Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2484/24.2T8SNT.L1-1
Relator: ISABEL FONSECA
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
LEGITIMIDADE ACTIVA
FACTOS SUPERVENIENTES
PAGAMENTO
ILEGITIMIDADE SUPERVENIENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1.– O legislador conferiu expressamente àquele que se arroga a qualidade de credor, “ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito” a legitimidade para requerer a declaração de insolvência (art. 20.º, n.º 1 do CIRE), tratando-se de regulação que remete para o campo da legitimidade processual, de cariz adjetivo, aferindo-se em termos similares aos que decorrem do processo civil, ponderando o conceito expresso no art. 30.º, sendo que a legislação processual civil é subsidiariamente aqui aplicável, como decorre do art. 17.º, n.º1 do CIRE; exige-se, pois, que o requerente da insolvência alegue a fonte da obrigação da devedora, justificando a origem, natureza e montante do crédito de que se arroga titular.

2.–Estando fixado no processo que, posteriormente à instauração da ação a requerida, logo que citada, procedeu ao pagamento do crédito da requerente, conforme veio invocar no articulado de oposição que apresentou, esse facto superveniente releva para aferir da legitimidade processual da requerente: se a requerente da insolvência perde, na pendência do processo de insolvência, a qualidade de credora que tinha à data da propositura da ação, qualidade que se arrogava titular e que a legitimava a intervir, ocorre uma situação de ilegitimidade superveniente para continuar a intervir no processo, justificando-se declarar a mesma com a consequente absolvição da requerida da instância e não do pedido (arts. 576.º n.ºs 1 e 2 e 577.º alínea e) do CPC).

3.–Nesse contexto, não é viável a continuação da tramitação do processo para se averiguar se a requerida se encontra, ou não, em situação de insolvência, ponderando os critérios identificados pelo legislador no art. 3.º do CIRE.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa 

 
I.– RELATÓRIO


Ação
Processo de Insolvência intentado em 09-02-2024.

Requerente
Carpintaria Lagoa da Pedra, Lda.

Requerida
FJ, Lda.

Pedido
Que seja declarada a insolvência da sociedade FJ, Lda.

Causa de pedir
Alega, em síntese, que no âmbito e exercício das respetivas atividades, a requerente vendeu à requerida e esta comprou, a mercadoria e serviços cujas qualidades, quantidades e preços, unitários e globais, se encontram discriminados nas faturas 2023/169 de 18-12-2023, 2023/170 de 18-12-2023, 2023/172 de 21-12-2023 e 2023/186 de 31-01-2024 que perfazem um total de 19.302,10 €.
Pese embora interpelada, a requerida não procedeu ao pagamento do preço, encontrando-se em situação de insolvência, sendo o pedido de declaração de insolvência fundado na alínea d) do artigo 20º do CIRE (dissipação de bens).

Oposição
Citada a requerida, por carta registada com A/R enviada em 15-02-2024 e recebida em 21-02-2024 [[1]], a requerida contestou, invocando, nomeadamente, que procedeu ao pagamento da totalidade do valor indicado pela requerente na sua petição inicial e que os autos devem ser extintos por inutilidade superveniente da lide. Mais invoca que “[a]inda que não venham a ser extintos os presentes autos, por inutilidade superveniente da lide, conforme supra requerido, o que apenas por mera cautela e dever de patrocínio e por hipótese académica se concebe, a verdade é que a Requerida não se encontra numa situação de insolvência” (art. 14.º).
Refere como segue:
3.–Para o efeito, no dia 12 de Janeiro de 2023, foi apresentado pela Requerente à Requerida um orçamento para o fornecimento e montagem de diversos materiais, conforme orçamento que se junta como DOC. 2.
4.–Após acordado o valor entre as Partes, foram iniciados os trabalhos acordados, sendo certo que nunca os mesmos foram terminados pela Requerente, ao contrário do que a mesma pretende fazer crer.
5.–As facturas que deram origem aos presentes autos têm aposto um valor que, como bem sabe a Requerente, não é devido na sua totalidade, uma vez que parte dos trabalhos nunca foram efectuados ou completados pela Requerente.
6.– Por essa razão, a Requerida reserva-se ao direito de discutir o direito ao respectivo ressarcimento em sede própria, que não um processo no qual a Requerente pretende, ao arrepio do legalmente estabelecido e em clara violação do princípio da boa fé, que seja declarada a insolvência da Requerida.
7.–De acordo com o teor da petição inicial, encontrar-se-iam em dívida - na versão da Requerente -, as seguintes facturas, no montante global de €19.302,10 (dezanove mil, trezentos e dois euros e dez cêntimos):
a.-Factura n.º 2023/169, de 18.12.2023, com data de vencimento em 28.12.2023, no montante de €11.440,00 (onze mil, quatrocentos e quarenta euros);
b.-Factura n.º 2023/170, de 18.12.2023, com data de vencimento em 28.12.2023, no montante de €3.445,00 (três mil, quatrocentos e quarenta e cinco euros);
c.-Factura n.º 2023/172, de 21.12.2023, com data de vencimento em 31.12.2023, no montante de €2.240,00 (dois mil, duzentos e quarenta euros);
d.-Factura n.º 2023/186, emitida em 31.01.2024, com data de vencimento em 10.02.2024, no montante de €2.177,10 (dois mil, cento e setenta e sete euros e dez cêntimos).
II.– Da extinção dos presentes autos por inutilidade superveniente da lide:
8.–Pese embora a ora Requerida não concorde com a totalidade do montante peticionado pela Requerente – seja porque o referido pedido é feito com base em factos falsos ou em imprecisões e omissões -, esta procedeu ao pagamento da totalidade do valor indicado pela Requerente na sua petição inicial, assim como os respectivos juros de mora, desde a data de vencimento de cada uma das facturas, correspondendo €19.302,10 (dezanove mil, trezentos e dois euros e dez cêntimos) e €381,48 (trezentos e oitenta e um euros e quarenta e oito cêntimos), num valor global de €19.683,58 (dezanove mil, seiscentos e oitenta e três euros e cinquenta e oito cêntimos), conforme comprovativos de transferências que se juntam como DOC. 3.
9.–Contudo, o que é facto é que pese embora o valor alegadamente em dívida à Requerente e por esta expressamente referido na petição inicial já se encontrar liquidado, a verdade é que esta, ao contrário do dever que sobre si impendia, optou deliberadamente por não desistir do pedido formulado no âmbito dos presentes autos, certamente motivada por razões obscuras que à Requerida são alheias.
10.–A Requerente encontra-se ciente dos danos que o prosseguimento dos presentes autos causa à Requerida, actuando com claro dolo na intenção de prejudicar esta última, conduta esta esta que terá, necessariamente, de ser sancionada pelo douto Tribunal, de forma exemplar e dissuasora de comportamentos semelhantes no futuro, conforme adiante se peticionará.
11.– A actuação da Requerente parece resultar de um conluio entre si e o outro sócio-gerente da Requerida, JS que, à mercê de um conflito familiar, parece querer a todo o custo destruir o fruto de anos de trabalho árduo do outro sócio gerente da Requerida, AS.
12.–Não consegue a Requerida descortinar outra explicação não só para a existência da presente acção, como também para a não apresentação do requerimento de desistência do pedido (quando já ressarcida da totalidade do valor por si reclamado), em claro dolo.
13.–Face ao pagamento do valor referido pela Requerente na petição inicial, deverão os presentes autos ser extintos por inutilidade superveniente da lide, nos termos e para os efeitos do artigo 277.º, alínea e) do CPC, aplicável ex vi o artigo 17.º, n.º 1 do CIRE, o que desde já se requer”.

