Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12939/21.5T8LSB.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
PRESSUPOSTOS
CÁLCULO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I – Para que ao lesado que suporta a privação do uso de um veículo automóvel por força dos danos causados por um acidente de viação seja atribuída uma indemnização a esse título, basta que se afira dos autos que o seu proprietário o usaria normalmente, sem necessidade de provar directa e concretamente prejuízos efectivos.
II – Tratando-se de veículo automóvel utilizado como instrumento de trabalho ou no exercício de actividade lucrativa, a existência de um prejuízo material decorre normalmente da simples privação do uso, independentemente da utilização que, em concreto, seria dada ao veículo no período de imobilização.
III – Estando em causa um veículo ligeiro de passageiros utilizado pela proprietária no exercício da sua actividade de TVDE, não se tendo provado, em concreto, quais os valores obtidos com a sua utilização ou os constrangimentos concretamente suportados por via da sua privação, nada obsta a que se atenda, em termos meramente indicativos, aos valores indemnizatórios acordados entre entidades terceiras do sector e, bem assim, ao valor aceite pela própria lesada noutra sede negocial, efectuando uma ponderação equilibrada no conjunto com os demais dados existentes nos autos, concluindo-se pela adequação da fixação do valor indemnizatório diário em 80,00€.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
FUTURE CROWN, LDA., sociedade por quotas com o NIPC 514.463.627, com sede no Largo do Pinheiro, 3-A, Vale Fetal, Freguesia de Charneca e Sobreda, 2820-473 Charneca da Caparica intentou contra CARAVELA – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., com sede na Avenida Casal Ribeiro, 14, 1000-092 Lisboa a presente acção declarativa de condenação, com processo comum formulando o seguinte pedido:
a) A condenação da ré no pagamento à autora da quantia de 21.479,54€, acrescida de juros moratórios, à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da citação e até integral e efectivo pagamento.
Alegou para tanto, muito em síntese, o seguinte, concluindo pela improcedência da acção (cf. Ref. Elect. 29364982):
=>A autora desenvolve a actividade de transporte de passageiros em sistema de TVDE, prestando serviços a variadas plataformas de TVDE[1], para o que possuía o veículo automóvel Toyota Auris Touring Sport Diesel, com a matrícula ..-UQ-.., com o qual prestava serviço às referidas plataformas, de forma constante, até 24 de Julho de 2020, mediante uma remuneração determinada, conforme o acordado com estas;
=> No dia 24 de Julho de 2020, pelas 22 h. e 45 min, em Lisboa, ocorreu um sinistro automóvel que envolveu o referido veículo e um outro, de matrícula ..-..-LX, segurado na ré, cuja condutora não observou o sinal triangular de cedência de prioridade e embateu no veículo UQ, provocando-lhe danos, que determinaram a perda total deste;
=> A partir do sinistro, a autora deixou de realizar qualquer serviço com o referido veículo automóvel e de auferir a remuneração por qualquer serviço;
=> A perda total do veículo foi indemnizada pela Ageas Portugal, com quem a autora celebrou um contrato de seguro por danos próprios, mas os danos decorrentes da impossibilidade de usar o veículo na sua actividade produtiva não foram indemnizados pela sua seguradora por não estarem a coberto da referida apólice;
=> Entre 24 de Julho de 2020 e, pelo menos, o dia 21 de Setembro de 2020 (período de 59 dias), a autora não dispunha de veículo automóvel para trabalhar no âmbito da sua actividade produtiva de transporte de passageiros, o que implicou redução da sua facturação e lucros;
=> A autora solicitou à ré, em 22 de Setembro de 2020 o pagamento do valor diário de 120,00€ entre a data do acidente e a data da conclusão do processo referente ao sinistro, valor que esta não aceitou, solicitando o comprovativo fiscal dos rendimentos, tendo enviado o IES referente a 2019, ano em que facturou o valor de 132.883,06€, no exercício da sua actividade de TVDE, o que equivale a um valor diário de facturação de 364,06€;
=> A ré recusou indemnizar a autora.
A ré seguradora contestou a acção alegando, em síntese, o seguinte (cf. Ref. Elect. 29611840):
* Impugna os factos alegados e atinentes aos danos patrimoniais peticionados;
* O sinistro foi totalmente regularizado no âmbito da Convenção entre seguradoras, denominada IDS (Indemnização Directa ao Segurado), tendo a seguradora Ageas indemnizado directamente a autora de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, incluindo a indemnização correspondente à paralisação/imobilização da viatura pelo período de 18 dias, à razão diária de 61,32€, no valor de 1.103,76€;
* O cálculo apresentado pela autora está incorrecto, porque esta tinha outras viaturas para exercer a sua actividade durante todo o ano de 2020, pelo que não pode peticionar a indemnização como se a facturação tivesse sido reduzida a zero;
* Durante o ano de 2020 a autora não poderia ter a mesma facturação do ano 2019 atenta a pandemia verificada;
* O valor diário peticionado é exagerado em relação ao previsto para veículos automóveis, com a função de transporte de passageiros, em sistema/plataforma de TVDE, a operarem em Portugal, sendo que os valores que a autora tem vindo a reclamar à ré são muito diferentes do agora indicado.
Em 29 de Setembro de 2022 foi dispensada a realização de audiência prévia, foi fixado o objecto do litígio e foram enunciados os temas da prova, tendo sido, desde logo, considerados assentes diversos factos (cf. Ref. Elect. 419022251).
Realizada a audiência de julgamento, em 23 de Fevereiro de 2023 foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, contendo o seguinte dispositivo (cf. Ref. Elect. 422483746):
“a. Condeno a ré CARAVELA – COMPANHIA DE SEGUROS, SA, a pagar à autora, a título de indemnização, a quantia de €2.514,12 (dois mil quinhentos e catorze euros e doze cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa de 4%, devidos desde a presente data;
b. Condeno autora e ré no pagamento das custas do processo, na proporção, para a autora, de 85%.”
