Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ROSA MARIA CARDOSO SARAIVA | ||
Descritores: | RECURSO DE CONTRAORDENAÇÃO RECURSO EM MATÉRIA DE FACTO RECURSO PARA A RELAÇÃO ADMISSIBILIDADE DO RECURSO RESPONSABILIDADE DA PESSOA COLECTIVA ORGÃOS SOCIAIS ACÇÃO DOS TRABALHADORES | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/26/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
Sumário: | I - O recurso nas contraordenações em segunda instância, além da matéria de direito, abrange a matéria de facto, nos termos estritamente previstos no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal. II - A insuficiência da matéria de facto supõe que do texto da decisão ou deste conjugado com as regras da experiência comum resulte que a matéria provada não consente a emissão de uma decisão absolutória ou condenatória. Tal vício não se verifica quando a sentença dá por demonstrados todos os factos que preenchem os elementos objectivos e subjectivos do ilícito de mera ordenação social imputados a uma arguida. III- As pessoas colectivas podem ser responsabilizadas pelas contraordenações praticadas pelos trabalhadores ao seu serviço, quando estes actuem no exercício das suas funções ou por causa delas. IV- Na verdade, o conceito “órgãos” contido no n.º 2, do art. 7º RGCO, inclui os trabalhadores ao serviço da pessoa colectiva. V- Não há coincidência entre “órgãos” e órgãos sociais, na medida em que a palavra “órgãos” abrange e contempla um universo maior que o dos administradores e/ou gerentes da pessoa jurídica V- Por isso, a pessoa colectiva responde pelos factos praticados pelos seus trabalhadores que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas, excepto quando actuem contra ordens expressas ou em interesse exclusivo dos próprios. (sumário da responsabilidade da relatora) | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: * I – Relatório: Por decisão proferida pelo Juiz 3, do Juízo Local Criminal de Almada, foi a arguida ..., Unipessoal, Lda., condenada pela prática, por negligência, de uma contra-ordenação grave, p. e p. pelos artigos 117º, 2, al. B) do DL nº 102-D/2020, de 10/12, e 22º, nº 3, al. B) da Lei nº 50/2006, de 29/08, na coima de €12 000,00. Notificada da decisão administrativa e não se conformando com a mesma, a arguida impugnou-a judicialmente Distribuídos os autos ao Juízo Local Criminal de Lisboa – Juiz 3, foi realizada a audiência de julgamento e o recurso foi decidido por sentença, que o julgou improcedente. * Não se conformando com esta decisão, a arguida interpôs recurso para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões (transcrição): “A) Vem a arguida condenada pela prática de uma contraordenação ambiental grave, prevista no nº 2, al. b), do artigo 117º do DL n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, por suposto incumprimento do dever de assegurar a gestão de resíduos, e, assim, infringir o disposto nos nºs 1 e 5, do artigo 9º do mesmo diploma legal, punível nos termos do artigo 22º, nº 3, al. b) da LQCA, com coima de € 12.000,00 a título de negligência. B) É manifesta a procedência do presente recurso, porquanto resulta do texto da decisão recorrida, por si só e/ou conjugada com as regras da experiência comum a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º/2/b CPP). C) Apesar das testemunhas AA e BB terem negado que a queima dos resíduos tivesse sido efetuada pela Recorrente ou, mais concretamente, pelos trabalhadores ao seu serviço, que, com a execução dos trabalhos de demolição, começou a ser feita a triagem dos materiais, plásticos, ferros, vegetais, sendo a ideia inicial triturar tudo para depois fazer o transporte para aterro/central de reciclagem, tais depoimentos não mereceram a credibilidade do Tribunal a quo. D) Os agentes não vislumbraram ninguém a praticar os factos, mormente algum trabalhador da Recorrente, ainda que não identificado, como resultou do depoimento dos mesmos, mas ainda assim o tribunal a quo entende que com a referida reportagem fotográfica resulta inegável que ocorreu a queima de tais resíduos ali naquele local em concreto, nas referidas circunstâncias de tempo. E) Muito bem! Mas quem foi ou foram os responsáveis por tais queimas? Não se apurou! F) E não se apurou porque nenhuma testemunha, mormente os agentes de autoridade, conseguiram afirmar que viram quem quer que seja a fazer as queimas. Aliás, nem mesmo com a testemunha AA, responsável pelos trabalhos, se deslocaram ao local das queimas, tendo abordado o mesmo no local onde este se encontrava, a cerca de 20 metros das queimas. G) Refere expressamente a douta sentença que «é verdade que não foi feita prova directa de que tenham sido os trabalhadores da Recorrente a atear as referidas queimas e a proceder à queima daqueles resíduos inorgânicos no local. Porém, a prova indirecta coligida para os autos aponta toda nesse sentido.» H) Mais refere que «Todos estes elementos apontam, portanto, num único sentido que é do cometimento dos factos pela Recorrente, mais concretamente pelos seus trabalhadores, naturalmente segundo as suas indicações, o que não se questiona. Acresce que os militares da GNR no dia dos factos verificaram que continuam a ser efectuados os trabalhos, havendo uma máquina retroescavadora a trabalhar, continuando a fazer amontoados de resíduos. Não há notícia de mais nenhuma empresa a laborar no local. I) Pelo que tudo conjugado, ficou o Tribunal convencido quanto à factualidade provada e autoria da mesma. Consequentemente, ficou por demonstrar por falta de prova e por se ter apurado realidade diversa, o mencionado nas alíneas A) e B) dos factos não provados.» J) Assim, a partir do próprio texto da decisão, verifica-se uma manifesta insuficiência para esta dê aqueles factos dados como provados (art. 410.°, n.° 2, al. b), do CPP), insuficiência que em concreto releva da viabilidade da imputação dos factos ilícitos Recorrente enquanto sociedade comercial que é. K) É o que temos por certo quanto à afirmação da objetiva prática dos factos e da negligência (ou dolo que fosse) a cujo título a infração é imputada à Recorrente, e que obviamente apenas pode ser atribuídos a alguma concreta pessoa física, nunca diretamente a uma sociedade, com o que se incorre por um lado no vício lógico da anfibolia e por outro em desconsideração do modelo legal vigente em matéria de imputação de ilícitos a pessoas coletivas – no que aqui importa, constante do artigo 7.°, n.° 1 e 2, do RGCO. L) Sendo um dado de partida que a Recorrente é uma sociedade comercial (por quotas), dos factos que a decisão recorrida elenca como provados nem mesmo consta, em parte alguma, a constituição respetiva e, em particular, quem são as pessoas físicas que lhe compõem os órgãos. M) Muito menos consta quem teriam sido as concretas pessoas que, nessa qualidade de órgãos da recorrente e no exercício das correspondentes funções, tivessem decidido e levado a cabo os atos ilícitos configuradores do tipo objetivo da infração contraordenacional, e o tivessem feito de jeito a preencher também os elementos subjetivos desse tipo (conhecendo a ilicitude de tais atos e, de algum modo desejando-lhes o resultado ou conformando-se com ele, querendo levá-los a cabo). N) Mesmo concedendo que aqui, nesta matéria de delimitação dos termos da responsabilização das pessoas coletivas, cobrasse cabimento, por remissão do artigo 32.