Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
310/25.4T9TVD-A.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: APREENSÃO
CONTA BANCÁRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/03/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I. A apreensão de saldos bancários, prevista no art.º 181º do Cód. Proc. Penal, é um meio de obtenção de prova, mas que poderá simultaneamente funcionar como meio de prova e como medida cautelar destinada a assegurar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão associados à prática do ilícito penal, como seja a perda desses valores a favor do Estado.
II. O Juiz procede à apreensão, em bancos, de instrumentos, produtos ou vantagens, quando, cumulativamente, tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
III. Para poder afirmar a existência de indícios de crime, forçoso é que o Juiz de Instrução Criminal analise os autos, a fim de se habilitar a concluir por tais indícios e pela sua suficiência para determinar uma apreensão em conformidade com a lei.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

Relatório
No âmbito do Processo com o nº 310/25.4T9TVD, que corre termos no Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Loures (Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte) vem o Ministério Público interpor recurso do despacho que indeferiu a apreensão de quantia depositada em conta bancária, pedindo que se revogue esta decisão e se ordene a sua substituição por outra que determine a apreensão do saldo bancário do suspeito.
Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
1. Vem o presente recurso impugnar o despacho do Mmo. JIC de fls. que indeferiu a apreensão de saldo bancário nos termos do art.º 181º do C.P.P..
2. Discorda-se de tal entendimento, porque não cabe ao Mmo. JIC fazer juízos de prognose sobre as várias possibilidades de desfecho do processo e por se entender que existem indícios fundados para se proceder à apreensão.
3. No processo 361/24.6GDTVD, que deu origem a estes autos, AA foi constituído como arguido e interrogado pelo o signatário, diligência na qual se fez acompanhar do Sr. Dr. BB.
4. Na diligência foi colhida a disponibilidade do arguido para aceitar a suspensão provisória do processo, sendo que dois meses depois veio AA enviar um email (fls. 14) ao processo relatando que o suspeito lhe disse que para sair do país teria de pagar uma caução de €1.000,00 para boa conduta válida por 6 meses a qual seria devolvida quando regressasse ao país.
5. Que no próprio dia da diligência de interrogatório o suspeito lhe disse que teria de pagar €4.000,00 como garantia de boa conduta que lhe seriam devolvidos decorridos 30 dias se nada de errado fizesse ligando-lhe decorridos 4 dias dizendo “Você tem que fazer o pagamento quer ser preso”.
6. O ofendido pagou os valores pedidos, conforme comprovativos juntos aos autos.
7. Na diligência ocorrida em ... para interrogatório com vista à suspensão provisória mediante o pagamento ao Estado de €500,00, em que o suspeito também compareceu, o progenitor do arguido frisou que já estavam na posse do Tribunal €5.000,00, tendo o suspeito alegado que os €500,00 seriam descontados desse valor e que iria diligenciar junto do Tribunal para a devolução do remanescente.
8. Apesar das evidencias, entende o Mmo. JIC que, porquanto existe um mandato forense tal pagamento pode ser para honorários, apesar de em momento algum tal ter sido referido aos ofendidos, tanto assim que não foi ouvida a versão do suspeito.
9. A apreensão tem a dupla função de obter e conservar a prova e de garantia de perdimento a favor do Estado.
10. Assume uma função cautelar não definitiva que visa prevenir a dissipação dos fundos em benefício dos agentes do crime e garantir a sua existência ao termo do processo.
11. Neste sentido Ac. do TRL de 24.02.2022 (www.dgsi.pt) onde se refere que “A apreensão enquanto meio de obtenção da prova serve a finalidade processual penal da descoberta da verdade e enquanto garantia processual da perda de vantagens, tem em vista a finalidade processual penal de realização de justiça. Trata-se de um importante instrumento de prevenção do perigo de aumento ou de reiteração da criminalidade, por via da reconstituição da esfera patrimonial do agente do crime, ao estágio anterior à prática do mesmo e como se este nunca tivesse sido praticado”.
12. E Ac. do TRE de 07-05-2024 (www.dgsi.pt) onde se refere que “A apreensão de saldos bancários não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, mas também de segurança de bens para garantir a execução, embora na grande maioria dos casos esses objectos sirvam também como meios de prova”. (…) A apreensão destina-se essencialmente a conservar provas reais e bem assim de objectos que em razão do crime com que estão relacionados podem ser declarados perdidos a favor do Estado. (…) E os interesses da realização da justiça e combate à criminalidade organizada e económico-financeira prevalecem, indubitavelmente, sobre o direito à propriedade privada”.