Inconformada com tal decisão, veio a autora interpor o presente recurso, cuja motivação concluiu do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 35535585):
I. O presente recurso tem por objecto a douta sentença supra indicada, datada de 23.02.2023, que pôs termo ao processo que, julgando parcialmente procedente a acção, condenou a recorrida no pagamento de uma indemnização de 61,32€ por cada um dos 59 dias de imobilização do veículo sinistrado da autora, a título de lucros cessantes, tendo, ademais, deduzido, ao valor final apurado (3617,88€) o valor de 1103,76€ (valor pago pela seguradora da recorrente a esta, antes da instauração da presente acção).
II. A recorrente não concorda com o valor diário apurado pelo Tribuna a quo, e considera que o mesmo viola os critérios apontados pelo art.º 566.º/3 CC.
III. Com efeito e nos termos do referido preceito normativo, o Tribunal deve fixar a indemnização com recurso a critérios de equidade, “dentro dos limites que tiver por provados” no processo, visto não ser possível a reconstituição natural.
IV. Ficou provado que: a) a recorrente laborou no ano de 2019 e 2020 com 3 veículos automóveis (ponto 23 da matéria assente); b) que, no ano de 2019, a recorrente obteve rendimentos brutos de 132.883,96€ (ponto 24 da matéria assente); c) que desde 24.07.2020 a recorrente deixou de realizar qualquer serviço com o veículo sinistrado (ponto 9 da matéria assente); d) em 21.09.2020 a recorrente aceitou a indemnização pela perda total do veículo.
V. O Tribunal a quo considerou assim 59 dias de imobilização e de consequente perda de lucros com a actividade da recorrente, mas não deu, aos demais pontos assentes, o tratamento imposto pelo art.º 566.º/3 CC.
VI. Com efeito e de acordo com os limites dados como provados nos autos, o Tribunal a quo deveria ter considerado que o valor diário, a título de lucros cessantes, equitativamente mais acertado, corresponderá ao resultado da divisão do valor de 132.883,96€ por 365 dias do ano, o que perfaz o valor de 364,06€;
VII. E, tendo considerado que tal valor era manifestamente superior ao devido, deveria o Tribunal a quo ter dividido tal valor pelo número de veículos que considerou que a recorrente tinha à sua disposição, i.e., 3 veículos, o que daria o valor de 121,35€,
VIII. E, seguidamente, multiplicado tal valor pelo número de dias de imobilização, i.e., 59 dias, o que perfaz o valor de 7.159,65€.
IX. Por outro lado, não deveria o Tribunal a quo ter considerado que o ano de 2020 (ano em que se iniciou a pandemia de Covid-19) se caracterizou por uma contracção acentuada na actividade na área dos transportes;
X. Com efeito, sendo notória a verificação da pandemia de Covid-19, também é notório que a actividade de transporte de passageiros em regime de TVDE (que era a actividade da recorrente, cfr. ponto 4 da matéria assente) não sofreu restrições impostas pelos órgãos de soberania; e que a actividade da recorrente, conforme descrita no ponto 4 da matéria assente, consiste em transporte de passageiros em regime de TVDE em automóveis ligeiros, o que significa que consistia em transporte individual (e não colectivo);
XI. As restrições impostas na sequência do surgimento da pandemia visavam evitar contactos entre os cidadãos, de modo a evitar a propagação do vírus; ora, tais restrições eram mais visíveis na área dos transportes colectivos (com o distanciamento social), o que impulsionou a utilização, pelos cidadãos, de transportes individuais – e tal circunstância é igualmente notória, devendo ser tomada em linha de conta na decisão (cfr. art.º 412.º/1 e 2 do CPC).
XII. Foram violados os art.º 566.º/3 do CC (porquanto o Tribunal a quo não observou os parâmetros aí indicados na fixação do montante diário da indemnização) e o art.º 412.º/1 e 2 do CPC.
XIII. Pelo que deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que determine a procedência parcial da acção, com a fixação do valor indemnizatório diário no valor mínimo de 121,35€,
XIV. E, neste segundo caso, ser a recorrida condenada no pagamento da indemnização de 7.159,65€.
A ré/recorrida contra-alegou pugnando pela manutenção da decisão recorrida (cf. Ref. Elect. 35874631).
*
II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[2], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, pág. 135.
Em face das alegações da recorrente há que apreciar, tão-somente, a adequação do valor atribuído a título de indemnização pela privação do uso do veículo sinistrado.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
III – FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Foram dados como provados os seguintes factos:
1. A autora é uma sociedade comercial por quotas, cujo objecto social compreende, entre outras, o transporte ocasional de passageiros em veículos ligeiros e actividades auxiliares dos transportes terrestres (artigos 1.º e 2.º da petição inicial e certidão permanente junta com a petição inicial, artigo 40.º da contestação).
2. A autora é titular da licença n.º 11275/2019, válida até 09.01.2029, emitida pelo IMT, IP, que lhe confere o direito de operador de transporte em veículo descaracterizado (artigo 5.º da petição inicial, documento n.º 4 junto com a petição inicial, artigo 40.º da contestação).
3. O veículo com a matrícula ..-UQ-.. foi adquirido pela autora com reserva de propriedade a favor do Banco BPI, SA (artigo 9.º da petição inicial, documento n.º 2 junto com a petição inicial, artigo 40.º da contestação).
4. A autora afectava o veículo com a matrícula ..-UQ-.. à actividade de transporte de passageiros em sistema de TVDE, em diferentes plataformas de TVDE (artigos 4.º e 6.º da petição inicial).
5. A autora havia celebrado com a seguradora AGEAS Portugal Companhia de Seguros, SA, um seguro de responsabilidade civil automóvel referente a um grupo de veículos (em que se integrava o referido veículo), tendo a apólice o n.º 0045.11.887332, válida entre os dias 31.03.2020 e 29.08.2020 (artigo 10.º da petição inicial, documento n.º 5 junto com a petição inicial, artigo 40.º da contestação).
6. No dia 24.07.2020, pelas 22h45, na Estrada da Pimenteira, Monsanto, Lisboa, ocorreu um sinistro automóvel que envolveu o referido veículo da ..-UQ-.. e um outro, de matrícula ..-..-LX, de marca Renault, tripulado por SP (artigo 11.º da petição inicial, artigo 40.º da contestação).
7. O referido acidente de viação ficou a dever-se exclusivamente à segurada da ré (artigo 16.º da petição inicial, artigo 40.º da contestação).