° do RGCO, o regime extensivo de imputação do artigo 11.°, n.° 2, als. a) e b), e n.° 4, do CP, impor-se-ia a mesma lógica. O) Não subscrevermos sem mais essa aplicabilidade ao presente caso (o RGCO tem norma própria e aquela extensão tem âmbito taxativamente circunscrito às infrações catalogadas), sempre ali se prevê é, ainda, a responsabilização das pessoas coletivas por atos cometidos. P) Também por aí a imputação subjetiva da infração à Recorrente ficaria na sentença destituída de suporte fáctico, o que não pode deixar de dar corpo ao arguido vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.°, n.° 2, al. a), do CPP). Q) Importaria, à luz do art. 7.°, n.° 2, do RGCO, e para imputar o ilícito à Recorrente sociedade, que por sê-lo não pensa e nem age no mundo físico senão através de agentes seus que sejam pessoas físicas, sustentá-lo, na factualidade provada, com factos de referência – a decisão e atuação de alguém [como órgão ou membro de órgão dela e no exercício das correspondentes funções, ou quando menos e em certos termos (os do art. 11.°, n.° 2, als. a) e/ou b), e 4, do CP), de alguma pessoa física com posição de liderança nela e em violação (e como) dos seus deveres (e quais) de vigilância e controlo sobre outra (pessoa física) que em concreto (e como) tivesse agido ilicitamente ou omitido a ação devida]. R) Só assim se perfectibilizaria o tipo e em termos de por ele fazer responder a arguida sociedade – e sem isso e além de não poder sequer imputar-se o facto à sociedade, muito menos poderia afirmar-se na comissão dele o dolo ou a negligência que são condições alternativamente indispensáveis da punição (art. 9.º, n.º 1 e 2, da LQCA, e 8.º, n.º 1 e 3, do RGCO). S) Julgamos ficar assim provado o vício. T) Aceitar que se concluísse pela imputação subjetiva da infração à Recorrente, a título de negligência, consciente ou inconsciente (ou dolo que fosse, em qualquer das modalidades), que vem na decisão de facto afirmada, sim, mas diretamente reportada à pessoa coletiva, como se esta por sua natureza pudesse formular decisões à margem de concretas pessoas físicas seus órgãos ou de outro jeito seus representantes, sem alguma identificar sequer e muito menos lhes apurando a posição na estrutura funcional da recorrente e essas formação de vontade e consequente decisão, tudo viria a resultar em uma responsabilização contraordenacional objetiva, que nem por tratar-se de pessoa coletiva passa a ser aceitável e de todo o jeito não tem arrimo legal (e cuja cogitação, mesmo de iure condendo, teria de ter em conta a muito duvidosa conformidade constitucional). U) Não se mostrando provado o elemento subjetivo da prática da contraordenação, concluímos que a recorrente não violou os nºs 1 e 5, do artigo 9º do DL n.º 102-D/2020, de 10 de Dezembro, devendo ser absolvida nos presentes autos. V) Não tendo decidido dessa forma violou a douta sentença recorrida os artigos 9.º, n.º 1 e 2, da LQCA, 7º, nº 2 e 8.º, n.º 1 e 3, do RGCO. W) A prova produzida em sede de discussão e julgamento, conjugada com os documentos juntos aos autos e com as regras da experiência comum levariam a decisão diversa, considerando-se como não provados os pontos de facto que agora se colocam em crise e absolvendo-se, em consequência, a Recorrente. X) Efetivamente, ao contrário do que o Tribunal a quo considerou, não resultaram provados factos passíveis de preencherem os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito por que a Recorrente vinha acusada. Nestes termos, e nos demais de Direito, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso a Recorrente ser absolvida da prática da contraordenação. * O recurso foi admitido, com subida imediata, nos autos e efeito suspensivo. * O MP apresentou resposta, dizendo, em suma, que não assiste razão à recorrente quando invoca o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada de que, na sua visão, padeceria a decisão recorrida. Com efeito, afirma que o vício invocado, previsto no art. 410º, nº 2, al. a) do C.P.P. significa que “… os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.” (Ac. do STJ de 9/02/2005, disponível in www.dgsi.pt). Acrescenta que “a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no art. 410º, nº 2, al. a) do C.P.P., não se confunde com a insuficiência da prova. Só existe quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o Tribunal, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante.” “O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada só ocorre quando o tribunal, podendo fazê-lo, deixou de investigar um ou mais factos com relevância, de tal forma que a matéria de facto dada como provada não permite a adequada decisão de direito. Aquele vício não se confunde com o vício de insuficiência de prova.” (Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 10/12/2003, disponível in www.dgsi.pt). Ora, no caso dos autos considera o MP que não resulta qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, resultante do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Com efeito, refere que foi indagada e resultou provada e não provada toda a matéria de facto com relevância para a decisão da causa. Já no que tange à questão levantada pela arguida, concretamente a circunstância da sentença ser omissa quanto à identificação do órgão societário que agiu no âmbito das suas funções e no interesse da arguida, cita um Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 26/06/2018, no Proc. 3716/17.9T9STB.E1 (disponível em www.dgsi.pt), em termos que subscreve transcrevendo a seguinte passagem: «Sob a epígrafe “da responsabilidade das pessoas coletivas ou equiparadas”, preceitua o artigo 7º, nº 2, do RGCO: “as pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções. Desde logo, e olhando à letra do preceito legal em análise, verifica-se que não é necessária a concreta identificação dos funcionários (pessoas singulares) que agiram em nome da pessoa coletiva. Por outras palavras: a pessoa coletiva é responsável haja ou não identificação da pessoa física que praticou os factos ou as omissões constitutivos da infração. Depois, apesar de o dispositivo legal em apreço falar apenas em “órgãos” da pessoa coletiva, tal conceito possui aqui uma maior abrangência do que os centros institucionalizados de poderes funcionais a exercer por indivíduo ou colégio de indivíduos. A nosso ver, a expressão “órgãos” integra, por exemplo, os trabalhadores ao serviço da pessoa coletiva, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas. Ou seja, e ao contrário do que parece entender-se na motivação do recurso, a norma em questão (artigo 7º, nº 2, do RGCO) não comporta uma interpretação restritiva, no sentido de conduzir à irresponsabilidade das pessoas coletivas se os atos ou omissões não forem praticados pelos seus legítimos “órgãos” (em termos