Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
766/22.7T8LSB-A.L1-1
Relator: TERESA DE JESUS S. HENRIQUES
Descritores: INQUÉRITO JUDICIAL
USUFRUTO
PARTICIPAÇÕES SOCIAIS
DIREITO À INFORMAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.–O direito social à informação é um direito autónomo e não meramente instrumental ou acessório dos restantes direitos pois está associado ao elemento do contrato de sociedade "atividade em comum".

2.–O usufruto de participações sociais constitui um direito real menor de gozo sobre a acções” pelo que não pode reservar para si, de forma exclusiva, o direito à informação uma vez que este só lhe é concedido porque tem o poder-dever de administração da participação social(ou quota).

3.–O accionista radiciário ou nu-proprietário, mesmo sem direito de voto, continua a ser, em conjunto com o usufrutuário, titular do direito à informação.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


I–

I.A–

A apelada intentou contra a apelante requerimento de realização de inquérito, previsto no artigo1048.º e seguintes do CPC e se determine que (1) aquela seja citada para, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 291.º e 292.º, do CSC, prestar as informações, esclarecimentos e fornecer os documentos elencados no artigo 34.ºda petição inicial;(2) caso a mesma não preste de modo claro, completo e elucidativo as informações e esclarecimentos, ou forneça os documentos elencados no referido artigo, seja ordenado um inquérito à mesma nomeando-se para o efeito um perito que realize a investigação necessária para o efeito, permitindo-se à primeira acompanhar essas diligências indicando para o efeito técnicos especializados.

Para tanto, alegou, em síntese, que:
1.–É accionista da apelante, titular de 22.512 (vinte e duas mil quinhentas e doze) acções tituladas, nominativas, representativas de 67% do capital social daquela que lhe foram doadas pelos seus pais que retiveram o usufruto daquelas;
2.–Até 31.03.2020 foi administradora da apelante tendo renunciado ao cargo por carta de renúncia de 12.02.2020;
3.–No dia 18.11.2021, representada para o efeito pelo Prof. Doutor POC, que se fez acompanhar pelo Dr. JC (Revisor Oficial de Contas inscrito na Ordem dos Revisores Oficiais de Conta com o n.º ...), apresentou-se na sede social da Requerida para, ao abrigo do disposto no artigo 288.º, do CSC, consultar inter alia os documentos de prestação de contas e respetivo suporte e os montantes das remunerações pagas quer aos membros dos órgãos de administração, quer aos trabalhadores mais bem pagos;
4.–O representante da apelante negou a consulta dos livros de escrituração e outros documentos;
5.–Por carta dirigida à apelante, em 22.11.2021, solicitou-lhe a prestação por escrito das informações que identifica no artigo 34.º da petição inicial;
6.–Pedido que a apelante recusou, por carta datada de 07.12.2021;
7.–Receia que :i) tenham sido dissipados investimentos financeiros da apelante , uma vez que, da comparação entre as demonstrações financeiras integrantes dos documentos de prestação de conta relativos ao exercício de 2020, aprovados em Assembleia Geral de accionistas pelos usufrutuários, comas demonstrações financeiras reportadas a 30.06.2021, resulta que o montante inscrito sob rubrica “Ativos Financeiros” decresceu de cerca de quinhentos e sessenta mil euros para cerca de duzentos e setenta cinco mil euros, diminuição essa que representa um prejuízo cuja contabilização terá sido efetuada por contrapartida de “Outros Gastos”, situação cujo suporte e fundamento importa explicar;(ii) tenha havido empolamento dos custos incorridos com recursos humanos, por inobservância do princípio contabilístico do acréscimo, uma vez que foi reconhecido em 2020 um passivo relativo a “Credores por Acréscimos de Gastos” correspondente à estimativa de encargos com férias e subsídios de férias cujo direito se venceu em 31 de dezembro de 2020, a processar e pagar em 2021, mas que, em obediência ao princípio contabilístico do acréscimo, tinham de ser reconhecidos como encargo de 2020, mas cuja quantia contabilizada não terá justificação, nem no aumento das remunerações dos quadros, nem na variação do número de pessoas que integra esses quadros; iii) tenha havido ocultação de proveitos, isto porque, sendo facto público e notório que a apelante continuou a prestar serviços à Autoridade Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo (“ARSLVT”)durante o segundo semestre de 2020, cujo valor deverá ascender acerca de € 5.000.000,00 (cinco milhões de euros) –valor dos contratos celebrados a respeito do primeiro semestre –, resultadas demonstrações financeiras reportadas a 31.12.2020 e do depoimento do seu técnico de contas, que tais proveitos foram registados pelo valor de € 1.300.000,00 (um milhão e  trezentos mil euros), o que indicia uma subavaliação de até €3.700.000,00 (três milhões e setecentos mil euros);(iv) tenha a administração gerido a sociedade de modo que possa gerar a responsabilização contraordenacional desta por não ter sido celebrado qualquer contrato por escrito com algumas entidades contratantes, ao abrigo do disposto nos artigos 53.º, n.º1 e 59.º, n.º 1, alínea r), da Lei da Segurança Privada (Lei n.º34/2013, de 16 de maio, tal como alterada), o que poderá ditar a suspensão imediata do alvará, levar a que seja imputada à apelada a prática de uma ou mais contraordenações muito graves, cuja coima  poderá ascender a € 44.500,00 por cada infração e à aplicação de sanções acessórias impeditivas da prossecução da  atividade de  segurança privada; e(v) a apelada, perante os aspectos referidos em (i) a (iii),seja confrontada com uma potencial contingência fiscal por ocultação de resultados e, portanto, por não pagamento do imposto devido;(vi) todos estes aspetos, se confirmados (o que a apelada receia, mas não deseja), poderão igualmente ditar a responsabilização dos atuais membros dos órgãos sociais (em especial dos membros do Conselho de Administração, do Conselho Fiscal e da Revisora Oficial de Contas).
A apelante deduziu oposição alegando, em suma, que a requerente é titular da nua propriedade das acções, não lhe assistindo o direito à informação pedida. Excepciona a competência material do Tribunal e a legitimidade da requerente para requerer inquérito judicial à sociedade, por entender que o pedido da requerente não respeita a matéria do foro comercial por, em caso de usufruto, não ter o titular da raiz , direito a pedir inquérito judicial à sociedade.
Pugna pela nulidade do pedido deduzido pela requerente, por ser contrário à boa-fé e aos bons costumes, nos termos dos artigos280.º, n.º 1 e 295.º do Código Civil e corresponder a um manifesto abuso de direito nos termos do disposto no art.334º do Código Civil.
E, defende a legitimidade da recusa em prestar as informações pedidas, além de entender haver abuso de direito da requerente, a informações solicitadas não justificam o recurso a inquérito, porquanto não são susceptíveis de justificarem a responsabilidade dos órgãos sociais e colidem com a obrigatoriedade em respeitar segredo profissional, sigilo bancário, segredo da clientela e divulgação de dados de pessoais. Acrescenta que a requerente não tem em vista o apuramento de responsabilidades dos membros dos órgãos sociais, mas a instabilidade económica e financeira da sociedade, receando a utilização da informação para fins estranhos à sociedade e com prejuízo desta e dos accionistas.

