Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20106/23.7T8SNT.L1-1
Relator: RENATA LINHARES DE CASTRO
Descritores: INCOMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL DO COMÉRCIO
TRIBUNAL CÍVEL
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
DIREITOS SOCIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/21/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. A competência material dos tribunais afere-se em função do pedido deduzido e dos fundamentos que lhe estão subjacentes (causa de pedir).
II. Sendo os juízos do comércio competentes para, entre outras matérias, conhecerem e decidirem das acções referentes ao exercício de direitos sociais – artigo 128.º, n.º 1, al. c), da LOSJ -, por tais direitos dever-se-ão entender todos aqueles que   emergem do regime jurídico das sociedades comerciais (CSC ou contrato de sociedade).
III. Tal competência abrange os procedimentos cautelares respeitantes a tais acções – n.º 3 do mesmo artigo 128.º e artigo 78.º, n.º 1, al. c), do CPC.
IV. Estando em causa uma pretensão cautelar que tem em vista a instauração de acção tendente a obter a declaração de nulidade de um negócio de compra e venda de imóveis da sociedade, cujos fundamentos não assentam em vícios que se assumam como única e especificamente societários, o seu conhecimento e decisão compete aos juízos especializados cíveis e não aos juízos especializados de comércio.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.

I - RELATÓRIO
E … veio instaurar o presente procedimento cautelar comum contra Y …SA, L …, J …Lda. e P …, o qual concluiu peticionando:
“E) Deve o presente procedimento cautelar ser julgado provado e procedente e, em consequência, serem ORDENADAS as seguintes PROVIDÊNCIAS) Ser a 3.ª Requerida, J … Lda (…), a qualquer título e por qualquer fundamento, impedida de transmitir e/ou prometer transmitir, onerar e/ou prometer onerar, e/ou criar constrição por qualquer outra forma, independentemente do fundamento e causa, sobre os 11 (onze) imóveis a seguir identificados, até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na ação principal de que este procedimento cautelar será dependente: // 1) Fração autónoma D, edifício –A – rés-do-chão frente (…); // 2) Fração autónoma E, Segundo andar esquerdo (…); // 3) Fração autónoma F (…); // 4) Fração autónoma O (…); // 5) Fração autónoma E, primeiro andar esquer-o (…); // 6) Fração autónoma AB (“…”) (…); // 7) Fração autónoma AI (“…”) (…); // 8) Fração autónoma GAZ (…); // 9) Fração autónoma L (“Quinta Avenida”) (…); // 10) Fração autónoma D, terceiro andar (…); // 11) Fração autónoma AB (…);
B) A 3.ª Requerida, no prazo a ser determinado pelo Tribunal, mas nunca superior a 05 (cinco) dias, a contar da notificação da decisão do decretamento da providênca, notific–r - por carta com aviso de receção ou, no caso de a notificação por carta resultar frustrada (mas disso fazendo prova), por agente de execução - os arrendatários dos imóveis - nesta data arrendados ao abrigo dos contratos de arrendamento celebrados com a 1.ª Requerida -, identificados nos números 1), 2), 4), 5), 10) e 11) do pedido A) precedente, que, durante o presente procedimento cautelar, todas as rendas dos arrendamentos que incidem sobre os identificados imóveis, vencidas e vincendas, eventuais juros e quaisquer parcelas devidas que emerjam dos contratos de arrendamento, devem ser depositadas em conta à ordem do presente procedimento cautelar, a ser indicada por este Tribunal, até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na ação principal de que este procedimento cautelar será dependente, juntando aos autos prova do cumprimento da providência decretada, no prazo que vier a ser determinado pelo Tribunal;,
C) A 3.ª Requerida, no prazo a ser determinado pelo Tribunal, mas nunca superior a 05 (cinco) dias, a contar da notificação da decisão do decretamento da providênca, notific–r - por carta com aviso de receção ou, no caso de a notificação por carta resultar frustrada (mas disso fazendo prova), por agente de execução – a HR HOLIDAY RENTAL MADEIRA, UNIPESSOAL, LDA (…) FUNCHAL (Holiday Rental Madeira), que todos os valores, a qualquer título, devidos pela gestão ou sublocação do imóvel identificado no número 9) do pedido A) precedente, devem ser depositados em conta à ordem do presente procedimento cautelar, a ser indicada por este Tribunal, durante todo o curso do presente procedimento cautelar, até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na ação principal de que este procedimento cautelar será dependente, juntando aos autos prova do cumprimento da providência decretada, no prazo que vier a ser determinado pelo Tribunal.
D) A 3.ª Requerida, no prazo a ser determinado pelo Tribunal, mas nunca superior a 05 (cinco) dias, informar ao Tribunal se, com a transmissão dos 11 imóveis, foi celebrado contrato de arrendamento ou de qualquer direito de uso e gozo e/ou de serviços para a exploração, a qualquer título, dos imóveis identificados nos números 3), 6) 7) e 8), do pedido A), em data anterior à notificação da decisão do decretamento da providência. Em caso positivo, notific–r - por carta com aviso de receção ou, no caso de a notificação por carta resultar frustrada (mas disso fazendo prova), por agente de execução – os arrendatários ou os prestadores de serviços, de que todas as receitas, de qualquer natureza, oriundas dos referidos imóveis, devem ser depositadas em conta à ordem do presente procedimento cautelar, a ser indicada por este Tribunal, até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na ação principal de que este procedimento cautelar será dependente, juntando aos autos prova do cumprimento da providência decretada, no prazo que vier a ser determinado pelo Tribunal.
F) Até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na ação principal de que este procedimento cautelar será dependente, juntar aos autos qualquer aditamento e/ou novo contrato de arrendamento e/ou de prestação de serviços relativos aos imóveis identificados no pedido de letra A) precedente, e depositar as receitas oriundas das RENDAS E/OU DOS CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, em conta à ordem do presente procedimento cautelar, a ser indicada por este Tribunal, durante todo o curso do presente procedimento cautelar, até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na ação principal de que este procedimento cautelar será dependente, juntando aos autos prova do cumprimento da providência decretada, no prazo que vier a ser determinado pelo Tribunal.