estatutários e de representação). No sentido aqui em apreço, “órgãos” da pessoa coletiva são, pois, todas as pessoas singulares que, em nome da mesma e no exercício das respetivas funções, praticam os atos e as omissões. Por fim, e também ao invés do que parece entender-se na motivação do recurso, a responsabilidade contraordenacional da pessoa coletiva, por ato omissivo (como sucede in casu), existe independentemente da responsabilidade singular de quem omitiu, e sendo (ou não) tal omissão em nome e no interesse da pessoa coletiva. Com efeito, o que foi violado, pelo agente da infração (a arguida), foi (tão-só) o dever de cuidado, que recai sobre a arguida enquanto pessoa coletiva, dever consistente em zelar pela afixação dos preços nos produtos expostos para venda ao público, e dever que foi descurado na concreta situação posta nestes autos.» Concluiu considerando que bem andou a Mmª Juiz a quo ao ter mantido a decisão administrativa, não padecendo a sentença recorrido do alegado vício ou de qualquer outro. * Uma vez remetidos os autos a este Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta apôs o visto. * Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência. * II –Objecto do recurso: Preceitua o art, 412.º, n.º 1, do CPPenal que “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”. É consabido que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso –, designadamente a verificação da existência dos vícios indicados no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal – ou de nulidades que não se considerem sanadas, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na decorrência dos argumentos expendidos em sede de motivação. Atenta a concreta sede em que se move o presente recurso importa referir, porém, que nos termos do preceituado no artigo 75º, nº 1 do RGCO, nesta tipologia processual a Relação apenas conhece de direito. Relevante será ainda considerar a orientação do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 3/2019, in DR 124/2019, I série, de 2019-07-02, em que se exarou que: “Em processo contraordenacional, no recurso da decisão proferida em 1.ª instância o recorrente pode suscitar questões que não tenha alegado na impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa”. Do exposto decorre que a impugnação da decisão da autoridade administrativa não tem a natureza de um verdadeiro recurso, uma vez que a causa deixa de ser decidida no âmbito administrativo, passando a ser julgada pelo tribunal, órgão independente e imparcial. Acresce que a segunda instância funciona como tribunal de revista ampliada podendo modificar a decisão do Tribunal recorrido, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo Tribunal, conhecendo oficiosamente de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º CPP, por força do disposto nos artigos 41.º, nº 1.º e 74.º, nº 4.º do RGC e, bem assim, funcionando como como última instância no que respeita à matéria de direito. Na presente hipótese, tendo em conta as conclusões apresentadas pela recorrente, são as seguintes as questões a apreciar: 1. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista no art. 410, 2º, al. a) do CPPenal. 2. Eventual responsabilização das pessoas colectivas pelas contraordenações praticadas pelos trabalhadores ao seu serviço que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas. * III – Da decisão recorrida: Com interesse para a decisão a proferir, consta da decisão recorrida o seguinte (transcrição): “III. Fundamentação A. De facto Factos provados Da análise dos autos e com relevância para a presente decisão, resulta como assente a seguinte factualidade: 1. A Recorrente é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de construção e manutenção de espaços verdes, comércio e importação de plantas e acessórios para jardinagem, elaboração de projectos de silvicultura e jardinagem, construção civil e obras públicas, trabalhos de integração paisagística, gestão de resíduos, investigação e desenvolvimento das ciências físicas e naturais e formação profissional. 2. No âmbito da sua actividade comercial, a Recorrente foi contratada pelo IHRU (Instituto da Habitação e Reabilitação Urbana) para a realização de trabalhos de limpeza de terreno sito na Rua dos ..., no concelho de Almada. 3. Trata-se de um terreno com construções ilegais, umas em alvenaria, outras com madeiras e plásticos, com vedações, sobretudo de persianas, canas, armações de colchões e madeiras (portas, paletes, móveis). 4. A arguida iniciou os trabalhos de remoção de barracas e vedações. 5. No dia 08.02.202023, a Recorrente fez pedido na plataforma de queimas e queimadas no Instituto de Conservação da Natureza e Florestas de comunicação prévia para a realização de uma queima de amontoados. 6. No dia 09.02.2023, pelas 11 horas, na Rua dos ..., no concelho de Almada, deflagravam três queimas ainda em ligeira combustão cada uma com cerca de 5 m2 com resíduos carbonizados, tais como chapas de vedação, uma sanita, madeiras, persianas de plástico, telhas de amianto, latas, plásticos, colchão e cabeceira de cama, levadas a cabo pelos trabalhadores ao serviço da Recorrente por sua indicação. 7. No local, havia ainda nove amontoados de resíduos (madeira e plásticos) e sobrantes de horta, os quais foram amontoados por uma máquina ao serviço da Recorrente. 8. O responsável pela execução dos trabalhos era AA, engenheiro ao serviço da Recorrente. 9. Ao actuar da forma descrita, dando o descrito destino aos resíduos, sem assegurar o seu o tratamento em conformidade com os princípios da hierarquia dos resíduos e da proteção da saúde humana e do ambiente, a Recorrente não actuou com o cuidado a que estava obrigada e que é capaz, e que podia ter feito. 10. A Recorrente não tem antecedentes contraordenacionais. E ainda: 11. Actualmente, a Recorrente tem cerca de 110 trabalhadores ao seu serviço. 12. Presta serviços na área metropolitana de Lisboa. 13. No ano passado, facturou cerca de três milhões e meio de Euros. 14. Teve um EBITA de cerca de € 300.000,00. 15. Já sofreu duas reestruturações. Factos não provados Com relevância para a presente decisão, não se provou que: A. A Recorrente teve o cuidado de fazer vários montes de resíduos onde separou os vários tipos de resíduos sobretudo os verdes (canas), pois os restantes tinham como destino serem transportados para a central de reciclagem ou aterro sanitário depois de triturados no local. B. Foi apenas decidido queimar 3 montes de canas que se encontravam limpos de outro tipo de resíduos tendo sido feita uma escolha para retirar plásticos e madeiras que esses montes continham. Todos os demais factos que não se encontrem vertidos na factualidade acima descrita, não foram considerados para a boa decisão da presente causa, porquanto constituem factos conclusivos, repetitivos, irrelevantes ou de direito. Motivação da decisão da matéria de facto Na determinação da factualidade provada e não provada, o Tribunal formou a sua convicção com base em toda a prova produzida nos autos, analisada de forma crítica e à luz das regras da experiência comum e de juízos de