A apelada respondeu às excepções.

Posteriormente foi proferida decisão julgando improcedente a incompetência material, ilegitimidade activa, nulidade e abuso de direito da apelada.

I.B–

A apelante recorreu concluindo que:
1-Foi com base numa interpretação meramente formal que o Julgador entendeu que o radiciário é, em qualquer circunstância, titular do direito à informação, mesmo quando este cabe ao usufrutuário no exercício do seu direito de voto.
2-Tal interpretação não cabe nos termos constantes do n°8 do artigo 214° do CSC.
3-O Legislador optou no quadro do disposto do artigo 1467° n°l alínea b) e n°2 do Código Civil, por fazer referência aos assuntos respeitantes à administração da coisa usufruída, onde a administração pertence ao usufrutuário, sendo ele que está legitimado para o exercício do direito de voto.
4-Quando se trate de decisões que envolvam alterações de estatutos ou à dissolução da sociedade - artigo 1467° n° 1 alínea b) in fine e n°2 do Código Civil - o voto pertence a ambos, radiciário e usufrutuário, por se entender que, nestes casos, pode haver já alteração da substância da coisa ou do seu destino económico.
5-Nos casos em que o direito de voto cabe ao usufrutuário não se afigura legítimo sustentar que o direito à informação pertence por igual a ambos, o que equivaleria igualmente a sobrecarregar a sociedade, de forma indesejada e para além do mais desnecessária pela duplicação.
6-O n°8 do artigo 214° do CSC deve ser interpretado no sentido de atribuir ao usufrutuário o exclusivo direito à informação respeitante à sua posição de administrar com plenitude a coisa usufruída.
7-A alusão feita em nota de rodapé 8 no Código das Sociedades Comerciais Anotado, coordenação de Menezes Cordeiro, página 759, não contraria este entendimento.
8-Sendo o direito de usufruto o de gozar com plenitude uma coisa ou direito alheio sem alterar a sua forma e substância - artigo 1439° do Código Civil - enquanto durar o usufruto, no quadro do disposto do artigo 1467° do Código Civil, os direitos elencados no artigo 21° do CSC, competem não ao titular da nua-propriedade mas sim ao usufrutuário.
9-Nesse sentido pronuncia-se Carlos Maria Pinheiro Torres em "O Direito à Informação nas Sociedades Comerciais" na página 174
10-E sustenta igualmente o Prof. Menezes Cordeiro no Parecer junto à contestação sob o documento n°7, cujas conclusões se dão por transcritas.
11-Os doadores accionistas transmitiram de forma graciosa para o donatário o seu direito mantendo todavia, enquanto vivos, a plenitude das benesses que tal direito proporciona.
12-Em caso de dúvida sobre a vontade das partes face ao contrato de adesão deverá recorrer-se aos princípios estabelecidos no artigo 237° do Código Civil, o que significa que o contrato de adesão deve ser interpretado no sentido mais favorável aos doadores.
13-O n°2 do 369° do CSC ao permitir a participação de accionista sem direito de voto na Assembleias Gerais não está a incluir os radiciários, mas sim os titulares de ações sem direito de voto a que alude o artigo 341° do CSC.
14-O artigo 14° do Estatutos da Requerida determina o direito a participar na Assembleia Geral apenas dos accionistas a quem caiba o direito de voto.
15-Enquanto perdurar o usufruto todos os direitos enunciados no artigo 21° do CSC competem ao usufrutuário.
16-De igual modo o inquérito previsto no artigo 67° do CSC e o direito à informação estabelecido no n°2 do artigo 214° do CSC pressupõe a sua efetivação na Assembleia Geral onde apenas votam os usufrutuários.
17-O Inquérito Judicial previsto no artigo 216° do CSC só é aplicável a quem tenha o direito de pedir a informação que, no caso em apreço, é tão somente o usufrutuário.
18-Se porventura o radiciário das ações tenha fundado receio de que as mesmas estejam a ser mal geridas, deverá atuar contra o usufrutuário no quadro do disposto do eventual mal-uso da coisa, conforme determinam os artigos 1482° e 1470° do Código Civil, e não contra a sociedade.
19-Não é o foro comercial competente para dirimir tal conflito, o que determina a procedência da exceção da incompetência absoluta do tribunal invocada pela Requerida.
20-Mesmo que assim não se entendesse, não se justifica a improcedência da nulidade do pedido deduzido pela Requerida por ser contrário à boa-fé e aos bons costumes e por corresponder a um manifesto abuso de direito - artigos 280° n°l, 295° e 334° do Código Civil.
21-O Julgador não apreciou nem considerou factos invocados pela Requerida que constituem a causa de pedir das referidas exceções, com manifesta relevância para a decisão em causa, o que lhe competia fazer de acordo com o disposto no n°l do artigo 1049° CPC e do n°2 986° CPC.
22-Para além dos factos já dados como provados contantes dos pontos n°6 a 9 e n°12 da matéria de facto, haverá que considerar os factos elencados nos artigos 10°, 16°, 17°, 18°, 19°, 21°, 22°, 26°, 34°, 35° e 36° da contestação e os factos supervenientes constantes do requerimento da Requerida de 08/09/2022.
23-Os factos ora elencados são demonstrativos de que o comportamento da donatária, Requerente do Inquérito Judicial, ofende de forma clamorosa os valores da justiça e do sentimento jurídico dominante, excedendo os limites impostos pelos bons costumes, pela boa-fé e pelo fim social do direito a que se arroga.
24-O comportamento em causa é revelador de uma total falta de respeito e de afecto para com aqueles que, sem qualquer contrapartida lhe fizeram avultadas doação em vida, sem qualquer retribuição.
25-A propositura das sucessivas e elencadas, providências cautelares com inversão do contencioso, todas elas já indeferidas, com decisões transitadas em julgado, traduzem o propósito deliberado da donatária Requerente do Inquérito Judicial em travar o recebimento de seus pais relativamente aos resultados transitados e aos dividendos dos anos de 2020 e 2021, bem como de todos os anos subsequentes, enquanto os seus pais estiverem vivos.
26-O pedido de Inquérito Judicial e a desproporcionalidade da informação solicitada, resulta tão somente da improcedência de todas as diligências judiciais desencadeadas pela Requente e seu marido, procurando a Requerente alcançar, através do Inquérito Judicial, o que não conseguiu obter pelas vias judiciais competentes.
27-Acresce que as razões aduzidas pela Requerente na presente ação constantes do artigo 38° da Petição Inicial, são justamente as mesmas que foram invocadas na providência cautelar de suspensão de deliberação social, movida pela Requente sob o n° 8607/88.9T8LSB que correu termos no Juízo de Comércio de Lisboa - Juiz 7 em que foi igualmente requerida a inversão do contencioso e que mereceu sentença de improcedência, datada de 22/07/2022, já transitada em julgado.
28-Os factos dados como provados na referida providência e os respetivos fundamentos desmoronam por completo as pretensas invalidades invocadas na presente ação, retirando a razão de ser ao pedido de Inquérito Judicial formulado.
29-Todos os Factos invocados pela Requerida e ora elencados revelam que o comportamento da Requerente é marcado pela ganância, avidez e ingratidão e suscita a ofensa do sentimento jurídico dominante, o que acarreta para além das nulidades previstas no artigo 280° n°l e 295° do Código Civil, o exercício ilegítimo do direito a que se arroga, no quadro do disposto no artigo 334° do Código Civil.
30-Termos em que deverá ser revogada a decisão recorrida considerando procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal, da inadequação do foro comercial e da ilegitimidade da Requerente para deduzir pedido de Inquérito Judicial.
31-Mesmo que assim não se entendesse, não caberia à Requerente o direito à informação dado que as matérias concretas aludidas na Petição Inicial não são modo de justificar qualquer pedido de Inquérito Judicial, tendo já sido dirimidas na providência cautelar aludida, o que determina igualmente a ilegitimidade da Requerente.
32-Se assim não se entender deverá igualmente ser revogada a decisão sobre a exceção de nulidade do pedido face à boa-fé e aos bons costumes
33-Finalmente, por mera cautela se acrescenta que as informações solicitadas, pela sua extensão e desproporcionalidade, colidem com a obrigatoriedade do segredo profissional, com a observância do sigilo bancário, segredo da cliente e divulgação de dados pessoais, prevalecendo as condições de recusa previstas no n°2, n°4 e n°6 do artigo 291° do CSC, não passando o pedido de informações de uma manobra de destabilização para gerar a instabilidade económica e financeira da Requerida e travar o recebimento dos dividendos pelos usufrutuários.
34-A decisão proferida fez incorreta aplicação do disposto dos artigos 21°, 23°, 67°, 214° n° 2 e 8, 216°, 291 n° 2, 4 e 6, 292°, 293°, 341°, 369°, 384° n°2 alínea c), 1048° e 1049° do Código das Sociedades Comerciais, artigos 237°, 280 n°l, 295°, 334°, 1439°, 1467° n°l alínea b) e n°2, 1470° e 1482° do Código Civil e os artigos 986 n°2 e 1049 n°l do Código do Processo Civil, devendo em consequência ser revogada e substituída por outra, nos termos expostos. Nos termos dos artigo 280° e 295° do Código Civil, e do exercício de um manifesto abuso de direito nos termos do artigo 334° do Código Civil, cabendo ao Julgador proceder à apreciação dos novos factos ora elencados, invocados nos articulados, avaliando-os de acordo com os meios probatórios deduzidos pela Requerida, para decidir com rigor sobre tais exceções.