8. Em virtude do referido acidente de viação, o veículo ..-UQ-.. sofreu danos que determinaram a sua perda total (artigo 13.º da petição inicial, artigo 40.º da contestação).
9. Desde a referida data (24.07.2020) a autora deixou de realizar qualquer serviço com o veículo ..-UQ-.. (artigo 17.º da petição inicial).
10. O veículo ..-..-LX, à data do sinistro encontrava-se segurado na ré, com o n.º de apólice 9000981407/20, carta verde n.º 1335725798/20 (artigo 14.º da petição inicial, artigo 40.º da contestação).
11. A perda total do veículo ..-UQ-.. foi exclusivamente assumida pela Ageas Portugal (artigo 19.º da petição inicial, artigo 40.º da contestação).
12. No dia 21.09.2020 a Ageas Portugal apresentou à autora uma proposta indemnizatória pela perda total do veículo, que esta aceitou, considerando-se assim ressarcida, nessa data, pela perda do veículo em questão (artigo 20.º da petição inicial, artigo 40.º da contestação).
13. Em 22.09.2020, a autora solicitou, por escrito, à ré o pagamento do valor diário de €120,00 entre a data do acidente e a data da conclusão do processo referente ao sinistro, tendo computado o valor total de €7.080,00, que corresponde a €120,00 x 59 dias (artigo 25.º da petição inicial e artigo 40.º da contestação).
14. Por mensagem de correio electrónico remetida em 02.10.2020 a ré solicitou à autora “comprovativos fiscais relativos aos rendimentos” (artigo 26.º da petição inicial).
15. A autora remeteu à ré, por mensagem de correio electrónico de 09.10.2020, a declaração da Informação Empresarial Simplificada referente a 2019 (artigo 27.º da petição inicial).
16. A autora remeteu à ré, por mensagem de correio electrónico de 23.10.2020, uma comunicação com o seguinte teor: “Na sequência do nosso email de 9 de outubro de 2020 que incluía em anexo, o comprovativo fiscal dos rendimentos que foi solicitado por V. Exas, vimos por este meio solicitar a inclusão na indemnização o período que V. Exas necessitam para analisar o processo, bem como o ajusto dos valores da indemnização de acordo com os valores comprovados pela declaração fiscal, conforme implicitamente sugerido por V. Exas.” (artigo 31.º da petição inicial).
17. A ré comunicou à autora, em 28.10.2020, que havia existido ressarcimento dos danos referentes a despesas relativas à imobilização da viatura pelo período preconizado, pelo que não iriam aceder à pretensão da autora (artigo 32.º da petição inicial, artigo 40.º da contestação).
18. A autora remeteu à ré, por mensagem de correio electrónico de 29.10.2020, uma comunicação com o seguinte teor:
“Exmos. Senhores,
Ainda na dúvida se V.Exas. estão equivocados ou pretendem criar o equívoco, aproveito para esclarecer que efectivamente a Ageas não indemnizou os prejuízos de lucros cessantes por consequência da paralisação do veículo.
Trata-se de um veículo que faz serviço de transporte de passageiros descaracterizado e o prejuízo de não exercer a actividade reflecte-se nos lucros cessantes reclamados a V.Exas.
Foi por este motivo que V.Exas. Solicitaram os documentos fiscais para aferir o valor diário de prejuízo de acordo com a declaração fiscal, que são os valores que aceitamos (por vossa sugestão) como correctos para cálculo da indemnização.
Certamente é do vosso conhecimento que “lucros cessantes” e “viatura de cortesia” não são o mesmo, até porque o veículo habilitado e licenciado para exercer a actividade não é substituível por aluguer temporário. Desta forma, insistimos na indemnização dos lucros cessantes referentes a paralisação consequente do acidente com responsabilidade do vosso segurado, pelo V.Exas. já tem em vosso poder os valores de facturação do veículo declarados para tributação fiscal.
Aguarda-se resposta com a máxima urgência, a fim de não onerar muito mais a indemnização devida por V.Exas., pois como também é do vosso conhecimento está a aumentar diariamente até à conclusão do processo.” (artigo 33.º da petição inicial).
19. A ré remeteu à autora, por mensagem de correio electrónico de 13.11.2020, uma comunicação com o seguinte teor:
“Analisada a documentação em apreço, informamos não podermos considerar a mesma para o efeito pretendido, na medida em que esta se refere ao ano de 2019, ano particularmente diferente do que actualmente estamos a viver. Por outro lado, o âmbito da referida declaração é de tal forma tão subjectivo que no mesmo não se consegue depreender qual o valor facturado pelo veículo em apreço.
Desta forma, dado que essa declaração não demonstra qualquer perda quanto ao período em causa, desde já informamos não podermos considerar a mesma para efeito de prova do montante peticionado.
Relativamente ao período em apreciação, que V. Exª. estima em 59 dias. Se por um lado não nos poderemos pronunciar quanto a tamanha dilação de tempo, não sendo da nossa responsabilidade a gestão do sinistro como sabe, estranhamos ter encetado acordo com a nossa Congénere pela imobilização do veículo em causa, considerando um período bastante inferior, salientando também que poderia ter sido efectuado aluguer de viatura no intuito de mitigar a falta do veículo.
Desta forma, lamentamos informar que atento todo o exposto não poderemos aceder ao pretendido, sendo que recusamos por este meio qualquer responsabilidade pelos danos alegados mas não provados.” (artigo 34.º da petição inicial).
20. A autora remeteu à ré, por mensagem de correio electrónico de 19.11.2020, uma comunicação com o seguinte teor:
“No seguimento das comunicações anteriores, informa-se que o IES2019 é o documento mais actualizado que foi solicitado pro V.Exas. como referência para a indemnização devida por V.Exas.
Quanto a subjectividade do documento, tratando-se do documento oficial, é o mais objectivo e inequívoco para aferir o valor a indemnizar, tanto que foi sugerido por V.Exas. como referência.
Desta forma e no sentido de facilitar e ajudar a vossa análise, o valor de facturação anual indicado no documento pode ser dividido pelo número de dias do ano e obtém-se o valor médio diário que V. Exas. sugeriram para indemnização e que efectivamente concordamos.