normalidade. Assim, por mais relevante e decisivo, é de destacar o seguinte: - O legal representante da sociedade Recorrente não quis prestar declarações sobre os factos imputados, pelo que não contribuiu para a descoberta da verdade material. Prestou somente declarações acerca as suas condições socioeconómicas da sociedade Recorrente, não se mostrando as suas declarações a este respeito infirmadas por qualquer outro meio de prova, motivo pelo qual foram acolhidas; - Foram inquiridas as seguintes testemunhas: (i) CC (militar da GNR ao serviço do Núcleo de Protecção Ambiental); (ii) DD (militar da GNR ao serviço do Núcleo de Protecção Ambiental); (iii) AA (engenheiro florestal, a trabalhar para a sociedade Recorrente há cerca de 5 anos); e (iv) BB (motorista de pesados, trabalhador da sociedade Recorrente há cerca de 10 anos); - Encontra-se junta aos autos a seguinte prova documental: auto de notícia por contraordenação de fls. 7, reportagem fotográfica de fls. 8-10, comunicação prévia de fls. 25, fotografia de fls. 25v, certidão permanente da sociedade Recorrente. Concretizando: O vertido no ponto 1) resulta da certidão permanente do registo comercial da sociedade Recorrente, tendo sido confirmado pelo seu legal representante e pelas testemunhas AA e BB, ambos trabalhadores da sociedade Recorrente. O descrito nos pontos 2) a 5) e 8) resultaram demonstrados com base na conjugação dos depoimentos das testemunhas AA e BB que confirmaram a realização desses trabalhos, por neles terem participado directamente, tendo descrito o estado e condições do terreno, o tipo de trabalho a efectuar, e confirmado o início de execução desses trabalhos. A comunicação prévia mostra-se também documentalmente comprovada a fls. 25, nos termos explicados pela testemunha AA. Quanto ao mencionado nos pontos 6) e 7) tal resulta da conjugação do depoimento das testemunhas, com a prova documental constante dos autos, nomeadamente as fotografias juntas a fls. 8-10 que foram confirmadas pelas testemunhas CC e DD em audiência. Assim, tanto a testemunha CC como a testemunha DD confirmaram a sua deslocação ao local, nas referidas circunstâncias de tempo, tendo descrito em audiência, o que aí visualizaram, nomeadamente as queimas, confirmando as suas dimensões e o tipo de material que havia sido queimado e que ainda estava em ligeiro estado de combustão. O que relataram a tal respeito mostra-se suportado nas fotografias que foram tiradas no local, tal como explicado pelas testemunhas, de fls. 8-10, sendo, efectivamente, aí visível na fotografia n.° 4 uma das queimas em pormenor (a retratada na fotografia n.° 1) e que ainda estava a fumegar; nas fotografias n.° 5 e 6, restos da estrutura de um colchão ardido; na fotografia n.° 7 e 8, restos de telha de amianto e de uma persiana ardidas; na fotografia n.° 9 mais sobras de persianas ardidas; na fotografia n.° 15 e 17, restos de estrutura de uma cabeceira ardida. Assim, dos depoimentos destas duas testemunhas com a referida reportagem fotográfica resulta inegável que ocorreu a queima de tais resíduos ali naquele local em concreto, nas referidas circunstâncias de tempo. Por sua vez, a testemunha AA confirmou que se tratavam de resíduos decorrentes dos trabalhos de demolição, nomeadamente das barracas e vedações ali construídas de forma ilegal, e que estavam a ser deitadas abaixo pelos trabalhadores da Recorrente por ordem desta última. Negaram, porém, as testemunhas AA e BB que tais queimas desses resíduos tivesse sido efectuada pela Recorrente ou, mais concretamente, pelos trabalhadores ao seu serviço. Disse a testemunha AA que, com a execução dos trabalhos de demolição, começou a ser feita a triagem dos materiais, plásticos, ferros, vegetais, sendo a ideia inicial triturar tudo para depois fazer o transporte para aterro/central de reciclagem, quando foram confrontados com a impossibilidade de a trituradora contratada triturar os resíduos verdes, pelo que foi decidido fazer a sua queima e apenas destes, motivo pelo qual foi solicitada autorização para o efeito. No dia anterior ao auto da GNR, disse que deram início aos trabalhos de queima, tendo sido feitas 3 queimas, sendo que, quando se ausentou do local por volta das 18h30, ainda fumegava, mas estava tudo controlado, não se apercebendo que tivesse sido queimado lixo inorgânico. No dia seguinte, ao chegar ao local, por volta das 10h, disse que viu que uma das queimas ainda fumegava bastante e que viu muitas poças de água no chão e rodados de camião e percebeu que os bombeiros haviam estado no local. Porém, contou que não se dirigiu ao local das queimas, tendo permanecido a trabalhar a uma distância de 20 m. Mais disse que apenas se apercebeu do odor a plástico queimado quando militares da GNR foram ao local e o abordaram. Disse que, já após a saída dos militares da GNR do local, é que foi verificar as queimas, deparando-se com resíduos inorgânicos queimados, porém, disse desconhecer quem foi o autor dessas queimas. Procurou imputar as responsabilidades à população descontente, admitindo que ali se possam ter deslocado durante a noite e queimado esses resíduos no local das queimas efectuadas no dia anterior para prejudicar a Recorrente. O mesmo foi sustentado pela testemunha BB que não se deslocou, porém, ao local no dia dos factos. Ora, à luz das regras da normalidade da vida e da experiência, os depoimentos destas duas testemunhas a tal respeito são desprovidos de racionalidade lógica, não nos tendo merecido credibilidade. Destarte, é verdade que não foi feita prova directa de que tenham sido os trabalhadores da Recorrente a atear as referidas queimas e a proceder à queima daqueles resíduos inorgânicos no local. Porém, a prova indirecta coligida para os autos aponta toda nesse sentido. Vejamos. Não há quaisquer dúvidas de que era a sociedade Recorrente quem estava a trabalhar no local, sendo a responsável pelos trabalhos de demolição e limpeza do terreno que assumiu perante o IHRU. Também resultou de forma manifesta que foi a Recorrente quem fez as demolições e os amontoados de resíduos visíveis na reportagem fotográfica de fls. 8-10, sendo que nessas fotografias é visível a existência de amontoados de plásticos e madeiras. Era também a Recorrente a empresa responsável pela gestão dos resíduos e, como tal, a primeira a ter interesse no seu concreto destino. Por outro lado, não merece credibilidade o depoimento da testemunha AA quando diz que saiu do local por volta das 18h30, altura em que só havia sido feita queima de resíduos verdes e que as fogueiras estariam praticamente extintas, e regressa no dia seguinte, por volta das 10h da manhã, vê rodados de camião e poças de água que associa logo aos bombeiros - e questionado expressamente acerca dessa circunstância disse que não havia motivo nenhum para os bombeiros comparecerem no local no período noturno considerando o estado em que havia deixado as queimadas no dia anterior, e repare-se também que se estava em ..., em período de Inverno - e, não obstante tudo isso, não vai verificar as queimadas, quando diz que permanece a 20 metros do local, ou