E) Devendo, em qualquer dos casos (pedidos de letras A) a F)), as providências serem decretadas com dispensa da audiência prévia da 1.ª Requerida e da 3.ª Requerida, nos termos do artigo 366.º, n.ºs 1 parte final e 6 do Código de Processo Civil, com as legais consequências.
E) Mais se requer a emissão imediata de certidão para efeitos de registo, nos termos dos artigos 3.º, n.º 1, alínea d) c/c 8.º-A, n.º 1, alínea b) e 53.º, todos do Código do Registo Predial.”
Para tanto, e em síntese, alegou:
Que, em 04/12/2023, a 1.ª Requerida (da qual a Requerente e a 2.ª Requerida são accionistas, juntamente com N …) vendeu a totalidade do seu património imobiliário (dos quais resultavam exclusivamente as receitas da mesma) à sociedade 3.ª Requerida. // À data, a 2.ª Requerida era administradora única da sociedade e tinha já conhecimento de que havia sido convocada para o dia seguinte (05/12/2023) uma assembleia geral, cujo ponto um da ordem de trabalhos era a sua destituição do cargo, com justa causa, conforme veio a acontecer (a partir dessa data passando a ser a requerente a administradora única). // O preço global declarado na escritura pública de compra e venda foi € 3.036.000,00, o qual deveria ser pago no prazo de cinco anos, sem qualquer garantia de cumprimento. // Parte dos imóveis alienados estão arrendados, um outro está sublocado e os demais são fruídos pela 2.ª Requerida, que tem residência num deles, correspondendo os demais a garagens. // Os imóveis foram vendidos pela 1.ª Requerida para “satisfazer interesse próprio da então administradora L …, para entidade a ela relacionada” (por intermédio da sociedade constituída para esse efeito em 30/11/2023, com um capital social de apenas € 2.000) – a aqui terceira requerida, da qual é sócio gerente o neto da segunda requerida (aqui 4.º Requerido). // O valor de mercado dos imóveis é de cerca de € 5.800.000,00. // Tal negócio, defende, é nulo por consubstanciar um “negócio celebrado por um administrador consigo próprio”, ainda que por interposta pessoa – artigo 397.º, n.º 2 do CSC – e, subsidiariamente, por consubstanciar um negócio simulado – artigo 240.º do CCivil. // Refere que o presente procedimento cautelar é preliminar de acção declarativa a ser proposta e tem em vista obter a declaração de nulidade e, subsidiariamente, de anulabilidade, do negócio referido.
Por fim, refere que, em causa, está “a proteção dos interesses sociais da 1.ª Requerida e, também de direitos sociais dos seus acionistas, inclusivamente da Requerente, acionista da 1.ª Requerida, que vem aqui exercer um direito social”, defendendo que “a forma como o pagamento do preço foi acordado corresponde a uma concessão de financiamento pela 1.ª Requerida, à 3.ª Requerida e, sendo assim, a 2.ª Requerida, na qualidade de ex administradora única estava obrigada a informar os Acionistas da operação visada, previamente, tendo ocorrido uma violação direta dos Estatutos”, bem como que a venda dos imóveis teve como “consequência direta o esvaziamento/descapitalização definitiva da 1.ª Requerida”.
Em 09/01/2024, o tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
“(…) Afigurando-se, face ao pedido deduzido e à causa de pedir em que o mesmo se funda, que este Juízo de Comércio carece de competência material para apreciar e julgar o presente procedimento cautelar – por, contrariamente ao invocado, não se vislumbrar que se esteja perante o exercício de um direito social – notifique a requerente para, querendo, em dez dias, se pronunciar (art. 3.º, n.º 3, do CPC, e art. 128.º, a contrario, da LOSJ).”
Em resposta, a requerente reiterou a competência material do tribunal (juízo do comércio), porquanto “está em causa o exercício de um direito social”, mais se visando a protecção dos interesses da 1.ª requerida e dos seus accionados, tanto mais que a 1.ª Requerida ficou impedida de realizar o seu objecto social e os seus accionistas ficaram privados do seu direito a quinhoar nos lucros.
Em 25/01/2024, o tribunal a quo indeferiu liminarmente o procedimento cautelar com fundamento na sua incompetência material.
Em tal decisão pode ler-se:
“(…) Nos termos do art.º 128.º, n.º 1, al. c), da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), n.º 62/2013 de 26.08, compete aos juízos de comércio preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais. // A questão que se coloca é a de saber se a acção de que o presente procedimento cautelar pretende ser preliminar, visando a declaração de nulidade da compra e venda referenciada, se enquadra na competência dos juízos de comércio, mais concretamente, na previsão do citado art.º 128.º, n.º 1, al. c), da LOSJ. (…) No caso dos procedimentos cautelares a competência afere-se, conforme resulta do disposto no art.º 364.º, n.ºs 1 a 3, do CPC, pela competência para a acção principal. // Não obstante o ênfase colocado no requerimento inicial na qualidade de accionistas da Requerente e da 2.ª Requerida, na prejudicialidade do negócio para a 1.ª Requerida e na violação do art.º 397.º, n.º 2, do CSC, o que está em causa é o pedido de declaração de nulidade de um contrato de compra e venda de imóveis realizado pela sociedade 1.ª Requerida a favor da sociedade 3.ª Requerida que, de acordo com o alegado, dissimula alienação da totalidade do património da empresa vendedora a favor da sua então administradora, com prejuízo para a sociedade e, presumivelmente // A violação da norma do art.º 397.º, do CSC não descaracteriza a nulidade invocada, limitando-se a reforçar a ilicitude da conduta alegada. Nomeadamente não consubstancia o exercício ou a tutela de direitos especificamente fundados no estatuto da sociedade ou cuja decisão implique a conformação do litígio de acordo com o regime do direito das sociedades.”