Resposta
A requerente respondeu [[2]] invocando, em síntese, que os pagamentos foram feitos depois da citação da requerida, ocorrida em 21-02-2024, requerida que “a) deu ordem de transferência de 9.900,00 €, em 29/02/2024;/b) deu ordem de transferência de 9.402,00 €, em 29/02/2024; e c)  deu ordem de transferência de 381,48 €, em 01/03/2024”, conforme documentos juntos com a contestação sob o nº 3. “Sendo os pagamentos posteriores à propositura da acção e citação da Requerida, irrelevam os mesmos para efeitos da apreciação da causa de pedir tal como submetida a apreciação do Tribunal (até porque o que se visa pela acção é a declaração de insolvência, não a cobrança de uma dívida)” (art. 5.º).
Conclui como segue:
“Termos em que,
A Requerente pugna pela improcedência da matéria de excepção alegada na Contestação e sua não incursão em litigância de má-fé, conduta processual que, pelo contrário, marca presença do lado da Requerida, entenda-se o respectivo gerente AS e que deverá merecer as consequências processuais que esse douto Tribunal tenha por adequadas (lembrando que, nos termos do disposto no artigo 46º do CPC, as posições assumidas pelos mandatários nos articulados vinculam as partes), tudo com as legais consequências”.

Decisão recorrida:
Em 12-04-2024 foi proferida decisão com o seguinte segmento dispositivo:
“Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo improcedente a presente ação, absolvendo a Requerida do pedido formulado. 
Valor da causa: o indicado.
Custas a cargo da Requerente (art.º 304º do CIRE).
Registe e notifique”.

Recurso
Não se conformando, a requerente apelou formulando as seguintes conclusões:
A.– O Tribunal a quo deveria ter dado por assente que se verificaram pagamentos pela Requerida, sim, mas também, explicativamente, que:
5- a Requerida foi citada em 21/02/2024 (a prova que resulta do aviso de recepção que integra os próprios autos, atestando a citação da Requerida);
6- os pagamentos ocorreram mediante ordens de transferência da Requerida nas seguintes datas:
6/a) ordem de transferência de 9.900,00 €, em 29/02/2024;
6/b) ordem de transferência de 9.402,00 €, em 29/02/2024;
e 6/c) ordem de transferência de 381,48 €, em 01/03/2024. (a prova que resulta dos três documentos que a própria Requerida juntou à respectiva Contestação sob o nº 3);
7- que todos as ordens de pagamento à Requerente se verificaram apenas depois da citação da Requerida (epílogo factual lógico).
B.–Por falta de impugnação especificada por parte da Requerida na respectiva Contestação, com a correspondente admissão por acordo (artigo 574° do C.P.C.), mais deveria o Tribunal a quo ter dada por assente outra factualidade alegada pela Requerente nos artigos 12º e respectivas alíneas e 13º da P.I., ademais confirmada pelos documentos juntos à P.I. sob os nºs 8 a 17, isto é e em síntese:
8- que o sócio/gerente da Requerida AS constituiu, em Dezembro de 2023, duas sociedades comerciais com objecto social coincidente com o da Requerida;
9-que, seguidamente, para ali transferiu património da Requerida, vários veículos, equipamentos e material diverso de e para a construção civil por valores abaixo dos valores de mercado e sem que tivesse ingressado qualquer contrapartida económica na Requerida;
10- que, em Janeiro de 2024, aquele gerente para si ordenou transferência de quantias depositadas na conta da Requerida, no valor acumulado de 20.000,00 €, uma vez mais sem qualquer contrapartida ou razão económico-financeira, mais deixando a Requerida sem fundos;
11- que houve transferência de trabalhadores, de clientes e descontos a clientes não conforme aos usos comerciais;
12- em epílogo factual lógico, que não obstante a existência de passivo (vencido e não solvido) a Requerida levou a cabo, sem ingresso de contrapartida, a alienação da sua organização de factores de produção com valor de posição no mercado - o seu estabelecimento.
C.–Por força do princípio da estabilidade da instância, consagrado no art. 260º, do C.P.C., citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir; o Tribunal  a quo  violou este  princípio.
D.–Sendo todos os pagamentos posteriores à citação da Requerida, irrelevam os mesmos para efeitos de aferição da legitimidade adjectiva ou substantiva da Requerente (que se estabilizou com a citação), bem como para  apreciação da causa de pedir tal como submetida a apreciação do Tribunal: o que se visava pela acção é a declaração de insolvência, não a cobrança de uma dívida.
E.–Àquele princípio acrescem os princípios da oficiosidade e da autossuficiência do processo de insolvência, aqui particularmente acentuados à razão do processo de insolvência ser um processo transindividual de marcado interesse público, não podendo ser suspenso ou extinto pela superveniência de um evento individual concernente a um credor apenas.
F.– O processo de insolvência cumpre uma função social.
G.–O processo de insolvência assume “uma dimensão preventiva, não dependendo da lesão de direitos de crédito e sim de uma previsão de incumprimento, constituindo, a par de uma via de realização de interesses privados, uma via de realização de interesses gerais ou públicos” – Catarina Serra, obra já citada.
H.–Por estas razões “a faculdade de requerer a declaração de insolvência é igualmente atribuída a sujeitos não titulares de direitos de créditos (…) e, quando se trate de um credor, ele possa requerer o início do processo independentemente do incumprimento, da mora, ou mesmo do vencimento do respetivo crédito.” – Acórdão T.R.C. já citado.
I.–A qualidade de credor - que a Recorrente tinha ao tempo da propositura da acção e citação da Requerida -  não é facto constitutivo do seu direito a requerer a insolvência do requerido.
J.–O legislador abstraiu da efectiva qualidade de credor para, em nome de interesses públicos e sociais que se sobrepõem ao deste ou daquele credor se iniciar o processo de insolvência, cuja utilidade e pertinência vai muito além do interesse de quem o possa ter impulsionado.
L.–“(…)o processo de insolvência não prossegue exclusivamente a realização de interesses privados dos credores e do devedor, estando-lhe igualmente subjacente um interesse público de protecção da economia e dos agentes económicos contra os perigos potenciais associados a uma situação de insolvência, protecção essa que é devida independentemente do número de credores” - Acordão T.R.G. já citado em que  o credor único que permaneceu nos autos não foi o requerente da insolvência.
M.–O pedido de declaração de insolvência foi, no caso vertente, também fundado na alínea d) do nº1 do artigo 20º do CIRE (dissipação de bens).
N.–Sendo seguro afirmar-se que os bens distribuídos a sociedades do sócio/gerente AS o foram fora do contexto de dissolução e liquidação social, houve preenchimento da previsão do artigo 514º do Código das Sociedades Comerciais (distribuição ilícita de bens da sociedade).
O.–A distribuição de bens foi executada sem que exista o mínimo vestígio de uma convocatória, deliberação social ou acta que a suporte documentalmente (violando o disposto no artigo 246º do C.S.C.). P. Sublinhando a ilicitude da distribuição levada a cabo, o artigo 148º do C.S.C. prevê que, mesmo nas hipóteses de liquidação por transmissão global, a transmissão de bens seja precedida de acordo escrito de todos os credores da sociedade; tal acordo não marca presença nos autos.
Q.–Ademais aqueles actos – insiste-se não negados pela Requerida – configuram:
a)- negócios estranhos ao objecto social;
b)- negócios consigo mesmo tal como definidos pelo artigo 261º do Código Civil (CC), celebrados sob ostensivo conflito de interesses.
R.–O pseudo-acordo de sócios a que alude a Requerida na Contestação ensaiando justificação para aqueles actos, teria que colher a forma escrita, passando pela convocatória de uma assembleia geral, acta de assembleia geral e sua assinatura pelos (dois) sócios; nem um vislumbre existe de tais documentos (além do mais, estando em causa, autenticamente, um trespasse, também este estava sujeito a forma escrita sob pena de nulidade – artigos 1.112º, nº 3, 219º e 220º do C.C.).
S.–Toda a Contestação é, no fundo, não uma contestação da Requerida, mas uma Contestação do sócio/gerente AS em manifesto conflito de interesses com a própria Requerida.
T.–Conforme documento superveniente que se juntou aos autos por ocasião da resposta às excepções (cfr. documento 6), no mesmo dia em que recebeu a citação para estes autos, 21/02/2024, AS fez enviou de mensagem de correio electrónico na qual alude a “situação descontrolada a vários níveis”; “Não há trabalhos para levar aos autos, mas as despesas e encargos mantiveram-se, neste momento a empresa não tem liquidez”; “A conta bancária está a negativo…. As dividas a fornecedores são cerca de 30.000€, os valores a receber de clientes são inferiores, e alguns desses ainda apresentam riscos”; “As obrigações da empresa com créditos são altas, cerca de 80.000€, não vejo como vamos honrar estas dívidas sem vender o apartamento, a empresa este ano ainda não faturou e está sem actividade”; “A cada dia que passa a empresa apenas gera prejuízo”.
U.–Pontuam aqui as alíneas a), d), e), g) e i) do nº 2  do artigo 186º do CIRE.
V.–A alienação dos bens – meios e factores de produção – levada a cabo pelo sócio gerente AS, deixando a Requerida sem condições de exercer a única atividade que lhe conhecia, consubstancia violação de normas legais imperativas de proteção dos credores da devedora, do mercado e da economia em geral, revelada pela violação do dever específico de apresentação à insolvência previsto pelo art.º 18º do CIRE, pelos institutos falimentares da resolução extrajudicial de negócios prejudiciais aos credores (artigos 120º e ss. do CIRE), e pela responsabilização insolvencial por via da qualificação da insolvência (artigos 186º e ss. do CIRE).
Z.–A Sentença a quo violou as normas supra indicadas e invocadas.
Termos em que,
Nos melhores de Direito e pelos que VV. Exa.s doutamente suprirão, se pugna pela revogação da Sentença recorrida e sua substituição por Decisão que reconheça a legitimidade substantiva e adjectiva da Recorrente, decretando, imediatamente, a insolvência da Requerida e, subsidiariamente, ordenando o prosseguimento dos autos para produção de prova e julgamento, sempre e em todo o caso, sem que qualquer condenação em custas possa recair sobre a Recorrente à razão dos pagamentos, que não esgotam o propósito do processo, terem sido efectuados após citação da Requerida, assim se fazendo JUSTIÇA!”