seja, a uma distância relativamente curta, tratando-se de um espaço descampado. De notar também que os militares da GNR salientaram o forte odor a plástico queimado que, é sabido ser um cheiro insuportável e bastante diferenciado do cheiro a queima de vegetais, e, ainda assim, a testemunha, estando a trabalhar a cerca de 20 m, disse não se ter apercebido desse cheiro até ser alertado pelos militares da GNR. Ora, a única explicação plausível para o comportamento da testemunha é a de que esta testemunha bem sabia o que tinha sido queimado na véspera e, por isso, não sentiu necessidade de se deslocar até ao local de cada uma das queimadas para verificar a situação, caso contrário, em face de todas as circunstâncias acima enumeradas o comportamento expectável, à luz das regras da normalidade da vida e da experiência comum, seria, de imediato, verificar a situação, o que não fez. Todos estes elementos apontam, portanto, num único sentido que é do cometimento dos factos pela Recorrente, mais concretamente pelos seus trabalhadores, naturalmente segundo as suas indicações, o que não se questiona. Acresce que os militares da GNR no dia dos factos verificaram que continuam a ser efectuados os trabalhos, havendo uma máquina retroescavadora a trabalhar, continuando a fazer amontoados de resíduos. Não há notícia de mais nenhuma empresa a laborar no local. Pelo que tudo conjugado, ficou o Tribunal convencido quanto à factualidade provada e autoria da mesma. Consequentemente, ficou por demonstrar por falta de prova e por se ter apurado realidade diversa, o mencionado nas alíneas A) e B) dos factos não provados. Quanto à obrigação que, sobre o Recorrente, impendia de cumprir os deveres legais de tratamento dos resíduos, resulta das regras da experiência comum e da lógica, uma vez que, dedicando-se o Recorrente a essa actividade, tinha inequívoca obrigação de conhecer a legislação que regula essa actividade e de agir em conformidade com esse conhecimento. B. De Direito Ao Recorrente é imputada a prática, a título de negligência e na forma consumada, de uma contraordenação grave, p. e p. pelos artigos 117.°, n.° 2, alínea b) do Decreto-Lei n.° 102-D/2020, de 10.12, e 22.°, n.° 3, alínea b) da Lei n.° 50/2006, de 29.08. Assim, prevê o artigo 117.°, n.° 2, alínea b) do Decreto-Lei n.° 102-D/2020, de 10.12 que: “Constitui contraordenação ambiental grave, nos termos da Lei-Quadro das Contraordenações Ambientais, a prática dos seguintes atos: [...] b) O incumprimento do dever de assegurar a gestão de resíduos, a quem, nos termos do previsto no artigo 9.°, caiba essa responsabilidade”. Ora, estabelece o artigo 9.° do mesmo diploma que: “1 - A responsabilidade pela gestão dos resíduos, incluindo os respetivos custos, cabe ao produtor inicial dos resíduos, sem prejuízo de poder ser imputada, na totalidade ou em parte, ao produtor do produto que deu origem aos resíduos e partilhada pelos distribuidores desse produto, se tal decorrer do presente regime ou de legislação específica aplicável. [...] 5 - O produtor inicial dos resíduos ou o detentor devem, em conformidade com os princípios da hierarquia dos resíduos e da proteção da saúde humana e do ambiente, assegurar o tratamento dos resíduos, podendo para o efeito recorrer, de acordo com o tipo de resíduos: a) A um comerciante ou a um corretor de resíduos; b) A um operador de tratamento de resíduos; c) A uma entidade responsável por sistemas de gestão de fluxos específicos de resíduos; d) A um sistema municipal ou multimunicipal de recolha e/ou tratamento de resíduos. ” Por sua vez, estipula o artigo 22.°, n.° 3, alínea b) da Lei n.° 50/2006, de 29.08: “Às contraordenações graves correspondem as seguintes coimas: b) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 12 000 a (euro) 72 000 em caso de negligência e de (euro) 36 000 a (euro) 216 000 em caso de dolo”. Começa a Recorrente por pôr em causa que integre o conceito de “produtor inicial de resíduos”. Segundo o artigo 3.°, n.° 1, alínea v), do Decreto-Lei n.° 102-D/2020, de 10.12., entende-se por «Produtor de resíduos», “qualquer pessoa singular ou coletiva cuja atividade produza resíduos, isto é, um produtor inicial de resíduos, ou que efetue operações de pré-processamento, de mistura ou outras que alterem a natureza ou a composição desses resíduos”. In casu, tendo em conta a factualidade dada como provada e considerando a actividade prestada pela Recorrente que assumiu perante o IHRU, a prestação de servição de limpeza e demolição de barracas e vedações, é inegável que a sua actividade produzia resíduos e, como tal, pode entender-se como produtora inicial de resíduos. Ainda que, assim não fosse, sempre seria detentora, como a própria Recorrente assume, estando sujeita na mesma às obrigações consagradas no artigo 9.°, n.° 5 que recaem sobre o produtor inicial e sobre o detentor. Posto isto, da factualidade dada como provada resulta que, no âmbito da sua actividade comercial, a Recorrente foi contratada pelo IHRU para a realização de trabalhos de limpeza de terreno sito na Rua dos ..., que se tratava de um terreno com construções ilegais, umas em alvenaria, outras com madeiras e plásticos, com vedações, sobretudo de persianas, canas, armações de colchões e madeiras (portas, paletes, móveis). Mais se provou que a Recorrente iniciou tais trabalhos de remoção de barracas e vedações, fazendo amontoados de resíduos. E, no dia 09.02.2023, pelas 11 horas, nesse local, deflagravam três queimas ainda em ligeira combustão cada uma com cerca de 5 m2 com resíduos carbonizados, tais como chapas de vedação, uma sanita, madeiras, persianas de plástico, telhas de amianto, latas, plásticos, colchão e cabeceira de cama, levadas a cabo pelos trabalhadores ao serviço da Recorrente por sua indicação. Assim, face à factualidade provada resultam preenchidos os elementos objectivos do tipo contraordenacional, pois a Recorrente ao dar tal destino aos resíduos, não assegurou o seu tratamento em conformidade com os princípios da hierarquia dos resíduos e da proteção da saúde humana e do ambiente, em violação do disposto no artigo 9.°, n.° 5 do referido diploma. Mais se provou que, ao actuar da forma descrita, dando o descrito destino aos resíduos, sem assegurar o seu o tratamento em conformidade com os princípios da hierarquia dos resíduos e da proteção da saúde humana e do ambiente, a Recorrente não actuou com o cuidado a que estava obrigada e que é capaz, e que podia ter feito. Pelo que actuou com negligência. Mostra-se, por isso, também preenchido o elemento subjectivo do tipo contraordenacional imputado. Em face do exposto, conclui-se que a Recorrente é juridicamente responsável pela prática da referida contra-ordenação. Conforme acima referido, estipula o artigo 22.°, n.° 3, alínea b) da Lei n.° 50/2006, de 29.08: “Às contraordenações graves correspondem as seguintes coimas: b) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 12 000 a (euro) 72 000 em caso de negligência e de (euro) 36 000 a (euro) 216 000 em caso de dolo". Como é sabido, nos termos do artigo 18.°, n.