13. No mesmo sentido Acórdão invocado na promoção de fls. 37.
14. Salvo melhor opinião não nos parece ser competência do Mmo. JIC conjeturar sobre as possibilidades que a factualidade constante dos autos oferece pressupondo situações ou fazendo juízos de prognose sobre o seu desfecho.
15. Cabe-lhe apenas avaliar a indiciação dos factos denunciados em face do que consta dos autos e não daquilo que pode vir a constar.
16. A mera existência de um contrato não afasta a prática do crime em causa.
17. Dos autos consta já a versão dos ofendidos explanada nos emails constantes dos autos, cuja inquirição a que se refere o Mmo. JIC apenas irá confirmar.
18. Do conteúdo dos mencionados emails resulta como manifestamente credível os factos denunciados, dada as dúvidas que foram colocadas pelos ofendidos e só após lhes ser confirmado pelo signatário que nenhum valor havia sido pedido pelo Tribunal constataram ter sido enganados, vindo a apresentar a queixa que deu aso a estes autos.
19. A credibilizar a sua versão temos também os comprovativos de transferências para o suspeito.
20. Repare-se que as transferências foram feitas para a conta pessoal do Sr. BB e não para a da Sociedade de Advogados à qual a procuração foi passada.
21. De notar que em momento algum os denunciantes fazem referência ao dito valor ter sido solicitado a título de honorários ou provisão.
22. As razões subjacentes aos pedidos de pagamento são totalmente falsas.
23. O suspeito, como o próprio ofendido referiu (fls. 23), foi alvo de grande exposição mediática derivado ao elevado número de queixas feitas contra o mesmo por crimes de burla, bastando fazer uma breve pesquisa na internet pelo seu nome para surgirem inúmeras notícias sobre o assunto.
24. Acresce que, o próprio signatário tem vários processos crime contra o suspeito por factos de idêntica natureza e com o mesmo modus operandi, ou seja, servindo-se da qualidade de Advogado para obter dos clientes, desconhecedores dos trâmites legais e judiciais, elevadas quantias monetárias.
25. De notar ainda que, no processo que deu aso a estes autos o suspeito veio a assumir o pagamento da injunção de €500,00 determinada ao arguido, o que é mais um indício forte de que a sua versão dos factos é verdadeira.
26. Pelo que salvo melhor opinião, afigura-se-nos que nos autos existem já fundadas suspeitas da prática de crime para que se ordenasse a apreensão do saldo bancário da conta do suspeito.
27. Como se refere no Ac. do TRE de 07.05.2024 (www.dgsi.pt) “Para efeitos da decisão judicial que determina a apreensão dos saldos das contas bancárias para as quais o queixoso transferiu avultadas quantias em dinheiro, a exigência processual não é a mesma que aquela que é necessária para a dedução da acusação, ou seja, não é exigível a existência de “indícios suficientes” da prática de um crime. Basta, para esse efeito, a existência de “suspeita fundamentada” do cometimento de um crime (uma “suspeita” semelhante àquela que determina a instauração de um processo criminal contra determinada pessoa)”.
28. Suspeita essa que a existência de um contrato de mandato entre o suspeito e a vítima não afasta.
29. Ao não o fazer o Mmo. JIC está não só a permitir que o suspeito tenha disponibilidade do valor recebido para o dissipar, como a inviabilizar o seu eventual perdimento a favor do Estado.
30. Neste sentido, Ac. TRL de 22-02-2022 (www.dgsi.pt) onde é referido “E, também, não se pode olvidar que importa impedir que os fundos ainda existentes nas contas em causa se dissipem e sejam utilizados em benefício dos agentes dos factos na economia legítima, o que poderá acontecer caso não sejam objeto de medida cautelar de apreensão, fazendo com que as quantias creditadas nas contas em causa sejam certamente canalizadas para outros fins, ficando definitivamente fora do alcance da Justiça”.
31. Por outro lado, relegar tal apreensão para após inquirição/interrogatório do suspeito conduz ao exato mesmo efeito, permitindo-lhe que conhecendo os factos dissipe tal valor antes que o mesmo possa ser apreendido.
32. A surpresa da apreensão é condição essencial à sua eficácia.
33. Aliás, neste tipo de criminalidade, que envolve a apropriação de valores monetários os atores judiciários correm contra o tempo, pois tais valores são rapidamente dissipados em prejuízo quer dos ofendidos/lesados, quer da realização da justiça no que ao perdimento respeita.