Concluindo depois:
“(… ) conclui este tribunal que a questão suscitada pela Requerente não se enquadra na previsão de qualquer das normas do art.º 128.º, da LOSJ, nomeadamente do seu n.º 1, al. c), o que conduz à incompetência para a causa, deste Juízo de Comércio, em razão da matéria. // Em conformidade com as disposições dos art.ºs 64.º, 96.º, al. a) e 97.º, do CPC, a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, que pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo até ao despacho saneador ou não havendo lugar a este até ao início da audiência final, se a questão respeitar unicamente aos tribunais judiciais. // A incompetência em razão da matéria constitui ainda excepção dilatória que implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar quando o processo o comportar (art.º 99.º, 1 e 577.º, al. a), do CPC). // Decide-se assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, por incompetência do tribunal em razão da matéria, indeferir liminarmente o requerimento inicial. (…)”.
Inconformada com tal decisão, dela veio a requerente interpor RECURSO, tendo formulado as CONCLUSÕES que aqui se transcrevem:
“1.ª - A ora Recorrente é acionista da 1.ª Requerida e detém 60% do seu capital social. A 1.ª Requerida tem o objeto social que consta da sua certidão comercial, incluindo a compra e venda de Imóveis. No âmbito da sua atividade adquiriu vários imóveis, sendo que a 04/12/2023 possuía o total de 11 imóveis que lhes geravam receitas mensais (de rendas de 6 imóveis e de exploração de alojamento local num deles). A 2.ª Requerida também é acionista da 1.ª Requerida e detém 20% do seu capital social, tendo sido administradora única da Sociedade até a sua destituição por justa causa na Assembleia Geral de Acionistas realizada no dia 05.12.2023 (“AG”). A 3.ª Requerida é uma sociedade unipessoal por quotas constituída às vésperas da celebração da Escritura Pública adiante referida e que tem como sócio e gerente o 4.º Requerido. Este sempre e apenas teve percurso estudantil, nem 20 anos possuía à data do negócio visado, é neto da 2.ª Requerida e beneficia de um “contrato de trabalho” celebrado com a 1.ª Requerida e, de um contrato de arrendamento sobre uma fração habitacional, celebrada pela 1.ª Requerida no Porto, onde o mesmo começou a cursar a universidade.
2.ª - No dia 04/12/2023 (véspera da AG) foi outorgada uma Escritura de Compra e Venda entre a 1.ª Requerida, representada pela 2.ª Requerida, então administradora única da Sociedade, na qualidade de vendedora, e a 3.ª Requerida, representada por seu sócio único e gerente único, na qualidade de compradora, por meio da qual a 1.ª Requerida vendeu “à 3.ª Requerida”, todos os imóveis de que era proprietária (11), pelo preço global de € 3.036.000,00, correspondente ao seu valor contabilístico (inferior ao valor de mercado), a ser integralmente pago pouco mais de cinco anos após a celebração da Escritura.
3.ª - Atendendo aos seus contornos, o negócio corresponde a ato que não é usual no comércio jurídico, foi realizado ao arrepio do interesse social da 1.ª Requerida e, (intencionalmente) sem qualquer pagamento, no interesse da 2.ª Requerida, deixando a sociedade sem os imóveis, sem dinheiro e sem capacidade para desenvolver a sua atividade, tal como prevista no artigo 3.º dos seus Estatutos Sociais, o que denota a prática de ato em violação dos Estatutos por atingir diretamente o seu objeto social. Além do mais, a operação em causa corresponde a uma concessão de financiamento pela 1.ª Requerida à “3.ª Requerida”, de modo que foi também violado o n.º 3 do artigo 23.º dos Estatutos da Sociedade. Acresce que a venda foi feita em violação do artigo 397.º n.º 2 do CSC. Assim sendo, a venda, além de desrespeitar os Estatutos Sociais e afetar diretamente o interesse social, afeta – no mínimo reflexamente - o direito dos sócios previsto no artigo 21.º n.º 1 alínea a) do CSC, de quinhoar nos lucros. Acresce ainda que o negócio provocou um dano grave à sociedade 1.ª Requerida (esvaziamento patrimonial e descapitalização), em detrimento do seu interesse social.
4.ª - O ato cuja declaração de nulidade se pretende obter na ação principal a ser proposta foi intencionalmente praticado para retirar os 11 imóveis do património da 1.ª Requerida e os integrar no património da ex administradora única, 2.ª Requerida, que para o efeito utilizou a 3.ª Requerida que é uma sociedade formalmente detida pelo seu neto o qual, no mínimo, atuou como pessoa interposta daquela, existindo claro abuso de personalidade, sendo o ato nulo por violação do n.º 2 do artigo 397º do CSC. Além disso, com o seu comportamento a 2.ª Requerida violou os deveres de diligência e de lealdade que como administradora se lhes impunham (artigo 64.º do CSC).
5.ª - A causa de pedir assenta essencialmente em violação de normas societárias e dos Estatutos da 1.ª Requerida e conduz à declaração de nulidade do negócio de venda, ao abrigo do artigo 397.º n.º 2 do CSC. Porém, (apenas) subsidiariamente, e caso assim não se entenda, o negócio é nulo porque simulado nos termos previstos no artigo 240.º do Código Civil, ou, se assim também não se entender, foi praticado com abuso de direito à luz do disposto no artigo 334.º do CC. Seja como for, o caso concreto consente na desconsideração da personalidade coletiva da adquirente, 3.ª Requerida, que há de ser considerada como sendo a própria 2.ª Requerida e/ou o 4.ª Requerido, pessoas singulares que agiram a coberto da personalidade coletiva da 3.ª Requerida.
6.ª - Entanto, em 25.01.2024 foi proferida Sentença que declarou a incompetência absoluta do juízo de comércio em razão da matéria e, em consequência, indeferiu liminarmente o Requerimento Inicial. A Recorrente não concorda com tal entendimento, pelo que o presente recurso tem por OBJETO a decisão de Indeferimento Liminar do Requerimento Inicial proferida na Sentença ora colocada em crise e, por FUNDAMENTO, erro de julgamento, que levou à declaração de incompetência absoluta pelo juízo de comércio. Tal erro decorre da distorção da realidade factual (error facti) e da aplicação do direito (error iuris), pelo que o decidido não corresponde à realidade ontológica e normativa subjacente à causa de pedir, tendo sido violados os artigos 1.º n.º 1; 6.º n.ºs 1, 2 (a contrário) e 4; 21.º n.º 1 alínea a); 64.º; e, 397.º do CSC; e, os artigos 40.º, 78.º e 128.º, n.º 1 alínea c) da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, Lei da Organização do Sistema Judiciário ("LOSJ").