° 1 do RGCO, a medida concreta da coima terá que atender à gravidade da contra-ordenação, à culpa, à situação económica do agente e ao benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação. In casu, a Recorrente foi condenada numa coima de € 12.000,00 que corresponde ao montante mínimo da moldura abstractamente aplicável. Considerando os factores anteriormente elencados, nomeadamente a gravidade da infracção, o grau de culpa (negligência), a ausência de antecedentes e a sua situação económica apurada, mostra-se o valor fixado justo e adequado.” * IV- Do mérito do recurso: 1. Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista no art. 410º, 2, al. a), do CPPenal: Estatuiu o artigo 410.º, n.º 2 do CPPenal, aplicável ex vi artigos 74º, n.º 4 e 41º, n.º 1, do DL 433/83 de ... (doravante RGCO), que “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova”. Ora, deve dizer-se que do exposto resulta que qualquer um dos mencionados vícios tem de decorrer da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: isto é, o vício tem de ser verificado sem que se recorra a elementos estranhos à decisão, como por exemplo declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito, a instrução ou até mesmo o julgamento, salientando-se também que as regras da experiência comum, no dizer de AA “não são senão as máximas da experiência que todo o homem de formação média conhece, englobando as regras da lógica, os princípios da experiência e os conhecimentos científicos” ( citado no Ac. RL de 15-01-2019, in www.dgsi.pt). Está-se, nestes casos, perante vícios da decisão e não do julgamento. O vício invocado pela recorrente, no caso dos autos, é o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada. Tem-se entendido que a «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada» ocorre quando os factos dados como provados na decisão são insuficientes para que se conclua, com segurança pela condenação ou absolvição; isto é, quando se verifique que os factos dados como demonstrados são insuficientes para sustentarem a decisão recorrida ou quando o tribunal a quo, devendo e podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa, resultando a factualidade dada como provada, manifestamente insuficiente para possibilitar o enquadramente jurídico do caso. Com efeito, somente se pode falar de insuficiência para a decisão da matéria de facto quando existe uma lacuna factual que impede a decisão de direito, ou quando se não apura o que se mostra evidente poder ter sido indagado, bem como quando o tribunal não investiga a totalidade da matéria de facto, quando podia fazê-lo. Como salientam SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES in Recursos Penais, Rei dos Livros, págs. 74 e 75, 2 a dita insuficiência ocorre quando “(…) se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”. Aliás, isso mesmo é referido no Ac do STJ de 99/01/13, proc. Nº 1126/98, mencionado da obra acabada de citar, pág. 75, ao exarar-se que a dita insuficiência existe quando se faz a “formulação incorrecta de um juízo” em que “a conclusão extravasa as premissas” ou quando há “omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão”. No mesmo sentido militam os ensinamentos de AA, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pag. 325/326, quando afirma: “é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.” No caso dos autos verifica-se que apesar da recorrente aparentemente invocar o antedito vício da insuficiência da matéria de facto, o que realmente alega consiste numa divergência relativamente à decisão proferida no que tange à avaliação da prova produzida. Com efeito, sob a capa da insuficiência, a recorrente vem alegar que da prova produzida, designadamente dos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência, não se apurou, em concreto qualquer actuação, designadamente de um seu trabalhador, que tenha praticado os factos que lhe são imputados. Acrescenta que, apesar disso, o tribunal a quo deu como demonstrado que foram trabalhadores da recorrente que cometeram os factos ilícitos em causa nos autos, tendo procedido à queima de resíduos inorgânicos no local, baseando-se no que apelida de “prova indirecta”. Aduz, também, que da aludida decisão não constam identificadas as pessoas físicas que compõem os seus órgãos, nem se mostram indicadas as concretas pessoas que, nessa qualidade de órgãos da recorrente e no exercício das correspondentes funções, tivessem decidido e levado a cabo os actos ilícitos que lhe foram imputados. Todavia, como decorre do que supra já se deixou dito, não assiste razão à recorrente na invocação que efectua. Na verdade, a decisão em recurso, designadamente no ponto 6 da matéria de facto provada, dá por demonstrado que as queimas de resíduos em causa tinham sido levadas a cabo por trabalhadores ao serviço da recorrente e no cumprimento das indicações que deu, acrescentando, no ponto 8 da factualidade provada, que o responsável pela execução dos trabalhos era AA, engenheiro ao serviço da recorrente. Por outro lado, no ponto 9 dos factos, afirma-se que “Ao actuar da forma descrita, dando o descrito destino aos resíduos, sem assegurar o seu tratamento em conformidade com os princípios da hierarquia dos resíduos e da proteção da saúde humana e do ambiente, a Recorrente não actuou com o cuidado a que estava obrigada e que é capaz, e que podia ter feito”. Ou seja, diferentemente do referido pela recorrente, na decisão em recurso identificam-se as pessoas que no local procederam à queima dos resíduos do modo dado como demonstrado – de facto, provado ficou que as acções de queimar foram da responsabilidade de trabalhadores ao serviço da recorrente, actuando de acordo com a indicação dela. Já no que tange ao elemento subjectivo o mesmo resulta transparentemente da letra do facto 9, em que se afirma a actuação da recorrente, absolutamente em colisão com o dever de cuidado que deveria ter observado e para que estava capacitada. Ora, materialidade diferente, no que toca a este concreto segmento, mas que a recorrente mistura com o aludido vício, é saber se uma pessoa colectiva pode ser responsabilizada pelo acto de queima de resíduos efetuada por trabalhadores ao seu serviço, na medida em que estes não são órgãos da pessoa jurídica. Contudo, por uma questão de procurar conferir clareza expositiva à presente decisão, esta temática será apreciada noutra sede que não nesta dedicada à averiguação da existência da insuficiência da matéria de facto. Até porque, como já dito, sob o manto da insuficiência da matéria de facto suscita-se verdadeiramente uma discordância com a avaliação da prova produzida em julgamento e a valoração que a mesma mereceu e que ficou demonstrada na factualidade tida por provada. Ora, como começou por se referir, essa espécie de exercício está vedado aos recorrentes em matéria contraordenacional, uma vez que não há a redução da prova a escrito (cfr. artigo 66º do RGCO) que possibilitaria que o recurso tivesse tal amplitude. Efectivamente, nesta espécie de recurso não pode discutir-se a divergência relativamente à decisão fáctica proferida na primeira instância, com