34. Ou seja, ainda que os agentes do crime venham a ser condenados os ofendidos acabam na maior parte dos casos por não se ver ressarcidos dos prejuízos sofridos, sendo a recuperação desses valores ou parte deles a única justiça que acabam por ter.
35. Por outro lado, a lentidão do sistema penal e a inação judicial não só permite, como legítima que este tipo de meliantes se sintam impunes e continuem a lesar inúmeras vítimas ao ponto de quando o sistema finalmente lhes chega já o dano social é enorme e na sua maior parte irreparável.
36. Tal facto, contribui largamente para o descrédito da justiça a que cabe a todos os seus operadores pôr cobro.
37. Pelo que, ao decidir como decidiu, o Mmo. JIC violou o disposto no art.º 181º do CPP, devendo o despacho de que se recorre ser revogado, ordenando-se a sua substituição por outro que ordene a apreensão do valor de €4,500,00 na conta do suspeito.
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Consigna-se que o Mmo. Juiz recorrido decidiu – e bem – não ordenar a notificação a que alude o art.º 411º, nº 6 do Cód. Proc. Penal, por entender que “o despacho que ordena a apreensão (que pode vir a ser prolatado caso o recurso mereça provimento) apenas é notificado ao visado após a realização da mesma, solução diversa anularia muito provavelmente o resultado prático da apreensão, mediante o conhecimento do arguido/suspeito da realização de tal diligência”.
O Mmo. Juiz recorrido sustentou o despacho proferido nos seus precisos termos.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer de acompanhamento da posição expressa pelo Ministério Público junto da 1ª Instância.
Efectuado o exame preliminar, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
A decisão recorrida é a seguinte:
Expõe e requer o Ministério Público:
“Nos presentes autos AA veio apresentar queixa contra o Advogado BB porquanto este, na qualidade de mandatário acompanhou-o na diligência de interrogatório de arguido na qual lhe foi proposta a Suspensão Provisória do Processo mediante o pagamento de €500,00.
Após o queixoso necessitou de sair do país e aconselhando-se com o seu mandatário e foi-lhe dito que teria de pagar uma caução de €1.000,00 que lhe seria devolvida, o que aquele fez para a conta com o NIB: ..., a qual nunca lhe foi devolvida.
Na sequência do interrogatório e da proposta de Suspensão Provisória do Processo o Sr. Advogado disse-lhe que teria de pagar uma caução de boa conduta no valor de €4.000,00, o que aquele fez para a referida conta.
Sucede que, em momento algum tal resultou do processo em causa. Em momento algum foi pedido o pagamento de honorários, sendo que a motivação do pedido é totalmente falsa.
Ora, dos elementos já juntos aos autos resulta que as transferências efetuadas para a conta acima referida o foram por meio da indução em erro do ofendido, sem qualquer outro motivo atendível que as justificasse, sendo de grande interesse para a prova dos factos proceder à apreensão desse valor na conta acima referida, tanto mais que constitui a vantagem da pratica de um crime (art.º 110º, n.º 1, al. b) do C.P.).
Face ao exposto, remetam-se os autos ao TIC com a seguinte promoção:
- Se ordene ao Banco ... que proceda à apreensão do saldo existente na conta o NIB: ..., bem como todos os valores que ali venham a creditados até ao montante de €4.500,00”.
Nos presentes autos, os elementos determinantes da eventual responsabilidade da sociedade de advogados suspeita (ou do ilustre advogado suspeito) são-nos transmitidos exclusivamente pelo denunciante, sendo certo que os denunciados não foram, ainda, ouvidos.
Estamos perante uma situação em que houve um contrato de representação forense (cfr. fls. 35), tendo os denunciados assumido, mediante contrapartidas económicas, a representação do denunciante, em termos ainda pouco esclarecidos.
Efectivamente, de acordo com o disposto no artigo 181º, número 1, do Código de Processo Penal, “o juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome”.
No caso dos autos, e tendo havido mandado forense, haveria lugar ao pagamento de honorários.
Nos termos do disposto na Lei n.º 145/2015, de 09 de Setembro (ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS), artigo 101º:
“1 - O advogado deve dar a aplicação devida a valores, objetos e documentos que lhe tenham sido confiados, bem como prestar conta ao cliente de todos os valores deste que tenha recebido, qualquer que seja a sua proveniência, e apresentar nota de honorários e despesas, logo que tal lhe seja solicitado.
2 - Quando cesse a representação, o advogado deve restituir ao cliente os valores, objetos ou documentos deste que se encontrem em seu poder.