Em contra-alegações a apelada pugnou pela manutenção do julgado.

I.C–

O objeto do presente recurso é o seguinte:
i)-Competência material do tribunal;
ii)-Legitimidade da apelada;
iii)-Ampliação da matéria de facto;
iv)-Nulidade e abuso de direito da apelada quanto ao pedido de informação.

II–

II.A–

A primeira instância elencou a seguinte matéria, que não foi impugnada:
1.–A Requerida P – EMPRESA DE SEGURANÇA, S.A., é uma sociedade comercial com sede na Avenida … Lisboa, matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o número único de pessoa coletiva e de identificação fiscal n.º …, com o capital social de € 1.680.000,00 – cfr. certidão permanente da sociedade, junta como doc. 1.
2.–Tem por objeto a prestação de serviços de segurança privada formação, instalações elétricas, manutenção de material e de equipamento de segurança.
3.–O capital social da Requerida é de um milhão seiscentos e oitenta mil euros, e está representado por trinta e três mil e seiscentas acções, não cotadas, no valor nominal de 5 euros cada – cfr. Estatutos da sociedade, juntos como doc.2.
4.–A requerente ANA … é titular de 22.512 (vinte e duas mil quinhentas e doze) ações tituladas, nominativas, representativas de 67% do capital social daquela – cópias dos títulos juntos como doc. 3
5.–CARLOS …, casado com a requerente, é acionista da Requerida, sendo titular de 20 (vinte) ações tituladas, nominativas, representativas de, aproximadamente, 0,06% do capital social desta.
6.–As 22.512 ações de que é titular foram-lhe doadas, em 16 de abril de 2010, por seus pais AC e AC2, por escritura pública.
7.–Os doadores reservaram em seu favor o usufruto vitalício e sucessivo das ações doadas.
8.–Estipularam, de acordo com o artigo 23.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais que continuam a caber aos doadores, até à morte do último deles, os direitos indicados nos artigos 1466º e 1467º do Código Civil, o que a donatária aceitou.
9.–O direito de participação no aumento de capital será exercido exclusivamente pelos usufrutuários – escritura pública que se junta como documento n.º 4 da petição inicial).
10.–AC2, é titular de cinco mil quinhentas e trinta e cinco ações, em plena propriedade, e do usufruto de onze mil duzentas e cinquenta e seis.
11.–AC titular de cinco mil quinhentas e vinte e seis ações, em plena propriedade, e do usufruto de onze mil duzentas e cinquenta e seis ações.
12.–O acionista AC2 é casado com a accionista AC e são pais da accionista Ana ….
13.–Até 31 de março de 2020, a Requerente foi administradora da Requerida (cf. certidão permanente junta como documento n.º1), cargo a que renunciou por carta datada de 12 de fevereiro de 2020 - junta como documento n.º 5).
14.–O Conselho de Administração da Requerida é composto por AC2 (na qualidade de presidente); AC (na qualidade de vogal); e PM (na qualidade de vogal).
15.–No dia 18 de novembro de 2021, a Requerente, representada para o efeito pelo Prof. P, que se fez acompanhar pelo Dr. J (Revisor Oficial de Contas inscrito na Ordem dos Revisores Oficiais de Conta com o n.º 631), apresentou-se na sede social da Requerida para, ao abrigo do disposto no artigo 288.º, do CSC, consultar inter alia os documentos de prestação de contas e respetivo suporte e os montantes das remunerações pagas quer aos membros dos órgãos de administração, quer aos trabalhadores mais bem pagos (cf. carta de representação que se junta como documento n.º 6).
16.–O representante da Requerida, Dr. PM, negou a consulta dos livros de escrituração e outros documentos descritivos da atividade social.
17.–O presidente do Conselho de Administração da Requerida, AC2, dirigiu um email à Requerente e ao seu representante, email datado de 19 de novembro de 2021, junto como documento n.º 7, com o teor que aqui se dá por reproduzido e do qual se transcreve em parte «Não foi previamente contactado por ninguém e permitiu-se montar, uma vez mais, um cenário que se destina a fabricar uma inventada violação do direito à informação da sua representada.
Fique desde já sabendo que a P faz questão de cumprir os preceitos legais sobre a matéria, razão pela qual, desde que seja invocado um motivo justificado, ser-lhe-ão facultados para consulta os documentos e informações previstas nas als. a) a e), do art. 288º, do Código das Sociedades Comerciais, sendo-lhe atempadamente indicadas datas alternativas para tal consulta na sede social.
Mas é condição essencial que tal consulta seja precedida de um pedido formal em que se invoquem as razões que a justificam, para apreciação prévia pelo Conselho de Administração

18.–Por carta dirigida à Requerida, em 22 de novembro de 2021, a requerente solicitou a prestação por escrito das seguintes informações:
1.- Balancetes analíticos da contabilidade geral, reportados a 31 de dezembro de 2020, antes e após apuramento de resultados;
2.- Balancetes analíticos da contabilidade geral, reportados a 30 de setembro de 2021;