recurso e referências à prova produzida em julgamento. Todavia, como já dito, os vícios mencionados no artigo 410º, 2 do CP Penal podem ser alvo de cognição, até oficiosa, pelo tribunal de recurso, nestes se incluindo o erro notório na apreciação da prova. Portanto, a essa luz, ainda se poderá aferir se a alegação da recorrente poderá reconduzir-se ao antedito vício, decorrente do próprio elemento textual da sentença ou deste conjugado com as regras da experiência comum. Em matéria de apreciação da prova vale, como é consabido, o artigo 127° do Código de Processo Penal que preceitua que “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. Ora, a produção da prova, que fundamenta a convicção do julgador, é efectuada em audiência (artigo 355º do CPP), com respeito pelos princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova. Com efeito, é o juiz de primeira instância que se encontra numa posição privilegiada para avaliar da credibilidade de quem depõe (nas palavras de Ana Brito in “Os poderes de cognição das Relações em matéria de facto em processo penal”), foi perante tal juiz que a prova foi produzida beneficiando assim da oralidade e da imediação plenas, isto apesar de estar obrigado a explicitar a sua opção na motivação da decisão. Ou seja, a livre valoração da prova não significa que se esteja perante uma operação puramente subjectiva de que resultou uma conclusão baseada em impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação, mas sim uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras da experiência comum da lógica, da razão, e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação efectuada na motivação da decisão de facto proferida. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» - de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo, pois que «se a verdade que se procura é uma verdade prático-jurídica e se uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bem fundado da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenha uma função de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros» (Direito Processual Penal – AA –1974, págs. 202/205). Ora, verifica-se que o Tribunal a quo, analisou criticamente a prova produzida, pronunciando-se relativamente a cada um dos factos que deu como provados e não provados, explicitando relativamente a cada um deles, quais os documentos ou depoimentos que valorou e de que modo realizou tal valoração. Acrescentou ainda que correspondendo à verdade que não havia sido realizada prova directa de que tivessem sido os trabalhadores da recorrente a atear os incêndios e a proceder à queima dos resíduos inorgânicos, havia resultado indiciariamente que tinham sido tais trabalhadores a actuarem do modo descrito, explicitando de modo compreensível e linear tal conclusão, designadamente atendendo ao facto de serem os seus trabalhadores que se encontravam no local a proceder às demolições para que tinha sido contratada pelo IHRU, sendo estes que procederam ao amontoamento dos resíduos em diferentes locais, incluindo nos mesmos plásticos e madeiras que são visíveis nas fotografias efectuadas no local pelos órgãos de policia criminal. Acrescenta-se que era a recorrente a empresa responsável pela gestão dos resíduos e, como tal, a primeira a ter interesse no seu concreto destino. Por outro lado, explicita-se, ainda de modo coerente e perfeitamente compreensível por que motivo não mereceram credibilidade os depoimentos do responsável por aqueles trabalhos e de pessoa que não esteve no local no dia dos factos. Do exposto decorre que nenhuma regra da experiência comum foi ultrapassada pelo tribunal nesta explicação, nem nas conclusões que retirou da prova produzida e, em concreto, nas razões pelas quais considerou provado que a arguida violou o dever de cuidado a que estava obrigada. Nada há de ilógico e irrazoável nas considerações tecidas na decisão agora em recurso, pelo que inexiste qualquer erro notório na apreciação da prova. Pelo exposto, neste segmento, o recurso não merece provimento. 2. Eventual responsabilização das pessoas colectivas pelas contraordenações praticadas pelos trabalhadores ao seu serviço que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas. A arguida foi condenada pela prática da contraordenação p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 117º, n.º 2, al. b) do DL n.º 102-D/2020, de 10/12 e 22º, 3 al. b) da Lei 50/2006, de 29/08, na coima de €12 000,00, por incumprimento do dever de assegurar a gestão de resíduos. Defende a recorrente que, sendo uma pessoa colectiva, é unicamente representada pelos seus órgãos sendo certo que a decisão objecto de recurso não identifica quem foram os elementos dos seus órgãos que teriam levado a cabo os factos ilícitos que lhe são imputados. Acrescenta que a aludida decisão imputou a conduta em causa a título de negligência à pessoa colectiva, sem que se identificasse qual ou quais as concretas pessoas físicas que, actuando como seus órgãos ou representantes, teriam agido do modo a que tal conduta pudesse ser imputada à arguida, na medida em que os mesmos teriam actuado como seus representantes. Com efeito, dado que as pessoas colectivas não podem cometer por si mesmas infrações, a sua responsabilidade por estas tem de decorrer de comportamentos concretos, levados a cabo por determinadas pessoas singulares ou físicas, que as representem. Para dilucidar a problemática assim colocada importa atentar que o art. 7º, n.º 1, do RGCO (aplicável a contraordenações desta natureza ambiental por força do disposto no artigo 2º, n.º 1, da Lei n.º 50/2006 de 29 de Agosto) preceitua que "as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares como às pessoas coletivas, bem como às associações sem personalidades jurídicas", estabelecendo, assim, o princípio da responsabilidade contraordenacional das pessoas colectivas. O nº 2 da norma citada, por seu lado, estatui que “as pessoas coletivas ou equiparadas são responsáveis pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”. Assim, importa determinar se, como foi decidido da decisão recorrida, as pessoas colectivas podem, ou não, ser responsabilizadas pelas contraordenações praticadas pelos trabalhadores ao seu serviço, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas, encarando estes como órgãos da pessoa jurídica. Desde logo, deve dizer-se que é entendimento maioritário na jurisprudência, sendo também defendido na Doutrina – cfr. no sentido do texto Alexandra Leitão, Parecer n.º 11/201], do AA –, que a expressão "órgãos no exercício das suas funções", utilizada no art. 7º, n.º 2, do RGCO, inclui, por interpretação extensiva, os trabalhadores ao serviço da pessoa colectiva ou equiparada, que são quem pratica ou omite os actos susceptíveis de censura contraordenacional, desde que actuem no exercício das suas funções ou por causa delas, excepto quando actuem contra ordens expressas ou em interesse exclusivo dos próprios; ou seja, não há coincidência entre “órgãos” – expressão contida no inciso em apreço – e órgãos sociais, na medida em que a palavra “órgãos” abrange e contempla um universo maior que o dos administradores e/ou gerentes da pessoa jurídica. No Parecer n.