Afirmam V. Exas, que o documento oficial não espelha devidamente o prejuízo face ao período homólogo, discordamos e até reiteramos que é o único documento que efetivamente espelha os valores facturados.
O período referido para o cálculo da indemnização para os prejuízos de lucros cessantes está documentado e é o período desde a data do acidente até à data de conclusão do processo de sinistro automóvel, pelo que V. Exas. poderão aferir devidamente junto da congénere.
Também é certamente do vosso conhecimento que não é possível a substituição por um veículo de aluguer por não reunir a condições legalmente exigidas para o exercício da actividade, das quais se destacam a obrigatoriedade do veículo ser propriedade da empresa e de estar garantido pela apólice de seguro o transporte remunerado de passageiros.
É com surpresa que textualmente V. Exas. recusam a vossa responsabilidade prevista na legislação actual.
Também é surpreendente que V. Exas. rejeitem a legitimidade do documento oficial solicitado por V. Exas. e que faz prova do prejuízo de lucros cessantes.
No sentido de vos facilitar o cálculo e perante a evidente dificuldade de V. Exas. em aferir o valor diário de indemnização, informa-se que o valor médio diário é 364,06€, que multiplicando pelos 59 dias que demorou a conclusão do processo de sinistro automóvel, faz o total de 21.479,54€.
Mais se informa que este valor está a aumentar diariamente até V. Exas, concluírem efectivamente este processo com o pagamento da indemnização devida, que desde a conclusão do processo de sinistro automóvel até à presente data já passaram mais 59 dias, a somar ao período de gestão do processo de sinistro automóvel, o que faz o total 42.259,08€, até a presente data.” (artigo 36.º da petição inicial).
21. A ré remeteu à autora, por mensagem de correio electrónico de 05.01.2021, uma comunicação com o seguinte teor: “Analisado o teor do vosso mais recente pedido de indemnização, informamos reiteramos na íntegra a nossa recusa na medida em que não existe fundamento legal que o justifique. Mais informamos que já procedemos ao encerramento do nosso processo.” (artigo 37.º da petição inicial).
22. A Ageas Portugal, com quem a autora havia contratado a cobertura facultativa de “privação de uso”, liquidou, no dia 15.10.2020, a favor da autora, o valor de €1.103,76 € devidos por tal privação (artigos 58.º e 60.º da contestação, requerimento da autora de ref.ª 31069350).
23. Nos anos 2019 e 2020 a autora utilizava para o exercício da sua actividade, além do referido veículo com a matrícula 19-UQ-16, os veículos com as matrículas ..-VM-.. e ..-XG-.. (artigos 77.º, 79.º e 80.º da contestação).
24. No exercício de 2019 a autora obteve, por prestação de serviços, rendimentos brutos no valor de €132.883,96 (artigo 27.º da petição inicial).
*
O Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos:
A. Entre 24.07.2020 e, pelo menos, o dia 21.09.2020, a autora não dispusesse de veículo automóvel para desenvolver sua actividade de transporte de passageiros (artigo 23.º da petição inicial).
B. No ano de 2020 a autora utilizava para o exercício da sua actividade o veículo com a matrícula AH-..-.. (artigos 77.º e 78.º da contestação).
*
3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
A questão que cumpre apreciar, como se referiu, é a de saber se o valor encontrado pela 1ª instância para indemnizar a autora pela privação do uso do veículo com a matrícula ..-UQ-.., que sofreu perda total na sequência do sinistro ocorrido no dia 24 de Julho de 2020 é o adequado.
A decisão recorrida considerou que a autora não logrou demonstrar, em concreto, os proveitos que deixou de auferir por via da privação do uso do referido veículo, mas demonstrou que o utilizava no exercício da sua actividade comercial, juntamente com outros veículos que afectava à actividade de TVDE, concluindo não existirem dúvidas quanto à verificação do dano decorrente da privação do uso do automóvel, que deve ser ressarcido, para o que importava determinar o tempo de privação e o valor diário indemnizatório por cada dia apurado, tendo considerado como tempo de privação o período de 59 dias e, recorrendo à equidade, fixou o valor indemnizatório diário em 61,32€, atribuindo uma indemnização total de 3.617,88€, a que descontou o valor de 1.103,76€, já recebido pela autora, condenando a ré no pagamento da quantia de 2.514,12€.
A autora/apelante não vem colocar em crise o período de privação do uso que foi atendido pela 1ª instância, mas sim o valor indemnizatório diário fixado.
Argumentando que o tribunal recorrido não atendeu ao valor diário por si proposto de 364,06€[3] por ter considerado que a recorrente possuía outros dois veículos para exercer essa mesma actividade, a recorrente entende que o valor indemnizatório diário deveria ser apurado com base no valor da facturação de 2019, a dividir por 365 dias e por três veículos, obtendo um valor diário de 121,35€ e uma quantia total de 7.159,65€; mais refere que não podia o Tribunal recorrido ter invocado a verificação da pandemia no ano de 2020 para reduzir esse valor, pois que não ficou demonstrado que tenha existido diminuição acentuada da actividade nos transportes, menos ainda na actividade da recorrente, que permite o transporte individual de passageiros; refere ainda que o valor de 61,32€ foi o utilizado no âmbito da indemnização pela privação de uso que recebeu da sua própria seguradora, sendo que em Setembro de 2020 a recorrente já havia pedido à ré que pagasse o valor diário de 120,00€.
Por sua vez, a seguradora/recorrida contra-alegou declarando aceitar a decisão recorrida e opondo-se à modificação visada pela apelante com os mesmos argumentos invocados na sua contestação, seja quanto à inviabilidade de se atender à facturação do ano de 2019, seja por considerar o valor indicativo que resulta do Acordo de Paralisação celebrado entre a AEO-TVDE – Associação Empresarial de Operadores de TVDE e a Associação Portuguesa de Seguradores e ainda em face dos valores que têm vindo a ser fixados pela jurisprudência.
Assente que está nos autos que a ré é responsável pela reparação dos prejuízos causados à autora, emergentes da colisão de veículos vertida no elenco factual apurado, entre eles o dano de privação do uso do veículo, está apenas em discussão o montante indemnizatório diário fixado.