A requerida apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
“Da própria sentença recorrida resulta que (…) a Requerida, na sua contestação, invocou e demonstrou o pagamento do mesmo, ou seja, o crédito em questão deixou de existir.
E continua: (…) Tendo a Requerente deixado de ser credora da Requerida, na pendência da acção mas antes da declaração de insolvência, carece a mesma de legitimidade substantiva para prosseguir nos presentes autos e requerer a sua insolvência, pelo que a presente ação tem, necessariamente de improceder e a Requerida de ser absolvida do pedido formulado.
Não se verificou, por isso, qualquer erro por parte do Tribunal a quo, tendo o mesmo considerado que a falta de legitimidade substantiva derivada do facto de o crédito da Recorrente ter deixado de existir e não pelo facto de se considerar, expressamente, provados os factos relacionados com a data da citação e a data dos pagamentos, sendo absolutamente claro – de acordo com a sentença recorrida –, que o Tribunal a quo tinha e teve perfeita consciência de ambos os factos.
Referindo-se à legitimidade substantiva e à efectividade da relação material, resulta claro que, não sendo credora da Recorrida, a Recorrente não tinha qualquer legitimidade para o prosseguimento dos presentes autos.
 Sendo a legitimidade um pressuposto essencial para o prosseguimento dos presentes autos, face à inexistência de crédito era sempre inevitável a absolvição do pedido contra a Recorrida, tal como bem considerou o Tribunal a quo.
O facto de o artigo 260.º do CPC referir que a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei, não significa que não possam existir modificações de qualquer tipo.
Nos termos do artigo 762.º do Código Civil, o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado. Sendo o cumprimento a causa de extinção das obrigações, por excelência, o devedor pode, em qualquer altura, efectuar o cumprimento da obrigação a que está adstrito, sem que com isso signifique o prosseguimento de uma eventual acção judicial em curso.
O pagamento total (de capital e juros), que apenas em sede de ALEGAÇÕES DE RECURSO a Recorrente admite expressamente ter existido, foi efectuado pela Recorrida, pelo que a obrigação da Recorrente se extinguiu o que, necessariamente, tem consequências nos presentes autos, em curso, não podendo os mesmos continuar inalterados, sob pena de estes fazerem tábua rasa da excepção peremptória de ilegitimidade substantiva, que conduz à absolvição do pedido, quando alguém se arroga titular de uma relação jurídica material, que se vem a demonstrar não existir.
A Recorrente pretende, sob a alegada “veste de justiceiro”, fazer continuar uma acção que não só bem sabe não ter qualquer cabimento legal, mas também quando já obteve, alegadamente, o que pretendia: o pagamento.
O princípio da estabilidade da instância não é, nem pode ser, um princípio absoluto, estando sujeito às alterações legalmente admissíveis, uma das quais o pagamento, no caso dos presentes autos.
E não se diga que devido ao facto de o pagamento ter sido efectuado depois da citação tem alguma relevância para efeitos de alteração da sentença recorrida, parecendo a Recorrente olvidar que os presentes autos tiveram início sem sequer ter existido qualquer interpelação para pagamento, sem ter existido qualquer acção prévia – nomeadamente injunção ou acção executiva –, tendo a Recorrida, deliberadamente, optado pela via mais catastrófica para uma sociedade comercial: o pedido judicial de insolvência, apenas com o único intuito de “desmantelar” a Recorrida.
As facturas peticionadas no âmbito dos presentes autos têm aposta as datas de 28.12.2023 e de 31.12.2023, tendo sido as mesmas, alegadamente, confirmadas em 02.02.2024.
Os presentes autos tiveram início no dia 14.02.2024, sendo evidente o único intuito da Recorrente: a declaração de insolvência da Recorrida a todo o custo, sem olhar a meios, e independentemente das consequências que os presentes autos pudessem ter.
A Recorrente alega ainda sem razão que os presentes autos não poderiam ser suspensos ou extintos pela superveniência de um evento individual, relativo apenas a um credor. Mas a Recorrida juntou aos autos a lista de credores, das quais figuram credores com um valor de crédito residual e que apenas poderiam ter direito a reclamar o seu crédito caso a insolvência viesse a ser decretada, o que não sucedeu.
Jamais qualquer credor poderia intervir nesta fase processual, sendo certo que a Recorrente viu o seu crédito pago, pelo que obviamente carece de legitimidade para prosseguir, impondo-se, aliás, que a mesma tivesse desistido dos autos, em nome do princípio da boa fé, o que não sucedeu.
Por essa razão, e faltando um pressuposto absolutamente necessário para o prosseguimento dos autos, a verdade é que o Tribunal a quo não tinha de apreciar quaisquer outros factos alegados pela Recorrente que, tenta agora, sob uma alegada impugnação da matéria de facto, tentar fazer crer que existiu algum tipo de admissão por acordo dos factos alegados na petição inicial, nos artigos 8.º a 17.º, e que foram impugnados pela Recorrida.
Não consegue a Recorrida descortinar qual a consequência jurídica que a Recorrente pretende retirar desta falsa alegação, uma vez que a Recorrente se limita a referir que o Tribunal a quo deveria ter dado por assente a factualidade constante dos artigos 8.º a 17.º da petição inicial, uma vez que a Recorrente, nem directa nem indirectamente retira das suas alegações qualquer tipo de consequência jurídica, conforme se impunha.
Não parece ter enquadramento legal ter de ser o Tribunal ad quem a fazer a busca dos factos e a sua subsunção ao direito, que poderão corroborar (ainda que erradamente) a tese que a Recorrente apresenta, na hipótese de lhe ser atribuída razão, pelo que deverá ser indeferido o requerido pela Recorrente, por absoluta falta de fundamento fáctico e legal.
Pelo facto da questão da legitimidade substantiva ser anterior a qualquer apreciação à matéria de facto alegada pelas partes, não pode (por isso) o Tribunal a quo ter considerado provados quaisquer factos alegados pela Recorrente que não só foram impugnados pela Recorrida, como nem sequer foi aberta e conduzida discussão, em sede de audiência de discussão e julgamento, de tais questões falsamente alegadas pela Recorrente.
Caso assim fosse, o Tribunal a quo ter-se-ia debruçado sobre todas as matérias alegadas pelas partes e não, única e exclusivamente, sobre a matéria que a Recorrente entende que melhor serve os seus interesses, sejam eles quais forem.
A alegação de que quem não tenha (ou não se arrogue ter) a qualidade de credor estar legitimado para requerer a declaração de insolvência, apenas poderá resultar de um lapso na leitura do artigo 20.º, n.º 1 do CIRE, sendo este preceito legal claro relativamente à questão da legitimidade, quando refere que A declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados (…).
Ainda que possa ser condicional, a verdade é que tem de existir uma qualidade de credor para lhe ser conferida a legitimidade necessária para apresentar e/ou fazer prosseguir os autos de insolvência, qualidade esta que a Recorrente deixou de ter com o pagamento do valor por esta peticionado.
A Recorrente alega que o processo de insolvência tem uma assinalada índole social, na tentativa de justificar o facto de ter peticionado a declaração judicial de insolvência da Recorrida, em claro conluio com um dos seus sócios – PS –, para tentar, perante um crédito sobre a Recorrida – o qual, aliás, se encontrava a ser negociado, e que não foi impugnado por esta –, decidiu deliberadamente dar início aos presentes autos, sem sequer ter havido qualquer interpelação para pagamento.
O que a Recorrente pretende é, pela via da insolvência e após já ter o seu crédito integralmente pago, que a Recorrida seja declarada insolvente, para a satisfação de interesses de um dos seus sócios, o qual, aliás, não foi (ele próprio) capaz de iniciar qualquer procedimento legal contra a Recorrida, servindo-se antes de um terceiro (a Recorrente) para tentar a venda dos bens da sociedade.
A Recorrente vai ainda mais longe ao tentar alegar que a Oposição à Insolvência nem sequer deveria ter sido julgada ineficaz em relação à Recorrida, facto este que nunca alegou nos autos, tentando agora que o Tribunal ad quem aprecie factos nunca antes alegados.
A Recorrida obriga-se mediante a assinatura de um gerente, e qualquer um dos gerentes tinha – e tem –, legitimidade para proceder à constituição de um qualquer mandatário, sendo certo que a alegação de que a Oposição à Insolvência se trata apenas de uma oposição do sócio gerente AS não corresponde à verdade.
O que acontece, e conforme bem sabe a Recorrente, é que esta terá um acordo, ainda que a Recorrida não saiba em que termos, com o outro sócio gerente da sociedade, com o único objectivo de destruir a Recorrida e o trabalho árduo de longos anos de actividade.
A Recorrente alega que a causa de pedir assentou na prática de factos ilícitos pela Requerida e que, neste caso, há mora do devedor até sem ter existido qualquer interpelação, nos termos do artigo 805.º, n.º 2, alínea b) do Código Civil. Mais uma vez esta conclusão extraída pela Recorrida apenas poderá radicar numa interpretação errada do referido artigo, porquanto o mesmo refere que: 2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:
(…)
b)- Se a obrigação provier de facto ilícito;
(…).
Entende a Recorrida que ou a Recorrente julga que a obrigação (já paga) proveio de um facto ilícito, ou confundiu o conceito de causa de pedir nos presentes autos.
Não sendo a causa de pedir a obrigação em si, mas a impossibilidade de cumprimento pela Recorrida das obrigações vencidas (na tese da Recorrente), sempre se dirá que, em qualquer caso, teria de existir interpelação para que a mora se pudesse constituir, interpelação esta que nunca sucedeu.
A par deste facto, a obrigação também não proveio de qualquer facto ilícito (caso contrário a Recorrente também estaria envolvida no alegado facto ilícito), pelo que deverá ser improcedente toda a argumentação da Recorrente.
Não tem a Recorrida conhecimento da existência de qualquer acção legal de foro criminal ao abrigo do artigo 514.º do CPC, contra si ou contra qualquer um dos sócios, assim como não é o processo de insolvência a sede para dirimir qualquer questão desta índole.
Não existiu qualquer transmissão global de bens, da Recorrida, parecendo a Recorrente ignorar que a Recorrida é proprietária de um imóvel com um valor de mercado muitas vezes superior não só ao valor peticionado pela Recorrente, mas também à soma dos créditos dos outros credores. A Recorrida não tem quaisquer dívidas, seja a fornecedores, funcionários, à Segurança Social e/ou à Autoridade Tributária, e mantém todos os activos (nada foi vendido desde a cisão).
A Recorrente alega a existência de uma situação de insolvência culposa, que não só tenta induzir o Tribunal em erro, mas também não resulta provado, e, bem assim, trata-se de matéria nunca alegada, não podendo jamais ser discutida nesta sede recursiva.
Resulta claro que o único facto que a Recorrente deveria ter argumentado seria a alegada manutenção de legitimidade para prosseguimento dos presentes autos, o que não sucedeu.
A Recorrente só tenta insistir em trazer à discussão em sede recursiva factos já alegados, mas que estão intrinsecamente dependentes da existência do pressuposto da legitimidade – e que, no caso em concreto e conforme bem decidiu o Tribunal a quo, não se verifica porque não existe –, e, outrossim, factos novos que jamais poderão ser apreciados nesta sede, não só por se tratar de matérias de competências de outros tribunais, mas também de matérias com uma tramitação própria e autónoma.
Deverá, por isso, o recurso apresentado pela Recorrente ser julgado totalmente improcedente, por absoluta falta de fundamento fáctico-jurídico, devendo a sentença proferida pelo Tribunal a quo manter-se inalterada, nos exactos termos em que foi proferida, o que desde já se requer.
Termos em que, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser negado provimento ao recurso de apelação ora interposto e, por conseguinte, ser mantida intocada a douta sentença recorrida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA”.
 