3 - O advogado, apresentada a nota de honorários e despesas, goza do direito de retenção sobre os valores, objetos ou documentos referidos no número anterior, para garantia do pagamento dos honorários e reembolso das despesas que lhe sejam devidos pelo cliente, a menos que os valores, objetos ou documentos em causa sejam necessários para prova do direito do cliente ou que a sua retenção causa este prejuízos irreparáveis.
4 - Deve, porém, o advogado restituir tais valores e objetos, independentemente do pagamento a que tenha direito, se o cliente tiver prestado caução arbitrada pelo conselho regional.
(…)”.
Ou seja, a retenção dos valores recebidos pelos denunciados pode ser, eventualmente, lícita, sendo a natureza do relacionamento entre denunciante e denunciados claramente complexa e de contornos ainda pouco apurados, e neste momento, em que ainda não foram ouvidos, e não puderam apresentar as suas razões, entende-se não se poder considerar, ainda, “haver fundadas razões para crer que tais montantes estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova” (artigo 181º, número 1, do Código de Processo Penal).
Sendo que, no caso de incumprimento contratual, a garantia patrimonial do denunciante poderá defendida através dos meios de tutela cível, designadamente, através de providência cautelar.
Termos em que, e por ora, sem prejuízo de reponderação caso a existência de indícios que fundem mais sustentadas razões para crer que tais montantes estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova venha melhor demonstrada nos autos, se indefere o requerido.
Notifique e devolva os autos ao Ministério Público.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Em causa está o pedido de apreensão de determinada quantia depositada em conta bancária.
Nos termos do nº 1 do art.º 178º do Cód. Proc. Penal “são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova”.
Precisa o nº 1 do art.º 181º do mesmo Código que “o juiz procede à apreensão em bancos ou outras instituições de crédito de documentos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos, mesmo que em cofres individuais, quando tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, mesmo que não pertençam ao arguido ou não estejam depositados em seu nome”.
Retira-se destes normativos que o Juiz procede à apreensão, em bancos, de instrumentos, produtos ou vantagens, quando, cumulativamente:
- tiver fundadas razões para crer que eles estão relacionados com um crime e
- se revelarão de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
É hoje entendimento unânime que a admissibilidade da apreensão de títulos, valores e quantias pode ter lugar, não só quando se verificar a sua relevância para a prova mas também quando revestir grande interesse para a “descoberta da verdade”, “incluindo a verdade patrimonial” (cfr. João Conde Correia in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, 3ª Ed., Tomo II, p. 686).
Em comentário ao art.º 181º do Cód. Proc. Penal, afirma aquele autor (ob. cit., p. 684 e 685) que “Tal como em todos os restantes casos (supra § 4 da anotação ao art.º 178.º), a apreensão em estabelecimento bancário tanto serve finalidades exclusivamente probatórias como finalidades exclusivamente conservatórias. Como refere o ac. TC 294/08 «a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos à ordem do processo até à decisão final» (no mesmo sentido, JOÃO CONDE CORREIA, 2015, pp. 56 e ss. e MANUEL DA COSTA ANDRADE/MARIA JOÃO ANTUNES, 2017, p. 360). Interpretação que saiu reforçada com as alterações introduzidas no art.º 178.º/1, pela L 30/2017, de 30.05, que alinhou a terminologia penal com a terminologia processual. Ficou agora mais claro que a apreensão pode servir estas as duas finalidades independentes ou mesmo apenas uma delas.”
Ensina Germano Marques da Silva (in curso de Processo Penal, vol. II, Verbo, 1999, p. 197) que a apreensão de saldos bancários prevista no art.º 181º do Cód. Proc. Penal, como se depreende da inserção sistemática dessa disposição na Título III do Livro III desse diploma, é um meio de obtenção de prova, mas que poderá simultaneamente funcionar como meio de prova e como medida cautelar destinada a assegurar o cumprimento de certos efeitos de direito substantivo que estão associados à prática do ilícito penal, como seja a perda desses valores a favor do Estado. Também Damião da Cunha (in Perda de bens a favor do Estado, Centro de Estudos Judiciários, 2002, p. 26) refere que a apreensão tem a dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial de eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado.
E na jurisprudência, a título de exemplo, podem ver-se os acórdãos citados pelo Recorrente.
Do que se deixou dito há que concluir que a apreensão será ordenada quando se perfile quer como meio de prova de bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, quer como meio cautelar de segurança desses mesmos bens.