O dever de indemnizar a cargo do lesante, representa, para este, a imposição de actuar no sentido de colocar o lesado na situação em que estaria, na altura em que é julgada a acção, se não fora a ocorrência do facto danoso (art.º 562º do Código Civil). O conteúdo da obrigação de indemnizar reconduz-se, pois, a reparar o prejuízo sofrido por outrem, na sua esfera jurídica.
O dano é “o prejuízo que em consequência de um acontecimento ou evento determinado sofre uma pessoa, quer nos seus bens vitais naturais, quer na sua propriedade ou no seu património”, pelo que se podem identificar, como resultantes de um mesmo facto, danos patrimoniais e danos não patrimoniais – cf. Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, vol. III, 1993, pág. 32.
No âmbito da obrigação de indemnizar vigora o princípio da reconstituição natural - “reintegração na forma específica” (cf. art.ºs 562º e 566º, n.º 1 do Código Civil) -, que só deve ser postergado quando não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Deste modo, o montante da indemnização deve corresponder aos danos causados, sendo que essa indemnização visa, antes de mais, a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o resultado que obriga à reparação (reconstituição natural) ou, não sendo isso possível, a indemnização deverá ser fixada em dinheiro.
Em caso de indemnização em dinheiro, deverá atender-se à diferença entre a situação do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data, se não existissem danos, considerando, ainda, os demais critérios que vertidos nos artigos 564º a 566º do Código Civil.
Resulta do disposto no art.º 564º, n.º 1 do Código Civil que o dever de indemnizar abrange o prejuízo causado (dano emergente) e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão sofrida (lucro cessante).
“O dano é perspectivado, na reconstituição natural, como destruição ou alteração de bens e na reconstituição por equivalente (indemnização em dinheiro) por diferença de valores no património, mas ambas as formas de reconstituição visam manter intacto o património do lesado tal como estaria hipoteticamente se não se tivesse verificado o facto causador do dano” - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Évora 12-02-1998, CJ 1998, I, 270; no mesmo sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-05-1998, CJ (STJ) 1998, II; 69.
Não estando colocado em crise o reconhecimento efectuado pela 1ª instância quanto à ressarcibilidade, no caso concreto, do dano de privação do veículo UQ, cumpre apenas notar que a jurisprudência maioritária, não obstante as diversas posições já configuradas[4], vem adoptando o entendimento de que a simples privação do gozo, por si só, constitui um dano indemnizável, enquanto concreta e real desvantagem dela resultante.
Não tendo a autora logrado demonstrar os concretos benefícios que deixou de obter, ou seja, os lucros cessantes a que alude o art.º 564º, n.º 1 do Código Civil, há que compensar o prejuízo causado, ou seja, os danos emergentes, sendo que a avaliação do prejuízo patrimonial e a atribuição de compensação terá de ser efectuada com base nas circunstâncias factuais concretamente apuradas e por recurso às regras da equidade, de forma a obter-se uma decisão justa.
Assim, provando-se a existência de prejuízos efectivos decorrentes da imobilização de um veículo, designadamente por causa de actividades que deixaram de ser exercidas, de receitas que deixaram de ser auferidas ou de despesas acrescidas, terá o lesado o direito de indemnização de acordo com a aplicação directa da teoria da diferença, considerando não apenas os danos emergentes como ainda os lucros cessantes; tratando-se de veículo automóvel de pessoa singular ou de empresa utilizado como instrumento de trabalho ou no exercício de actividade lucrativa, a existência de um prejuízo material decorre normalmente da simples privação do uso, independentemente da utilização que, em concreto, seria dada ao veículo no período de imobilização, ainda que o veículo tenha sido substituído por outro de reserva; quando se trate de veículo em relação ao qual não exista prova de qualquer utilização lucrativa, não está afastada a ressarcibilidade dos danos, tendo em conta a mera indisponibilidade do bem, sem embargo de, quanto aos lucros cessantes, se apurar que a paralisação nenhum prejuízo relevante determinou – cf. António dos Santos Abrantes Geraldes, in Temas da Responsabilidade Civil, I Vol. – Indemnização do Dano da Privação do Uso Almedina, Coimbra, 2ª Ed., 2005, p. 27 e ss. apud acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-12-2019, processo n.º 3088/19.7YRLSB-2[5].
Em qualquer das situações, sem prejuízo do recurso à equidade ou mesmo à condenação genérica, a quantificação tanto dos danos emergentes como dos lucros cessantes será feita tomando em consideração todas as circunstâncias que rodearam o evento, nomeadamente a natureza, o valor e utilidade do veículo, os reflexos negativos na esfera do lesado, o aumento das despesas ou a redução das receitas.
Face aos factos descritos sob os pontos 9. e 12. da matéria de facto não sobram dúvidas que a autora ficou privada do uso do veículo desde a data do acidente até à data da atribuição da indemnização pela sua perda total, pelo que durante esse período suportou a perda das utilidades que aquele lhe podia proporcionar, sem que tal perda tenha sido reparada mediante reconstituição natural, pelo que deve ser compensada pelo valor equivalente.
A questão, pois, que aqui se coloca é a da avaliação monetária do dano autónomo da privação do uso, perante uma situação em que não foi efectuada prova dos concretos danos decorrentes da paralisação do veículo, não sendo possível a aplicação dos critérios previstos no art.º 566º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil.
Tal como se decidiu na 1ª instância, impõe-se o recurso à equidade – cf. art.º 566º, n.º 3 do Código Civil.
Os tribunais só podem resolver segundo a equidade quando haja disposição legal que o permita, quando haja acordo das partes e a relação jurídica não seja indisponível ou quando as partes tenham previamente convencionado o recurso à equidade, nos termos aplicáveis à cláusula compromissória – cf. art.º 4º do Código Civil
Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, quando se considera a equidade como fonte (mediata) de direito, tal significa que passam a ter força especial as razões de conveniência, de oportunidade, de justiça concreta, em que aquela se baseia, ou seja, significa que o julgador não está, nesses casos, subordinado aos critérios normativos fixados na lei – cf. Código Civil Anotado, Volume I 4ª Edição Revista e Actualizada, pp. 54-55.