Cumpre apreciar.

II.–FUNDAMENTOS DE FACTO

O tribunal de primeira instância deu por assente a seguinte factualidade:
1.–A Requerente é uma sociedade comercial por quotas que tem por objeto o fabrico e assentamento de mobiliário de cozinha e outros produtos de madeira e carpintaria (cfr. certidão do registo comercial junto aos autos). 
2.–A Requerida é uma sociedade comercial que tem por objeto a construção civil e obras públicas, a compra, venda e permuta de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, o comércio de materiais de construção, acessoriamente o arrendamento de bens imóveis próprios ou alheios, a prestação de serviços de engenharia e arquitetura, o comércio e aluguer de equipamentos e máquinas, atividades especializadas de construção (demolição, execução de terraplanagens), o comércio de bens e serviços via internet, a exploração florestal e limpeza de terrenos (cfr. certidão do registo comercial junto aos autos). 
3.–A Requerente emitiu e remeteu à Requerida as seguintes faturas para pagamento (cfr. documentos 3, 4, 5, 6 da PI):
Fatura nº FAC 2023/169 de 18/12/2023, com vencimento em 28/12/2023, no valor de 11.440,00€, IVA - autoliquidação;
Fatura nº FAC 2023/170 de 18/12/2023, com vencimento em 28/12/2023, no valor de 3.445,00€, IVA – autoliquidação;
Fatura nº FAC 2023/172 de 21/12/2023, com vencimento em 31/12/2023, no valor de 2.240,00€, IVA – autoliquidação;
Fatura nº FAC 2023/186 de 31/01/2024, com vencimento em 10/02/2024, no valor de 2.177,10€, IVA incluído à taxa legal em vigor;
4.–A Requerida procedeu ao pagamento das faturas em dívida e dos juros de mora, num valor global de €19.683,58 (cfr. doc 3 junto com a contestação e artº 3, 4 e 5 do requerimento da A. de 25.03.2024 em que aceita os pagamentos apenas impugnando que os mesmos produzam a inutilidade da ação).

III.–FUNDAMENTOS DE DIREITO
1.–Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, nº3 do mesmo diploma.
No caso, impõe-se, pois, apreciar:
- Da impugnação do julgamento de facto.
- Da relevância jurídica do pagamento, pela requerida, da dívida invocada pela credora requerente, quando esse pagamento é feito na pendência do processo de insolvência, imediatamente depois da citação da requerida.

2.–A apelante impugna o julgamento de facto feito pela primeira instância, pretendendo que se adite a seguinte factualidade:
- A requerida foi citada em 21/02/2024;
- Os pagamentos ocorreram na sequência de ordens de transferência da Requerida, nas seguintes datas:
a)-ordem de transferência de 9.900,00 €, em 29/02/2024;
b)-ordem de transferência de 9.402,00 €, em 29/02/2024; e
c)-ordem de transferência de 381,48 €, em 01/03/2024;
Assim concluindo que “todos as ordens de pagamento à Requerente se verificaram apenas depois da citação da Requerida (epílogo factual lógico)”.
Trata-se de matéria que releva diretamente para apreciação da segunda questão colocada e a que acima se aludiu, justificando-se, efetivamente, aditar a matéria alusiva à data em que foi efetuado o pagamento, ainda que se trate de questão artificial porquanto é evidente que o juízo valorativo da primeira instância partiu desse pressuposto de facto, isto é, que os pagamentos ocorreram já depois da citação da requerida, tendo aliás a 1ª instância aludido ao documento junto com a contestação.
Em todo o caso, tratando-se de matéria que se mostra, indiscutivelmente, provada, ponderando o acordo das partes e o documento junto pela requerida, com o articulado da oposição, com o n.º. 3, admite-se o requerido e determina-se o aditamento à matéria assente dos seguintes factos:
5.–Os pagamentos aludidos em 4. ocorreram na sequência de ordens de transferência da requerida, nas seguintes datas:
a)-ordem de transferência de 9.900,00 € em 29-02-2024;
b)-ordem de transferência de 9.402,00 €, em 29-02-2024;
c)-ordem de transferência de 381,48 €, em 01-03-2024.
Quanto à data da citação, trata-se de vicissitude processual que resulta dos autos e não carece de ser levada à factualidade assente, sendo inequívoca a conclusão de que tendo a citação ocorrido em 21-02-2024, os pagamentos aludidos verificaram-se já depois dessa ocorrência processual.
*