3.- Contratos de prestação de serviços (ou cópias) com clientes, vigentes durante 2020 e até 30 de setembro de 2021, independentemente da data de celebração dos mesmos;
4.- Listagem de faturas emitidas para clientes durante 2020 e até 30 de setembro de 2021, e correspondentes dados das relações mensais submetidas à Autoridade Tributária através dos ficheiros SAFT da faturação;
5.- Extratos contabilísticos da conta de “Prestações de serviços” para o movimento ocorrido durante 2020 e até 30 de setembro de 2021;
6.-Decomposição por contas da rubrica “Outros créditos e receber” do ativo do balanço em 31 dezembro de 2020;
7.-Decomposição por contas da rubrica “Outros credores” do passivo do balanço em 31 de dezembro de 2020;
8.-Extratos contabilísticos das contas de “Devedores por acréscimos de rendimentos” respeitantes ao movimento ocorrido no ano de 2020 e até 30 de setembro de 2021;
9.-Documentos (ou cópias) e estimativas de suporte aos movimentos das contas de “Devedores por acréscimos de rendimentos” respeitante ao movimento ocorrido no ano de 2020 e até 30 de setembro de 2021;
10.-Extratos contabilísticos das contas de “Credores por acréscimos de gastos” respeitantes ao movimento ocorrido no ano de 2020 e até 30 de setembro de 2021;
11.-Documentos (ou cópias) e estimativas de suporte aos lançamentos nas contas de “Credores por acréscimos de gastos” respeitante ao movimento ocorrido no ano de 2020 e até 30 de setembro de 2021;
12.- Processamentos mensais de abonos e remunerações ocorridos em 2020 e até 30 de setembro de 2021 e Declarações Mensais de Remunerações submetidas na Segurança Social em 2020 e até 30 de setembro de 2021;
13.-Extratos contabilísticos das subcontas de “Gastos com pessoal”, para o movimento ocorrido em 2020 e até 30 de setembro de 2021;
14.-Alterações acordadas ou estabelecidas nas tabelas de remunerações do pessoal para vigorarem em 2020, face a 2019, e em 2021, face a 2020;
15.- “Relatório Único” (sobre recursos humanos) remetido em 2020 e em 2021, nos termos da Portaria n.º 55/2010, de 21 de janeiro;
16.- Decomposição / conteúdo do saldo da conta de caixa em 31 de dezembro de 2020 e 30 de setembro de 2021;
17.- Decomposição do saldo da conta de “Depósitos em bancos”, em 31 de dezembro de 2020 e 30 de setembro de 2021, por contas abertas nas instituições financeiras;
18.- Extratos das contas de bancos na contabilidade de empresa referentes ao movimento de dezembro de 2020 e janeiro de 2021;
19.- Extratos bancários emitidos pelas instituições de crédito referentes ao movimento ocorrido nas contas abertas em nome da empresa, em dezembro de 2020 e em janeiro de 2021;
20.- Reconciliações de todas as contas de bancos, reportadas a 31 de dezembro de 2020 e 30 de setembro de 2021;
21.- Decomposição da rubrica de “Outros ativos financeiros” do ativo não corrente, em 31 de dezembro de 2020, por contas do balancete;
22.- Extratos contabilísticos de todas as contas de “Investimentos financeiros”, respeitantes ao movimento ocorrido em 2020 e até 30 de setembro de 2021;
23.- Documentos (ou cópias) de suporte aos movimentos ocorridos nas contas de “investimentos financeiros” durante 2020 e até 30 de setembro de 2021;
24.-Extratos contabilísticos das subcontas de “Outros rendimentos” e de “Outros Gastos”, referentes a alienações e abates ocorridos em “investimentos financeiros” e “investimentos não financeiros”, para os movimentos ocorridos em 2020 e até 30 de setembro de 2021 e respetivos documentos (ou cópias) de suporte;
25.-Extratos contabilísticos das subcontas de “Outros rendimentos” e de “Outros gastos”, referentes a “Outros não especificados” dessas duas rubricas, para os movimentos ocorridos em 2020 e até 30 de setembro de 2021, e respetivos documentos (ou cópias) de suporte;
26.- Cópia da IES respeitante ao exercício de 2020, submetida em 2021;
27.- Cópia do Modelo 22 da declaração anual de IRC, entregue em 2021, referente ao exercício de 2020;
e
28.- Cópia do livro de registo de ações atualizado.
29.- Com referência aos documentos de suporte das contas e tomando em consideração as contas do exercício de 2020 e as contas intercalares a 30 de junho de 2021, pretende-se que seja explicado em especial, o seguinte:
29.- Despesas com serviços jurídicos suportadas pela Sociedade, relativas aos anos de 2020 e 2021, com a descrição dos serviços prestados, incluindo cópias das respetivas notas de honorários;
30.- Os montantes globais das remunerações pagas, em 2020 e 2021 (até 31 de outubro) aos membros dos órgãos sociais; e
31.- Os montantes globais das quantias pagas aos 10 empregados que receberam as remunerações mais elevadas em 2020 e em 2021 (até 31 de outubro de 2021).
32.- (…)
33.- O exercício de direito à informação da acionista Ana …, consubstanciado na presente comunicação, destina-se a apurar a responsabilidade dos membros dos órgãos de administração pela atual gestão da Sociedade. (cf. carta datada de 22 de novembro de 2021, junta como documento n.º 8).