A equidade é a justiça do caso concreto, mas sem que com esta afirmação se pretenda abdicar do Direito. O juiz não decide arbitrariamente. Atenderá ao Direito positivo, ponderando todas as regras aplicáveis no âmbito da responsabilidade civil e apenas quanto ao cálculo fará uma estimativa adequada – cf. António Menezes Cordeiro e A. Barreto Menezes Cordeiro, in Código Civil Comentado II – Das Obrigações em Geral, CIDP 2021, pág. 582.
Como refere António Menezes Cordeiro, in Código Civil Comentado I – Parte Geral CIDP 2020, pág. 88:
“A equidade não é arbítrio: parte sempre do Direito positivo, expressão histórica máxima da justiça. Mas ela alija determinados elementos técnicos e formais que apenas se justificam perante as exigências de normalização estadual. É, assim, possível fazer apelo ao razoável, ao equilíbrio entre as partes e à justa repartição de encargos. De modo paralelo, afastam-se os obstáculos formais ou os argumentos hábeis, mas, predominantemente, técnico-jurídicos, procurando antes ponderar os interesses globais das partes, isto é, a sua situação como um todo. A equidade dispensa, ainda, demonstrações matemáticas.”
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2019, processo n.º 1087/14.4T8CHV.G1.S1, citando Castanheira Neves, “quando se faz apelo a critérios de equidade, pretende-se encontrar somente aquilo que, no caso concreto, pode ser a solução mais justa; a equidade está assim limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal. Por isso se entende que a equidade é sempre uma forma de justiça. A equidade é a resposta àquelas perguntas em que está em causa o que é justo ou o que é mais justo. ... A equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um elemento essencial da juridicidade. ... A equidade é, pois, a expressão da justiça num dado caso concreto.”
Estando em causa um critério de equidade, a indemnização arbitrada apenas deve ser alterada quando afronte manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-5-2010, processo n.º 408/2002.P1.S1 – “O juízo de equidade das instâncias, assente numa ponderação, prudencial e casuística das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida – se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade”; e de 21-01- 2016, processo 1021/11.3TBABT.E1.S1 -“Não poderá deixar se ter-se em consideração que tal juízo de equidade das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade – muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade.”
A decisão recorrida efectuou a seguinte análise e ponderação para efeitos de fixação do valor alcançado:
“A fixação de um valor com recurso a juízos de equidade pressupõe, assim, desde logo, a ponderação de todos os elementos do caso concreto, mas também a consideração dos valores jurisprudenciais atribuídos em casos semelhantes, aliás nos termos determinados pela norma contida no n.º 3 do artigo 8.º do Código Civil (Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito), num iter decisório que as partes possam acompanhar e sindicar.
Assim, como refere Abrantes Geraldes (Temas da Responsabilidade Civil, vol. I, Indemnização do dano da privação do uso, 2.ª ed., p. 71), sendo “inatingível a determinação com rigor matemático (…) do valor dos prejuízos (…) basta que o tribunal se oriente através dos traços largos conferidos pela figura da equidade, ponderando as circunstâncias que o processo ou as regras de experiência revelem. (…)”. Para tanto, a quantificação dos danos “será feita tomando em consideração todas as circunstâncias que rodearam o evento, nomeadamente a natureza, o valor ou a utilidade do veículo, os reflexos negativos na esfera do lesado ou o aumento das despesas ou a redução das receitas” (cit., pp. 72 e 73).
No caso vertente, demonstrou-se então que a autora utilizava o veículo de que se viu privada no exercício da sua atividade comercial (n.º 4). Demonstrou-se, também, que a autora tinha na sua frota outros veículos que afetava à atividade de TVDE (n.º 23) e que, no exercício anterior ao dos factos aqui em apreço (2019) obteve rendimentos brutos de €132.883,96 (n.º 24).
Pretende a autora que este montante seja o considerado para efeitos de fixação do montante indemnizatório diário (132.883,96 / 365 = 364,06 x 59).
Porém, tal não solução não se afigura minimamente razoável. Desde logo, e como salienta a ré, porque não é possível imputar o montante anual apenas ao veículo aqui em causa nos autos, quando a autora tinha – como se demonstrou – outros veículos na sua frota a operar tanto em 2019 como em 2020. Ademais, e como também salienta a ré, porque o resultado do exercício de 2019 não pode ser replicado – nem mesmo hipoteticamente – em 2020, ano em que eclodiu a pandemia por Covid-19, com repercussões muito significativas na generalidade dos setores económicos e, nomeadamente, com uma contração acentuada na atividade na área dos transportes. Não seria aceitável, então, considerar o valor de vendas em 2019 e, sem mais, projetá-lo em 2020.
Na procura de um montante equitativo pode considerar-se, como mero indicador, o valor estabelecido no acordo firmado entre a Associação Portuguesa de Seguradores e a Associação Empresarial de Operadores de TVDE (documento n.º 7 junto com a contestação). Com efeito, pese embora tal acordo não seja aplicável nos autos (desde logo, por ser posterior aos factos aqui em causa), podem os valores ali previstos funcionar como indicadores a considerar – para um veículo ligeiro de passageiro até cinco lugares, o montante diário previsto é de €57,08 ou €96,28, consoante o veículo esteja afeto a um ou a dois turnos.
Ainda como forma de fornecer valores indicativos, refira-se o acordo celebrado entre a Associação Portuguesa de Seguradores e a ANTRAL (Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros), que prevê o mesmo montante diário de €57,08 ou de €96,28, consoante o veículo estivesse afeto à realização de um ou de dois turnos diários.
Procurando o entendimento jurisprudencial quanto à razoabilidade do quantum indemnizatório, verifica-se que no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 06.10.2022 (rel. Cristina Lourenço) se considerou o quantitativo diário de €20,00 pela indemnização da privação de uso de veículo utilizado na atividade de TVDE segurado pelo valor de €31.786,51. Relativamente à congruência dos valores fixados pela jurisprudência, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 27.02.2020 (rel. Joaquim Boavida), ainda que no âmbito de veículo pesado de mercadorias, sublinha que “se no que respeita aos automóveis de uso particular já hoje não se fixam indemnizações por privação do uso inferiores a €10,00 por dia de paralisação, no que respeita aos veículos de uso profissional, as indemnizações são substancialmente superiores.”.