Pretende ainda a apelante que se dê como assente matéria que se prende diretamente com a situação em que a requerida se encontra, alegadamente de insolvência. Assim, pretende ainda que se adite a seguinte matéria, que entende estar provada “por falta de impugnação especificada por parte da Requerente na respectiva Contestação, com a correspondente admissão por acordo (nos termos do art. ° 574. ° do C.P.C., consideram-se admitidos por acordo os factos que não foram impugnados)e por prova documental junta:
8.–que o sócio/gerente da Requerida AS constituiu, em Dezembro de 2023, duas sociedades comerciais com objecto social coincidente com o da Requerida;
9.–que, seguidamente, para ali transferiu património da Requerida, vários veículos, equipamentos e material diverso de e para a construção civil por valores abaixo dos valores de mercado e sem que tivesse ingressado qualquer contrapartida económica na Requerida;
10.–que, em Janeiro de 2024, aquele gerente para si ordenou transferência de quantias depositadas na conta da Requerida, no valor acumulado de 20.000,00 €, uma vez mais sem qualquer contrapartida ou razão económico-financeira, mais deixando a Requerida sem fundos;
11.–que houve transferência de trabalhadores, de clientes e descontos a clientes não conforme aos usos comerciais;
12.–em epílogo factual lógico, que não obstante a existência de passivo (vencido e não solvido)  a Requerida  levou a cabo, sem ingresso de contrapartida, a alienação da sua organização de factores de produção com valor de posição no mercado - o seu estabelecimento”.
Há que delimitar o tipo de intervenção da Relação quando está em causa apreciar da valoração probatória feita pelo tribunal de 1ª instância.
Essa análise só deve ser efetuada com referência àqueles factos que assumem relevância para a decisão da causa, ponderando as várias soluções plausíveis de direito, quer na perspetiva da ação, quer da defesa. Considerando que o tribunal está vinculado a providenciar pelo andamento regular e célere do processo, recusando o que for impertinente e dilatório – art. 6.º, nº1 do CPC –,  nenhum sentido ou utilidade teria efetuar uma análise crítica sobre o mérito da valoração da prova feita pela 1ª instância, quando a impugnação do julgamento de facto recaia sobre factos que não tem qualquer potencialidade de influenciar o sentido da decisão, quer se trate de factos essenciais, instrumentais ou complementares (cfr. o art. 5.º do CPC). Acrescente-se que a afirmação serve para as hipóteses de exclusão/eliminação de factos dados como assentes pelo Juiz, como também para as hipóteses de inclusão de factos a que o tribunal não atendeu, de forma indevida segundo o recorrente/impugnante e até nas situações de simples alteração dos termos em que determinado circunstancialismo é dado como provado [[3]]. Tudo isto sem prejuízo de se considerar, como no acórdão do STJ de 13-07-2027 que “[a] consideração da inutilidade da reapreciação do julgamento da matéria de facto, quando a parte que recorre cumpriu o ónus de que depende a apreciação da sua pretensão, só pode/deve ser recusada em casos de patente desnecessidade” [[4]] que é o que aqui acontece. Efetivamente, a questão de direito que se coloca é aferir, perante o aludido facto superveniente (pagamento pela requerida da dívida do credor requerente do processo de insolvência, já depois da citação da devedora e antes da prolação da sentença) do destino do processo ou em que termos se deve operar a resolução do litígio e, nesse contexto, como melhor decorre do que a seguir se dirá, a ponderação dessa matéria não aportaria qualquer elemento relevante.
Assim sendo, e independentemente das considerações que se poderiam tecer quanto à formulação meramente conclusiva de alguns dos pontos assinalados, nessa parte entendemos impor-se a rejeição da impugnação do julgamento de facto.