19.–Por carta datada de 07.12.2021, junta como doc. 9, a requerida recusa o pedido:
“Enquanto durar o usufruto, todos os direitos elencados no art. 21º do C.S.C. competem aos usufrutuários e não aos titulares de nua propriedade.
A requerente não tem o direito de votar em Assembleia Geral, nem sequer no caso de aumento de capital. O direito às informações preparatórias da Assembleia Geral compete apenas aos usufrutuários.
A responsabilidade de accionistas a que alude o art. 214º, nº2, do C.S.C. efectiva-se em Assembleia Geral, na qual votam unicamente os usufrutuários.
O inquérito judicial previsto no art. 67º do C.S.C. tem como pressuposto a recusa de informação a quem possa pedi-la e esse é um direito dos usufrutuários.
O inquérito judicial previsto no art. 216º do C.S.C. tem como pressuposto a recusa de informação a quem possa pedi-la e esse é um direito dos usufrutuários.
Os titulares de raiz das acções de uma sociedade anónima, se recearem que a sociedade esteja a ser mal gerida, deverão actuar no quadro da relação de mau uso da coisa pelo usufrutuário, e não no quadro da relação entre o usufrutuário e a sociedade.
Assim, no âmbito das relações entre o titular de raiz da acção e o usufrutuário, o foro comercial é incompetente para abarcar esta matéria, devendo seguir-se o caminho cível de direito à informação.
Em suma, a requerente não tem o direito à informação que invoca, devendo em consequência ser recusado o pedido.”