Considerando tudo o que acima se expôs, tendo presente os valores protocolados pelas associações de profissionais do setor (sendo certo que nada se alegou nem demonstrou quanto ao número de turnos efetuados pelo veículo em causa), atendendo aos valores brutos obtidos pela autora no ano anterior, levando em conta que esses proventos foram obtidos com mais do que um veículo automóvel e num ano pré-pandemia, e pesando ainda os critérios jurisprudenciais mencionados, considera-se como razoável e adequado o quantitativo diário de €61,32 que foi utilizado para cálculo da quantia indemnizatória que a autora já recebeu.
Fixa-se, assim, em €61,32 (sessenta e um euros e trinta e dois cêntimos) o valor diário a compensar à autora por cada dia em que esta se viu privada da utilização do seu veículo automóvel de matrícula ..-UQ-...”
Não se pode deixar de reconhecer que a 1ª instância tocou todos os parâmetros atendíveis no caso concreto, refutando o valor proposto pela autora face não só à existência de outros veículos que aquela utilizava para obter a facturação alcançada no ano de 2019, como relevando a inviabilidade de a projectar no ano de 2020, tout court, por ser de admitir uma redução na actividade atenta a pandemia causada pela doença Covid-19, assim como tomou em conta os valores constantes das tabelas aprovadas pelos acordos estabelecidos entre a Associação Portuguesa de Seguradores e a Associação Empresarial de Operadores de TVDE e entre a primeira e a ANTRAL - Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros e, bem assim, os valores aplicados pela jurisprudência mais recente.
No que diz respeito ao facto de a decisão recorrida ter afastado o método de cálculo peticionado pela autora, considerando o valor da facturação de 2019 a dividir pelos 365 dias do ano, obtendo o valor diário de 364,06€, fazendo-o com o argumento de que esse valor não poderia ser imputado apenas à utilização do veículo UQ, está, efectivamente, demonstrado que a recorrente possuía outros veículos na sua frota (cf. ponto 23. dos factos provados) e é a própria apelante a dar conta que não ficou provado que não dispusesse de outros[6], pelo que, sabendo-se que dispunha de pelo menos dois, nunca poderia ser aquele o valor diário a considerar, pelo que nada há a apontar quanto ao afastamento desse critério.
De todo o modo, também não se afigura adequado dividir o montante assim obtido por três para imputar cada parcela à utilização de cada um dos veículos, pois que, como se disse, não está provado que fossem apenas e só os dois veículos referidos no ponto 23. que integravam, no ano de 2019, a frota da autora.
Mas, mais do que isso, como bem se salientou na decisão recorrida, não se pode projectar o valor da facturação de 2019 em 2020, pois que constitui facto notório (cf. art.º 412º, n.º 1 do CPC), que a pandemia verificada nesse ano afectou transversalmente toda a sociedade, nos seus múltiplos aspectos, reflectindo-se negativamente na actividade económica, ainda que tal repercussão não tenha sido igual em todas as actividades, mas tendo tido, sem sombra de dúvida, impacto também no desenvolvimento desta actividade em concreto, aliás, como pode ser constatado no relatório final de Avaliação do Regime TVDE de 28-12-2021, do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, IP[7] e, desde logo, por força do dever geral de recolhimento domiciliário imposto[8], que necessariamente implicou uma reduzida circulação de pessoas, com inerente repercussão na actividade de transporte.
Assim, a pretensão de definir a medida da indemnização pela privação de uso da viatura, com base ou apenas, através da ficção da manutenção da rentabilidade proporcionada pela sua exploração no ano de 2019, em condições claramente diversas das verificadas em 2020, não pode ser acolhida – cf. neste sentido, ainda que em situação diversa, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-12-2012, processo n.º 549/05.9TBCBR-A.C1.S1.
Significa isto que a consideração do valor da facturação de 2019, ainda que possa funcionar como mais um critério de referência, não constitui pressuposto matematicamente exacto para definir o prejuízo causado à autora em virtude da impossibilidade de utilização do veículo UQ no desenvolvimento da sua actividade durante os 59 dias que relevam para efeitos de atribuição da indemnização.
Por outro lado, ainda que os factos não revelem, de todo, qual o âmbito da utilização do veículo UQ efectuada pela autora, designadamente, durante quantas horas ou turnos era utilizado diariamente na sua actividade, não se pode deixar de tomar como aceitável a consideração, em termos meramente indicativos, tal como foi considerado na decisão recorrida, os valores estabelecidos nos acordos firmados entre Associação Portuguesa de Seguradores e a Associação Empresarial de Operadores de TVDE e a ANTRAL - Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros para efeitos de indemnização a atribuir em caso de paralisação de viaturas decorrente de sinistros rodoviários, e ainda que tais acordos vinculem apenas as seguradoras e as empresas associadas – não estando provado que a autora seja uma delas -, não sendo, como é evidente, vinculativos para o Tribunal.
Contudo, à míngua de outros dados objectivos, a consideração desses valores, conjugados com os demais elementos que se possam extrair da factualidade apurada, terá, certamente, a virtualidade de auxiliar na definição do montante diário indemnizatório mais adequado à situação concreta.
Tendo presente a escassa factualidade apurada quanto à utilização que, em concreto, era dada ao veículo UQ, mas sabendo-se que este estava afectado à actividade de transporte de passageiros em sistema TVDE, em diferentes plataformas e que, também ele, contribuiu para a facturação verificada no ano de 2019 e não deixando de atender que terá existido necessariamente uma redução nessa actividade no ano de 2020, período em que se situa o lapso temporal da paralisação, ponderando também os valores indemnizatórios acordados por terceiros que actuam no mesmo sector e, bem assim, o valor que a autora aceitou no contexto do contrato de seguro que celebrou com a Ageas Portugal - que se cifrou no total de 1.103,76€, por 18 dias de paralisação, o que corresponde a 61,32€ diários -, não se pode deixar, contudo, de classificar como parca a indemnização arbitrada.