3.–O processo de insolvência tem como objetivo principal a satisfação do interesse dos credores, como expressamente resulta do art. 1º, nº1 [[5]] [[6]], o que se concretiza com a apreensão e liquidação de todo o património do devedor.
Ao contrário, na ação executiva, rege o princípio da proporcionalidade da penhora, estando a afetação do património do devedor limitada àqueles bens necessários (leia-se suficientes) à satisfação do crédito (art. 735º, nº3 e 751º nºs 1 e 2 do Cód. de Processo Civil).
Podendo seguramente afirmar-se que, se o credor pode compelir coercivamente o devedor ou devedores ao cumprimento da obrigação, por via da instauração da ação executiva para pagamento de quantia certa, assim vendo integralmente realizado o seu direito, não tem justificação o recurso a outros mecanismos processuais previstos para, em primeira linha, salvaguardar outros interesses, como acontece com o processo de insolvência, em que se trata de salvaguardar o interesse do universo de credores do insolvente em ordem a assegurar, de acordo com o princípio da igualdade de tratamento, o pagamento de todos, na medida do que o património do devedor o consentir.
O legislador conferiu expressamente àquele que se arroga a qualidade de credor, “ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito” a legitimidade para requerer a declaração de insolvência  (art. 20.º, n.º 1), tratando-se de regulação que remete para o campo da legitimidade processual, de cariz adjetivo, aferindo-se em termos similares aos que decorrem do processo civil, ponderando o conceito expresso no art. 30.º [[7]], sendo que a legislação processual civil é subsidiariamente aqui aplicável (art. 17.º, n.º1); exige-se, pois, que o requerente da insolvência alegue a fonte da obrigação da devedora, justificando a origem,natureza e montante do crédito de que se arroga titular[[8]].
Esse pressuposto processual, como os demais, deve ser aferido ponderando a data de instauração da ação e, citado o réu, vigora o princípio da estabilidade da instância, como refere o apelante, com ressalva das “possibilidades de modificação consignadas na lei” (art. 260.º do CPC).
No caso é indiscutível que à data da instauração da ação a requerente gozava de legitimidade para requerer a insolvência da demandada, atenta a relação creditícia invocada na petição inicial, sendo certo que a requerida nem sequer questionou a fonte da obrigação.
O que acontece é que a requerida, ainda que tardiamente, procedeu ao pagamento das quantias devidas realizando a prestação emergente do contrato celebrado com a requerente, com a consequente extinção da obrigação (art. 762.º do Cód. Civil); fixada que se mostra a data de instauração da ação (09-02-2024), a data da citação (21-02-2024) e a(s) data(s) de pagamento da dívida pela requerida (entre 29-02 e 01-03-2024), divergem os intervenientes quanto à sorte da lide em face desse facto superveniente (superveniência objetiva).
O tribunal de primeira instância colocou-se numa perspetiva de direito substantivo que, avança-se já, não é a deste TRL, afigurando-se-nos, ao invés, que a questão se coloca no estrito campo do direito processual/ adjetivo.
Lê-se na decisão, em sede de fundamentação jurídica:
“O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem por finalidade a liquidação de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista no plano de insolvência (artº 1º do CIRE). É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (artº 3º do CIRE)
O art.º 20º, n.º 1, do CIRE dispõe que a insolvência pode ser requerida por qualquer credor, qualquer que seja a natureza do seu crédito, desde que se verifique pelo menos um dos factos ali elencados - também designados de “factos-índice” ou “índices de insolvência”, por indiciarem a inviabilidade económica do devedor.
A doutrina e jurisprudência são atualmente unanimes em  reconhecer que o processo de insolvência visa a realização dos direitos de crédito, não só do credor requerente, mas de todos os restantes credores do devedor, assumindo uma dimensão preventiva, não dependendo da lesão de direitos de crédito e sim de uma previsão de incumprimento, constituindo, a par de uma via de realização de interesses privados, uma via de realização de interesses gerais ou públicos – Vd. Catarina Serra, “O fundamento público do processo de insolvência (…), pp.103-104
“Por tais razões, a faculdade de requerer a declaração de insolvência é igualmente atribuída a sujeitos não titulares de direitos de créditos (ao devedor, por quem seja civilmente Insolvência pessoa coletiva (Requerida) responsável pelas suas dívidas e pelo Ministério público – nº 1 do art. 20º) e, quando se trate de um credor, ele possa requerer o início do processo independentemente do incumprimento, da mora, ou mesmo do vencimento do respetivo crédito.” – Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.03.2020, Relatora: Maria João Areias, in www. dgsi.pt
No entanto, é pressuposto essencial, que pelo menos se detenha a qualidade de credor do requerido. Ao credor só é exigido que proceda à justificação do seu crédito, fazendo corresponder a essa justificação a menção da origem, da natureza e do montante do crédito, o que corresponde a justificar a sua legitimidade processual, ou seja de demonstrar a sua qualidade de credor, que é requisito do seu direito de ação judicial
No presente caso, a Autora/Requerente, num primeiro momento, invocou efectivamente a existência do seu credito e indicou a origem, a natureza e o seu montante do crédito. Acontece que a Requerida, na sua contestação, invocou e demonstrou o pagamento do mesmo, ou seja, o crédito em questão deixou de existir.
Ora, o processo de insolvência, desencadeado por um credor, só tem viabilidade se este vier a justificar o seu crédito. A justificação, assim exigida, constitui um fator de legitimação substantiva, que habilita o requerente a, no prosseguimento do interesse da comunidade dos credores, assumir a iniciativa de suscitar o procedimento insolvencial – neste sentido v.g., entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.11.2011 (Relator: Luís Lameiras), in http://www.dgsi.pt/jrl.
Ora, ponderada a factualidade assente, forçoso é concluir que a Requerente não logrou demonstrar a titularidade do crédito de que se arroga nestes autos visto que o mesmo se extinguiu, entretanto, pelo pagamento, facto que a Requerente não deixa de aceitar.
Tendo a Requerente deixado de ser credora da Requerida, na pendência da acção mas antes da declaração de insolvência, carece a mesma de legitimidade substantiva para prosseguir nos presentes autos e requerer a sua insolvência, pelo que a presente ação tem, necessariamente de improceder e a Requerida de ser absolvida do pedido formulado.