Este entendimento é sufragado pelo Prof. Menezes Cordeiro que, aludindo ao caso em apreço, formulou as seguintes conclusões:
1ª-Numa situação de usufruto de ações, o direito à informação é exercido pelo usufrutuário, salvo a margem na qual o radiciário pode intervir na vida da sociedade.
2ª-Não cabe ao radiciário aprovar ou recusar as contas e desencadear ações sociais de responsabilidade dos administradores; logo, ele não tem acesso ao inquérito previsto no artigo 67º/1, ao dispositivo do artigo 214º/2 e ao inquérito geral tratado no artigo 216º, todos do Código das Sociedades Comerciais.
3ª-As 31 informações pretendidas, das quais algumas se desdobram em vários pontos, têm a ver com matéria de gestão que escapa ao
radiciário; envolve, ainda, pontos que estão sujeitos a sigilo profissional.
4ª-Na hipótese – que teria de ser invocada e demonstrada – de a radiciária se considerar prejudicada pelos seus Pais e usufrutuários, haveria que lançar mão dos meios de informação civis e não dos previstos no Código das Sociedades Comerciais para situações societárias.
5ª-O volume e a qualidade das informações pedidas traduz um exemplo de escola de abuso do direito à informação, na modalidade abusiva de desequilíbrio no exercício: está fora dos valores que levaram a lei a atribuí-la e representa, para uma vantagem mínima, um esforço máximo; é postergada a primazia da materialidade subjacente, assegurada pela boa-fé.
6ª-Uma batalha legal desencadeada por uma Donatária contra os seus Pais e Doadores, tendente a suprimir, no terreno, o direito de usufruto que eles legitimamente conservaram contunde, de modo grave, contra o sentimento ético- social.
7ª-O desequilibrado pedido de informação formulado, fora de qualquer lógica societária, contunde, assim, com os bons costumes: é nulo, nos termos dos artigos 280º/1 e 295º, do Código Civil.
Nestas condições, o pedido de informações deve ser recusado, por não ter a requerente direito a fazê-lo.
Mas se porventura tal entendimento não prevalecesse, o que não se concede, mas que só por mera hipótese de raciocínio se previne, nunca a requerente teria direito às informações solicitadas, tendo igualmente em conta os seguintes factos complementares que se consideram nucleares:
- O doador, pai da requerente, tem 83 anos de idade e é o Presidente do Conselho de Administração da P.
- A doadora, mãe da requerente, tem 76 anos de idade e é vogal do Conselho de Administração da P.
- O propósito da requerente e seu marido, através das mencionadas providências cautelares de suspensão e anulação da deliberação social, é o de imporem o bloqueio dos dividendos e resultados transitados a distribuir pelos seus pais usufrutuários.
- Estre comportamento vergonhoso de quem beneficiou das liberalidades generosas de seus pais, consubstanciadas pela doação de acções e or doações complementares em dinheiro, superiores a 10
milhões de euros, colide com os limites impostos pelos bons costumes, pela boa-fé e pelo fim social do exercício do direito a que se arroga.
Os comportamentos da requerente e de seu marido são marcados pela ganância, pela avidez e pela ingratidão.
- O comportamento da requerente e seu marido ofendem de forma clamorosa o valor da justiça e o sentimento jurídico dominante, o que acarreta o exercício ilegítimo do direito a que se arroga nos termos do art. 334º do C. Cv.“
- O pedido formulado pela requerente constitui um verdadeiro abuso de direito.
- As informações solicitadas pela requerente não concretizam sequer o mínimo indício de irregularidade da gestão praticada pelos seus pais na administração da P, e não o fazem porque eles pura e simplesmente
não existem.
- O conjunto das informações solicitadas pela requerente, a ser admitido, consubstanciaria na prática a divulgação de toda a actividade da P nos anos de 2020 e 2021, através de um integral exame à escrita da sociedade, sem qualquer fundamento plausível.
- O direito do exame à escrita, como direito sem quaisquer limitações de objecto, é atribuído por lei nas sociedades anónimas, ao Conselho Fiscal, a quem cabe a competência para obter da administração “informação e esclarecimentos sobre o curso de operações ou actividades da sociedade, ou sobre qualquer dos seus negócios” bem como “a apresentação para exame e verificação dos livros, registos e documentos da Sociedade”, art. 421º, nº 1 , al. a) e b) do C.S.C.
- Não é aceitável, nem legalmente admitido, que sejam solicitados todos os dados da actividade económica referida, durante uma janela temporal de cerca de dois anos, de forma indiscriminada, o que é para além do mais violador do princípio da proporcionalidade, que deve nortear o exercício do direito à informação.
- O pedido de informação em causa não passa de uma interpelação que tem por único objecto a remessa de toda a documentação em abstrato que se pode equacionar quanto à vida de uma sociedade, solicitando na prática que se exponha ao accionista todos os dados da sua actividade de forma indiscriminada, o que evidentemente não se comporta no direito à informação.
- A requerente não alega nenhum motivo concreto, justificativo, relevante e sério que possa justificar o pedido formulado.
- A requerente é sócia maioritária e gerente única da sociedade X… – Operações de Segurança, Lda., com capital de 250.000,00€, regulada na lei n.º 34/2013 e que tem como objecto social a vigilância de bens
móveis e imóveis e o controlo de entrada, presença e saída de pessoas, bem como a preservação de entrada de armas, substancias [sic] e artigos de uso e porte proibidos ou susceptíveis de provocar actos de violência no interior dos edifícios ou locais de acesso vedado ou condicionado ao público, designadamente estabelecimentos, certames, espetáculos e convenções. Protecção pessoal sem prejuízo das competências exclusivas atribuídas às forças de segurança. Exploração e gestão de centrais de recepção e monotorização de alarmes. Consultoria de segurança, conforme certidão em anexo – Doc. nº 1
- Trata-se de uma sociedade concorrente com a P com objecto social e actividade idêntica na área da segurança, sendo objectivamente de recear que a requerente, em manifesto conflito de interesses e em violação da lei venha a utilizar a informação para proveito próprio, para fins estranhos e antagónicos aos interesses da P e com prejuízo desta.”
- A informação solicitada pela requerente de toda a actividade social de P nos exercícios de 2020 e 2021, sem qualquer concretização de objectivo, visa ainda perturbar a estabilidade da gestão na P, exacerbando a conflitualidade interna, com efeitos negativos na rentabilidade da sociedade, sempre com o objectivo de impedir e dificultar a distribuição dos lucros a que seus pais têm direito.
- A P tem como objecto social o exercício da actividade de segurança privada, regulada na lei nº 34/2013, estando as respectivas entidades e pessoal de segurança privada obrigados a segredo profissional.
- As informações solicitadas colidem com a obrigatoriedade de segredo profissional, com a observância do sigilo bancário, com o segredo da clientela, e com a divulgação de dados de pessoais.
- Caberia à requerente requerer na providência cautelar de acção de suspensão de deliberação, como meio probatório, a junção de documentos que entendesse adequados para prova da sua pretensão, submetendo-os ao princípio do contraditório e à sua adequação quanto à sua exigibilidade, oportunidade e proporcionalidade, a cargo do Juiz, e não vir solicitar pela via imprópria, o que só em sede processual deve ser apreciada.
- Enquanto administradora a requerente era responsável pelo pelouro financeiro da P, cabendo-lhe em exclusivo proceder, autorizar e aprovar todos os pagamentos das despesas da sociedade.
- Em auditoria interna realizada pela sociedade L – SROC, Lda., foi apurado que a requerente signatária beneficiou em proveito próprio de um conjunto de despesas, desde o ano de 2009 a Fevereiro de 2020, relacionadas com artigos de relojoaria, joalharia, viagens, roupa íntima feminina e outras, que não se enquadram no âmbito do objecto social de P, que ascendem ao valor de 3.098.749,91€, que determinarão o recurso pela sociedade à via judicial para o respectivo reembolso e responsabilização, conforme declaração subscrita pelo ROC
responsável pela auditoria, que se junta em anexo.- Doc. nº 2
- O pedido de informações solicitado não passa de uma forma de retaliação, totalmente injustificada e desadequada, que não tem em vista o apuramento das responsabilidades dos membros dos órgãos sociais, não sendo concretizado o mínimo indício de que tal suceda, dada a sua inexistência, constituindo uma mera manobra de desestabilização social, para gerar instabilidade económica e financeira da sociedade.
Nestas condições, as informações solicitadas devem, em quaisquer circunstâncias, ser recusadas dado estarem complementarmente confirmadas as condições de recusa constantes do nº 2 e das als. a) b) e c), do nº 4 e nº 6 do art. 291º do C.S.C., para além de traduzirem a prossecução de um manifesto abuso de direito.
Informa-se finalmente que com a presente resposta ao pedido formulado pela requerente considera-se encerrada a matéria em causa, não se admitindo igualmente qualquer consulta na sede social, a documentos da contabilidade, quer à requerente, quer ao seu legal representante.