7.ª – Tendo presente a causa de pedir a Sentença é parca, quer na síntese que faz dos factos (ou seja, na relevância que dá aos factos), quer na sua fundamentação. Tanto assim que, ao proferir a decisão de incompetência material absoluta do juízo de comércio, o Tribunal a quo se socorreu de decisões proferidas em 05 Acórdãos que levam à ou corroboram a posição que a Recorrente assumiu no Requerimento Inicial, no sentido de que o juízo competente para julgar a ação principal é o de comércio e, em consequência, o presente procedimento cautelar, sendo eles, Acórdão do STJ de 05.07.2018, processo 11411/16.0T8LSB.L1; do TRL de 11.11.2021, processo 9553/20.6T8LSB.L1-8 e, de 03.03.2022, processo 732/20.7T8CSC.L 1-6; do TRG de 16.09.2021, processo 461/19.4T8PRTA.G1 e, do TRE de 13.02.2020, processo 1601/19.9T8STR-A.E1.
8.ª Aderindo aos – supostos e mal compreendidos - entendimentos vertidos nos Acórdãos citados na Sentença, o Tribunal a quo concluiu que “a questão suscitada pela Requerente não se enquadra na previsão de qualquer das normas do art.º 128.º, da LOSJ, nomeadamente do seu n.º 1, al. c), o que conduz à incompetência para a causa, deste Juízo de Comércio, em razão da matéria.”. Sucede que, conforme análise que se fez de tais Acórdãos nos pontos 16 e 17, letras a), b), c) e d) da Parte III das presentes Alegações, nenhum deles sustenta a decisão do Tribunal a quo. Antes e ao contrário do entendimento vertido na Sentença, os referidos Acórdãos não ditam a incompetência material do juízo de comércio, na medida em que se baseiam ou em causas de pedir/situações distintas da dos presentes autos, ou tratam de matérias que reforçam a competência do juízo de comércio para preparar e julgar a ação principal.
9.ª - A teor da síntese, fundamentos e decisão proferida na Sentença, o Tribunal a quo ignorou – sem que o pudesse fazer – alegações da Recorrente no Requerimento Inicial (causa de pedir essencial), cujo fundamento é adstrito ao direito societário, situação que remete para o juízo de comércio a competência para preparar e julgar a ação principal e, por corolário, o procedimento cautelar, entre as quais:
a) O negócio celebrado violou os Estatutos Sociais (máxime dos artigos 3.º e 23.º n.º 3), e foi celebrado ao arrepio dos condicionamentos do n.º 2 do artigo 397.º do CSC, do interesse social, da manutenção da atividade da sociedade, da descapitalização da 1.ª Requerida e, dos interesses sociais dos acionistas.
b) O pedido de nulidade é sustentado no artigo 397.º do CSC e em abuso de personalidade da 1.ª Requerida, pela 2.ª Requerida, enquanto administradora única interveniente no ato;
c) O comportamento da 2.ª Requerida violou ainda o disposto no artigo 64.º do CSC.
d) As formalidades do n.º 2 do artigo 397.º do CSC não foram cumpridas;
e) A Recorrente é acionista da 1.ª Requerida e, ao pretender anular o negócio, tem em vista proteger não só o interesse social e os próprios Estatutos, como direito que se lhe assiste nos termos do artigo 21.º, n.º 1, alínea a) do CSC.
10.ª - Não se pode aceitar que o Tribunal a quo tenha alheado a causa de pedir por completo quando, máxime, envolve questões de cariz puramente societário evidenciadas no Requerimento Inicial, as quais, nem que seja por conexão e/ou especialidade relevante remetem a competência para o juízo de comércio. Só tal alheamento justifica o – com o devido respeito, errado – entendimento do Tribunal a quo no sentido de que: (a) o pedido de nulidade tem na base dissimulação. Ora esta hipótese não foi sequer foi mencionada e muito menos "dissecada" no Requerimento Inicial; antes, atendendo a tudo o que se alegou os atos praticados remetem sempre para o preenchimento do abuso de personalidade da 1.ª Requerida, pela ex-administradora 2.ª Requerida, situação que tem na base regime jurídico distinto do da “dissimulação”; (b) a norma do artigo 397.º do CSC limita-se a reforçar a ilicitude da conduta e "não consubstancia o exercício ou a tutela de direitos especificamente fundados no estatuto da sociedade ou cuja decisão implique a conformação do litígio de acordo com o regime do direito das sociedades". Neste particular a Sentença ignora os factos seguintes (i) o artigo 397.º do CSC é a causa fundante do pedido de decretação das providências cautelares e o será do pedido de nulidade na ação principal; (ii) à luz da lei processual não é apenas o pedido, mas sobretudo a norma fundamento do pedido principal que determina a competência do juízo; (ii) o artigo 397.º do CSC está inserido no regime próprio societário, pelo que tem elementos próprios de direito societário que não se prestam a ser "mero reforço da ilicitude da conduta", para "dissimulação", conforme concluiu, porém mal, o Tribunal a quo. A aceitar tal entendimento se retira a especialidade das normas de direito societário que conduzem a competência para o juízo de comércio. E, mesmo que se pudesse entender que existiu “dissimulação” (o que não se aceita), a solução sempre haveria de ser apreciada à luz do princípio da especialidade das normas. Ora, à luz de tal princípio, no cotejo entre normas que possam ter elementos semelhantes na sua base, prevalece sempre o regime especial que, in casu, seria sempre o societário.