Face ao exposto, afigura-se não estarmos nem perante uma inutilidade superveniente da lide (nem perante uma actuação de má fé por parte da A.), uma vez que o que falece (mas apenas perante o pagamento feito pela R.) é a legitimidade substantiva da Autora, e não a inutilidade da lide”.
Concluiu, então, a 1ª instância, pela improcedência da ação, absolvendo a Requerida do pedido formulado.
Como se avançou, afastamo-nos deste entendimento, ainda que daí não resulte que possa aceitar-se a tese da apelante, expressa nas conclusões de recurso em que, basicamente, entende o facto em causa como inócuo, pretendendo que os autos sejam tramitados, para aferição da situação da devedora, mormente da verificação de algum dos factos- índice tipificados no art. 20.º [[9]] abstraindo-se do referido pagamento, sendo que não se vislumbra que os arestos que cita suportem a interpretação que formula [[10]].
O que está em causa, em primeira linha, é aferir da legitimidade processual do requerente do processo de insolvência para continuar a intervir no processo e não verificar se se justifica, ou não, pronúncia quanto ao decretamento da declaração de insolvência da sociedade devedora, sendo que se trata de questão (legitimidade) que é de conhecimento oficioso, o que significa que, quanto a essa matéria, o tribunal não está vinculado à conformação que as partes dão à instância de insolvência. Daí, aliás, que se concorde com a afirmação da apelante no sentido de que “[a] qualidade de credor – que a Recorrente tinha ao tempo da propositura da acção e citação da Requerida – não é facto constitutivo do seu direito a requerer a insolvência da Requerida”, mas é, decisivamente, pressuposto processual da sua intervenção.
Insiste-se, para além do próprio devedor, estão legitimadas a requerer a declaração de insolvência as entidades indicadas no art. 20.º, nº1, nomeadamente, no que ao caso interessa, “qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”; ou seja, só aquele que se arroga a titularidade de um crédito sobre o devedor tem legitimidade (processual) para requerer a declaração de insolvência, sendo aliás elucidativa a epígrafe do artigo, a saber “[o]utros legitimados”. Donde, se o requerente da insolvência perde, na pendência do processo de insolvência, a qualidade de credor, que tinha à data da propositura da ação, ocorre uma situação de ilegitimidade superveniente para continuar a intervir no processo. Trata-se de situação de facto que ocorre com alguma frequência no âmbito do processo civil [[11]] e que também pode ocorrer no âmbito do processo de insolvência, aqui com especificidades próprias. Assim, a decisão que declara a insolvência do devedor não acarreta o encerramento do processo, não constitui a decisão que põe fim ao processo, com a consequente extinção da instância, pelo julgamento (art. 277.º, alínea a) do CPC), inserindo-se apenas na fase inicial do processo, mais precisamente, a que assume cariz declarativo e, por outro lado, o processo de insolvência, em sentido amplo, abrange não só o chamado processo principal mas ainda todos os seus incidentes e apensos (art. 9.º, nº1), nada obstando a que o facto gerador da ilegitimidade ocorra em momento anterior à prolação da decisão, como aqui aconteceu, assim obviando à apreciação do pedido formulado na petição inicial, ou ocorra posteriormente à prolação da decisão que decretou a insolvência e seja constatado/verificado não no processo principal mas num dos seus apensos     [[12]].
Claramente se perceciona que a pretensão recursiva da apelante não tem cabimento se ponderarmos que, independentemente da aferição que a apelante pretende seja feita, estaria completamente vedada à apelante qualquer intervenção no âmbito do processo, nomeadamente em sede de audiência de julgamento e, por exemplo, no apenso de verificação do passivo, exatamente porque deixou de ter a qualidade que possuía aquando da instauração da ação: em face da finalidade do processo, relativamente à requerente, a pretendida declaração de insolvência deixou de ter qualquer utilidade e a requerente deixou de ser titular da relação controvertida, tal como configurada no requerimento inicial (art. 30.º do CPC).
Ou seja, constatando-se a extinção da obrigação da devedora, pelo pagamento, então impõe-se concluir pela ilegitimidade superveniente do requerente e declarar a mesma, com a consequente absolvição da requerida da instância e não do pedido (arts. 576.º n.ºs 1 e 2 e 577.º alínea e) do CPC), nessa medida se devendo alterar a decisão recorrida.
Nesse contexto, não é viável a continuação da tramitação do processo para se averiguar se a requerida se encontra, ou não, em situação de insolvência, ponderando os critérios identificados pelo legislador no art. 3.º do CIRE pelo que as considerações feitas nas alegações de recurso quanto à ilicitude do comportamento da requerida (cfr. as conclusões M a V) não relevam para a ponderação que os autos exigem, atento o referido facto superveniente.

4.–Nos termos do artigo 607.º, nº6 do CPC “[n]o final da sentença, deve o juiz condenar os responsáveis pelas custas processuais, indicando a proporção da respetiva responsabilidade”, regra que se aplica ao acórdão proferido em sede de recurso de apelação, por força do disposto no art.663.º, nº2 do CPC.
O tribunal de 1ª instância considerou dever responsabilizar a requerente pelo pagamento das custas do processo, convocando o disposto no art. 304.º, preceito que tem como paralelo a regra geral vertida no art. 527.º do CPC, do qual resulta que a condenação em custas se rege pelos princípios da causalidade e da sucumbência.
Entende-se que se justifica alterar esse juízo, ponderando a princípio que ressalta do art. 536.º do mesmo Código e as exigências que presidem à formulação desse juízo de responsabilidade quanto a custas. Efetivamente, foi a requerida quem, procedendo ao pagamento no decurso da ação, cumprindo tardiamente a sua obrigação, potenciou a perda da legitimidade (processual) da sociedade credora requerente para a subsequente tramitação do processo, nessa medida dando causa à decisão de absolvição da instância; o raciocínio que deve presidir à responsabilização das partes em sede de custas, em casos como o dos autos, é similar àquele que está na base da formulação feita pelo legislador no número 3 do art. 536.º do CPC e que temos por aplicável aos autos, por identidade de razões.
*

Pelo exposto, julgando parcialmente procedente a apelação, decide-se alterar a decisão recorrida, absolvendo-se a requerida da instância por ilegitimidade processual superveniente da requerente do processo.
As custas do processo são da responsabilidade da sociedade requerida.
Notifique.


