dinheiro, sendo essa actividade a que está confinada aos casinos e congéneres (...).
Por outras palavras, o ser o jogo punível como crime (de fortuna ou azar) não depende da sua caracterização, que é comum com a das modalidades afins, mas sim da natureza dos prémios: o pagamento de prémios em dinheiro está absolutamente vedado nas modalidades afins, sendo esse elemento que verdadeira e fundamentalmente distingue estas últimas dos jogos de fortuna e azar (pense-se na hipótese que não se acha coberta pela lei, e cuja verificação fará cair pela base toda a argumentação pseudo-moralista fundada nos malefícios intrínsecos do jogode um jogo principal ou exclusivamente dependente da perícia do jogador, mas que dê prémios em dinheiro, e ver-se-á de imediato a incongruência do entendimento que se tem generalizado) ...» [v.g., jogos como a conhecida “macaca”, o “curling”, as chamadas “bolas francesas”, etc.]
Em suma, é a natureza dos prémios que é a pedra de toque, o critério legal actual que distingue se se está perante ilícito criminal – prémios em dinheiro (ou fichas para o receber); se atribuem prémios de outra natureza (ainda que bens com valor económico: v.g., isqueiros, carros, etc.), então o ilícito degrada-se e passa a integrar uma mera contra-ordenação (ilícito de mera ordenação social), obviamente, desde que falte a autorização administrativa para a sua prática.
Assim, com a alteração operada pelo DL nº 10/95, alterou-se o cerne da distinção entre os dois conceitos, que deixou de assentar na relevância da sorte ou do azar para o resultado.
Procurou-se, então, como meio para distinguir o campo de aplicação das incriminações previstas nos artigos 108º a 111º e 115º do universo das condutas que integram os ilícitos de mera ordenação social (artigos 160º a 163º), situar a linha de fronteira na natureza dos prémios atribuídos. Quando estes consistem em dinheiro, estar-se-á perante ilícito criminal, ao passo que a atribuição de prémios de outra natureza caracteriza o ilícito como de mera ordenação social.
5.  Dito isto, concluímos que, no presente caso, estamos somente perante a prática, em co-autoria material, por parte dos arguidos (L) e (C), de contra-ordenação (modalidade afim) p. e p. pelos artºs 159º, nºs 1 e 2, 160º, nº 1, e 163º, nº 1, do D.L.nº 422/89 (red. D.L.nº 10/95) e não do imputado crime, por que foram (ambos) condenados.
Como vimos, neste caso apurou-se que: «...Os prémios eram constituídos por isqueiros, porta-chaves e máquinas calculadoras.» – cfr. facto 25. supra.
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E) Da prescrição do procedimento contra-ordenacional.
Apesar do que se acaba de referir, mesmo no que respeita à apurada contra-ordenação verifica-se que o procedimento respectivo se mostra extinto, por prescrição.
Na verdade, realça-se que os factos ocorreram entre finais de Setembro e 13 de Outubro de 2001.
Por outro lado, o prazo prescricional (normal) é, neste caso, de um ano – cfr. artº 27º al. c) do RGCO (DL 433/82, red. DL 244/95, de 14/9, DL 323/01, de 17/12 e Lei 109/01, de 24/12).
Significa isto que há muito que decorreu o prazo do nº 3 do artº 28º do RGCO, porquanto: ao prazo normal, acrescido de metade (1 ano + 6 meses), há  que ressalvar o prazo máximo de suspensão (6 meses) – v. nº 2 do artº 27º-A do RGCO.
Em suma, já está extinto o procedimento contra-ordenacional.
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F) Concluindo:
Procede o recurso, pelo que vai o ora recorrente absolvido do crime p. e p. pelo artº 108º, nº 1, com referência aos artºs 1º, 3º e 4º, todos do DL 422/89 (red. DL 10/95).
Atenta a co-autoria material imputada, deve a presente decisão aproveitar também ao co-arguido (C), embora não recorrente (cfr. artº 402º, nº 2-a), do CPP).
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IV – DECISÃO:
Nos termos acima expostos, acordam em dar provimento ao recurso.
Em consequência, revoga-se a sentença recorrida na parte em que havia condenado quer o ora recorrente, (L), quer o co-arguido, (C) (não recorrente), que se substitui por outra que absolve estes dois arguidos do imputado crime, p. e p. pelo artº 108º, nº 1, com referência aos artºs 1º, 3º e 4º, todos do DL 422/89 (red. DL 10/95).
No mais mantém-se a decisão recorrida, ou seja, mantém-se a absolvição dos outros dois arguidos (CA) e (AG). 
Sem custas.
Lisboa, 7 de Fevereiro de 2007.

(Carlos de Sousa – relator)
(Mário Manuel Varges Gomes) – votou vencido
(Maria Teresa Féria Almeida)
(João Manuel Cotrim Mendes – Presidente da 3ª Secção)

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[1] Nota: é manifesto o lapso de escrita, quis-se dizer 13 e não 14 de Outubro de 2001 – v. ainda facto 30. infra; cfr. auto de notícia a fls. 4.
[2][1] No mesmo sentido, perante situação análoga, cf. Ac. RL 02-07-2003, proc. 3668/2002-3, in www.dgsi.pt .