11.ª - O circunstancialismo pelo qual a ora Recorrente concluiu pela nulidade do negócio não foi só o que consta da síntese da Sentença. Contudo, mesmo que se considerasse apenas este, o facto é que tal é, de igual modo, subsumível aos condicionalismos previstos no artigo 397.º do CSC. Consequentemente, o caso concreto teria sempre que ser interpretado à luz desta norma societária. Ora, sendo esta norma dirigida para as sociedades comerciais (artigo 1.º do CSC), nela existe um elemento social a considerar, sendo relevante ter em consideração que no condicionamento que tal norma estabelece está presente o fim social (vd. artigo 6.º n.ºs 1, 2 - a contrário - e 4 c/c com os anteriores, do CSC). Acresce ainda, a análise do comportamento dos Requeridos, em particular da 2.ª Requerida, dependeria sempre da análise de questões jus societárias, como seja a da legalidade e validade da venda da totalidade dos imóveis que eram da 1.ª Requerida, do fim do negócio, da intenção da 2.ª Requerida com a prática do mesmo, da vantagem especial obtida neste negócio, dos Estatutos Sociais da 1.ª Requerida, do cumprimento, ou não, dos condicionalismos impostos pelo artigo 397.º do CSC, pelo que, também por isto, a competência para julgar a ação principal a ser proposta pertence aos juízos de comércio.
12.ª - De tudo o quanto antes exposto, a conclusão é óbvia. Considerando a causa de pedir na qual os pedidos estão sustentados é por demais evidente que a preparação e o julgamento da ação principal e do procedimento cautelar exige a mobilização de normas específicas do regime do direito das sociedades, competindo aos tribunais de comércio decidir o litígio, porque emergente de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais. Além do mais, está em causa uma tutela jurisdicional de um direito social exercido por uma acionista detentora de 60% do capital social da 1.ª Requerida (a ora Recorrente) que encontra fundamento na proteção do interesse social, dos Estatutos Sociais e, consequentemente, do seu próprio interesse, sendo por demais evidente que o ato afetou, diretamente, direito social seu, qual seja, o direito ao lucro (previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 21.º do CSC). Assim sendo, está em causa o exercício de um direito social nos termos e para os efeitos do artigo 128.º n.º 1 alínea c) da LOSJ c/c os artigos 40.º e 78.º da LOSJ.
13.ª - A competência para julgar a ação é definida no momento da propositura da ação. No caso concreto, atendendo à causa de pedir da presente medida judicial que será refletida na ação principal, a competência é dos juízos de comércio.
14.ª - Para se atribuir a competência dos juízos de comércio à luz do artigo 128.º n.º 1, alínea c) da LOSJ, o que releva é o artigo 397.º do CSC, demais normas de direito societário e os Estatutos/Contrato Social serem a causa fundante e/ou reflexa do pedido. Efetivamente, pouco importa que aquele artigo e/ou outras normas societárias sejam invocadas em mera sede de defesa, porquanto, o que releva para remeter a competência para o juízo de comércio, é a causa de pedir (consubstanciada no articulado inicial) ter em linha de conta o regime de direito societário (que tem particularidades), incluindo os direitos sociais, por ser exatamente o objeto da medida judicial (no qual a causa de pedir tem particular interesse) que fixa a competência dos juízos. No caso presente está em causa o exercício do direito de ação pela Recorrente, que vem exercer direito social. Mas, mais do que isto, são as regras do direito societário que suportam a medida judicial, desde logo porque o pedido e a causa de pedir se baseiam, como se deixou largamente exposto, na violação do artigo 397.º do CSC e de resto do artigo 64.º também do CSC, que são normas com finalidades societárias específicas, além de em violação dos Estatutos Sociais. Assim sendo, é por demais evidente que a solução do litígio está integrada no domínio da jurisdição do Tribunal de Comércio, à luz do disposto nos artigos 40.º, 78.º e 128, n.º 1 alínea c) da LOSJ. Deste modo, o Tribunal a quo, ao se julgar materialmente incompetente na Sentença em crise, violou as referidas disposições.
15.ª - Nos termos do artigo 1.º n.º 1 do CSC, às sociedades comerciais aplicam-se as normas contempladas no Código das Sociedades Comerciais. No caso presente o ato foi - pelo menos formalmente quanto à 3.ª Requerida – praticado entre sociedades comerciais, pelo que esta disposição é diretamente aplicável, em observância do princípio da especialidade. Acresce que, conforme decorre do disposto no artigo 6.º n.ºs 1, 2 (a contrário) e 4 (c/c com os n.ºs anteriore), do CSC, sendo a capacidade de uma sociedade comercial conferida pela lei para o exercício de direitos e obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, os atos que extrapolem as liberalidades que possam ser consideradas usuais, são havidos como contrários ao fim desta, estando os órgãos de uma sociedade comercial obrigados a não excederem o objeto social e a não praticarem atos que levem à impossibilidade de prossecução do seu fim. Deste modo, tendo em consideração o ato concretamente praticado, os seus contornos e finalidade, a Sentença também violou as referidas disposições societárias.
Nestes termos,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, com as legais consequências. // Só assim será cumprido o Direito e feita Justiça!”
Não consta que tenha sido apresentada Resposta.
O recurso foi correctamente admitido.
Não obstante não tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 641.º, n.º 7 do CPC, considerando que estamos no âmbito de um procedimento cautelar, mostra-se justificada tal omissão.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, ressalvadas as questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, sem prejuízo de o tribunal ad quem não estar limitado pela iniciativa das partes, nem estar obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio - artigos 5.º, n.º 3, 608.º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2, 635.º, n.ºs 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC.
Assim, importa decidir se os juízos do comércio são materialmente competentes para conhecer e decidir do procedimento cautelar aqui em causa.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
As incidências fáctico-processuais são as constantes do relatório que antecede.
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
No caso dos procedimentos cautelares a competência afere-se pela competência para a acção principal – cfr. artigos 78.º, n.º 1, al. c), e 364.º, ambos do CPC -, porquanto aquele se configura como instrumental, acessório e dependente em relação à segunda.
Ocorrendo incompetência material do tribunal, excepção dilatória de conhecimento oficioso, a consequência será o não conhecimento do mérito da causa e a inerente absolvição dos réus/requeridos da instância – cfr. 278.º, n.º 1, al. a), 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, al. a), e 578.º, todos do CPC. Já segundo o n.º 1 do artigo 590.º do mesmo código, “Nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando (…) ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente (…)
No caso, foi o procedimento cautelar indeferido liminarmente com fundamento na incompetência material dos juízos do comércio para dele conhecer.
Vejamos se tal entendimento é passível de censura.