º 11/2013, do AA a que supra se fez referência concluiu-se que “o preceito do n.º 2 do artigo 7.º do Regime Geral das Contraordenações deve ser interpretado extensivamente, como, aliás, tem sido feito pela jurisprudência, incluindo do Tribunal Constitucional, de modo a incluir os trabalhadores, os administradores e gerentes e os mandatários ou representantes da pessoa coletiva ou equiparada, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas», adoptando assim «(…) a tese da responsabilidade autónoma da pessoa coletiva, o que se traduz, na prática, na possibilidade de imputação da responsabilidade contraordenacional à pessoa coletiva desde que seja cometida uma infração tipificada como ilícita e que seja imputável a alguém que atue por conta ou em nome da pessoa jurídica (titulares dos seus órgãos, mandatários, representantes ou trabalhadores).” AA, in “Questões contraordenacionais suscitadas pelo novo regime legal da mediação de seguros, in Direito Penal Económico e Europeu, vol III, textos doutrinários, AA, pág 723, e Augusto Silva Dias, in “Direito das Contraordenações, Almedina, 2018, págs 91 a 98, alinham discursos críticos da aludida posição, referida como dominante. Assim, o autor por último citado afirma que de jure constituto, a responsabilidade contraordenacional das pessoas colectivas assenta num modelo orgânico e não numa imputação directa e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num "defeito estrutural da organização empresarial" (defective corporate organization) ou "culpa autónoma por défice de organização", quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa colectiva. Assim, nos casos em que o executante é mandatário, representante ou funcionário da pessoa colectiva e actua no exercício de funções, o facto típico só é imputável ao órgão e, por via deste, à pessoa colectiva por ele vinculada, se o dirigente, mandatário, representante ou funcionário tiverem agido no cumprimento de ordens desse órgão ainda que genéricas, não deixando, no entanto, o autor de considerar criticável esta limitação, por ser inadequada à natureza da responsabilidade contraordenacional e, de certo modo, contraditória com o princípio da equiparação implícito no art. 7º, n.º 1, do RGCO. O Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 566/2018 de 07/11/2018, proferido no processo nº 336/18, in www.dgsi.pt concluiu não existir fundamento para pôr em causa a referida interpretação extensiva do art. 7º, n.º 2, do RGCO. No citado aresto escreve-se que «Acresce que o termo “órgão”, do ponto de vista conceptual, não está necessariamente associado a um centro autónomo e institucionalizado de poderes funcionais – a uma realidade institucional ou estatutária (sobre as diferentes conceções a respeito da natureza de órgãos, v., por exemplo, FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2015, pp. 624 e ss.). Por isso mesmo, são descortináveis diversas definições legais de “órgão”, consoante os fins concretamente visados pelo diploma em que as mesmas se inserem (v., a título meramente exemplificativo: o artigo 20.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo – «centros institucionalizados de poderes e deveres para efeitos da prática de atos jurídicos imputáveis à pessoa coletiva» –; e o artigo 1.º, alínea c), do Código de Processo Penal - «entidades e agentes policiais a quem caiba levar a cabo quaisquer atos ordenados por uma autoridade judiciária ou determinados por este Código»). Na perspectiva material da actividade dos entes colectivos (por contraposição à perspectiva da sua estrutura organizatória) – que é aquela que releva a propósito da imputação de condutas individuais a uma pessoa colectiva –, pode entender-se o órgão como o indivíduo cuja actuação é imputada ao ente colectivo. Estando em causa uma conduta correspondente a uma declaração de vontade, é evidente que as regras estatutárias sobre os processos deliberativos internos tendem a assumir maior relevância (cfr. a mencionada definição legal constante do artigo 20.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo). Mas, tratando-se de simples actuações materiais, nada obsta a que a imputação se fundamente com base numa actuação em nome do ente colectivo e no seu interesse (representante) ou na circunstância de o mesmo indivíduo dispor no âmbito de tal ente de autoridade ou de uma posição de liderança para controlar a respectiva actividade. Nessa medida, faltando uma definição legal própria aplicável no domínio específico do RGCO, e abstraindo de argumentos teleológicos e outros argumentos sistemáticos (por exemplo, uma maior adequação ao princípio da equiparação consignado no artigo 7.º, n.º 1, do RGCO), não se pode ter por absolutamente incompatível com o sentido literal do termo “órgão” referido no artigo 7.º, n.º 2, do RGCO um entendimento extensivo do mesmo, na linha da previsão das alíneas a) e b) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 11.º do Código Penal. De resto, o artigo 32.º do RGCO reforça tal entendimento: «em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal» (e não, por exemplo, as do Código do Procedimento Administrativo).» Na hipótese em análise resulta da factualidade demonstrada que a queima dos resíduos inorgânicos foi levada a cabo pelos trabalhadores ao serviço da recorrente, por sua indicação, sendo certo que o responsável pela execução dos trabalhos de demolição que estavam a ser efectuados, e que originaram os ditos resíduos inorgânicos, era AA, engenheiro ao serviço da recorrente. Assim, dúvidas não existem de que os factos foram praticados pelos trabalhadores da recorrente, no exercício das suas funções, pressuposto que não pode deixar de ser considerado suficiente para responsabilizar a pessoa colectiva da actuação em causa, ao abrigo do preceituado no art. 7º, n.º 2, do RGCO. Acresce que, como supra já se disse, também resultou provado que a arguida dando o descrito destino aos resíduos, sem assegurar o seu tratamento em conformidade com os princípios da hierarquia dos resíduos e da protecção da saúde humana, bem como do ambiente, não actuou com o cuidado a que estava obrigada e de que é capaz, significando que a mesma, através dos seus órgãos, designadamente dirigentes, não agiu com a diligência necessária para evitar a queima dos resíduos, nomeadamente assegurando-se que, ao procederem aos trabalhos em causa, não procedessem a tal queima e providenciarem para que os resíduos fossem encaminhados de acordo com as normas legais de gestão dos mesmos. Ou seja, tal significa que, também em tal segmento, a decisão recorrida não merece qualquer censura. V- Decisão: Pelo exposto, acordam os Juízes da 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa: Negar provimento ao recurso interposto, confirmando-se, assim, a sentença recorrida nos seus precisos termos. * Custas pela recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça. * Lisboa, 26 de Setembro de 2024 Rosa Maria Cardoso Saraiva Ana Marisa Arnedo Jorge Rosas de Castro |