Mesmo considerando que o valor arbitrado é ligeiramente superior aos valores constantes das tabelas acima mencionadas para as situações em que o veículo efectuava apenas um turno[9] e que a parte, em sede de negociação com a sua seguradora, entendeu tal valor como adequado para efeitos de ressarcimento do prejuízo causado pela privação do uso do veículo durante o período de 18 dias, não se pode deixar de considerar que se trata de um montante escasso no contexto da aplicação de um juízo de equidade, em que sobrelevam as razões de conveniência, de oportunidade, de justiça concreta e de proporcionalidade.
Ora, se o valor visado pela recorrente se apresenta como exagerado face ao desconhecimento total do proveito que o uso de tal veículo lhe traria e a inviabilidade de imputação da facturação verificada no ano de 2019, por outro lado, o valor fixado na decisão recorrida é curto para compensar a perda de um recurso efectivo que a recorrente utilizava no desenvolvimento da sua actividade, mesmo ponderando que se está a reportar ao especialíssimo ano de 2020.
Além disso, não se pode deixar de considerar que o valor aceite pela autora em sede de negociação com a sua seguradora será fruto, desde logo, da rápida fixação e atribuição da indemnização e ausência de litígio, sendo que o valor sobrante exigiu o recurso a acção judicial, não estando, como acima se disse, este Tribunal cingido seja pelo valor acordado com a congénere da ré, seja pelos valores acordados pelas entidades do sector.
Por fim, cumpre notar que o valor encontrado, se superior aos valores que têm vindo a ser atribuídos para os proprietários de veículo que o destinam ao seu uso pessoal, já é reduzido face a situações em que estão em causa veículos utilizados na actividade profissional como se constata, por exemplo, nos seguintes acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa:
> de 6-10-2022, processo n.º 13683/21.9T8LSB.L1-8 - atribuído um valor diário de 20,00 € a título de indemnização pela paralisação de veículo;
> de 13-04-2023, processo n.º 784/23.8YRLSB-8 - atribuído um valor diário de 20,00€ pela paralisação de scooter, sendo desconhecido, o fim a que a destinava, designadamente, se era o seu meio de transporte habitual ou estava destinada a outros fins;
> de 5-03-2020, processo n.º 7289/16.1T8LRS.L1-2 - atribuído um valor diário de 20,00€ a título de indemnização pela paralisação de veículo
E do Tribunal da Relação de Coimbra:
> de 23-11-2021, processo n.º 2319/18.5T8ACB.C1 - atribuído um valor diário de 100,00€ a título de indemnização pela paralisação, mas com referência a um veículo de natureza diversa, um semi-reboque que a empresa lesada usava na sua actividade comercial de transporte rodoviário de mercadorias;
> de 6-02-2018, processo 189/16.7T8CDN.C1 – fixado um valor diário de 100,00€ para a paralisação de um veículo DAF, pesado de mercadorias, usado por empresa que se dedica ao transporte de mercadorias tanto em Portugal como no estrangeiro
Tendo presente que está em causa um critério de equidade e que as indemnizações arbitradas apenas devem ser alteradas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida e atendendo à utilização a que o veículo se destinava e aos valores acima considerados como meramente indicativos, tem-se por equilibrado e equitativo, um valor indemnizatório diário pela privação do uso do veículo de 80,00€.
Assim, o valor global da indemnização pela privação do uso durante 59 dias é de 4 720,00€, dos quais a recorrente já recebeu 1 103,76€, pelo que a ré seguradora deve ser condenada no pagamento da quantia de 3.616,24€.
Procede, assim, parcialmente, a presente apelação.
*
Das Custas
De acordo com o disposto no art.º 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
O recurso interposto pela autora é parcialmente procedente, dado que se impõe alterar o valor que lhe foi atribuído a título de indemnização pela privação do uso do veículo, tendo aquela peticionado uma indemnização total de 7.159,65€, obtendo vencimento em cerca de 66%.
Assim, as custas (na vertente de custas de parte) ficam a cargo da apelante e da apelada, na proporção de 34% e 66%, respectivamente.
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar parcialmente procedente a apelação e alterar a decisão recorrida, nos seguintes termos:
a. condenar a ré Caravela – Companhia de Seguros, S. A. no pagamento à autora da quantia de 3.616,24€ (três mil seiscentos e dezasseis euros e vinte e quatro euros), acrescida dos juros de mora o fixados na decisão recorrida.
Custas a cargo da apelante e da apelada, na proporção de 34% e 66%, respectivamente.
*
Lisboa, 13 de Julho de 2023
Micaela Marisa da Silva Sousa
Ana Rodrigues da Silva
Cristina Coelho
_______________________________________________________
[1] Transporte Individual e Remunerado de Passageiros em Veículos Descaracterizados a partir de Plataforma Electrónica.
[2] Adiante designado pela sigla CPC.
[3] Obtido com base no valor da facturação que apresentou no ano de 2019 – 132.883,96€[3] -, dividindo-o por 365 dias.
[4] Existem três soluções adoptadas: uma que nega a indemnização da privação do uso como dano próprio, mas a admite enquanto dano não patrimonial; outra que nega a ressarcibilidade do dano de privação do uso, enquanto dano autónomo, mas admite que seja indemnizável apenas nas circunstâncias em que se prove a ocorrência de prejuízos decorrentes da privação, nomeadamente, prejuízos patrimoniais; e ainda a que defende que o dano em causa constitui um dano autónomo, sendo de per si indemnizável.
[5] Acessível na Base de Dados do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[6] Cf. Ponto 10. da motivação do recurso.
[7] Acessível em
https://www.imt-ip.pt/sites/IMTT/Portugues/Noticias/Documents/2022/Relatorio%20TVDE_28.12.2021_Final.pdf, consultado em 27 de Junho de 2023 – pág. 11 - “Assim, segundo os dados fornecidos pelos operadores de plataformas eletrónicas, verifica-se um decréscimo de viagens em TVDE em 2020 face a 2019, situação fortemente associada às restrições à mobilidade dos cidadãos decorrentes da situação pandémica que se viveu a partir de março de 2020.”
[8] Cf. Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março.
[9] Cf. Documento n.º 5 junto com a contestação – Acordo AEO-TVDE/APS – 57,08€/dia para veículo ligeiro de passageiros até 5 lugares com um turno; 96,28€/dia para idêntico veículo com dois turnos.