II.B–

Competência material do tribunal
Apela a recorrente que o tribunal é materialmente incompetente por à apelada não caber o direito à informação societária pois é mera proprietária radiciária das acções.
Antes do mais cumpre salientar que a legitimidade processual que, actualmente 1, se se afere pela titularidade da relação material controvertida tal como é configurada pelo Autor na petição inicial(cfr.art.30ºCPC), não se confunde com a legitimidade substantiva que respeita à efectividade da relação material.
As consequências são distintas. A falta da primeira conduz à absolvição da instância, enquanto que a segunda conduz à improcedência do pedido (cfr.respectivamente, art.278º,n.º1 e 576º,n.º2CPC).2
Ora a competência do tribunal, quer absoluta, quer relativa, constitui um pressuposto processual [cfr.art.59º a 71º e 577º,n.º1, al.ªa) e 578ºCPC].
A alegada a falta de legitimidade invocada pela apelante, na medida em que determina a incompetência do tribunal é uma ilegitimidade processual, enquanto que o não reconhecimento pela mesma do direito à informação da apelada, na medida em que determina a improcedência do pedido configura, uma ilegitimidade substantiva.
Ora estipula o art.128º,n.º1, al.ªc) da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), Lei n.º62/2013,26.08, que compete aos juízos de comércio preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais.
Assim sendo, e sem necessidade de mais considerandos mantém-se a decisão impugnada neste segmento.
Legitimidade da apelada
Sustenta a apelante que a apelada não tem direito a qualquer informação por ser mera proprietária radiciária.
E com o tal carece de legitimidade para requerer o inquérito.
No que respeita à legitimidade remete-se para o que já se expôs supra.
Acrescenta-se que, para além do critério geral enunciado na segunda parte do n.º3 do art.30ºdo CPC, há casos em que a lei identifica o detentor da legitimidade activa como resulta da expressão “na falta de indicação em contrário”, constante da primeira parte do mesmo preceito.3
O direito à informação é um desses casos como se passa a explicar.
Em termos genéricos [cfr.art. 21°,c),CSC 4],manifesta-se em três vertentes: 1) direito à informação stricto sensu, que permite ao sócio formular questões sobre a vida da sociedade e desta exigir resposta verdadeira, completa e elucidativa, tanto dentro como fora da assembleia;2) direito de consulta, por cujo exercício o sócio pode solicitar à sociedade que exiba, para exame, os livros de escrituração, bem como outros documentos descritivos da atividade social; 3) direito de inspeção, que permite ao sócio vistoriar os bens da sociedade. 5
Retomando a alegação da apelante, e aludindo aos preceitos legais que invocou, salienta-se que sendo a mesma uma sociedade anónima são-lhe aplicáveis no que respeita ao direito à informação regem especificamente os art.288º a 293º, sendo o art.214º específico das sociedade por quotas.
O primeiro preceito referido confere ao accionista com um mínimo de 1%do capital social as informações mínimas previstas no seu número 1, requisito reunido pela apelada que é, efectivamente, nua-proprietária de 22.512 (vinte e duas mil quinhentas e doze) acções tituladas, nominativas, representativas de 67% do capital social da apelante (ponto n.º4) .
Ora a circunstância de ter sido reservado o direito de voto no usufruto dos doadores, não retira à apelada o direito à informação.
Por sua vez o art.291º estipula que os accionistas cujas acções atinjam 10% do capital social podem solicitar que lhe sejam prestadas, também por escrito, informações sobre assuntos sociais.
Assim nada permite, de acordo com o preceituado no art.9º do CCiv, a interpretação que a apelante faz dos preceitos relativos ao direito à informação no sentido de dele excluir o nu-proprietário.