Ponto é que estejam em causa bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa. E para poder afirmar a existência de indícios de crime, forçoso é que o Juiz de Instrução Criminal analise os autos, a fim de se habilitar a concluir por tais indícios e pela sua suficiência para determinar uma apreensão em conformidade com a lei. Por tal motivo, mal se compreende a exaltação do Recorrente e a sua afirmação de que o Mmo. JIC extravasou a sua competência e conjecturou “sobre as possibilidades que a factualidade constante dos autos oferece pressupondo situações ou fazendo juízos de prognose sobre o seu desfecho”, cabendo-lhe “apenas avaliar a indiciação dos factos denunciados em face do que consta dos autos e não daquilo que pode vir a constar”.
Vejamos, então, o que indiciam os autos.
Investiga-se, nos mesmos, a prática de um crime de burla
O suspeito não foi ainda ouvido, pelo que apenas consta a versão do queixoso. Segundo o queixoso, o suspeito, que é advogado, e que como tal foi constituído pelo próprio (encontra-se procuração junta aos autos), acompanhou-o em diligência em que foi constituído como arguido e interrogado como tal e em que foi colhida a disponibilidade do ora queixoso, então arguido, para uma suspensão provisória do processo mediante o pagamento, além do mais, de uma injunção de €500,00. Mais afirma o queixoso que o suspeito lhe disse que para sair do país teria de pagar uma caução de €1.000,00 para boa conduta válida por 6 meses a qual seria devolvida quando regressasse e que teria de pagar €4.000,00 como garantia de boa conduta que lhe seriam devolvidos decorridos 30 dias se nada de errado fizesse. O queixoso pagou estes valores (comprovativos juntos aos autos) e o suspeito pagou o valor da injunção.
O Recorrente defende que a versão do queixoso, de que entregou quantias monetárias a favor do queixoso sob falsos pretextos, decorre de:
- comprovativos de transferências para o suspeito, as quais foram feitas para a conta pessoal do suspeito e não para a da Sociedade de Advogados à qual a procuração foi passada;
- o queixoso não refere que os valores transferidos tenham sido solicitados a título de honorários ou provisão;
- o suspeito foi alvo de grande exposição mediática derivado ao elevado número de queixas feitas contra o mesmo por crimes de burla e o Recorrente tem vários processos crime contra o suspeito por factos de idêntica natureza e com o mesmo modus operandi;
- o suspeito veio a assumir o pagamento da injunção de €500,00 determinada ao arguido, ora queixoso.
Em relação a estes dados, cumpre dizer que, o facto de o ora suspeito ter sido alvo de várias queixas pela prática de crimes de burla, não é indício de nada para além disso mesmo, nem pode ter qualquer tipo de extrapolação para os presentes autos.
Depois, a circunstância de o suspeito ter assumido o pagamento da injunção não revela mais que essa mesma assunção, não se sabendo o que acordaram as partes no
âmbito do mandato forense para além da versão do queixoso.

Finalmente, o facto de as transferências monetárias terem sido efectuadas para a conta pessoal do suspeito, e não para a da Sociedade de Advogados à qual a procuração foi passada, é algo que, não sendo deontologicamente correcto, é comum acontecer, sem que haja qualquer crime subjacente a tal actuação.
O que é estranho, no caso, é o queixoso não dizer que, independentemente de já ter entregue ao suspeito determinada quantia a título de provisão, por força do contrato de mandato realizado, ainda assim lhe foram solicitadas as quantias referidas a título de caução de boa conduta. Não é crível que, não obstante os serviços prestados pelo suspeito, o mesmo nada tenha pedido a título de provisão. E se pediu, quanto é que se destinava a provisão e quanto é que se destinava a caução? Não tendo o queixoso explicado claramente os contornos do mandato forense, os indícios da prática de um crime de burla não são suficientes para determinar a apreensão de €4.500,00, impondo-se que o queixoso seja ouvido e esclareça devidamente a que título é que entregou cada quantia ao suspeito.
Repare-se que no âmbito de uma apreensão – que é a medida agora em causa – só pode ser atingido o património referente a valores que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa. Pelo que, ainda que se venha a indiciar que uma parte das quantias entregues foi solicitada a título de caução, se torna de primordial importância saber qual o concreto valor que foi para tal solicitado.
Assim, nenhum reparo oferece o despacho recorrido.
* * *
Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente o recurso e mantém a decisão recorrida.
Sem custas, dada a qualidade do Recorrente.

Lisboa, 3.06.2025
(processado e revisto pela relatora)
Alda Tomé Casimiro
Rui Poças
Sandra Oliveira Pinto