Os tribunais exercem o poder jurisdicional tendo subjacente a competência que lhes é conferida, no que aqui interessa, em função das matérias a conhecer, as quais, por seu turno, são determinadas por referência à causa de pedir e ao pedido deduzido na respectiva acção.
Por outras palavras, a competência do tribunal terá que ser aferida em função dos termos da acção, da pretensão deduzida pelo autor/requerente e dos fundamentos que lhe estão subjacentes (causa petendi), independentemente da idoneidade do meio processual utilizado e do mérito dessa pretensão[1].
O conceito de causa de pedir resulta do n.º 4 do artigo 581.º do CPC, correspondendo ao facto jurídico de que procede a pretensão deduzida. Será em face da concreta e real facticidade que as partes tiverem carreado para o processo (factos constitutivos da situação jurídica que se pretende ver reconhecida e que integram a previsão das normas jurídicas que justificam tal pretensão) que será delimitado o objecto deste último, sobre o qual o tribunal se irá pronunciar.[2]
Será, pois, em função da pretensão deduzida pela requerente que será determinado qual o tribunal materialmente competente para dela conhecer e decidir.
Sendo inquestionável que estamos em sede de competência dos tribunais judiciais – artigos 64.º do CPC e artigo 40.º da LOSJ (Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26/08, a qual foi já sujeita a diversas alterações, as últimas das quais introduzidas pelas Leis n.º 35/2023, de 21/07 e n.º  18/2024, de 05/02) -, discute-se se a mesma se encontra afecta aos juízos de competência especializada cível ou antes aos juízos de competência especializada de comércio – artigos 65.º do CPC e 40.º, n.º 2, 80.º, 81.º e 128.º da LOSJ.
Concretizando, importa decidir se o objecto processual do presente procedimento cautelar se enquadra no artigo 128.º da LOSJ, designadamente na al. c) do seu n.º 1, segundo a qual “[c]ompete aos juízos do comércio preparar e julgar (…) As ações relativas ao exercício de direitos sociais”.
Já no seu n.º 3, estatui-se que a competência referida no n.º 1 abrange, para além do mais, os respectivos incidentes e apensos, pelo que, sendo a acção principal da competência dos juízos de comércio, também o procedimento cautelar que a anteceda o será.
Isto posto, há que determinar o que se deverá entender por direitos sociais, por forma a concluir (ou não) no sentido de ser o exercício dos mesmos que está aqui em causa.
O tribunal a quo entendeu que assim não sucede, sustentando que, “[n]ão obstante o ênfase colocado no requerimento inicial na qualidade de accionistas da Requerente e da 2.ª Requerida, na prejudicialidade do negócio para a 1.ª Requerida e na violação do art.º 397.º, n.º 2, do CSC, o que está em causa é o pedido de declaração de nulidade de um contrato de compra e venda de imóveis realizado pela sociedade 1.ª Requerida a favor da sociedade 3.ª Requerida que, de acordo com o alegado, dissimula alienação da totalidade do património da empresa vendedora a favor da sua então administradora, com prejuízo para a sociedade e, presumivelmente // A violação da norma do art.º 397.º, do CSC não descaracteriza a nulidade invocada, limitando-se a reforçar a ilicitude da conduta alegada. Nomeadamente não consubstancia o exercício ou a tutela de direitos especificamente fundados no estatuto da sociedade ou cuja decisão implique a conformação do litígio de acordo com o regime do direito das sociedades.”
Já a apelante refuta tal entendimento, contrapondo: “a) O negócio celebrado violou os Estatutos Sociais (máxime dos artigos 3.º e 23.º n.º 3), e foi celebrado ao arrepio dos condicionamentos do n.º 2 do artigo 397.º do CSC, do interesse social, da manutenção da atividade da sociedade, da descapitalização da 1.ª Requerida e, dos interesses sociais dos acionistas. b) O pedido de nulidade é sustentado no artigo 397.º do CSC e em abuso de personalidade da 1.ª Requerida, pela 2.ª Requerida, enquanto administradora única interveniente no ato; c) O comportamento da 2.ª Requerida violou ainda o disposto no artigo 64.º do CSC. d) As formalidades do n.º 2 do artigo 397.º do CSC não foram cumpridas; e) A Recorrente é acionista da 1.ª Requerida e, ao pretender anular o negócio, tem em vista proteger não só o interesse social e os próprios Estatutos, como direito que se lhe assiste nos termos do artigo 21.º, n.º 1, alínea a) do CSC.”
A delimitação da competência material dos juízos comerciais, no que concerne à previsão da al. c) do n.º 1 do citado artigo 128.º, tem vindo a ser alvo de reflexão pela nossa doutrina e jurisprudência, não deixando de suscitar dúvidas, desde logo, em sede de aplicação casuística.
Desde logo há a referir que o facto de a requerente ser accionista da primeira requerida, por si só, não permite concluir no sentido de estarmos no âmbito do exercício de direitos sociais.
Para tanto impõe-se que a causa surja assente em normas que regem especificamente as sociedades comerciais.
Como se refere no acórdão do STJ de 26/10/2022 (Proc. n.º 4583/21.3T8VNF-B.G1, relator António Barateiro Martins), disponível in www.dgsi, como todos os demais que forem citados, “[a] expressão “direitos sociais” (constante da alínea c) do art. 128.º/1 da LOSJ) não equivale ou corresponde a “direito dos sócios”, devendo entender-se que, quando em tal alínea se fala em “ações relativas ao exercício de direitos sociais”, se está a pensar e a referir às ações que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, se está a pensar e a referir à ações em que estão em causa e são invocados os direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais quer mesmo terceiros.”
Mais acrescentando que a expressão direitos sociais constante da al. c) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ não significa direitos dos sócios (direitos que existem única e exclusivamente pelo facto de os seus titulares terem a qualidade de sócios[3]), mesmo que estes últimos sejam entendidos em sentido amplo, designadamente incluindo “todas aquelas situações em que o fim social está presente no comportamento do sócio (…)”.
Concluindo, então, que, quando aí se refere acções relativas ao exercício de direitos sociais dever-se-á entender “que está a querer referir-se às ações que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, que está a querer referir-se às ações em que estão em causa e são invocados os direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais quer mesmo terceiros (cfr., v. g., arts. 78.º e 79.º do CSC).”