Com efeito o direito à informação «É um direito social autónomo, pois não pode dizer-se meramente instrumental ou acessório dos restantes direitos, nomeadamente do direito de voto. Tanto assim é que os sócios que não podem votar, ou porque estão impedidos de o fazer ou porque não são titulares do direito, podem participar na assembleia, nelas discutir e obter as informações descritas no art. 290°. É, por um lado, corolário do risco que se corre com a entrada na sociedade, permitindo a reclamação de dados essenciais à salvaguarda da posição financeira e social do sócio (e assim se compreende a intensificação do direito com o aumento da responsabilidade pessoal), funcionando como uma "ferramenta de controlo social".
«Por outro lado, está associado ao elemento do contrato de sociedade "atividade em comum", uma vez que, independentemente do grau de participação na gestão, o sócio necessita conhecer todos os factos que sejam imprescindíveis ao exercício dessa função. » 6
Exemplo do sublinhado na transcrição supra é o que resulta do art.341º,n.º5 que preconiza o seguinte «As acções preferenciais sem direito de voto conferem, além dos direitos de natureza patrimonial previstos nos números anteriores, todos os direitos de natureza não patrimonial inerentes às acções ordinárias, com excepção do direito de voto.”
É certo que o usufruto é expressamente abordado no art.293º que sob a epígrafe “Outros titulares do direito à informação” estipula o seguinte «O direito à informação conferido nesta secção compete também ao representante comum de obrigacionistas e ainda ao usufrutuário e ao credor pignoratício de acções quando, por lei ou convenção, lhes caiba exercer o direito de voto.»
No entanto o vocábulo “também” referido no art.293º, e também no artigo citado pela apelante (o art.214º,n.º7,relativo à sociedades por quotas), destina-se a permitir o direito à informação a determinados terceiros que não os sócios e não, como sustenta a apelante, a excluir o nu-proprietário.
É certo que o usufrutuário tem os direitos consagrados no art.1467º do CCiv.
No entanto, para além de terem as limitações constantes do art.23º,nenhum deles corrobora o entendimento da apelante pois, como afirma Margarida Costa Andrade 7 ,o direito do usufrutuário é “um direito real menor de gozo sobre a acções” pelo que não pode reservar para si, de forma exclusiva, o direito à informação uma vez que este só lhe é concedido porque tem o poder-dever de administração da participação social(ou quota).8
A circunstância de a apelada ser nua-proprietária sem direito a voto não lhe veda o direito à informação pois, como afirma Menezes Cordeiro, contrariamente ao entendimento expressado no douto parecer junto, «O titular (proprietário de raiz)da quota continua a ser igualmente titular do direito à informação».9
Assim sendo, e sem necessidade de outras considerações mantém-se a decisão impugnada neste segmento.
Reapreciação da matéria de facto
Pretende a apelante a ampliação da matéria de facto com a consideração dos factos elencados nos art.10º,16º,17º,18º,19º,21º,22º,26º,34º,35º e 36º.e, ainda, os supervenientes constantes do seu requerimento de 08.09.2022.
Estipula o art.640º,n.º1,CPC, que o recorrente que impugna a matéria de facto deve obrigatoriamente, sob pena de rejeição o que considera incorrectamente julgados,os meios probatórios que corroboram a sua posição e, ainda, a decisão que em seu entender deve ser proferida.
Ora a apelada não cumpriu minimamente com este ónus limitando-se a invocar determinados artigos da sua oposição , articulado que até foi objecto de resposta (req. 29.06.2022,ref.36407905) quanto a todas as excepções que invocou.
No tocante ao requerimento a que alude (08.09.2022) cumpre apenas dizer que a improcedência das 3 providências cautelares cujas decisões se mostram juntas ao aludido requerimento demonstram apenas que isso mesmo -a improcedência. Em nenhuma são os respectivos requerentes, a apelada(1) e marido(2) condenados como litigantes de má-fé, sendo assim irrelevantes.
Assim sendo rejeita-se o recurso quanto à pretendida ampliação da matéria de facto.
Nulidade e abuso de direito
Alega a apelante que o pedido de informação é nulo porquanto os factos que alegou e os de uma das providências cautelares (proc. n.º8607/88.9T8LSB que pedia que se ordenasse à apelante que se abstivesse de proceder ao pagamento de dividendos na sequência da deliberação a tomar na AG de dia 08.04.2022) revelam que o comportamento da apelada era marcado pela ganância, avidez e ingratidão suscitando a ofensa do sentimento jurídico dominante ,acarretando para além das nulidades previstas no art.280º,n.º1 e 295º do CCiv o exercício ilegítimo do direito a que se arroga, no quadro do disposto no art.334º do CCiv.
Ora no tocante aos factos, remete-se para o que se disse supra.
Os únicos factos a considerar são os que constam do despacho impugnado.
E da leitura dos mesmos não se conclui pela existência de qualquer finalidade ofensiva dos bons costumes, como defendido pela apelante.
E também não se vislumbra o alegado abuso de direito em qualquer das sus vertentes.
Com efeito a apelada pretende aceder a determinadas informações, as que enumera no seu requerimento inicial.
Ora a tramitação inicial do processo especial de inquérito judicial, comporta duas fases: aquela em que o juiz aprecia os fundamentos invocados e, com ou sem resposta dos requeridos, decide se existem motivos para proceder ao inquérito(art.1049º,n.º1,CPC );na segunda fase, sendo ordenada a realização do inquérito, o juiz fixa os pontos que a diligência deve abranger e, após a realização da investigação, fixa a matéria de facto e decide sobres as providências requeridas(n.º2 ,art1049º e art.1051º,n.º1)10
Como se constata, os autos ainda se encontram no início da primeira fase.
A decisão impugnada também se mantém neste segmento.

III–

Considerando o que se acaba de expor julga-se improcedente a apelação e confirma-se a decisão impugnada.
Custas pela apelante.


Lisboa,11.07.2024


Teresa de Sousa Henriques
Nuno Teixeira
Fátima Reis Silva


1-Atenta a reforma do anterior código processo civil introduzida pelos DL n.329/A/95,12.12 e 180/96,25.09[o aditamento ao n.º 3 do então vigente art.26º da expressão ”tal como é configurada pelo autor”.
2-Vide: Anselmo de Castro, Direito Processual Civil declaratório, II, Almedina, Coimbra, 168; João de Castro Mendes, in “direito processual civil IIº Vol.” Edição AAFDL, 1987, 187.Antunes Varela “Manual de Processo Civil”, 2ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, 1985, 129, 134 e 135 e; José Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil anotado”, vol. 1º, Coimbra Editora, 2008, 51.
3-Abrantes Geraldes e outros, CPC Anot.,Almedina 2018, I,59(nota 2).
4-Diploma a que doravante se aludirá por defeito.
5-Coutinho de Abreu, CSC em comentário, I.D.E.T.(comentário de Margarida Costa Andrade),V,271.
6-Coutinho de Abreu, CSC em comentário, I.D.E.T.(comentário de  Alexandre de Soveral Martins),V,230.
7-Ob.cit.,V,274
8-Autora e ob.cit,275.
9-CSC Anot.,Almedina 2020, 559(nota 8).
10-Abrantes Geraldes e outros, CPC Anot.,Almedina 2020,II,405.