Lisboa, 11-07-2024


Isabel Fonseca
Pedro Brigthon
Fátima Reis Silva



[1]Cfr. o aviso de 29-02-2024.
[2]O cabeçalho do articulado tem o seguinte teor:
“Carpintaria Lagoa da Pedra, Lda., Requerente no processo à margem identificado, notificada que foi da Contestação da Requerida e do douto Despacho (refª 149729916), respondendo afirmativamente ao convite, verificando que ali vem suscitada, nomeadamente, a inutilidade superveniente da lide, bem como a invocação de litigância de má-fé, nos termos do disposto no artigo 3º do Código de Processo Civil (CPC), aplicável ex vi artigo 17º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), vem exercer o contraditório, o que faz com os seguintes”.
[3]Neste sentido vão os Acs. RC de 25/10/2011, processo 1006/10.7TBCVL.C1 (Relator: Henrique Antunes) e de 12/06/2012, processo nº 4541/08.3TBLRA.C1 (Relator: António Beça Pereira), acessíveis in www.dgsi.pt., como todos os demais a que aqui se aludir.   
[4] Processo: 442/15.7T8PVZ.P1.S1 (Relator: Fonseca Ramos).
[5]Que, sob a epígrafe “[f]inalidade do processo de insolvência”, dispõe:
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
[6]Alterou-se, assim, o paradigma, com referência ao CPEREF, onde prevalecia a recuperação da empresa sobre a falência e se privilegiava sempre a recuperação da empresa, sendo a falência um último recurso.
[7]Referem Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora:
“Relativamente ao autor, tem-se entendido que a necessidade de recorrer às vias judiciais, como substractum do interesse processual, não tem de ser uma necessidade absoluta, a única ou a última via aberta para a realização da pretensão formulada. Mas também não bastará para o efeito a necessidade de satisfazer um mero capricho (de vindicta sobre o réu) ou o puro interesse subjectivo (moral, científico ou académico) de obter um pronunciamento judicial. O interesse processual constitui um requisito a meio termo entre os dois tipos de situações. Exige-se, por força dele, uma necessidade justificada, razoável, fundada, de lançar mão do processo ou de fazer prosseguir a acção – mas não mais do que isso” (Manual de Processo Civil, 1984, Coimbra Editora, p.171).
[8]Nesse sentido, cfr. o ac. do TRC de 29-02-2012, processo: 689/11.5TBLSA.C1 (Relator: Henrique Antunes) em que se conclui:
III– No plano do processo de insolvência a legitimidade a que lei se refere é, nitidamente, não a legitimidade substantiva – mas a legitimidade processual, ad causam (artº 20 nº 1 do CIRE). Portanto, essa legitimidade é aferida nos termos gerais (artº 17 do CIRE).
IV– Assim, e de harmonia com esses termos, é de toda a conveniência não confundir legitimidade para pedir ou requerer, com procedência ou mérito do pedido ou requerimento correspondente (artº 26 nºs 1 e 3 do CPC, ex-vi artº 17 do CIRE).
V– Nestas condições, é dotado de legitimidade para requerer a declaração de insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não quem seja, efectivamente, na realidade, credor do demandado.
VI– A questão de saber se o requerente é ou não credor do requerido prende-se com o mérito ou com o fundo da causa e não com a questão da legitimidade ad causam para deduzir o pedido de insolvência, que apenas respeita ao preenchimento de um pressuposto processual positivo e, portanto, a uma excepção dilatória imprópria.
VII– Do mesmo modo, parte legítima no processo de insolvência não é credor e o devedor, mas quem alega ter sido constituída a seu favor uma obrigação e a pessoa que, segundo o requerente, se obrigou - um e outro são partes legítimas.
VIII– Se todavia, vem a apurar-se mais tarde que o primeiro era credor aparente e o segundo devedor suposto, portanto, que na realidade nunca o primeiro fora titular do direito de crédito e nunca o segundo fora o devedor, a consequência é não a absolvição da instância do demandado, por ilegitimidade ad causam do primeiro, mas a absolvição do segundo do pedido”.
[9]Como se sabe e sintetizando, é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (art. 3º nº1) e, no caso das pessoas coletivas, “são também consideradas insolventes quando o seu passivo seja manifestamente superior ao ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis” (número 2 do preceito). Incumbe ao credor requerente do processo – como aqui acontece – o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do seu direito (art. 342º, nº1 do Cod. Civil), subsumíveis ao conceito aludido, cujos contornos estão perfeitamente consolidados na doutrina e jurisprudência. Facilitando essa tarefa o legislador fez, expressamente, consignar os factos-índices elencados nas alíneas a) a h) do nº 1 do artº 20º, assim legitimando (ad substantiam) a demanda pelo credor, factos estes que são presuntivos da aludida insusceptibilidade de cumprimento pontual das obrigações. Nos termos do art. 30º, nº3, “[a] oposição do devedor à declaração de insolvência pretendida pode basear-se na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido formulado ou na inexistência da situação de insolvência”.
[10]Cfr. o acórdão do TRC de 03-03-2020, processo: 3422/19.0T8VIS.C1 (Relatora: Maria João Areias), assim sumariado:
1. O poder de requerer a declaração de insolvência é um poder de ação declarativa, razão pela qual é igualmente atribuído a sujeitos não titulares de direitos de crédito.
2. O que está em causa no nº 1 do artigo 20º do CIRE é a mera legitimidade processual, pelo que, caso se trate de credor, a lei não exige que ele produza prova da qualidade que alega, mas, tão só, que proceda à justificação do crédito, através da menção de origem, da natureza e do montante do crédito.
3. O credor tem legitimidade para requerer a insolvência ainda que não disponha de titulo executivo e ainda que o seu crédito não se encontre vencido.
4. O único pressuposto da declaração de insolvência – requisito necessário e suficiente – é a situação de insolvência, enquanto estado patrimonial do devedor, definida por lei como a “impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas”.
E ainda o acórdão do TRG de 20-05-2021, processo: 186-14TBAMR-H.G1 (Relator: António Sobrinho), assim sumariado:
I–O encerramento do processo de insolvência a pedido do devedor pressupõe que este deixou de se encontrar em situação de insolvência ou que todos os credores prestaram o seu consentimento.
II– A situação de insolvência não desaparece pelo simples facto de existir apenas um único credor reclamante, cujo crédito foi reconhecido e graduado, aguardando o seu pagamento.
III– O processo deve prosseguir para liquidação e pagamento do crédito desse credor, não requerente da insolvência.
IV– A pendência de execução instaurada pelo credor contra o devedor, suspensa pela declaração de insolvência, não constitui causa de extinção da instância insolvimentar”.
[11]Cfr. o acórdão do TRL de 28-06-2018, processo: 78/18.0T8AGH-A. L1-6 (Relator: António Santos), acessível in www.dgsi.pt.
[12]Foi esse o entendimento sufragado, ainda que em diferente contexto, no acórdão deste TRL de 14-11-2023, processo: 822/23.4T8VFX-A.L1-1 (Relator: Isabel Fonseca)  

            Isabel Fonseca).