Essencial é que estejam em causa direitos expressamente conferidos pela lei societária (ou pelo contrato de sociedade), direitos específicos do regime do direito das sociedades. Ou, como também se refere, que esteja em causa o contencioso societário, questões específicas do direito comercial/direito das sociedades comerciais, para as quais é necessária uma “especial preparação técnica e sensibilidade” (tal como esteve subjacente no pensamento do legislador aquando da criação dos juízos de comércio).[4]
Também assim entendeu o acórdão do mesmo tribunal de 24/02/2022 (Proc. n.º 1044/21.4T8LRA-A.C1.S1, relator João Cura Mariano), no qual se pode ler: “A expressão exercício de direitos sociais, utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º 1 do artigo 128.º, da LOSJ, para delimitar a competência dos tribunais de comércio, não deve ser equiparada a direito dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais.”
E, continua: “Relativamente à aplicação do direito societário, não é compreensível atribuir aos tribunais especializados para apreciar as questões comerciais, competência para julgar exclusivamente as ações onde estivesse em discussão direitos dos sócios, excluindo os demais litígios tendo por tema o regime das sociedades comerciais, não se vislumbrando qualquer razão que justifique essa distinção. Tal posição restritiva traça, arbitrariamente, uma linha de fronteira artificial no interior de uma matéria com um espaço próprio, não havendo razões para imputar o desenho dessa linha ao legislador, uma vez que é indiferente na execução de uma política de justiça, a relação da distribuição dos processos judiciais entre tribunais pertencentes á mesma ordem jurisdicional, como são os tribunais cíveis e os tribunais de comércio. // Para determinar se os tribunais de comércio são os competentes para julgar esta ação, há, pois, que apurar se o pedido deduzido e a respetiva causa de pedir respeitam a matéria especificamente regida pelo direito societário.”
Reportando ao caso, impõe-se concluir não estarmos perante a aplicação de direito que esteja exclusivamente sujeito a um regime específico da legislação sobre sociedades comerciais e que exija especial preparação técnica, experiência e sensibilidade para a resolução do litígio (como sucede nos juízos de comércio).
Com efeito, a pretensão da requerente deriva da celebração de um negócio de compra e venda entre as duas sociedades requeridas, sendo que tal negócio não emerge da lei societária ou do contrato de sociedade (antes se tratando de matéria de direito civil), sendo que o mesmo sucede com relação aos fundamento invocados para a pretendida nulidade – tratar-se de um negócio que mais não terá visado do que beneficiar a 2.ª requerida (por ter sido efectuado com sociedade com ela relacionada), sendo concretizado por montantes inferiores ao preço de mercado dos imóveis alienados e sem que a terceira requerida tenha desde logo pago (ou tenha sido garantido/assegurado tal pagamento nos cinco anos contratualizados); mais se tendo invocado, a título subsidiário, estarmos perante um negócio simulado, porquanto a intenção da segunda requerida era transferir todo o património da primeira requerida para a sua esfera pessoal e familiar.
Como a apelante expressamente referiu no seu requerimento inicial:
“O presente procedimento cautelar é preliminar de uma ação declarativa a ser proposta e visa assegurar a efetividade da decisão a ser proferida na ação a propor tendo em vista obter a declaração de nulidade e, subsidiariamente, de anulabilidade, do negócio de venda de 11 (onze) imóveis que integravam o (a totalidade do) património da 1.ª Requerida, titulado na Escritura de Compra e Venda, outorgada no dia 04/12/2023 entre a 1.ª Requerida, como vendedora, e a 3.ª Requerida, como compradora, no Cartório Notarial de Lisboa sito (…) e, consequente cancelamento dos respetivos registos de transmissão efetuados ao abrigo da referida Escritura (…)”
É certo que a mesma defende que tal negócio prejudicou os interesses da primeira requerida (da qual é acionista) – esvaziando-a dos seus bens, descapitalizando-a e obstando a que prossiga o seu objecto social –, nessa medida também afectando a requerente, desta feita, ao nível de a impedir de quinhoar nos lucros – al. a) do n.º 1 do artigo 21.º do CSC artigo 980.º do CCivil.
Porém, nem assim se poderá concluir estamos perante o exercício de direitos sociais nos moldes a que alude o artigo 128.º, n.º 1, al. c), da LOSJ.
Como decidiu o acórdão do STJ de 05/07/2018 (Proc. n.º 11411/16.0T8LSB.L1.S1, relator Abrantes Geraldes), “1. Compete aos juízos do comércio, além do mais, a apreciação das ações relativas ao “exercício de direitos sociais”, isto é, ao exercício de direitos que emergem especificamente do regime jurídico das sociedades comerciais. 2. Não se escreve nessa esfera de competência especializada a ação interposta pelo sócio de uma sociedade comercial contra essa sociedade e uma outra, na qual é formulado o pedido de declaração de nulidade de acordos que celebraram alegadamente inseridos numa atuação concertada de ambas com o objetivo de descapitalizarem a primeira sociedade. 3. Para além de em tal ação também ser parte uma sociedade comercial na qual o A. não detém qualquer participação, o facto de estar em causa o vício de nulidade decorrente de simulação contratual afasta qualquer especificidade da matéria, objetivo que presidiu à delimitação da competência especializada dos juízos do comércio, inscrevendo-se a referida ação na competência residual dos juízos cíveis.”  
Por assim ser, e como se defende neste aresto, “O facto de a procedência da ação determinar porventura a valorização patrimonial da sociedade respetiva e de, indiretamente, poder beneficiar o A., aumentando o valor da sua participação social ou incrementando, porventura, os dividendos que potencialmente lhe podem ser atribuídos, não é suficiente para se poder afirmar estarmos perante uma ação em que se exercita um direito social.”, mais acrescentando que “considerando quer o pedido quer a respetiva fundamentação, estamos perante uma ação na qual o A. ocupa uma posição semelhante àquela em que porventura estaria qualquer outro interessado, sendo que apenas de modo reflexo dela podem emergir efeitos que se reflitam na sua esfera jurídica. // Estão fundamentalmente em causa atos praticados por certos gerentes da 1ª R. em alegado conluio com a gerência da 2ª R. na qual o A. não tem qualquer participação social, sendo-lhe aplicável um regime jurídico que emerge do direito civil em geral, sem especial conexão com o regime que emerge do Cód. das Sociedades Comerciais e, dentro deste, com o preceituado acerca de direitos sociais.[5]
Subscreve-se, assim, o entendimento da 1.ª instância quando refere que “[a] violação da norma do art.º 397.º, do CSC não descaracteriza a nulidade invocada, limitando-se a reforçar a ilicitude da conduta alegada. Nomeadamente não consubstancia o exercício ou a tutela de direitos especificamente fundados no estatuto da sociedade ou cuja decisão implique a conformação do litígio de acordo com o regime do direito das sociedades.
E, diremos nós, o mesmo sucede com a alegação de ter sido violado o disposto no artigo 64.º do CSC (designadamente os deveres de cuidado e de lealdade).
A pretensão da requerente (acção principal a propor, relativamente à qual o presente procedimento cautelar é preliminar) tem natureza declaratória – obter a declaração de nulidade do negócio de compra e venda dos imóveis que integravam o património da primeira requerida. E, para tanto, importa recorrer às regras do direito civil.
Diferente seria se tal pretensão se traduzisse numa futura acção de responsabilização da segunda requerida (pela sua actuação enquanto administradora única e, nessa qualidade, pessoa que viabilizou o negócio de compra e venda dos imóveis), mas tal intento não foi invocado nos autos para solicitar e justificar o decretamento do procedimento cautelar.
Como refere Coutinho de Abreu[6], a competência especializada dos tribunais de comércio prende-se com questões relacionadas com a atividade das sociedades comerciais e o regime jurídico-societário da responsabilidade da administração assenta em pressupostos específicos concernentes aos deveres dos gerentes e administradores das sociedades, de que decorre a especificidade da matéria quanto aos pressupostos da responsabilidade civil envolventes. Acresce que, continua o mesmo autor, a responsabilidade civil dos administradores apresenta-se como responsabilidade especial, construída predominantemente em torno de disposições específicas.
Na acção principal a propor, segundo refere a própria apelante, não será a actuação da segunda requerida que se irá discutir (em termos de uma eventual responsabilidade civil – indemnizatória – para com a sociedade), mas antes a validade do acto de disposição dos bens imóveis que integravam o património da 1.ª sociedade.
Sendo certo que a segunda requerida agiu enquanto administradora única da primeira requerida, importa referir que no objecto social desta última está incluída a compra e venda de imóveis, mas também que tal objecto compreende ainda muitas outras actividades[7].
Veja-se também que resulta do artigo 23.º dos Estatutos da primeira requerida que compete ao Conselho de Administração, designadamente, “b) Adquirir, alienar e onerar direitos, bens móveis e imóveis” (como invocado no artigo 20.º do requerimento inicial).
O direito de peticionar a nulidade da compra e venda não se mostra expressamente conferido pela lei societária (ou pelo contrato de sociedade) e o teor do artigo 397.º do CSC não obsta a que assim se conclua.
Acresce que sequer estamos em face de um negócio outorgado entre a primeira requerida e a sua então administradora única (segunda requerida), mas antes entre aquela e uma outra sociedade (a terceira requerida).
Como escreve José Ferreira Gomes[8], “[p]ara o que ora nos interessa – negócios entre a sociedade e um sócio controlador – parece que, de acordo com o seu teor literal, o artigo 397.º CSC abrange apenas os negócios que, concedendo vantagens especiais ou não sendo compreendidos no próprio comércio da sociedade, sejam celebrados (directamente ou por interposta pessoa) com acionistas que sejam simultaneamente administradores da sociedade.”
Se é certo que o n.º 2 do artigo 397.º do CSC refere serem nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, mesmo que por pessoa interposta, sempre se terá que recorrer aos critérios gerais civilísticos para aferir se assim sucedeu, designadamente ao n.º 2 do artigo 579.º do CCivil (e mesmo que no conceito de pessoa interposta se venham a abranger outras situações para além das previstas neste n.º 2).
Como defende Coutinho de Abreu[9], incluem-se no conceito de pessoa interposta não só as referidas no artigo 579.º, n.º 2 do CCivil – cônjuge do administrador, pessoas de quem seja herdeiro presumido ou qualquer pessoa que, de acordo com o administrador, negoceie com a sociedade a fim de transmitir posteriormente a este o direito recebido da sociedade – mas ainda “outros sujeitos, singulares ou coletivos, próximos do administrador, em suma, todos os sujeitos que ele pode influenciar diretamente” (v.g., uma sociedade de que o administrador é sócio maioritário). [10]
Igualmente não nos leva a concluir em sentido diverso do decidido pela 1.ª instância o facto de a apelante invocar a violação do n.º 3 do artigo 23.º dos Estatutos da 1.ª requerida, segundo o qual, ir que “Em matérias que envolvam a contratação ativa ou passiva, pela Sociedade, de financiamentos superiores a €100.000(cem mil euros) ou a prestação de qualquer tipo de garantia pessoal ou real pela Sociedade, a Administração deverá informar os Acionistas com uma antecedência de, pelo menos, quinze dias a contar da data presumida para realizar a operação projetada.”
Com efeito, com a celebração da escritura de compra e venda, a propriedade dos imóveis transmite-se imediatamente para a terceira sociedade, sem prejuízo de gerar como obrigações a entrega daqueles bens e o pagamento do preço – cfr. artigo 879.º do CCivil. Ou seja, o não cumprimento desta segunda obrigação (não pagamento do preço), não obsta à transmissibilidade.
Daí que, como decorre do invocado pela apelante, é o negócio de compra e venda que a mesma visa atacar – a transmissão dos imóveis -, por via da sua invocada nulidade. Saber se o preço foi pago ou não (por forma a poder traduzir um qualquer “financiamento” da primeira à terceira sociedades) é já questão distinta – cfr. artigos 883.º, 885.º e 886.º do CCivil.
E, a estar em causa a celebração de um negócio consigo mesmo (como defende a apelante), a norma convocada será o artigo 261.º do CCivil (só sendo de recorrer ao disposto no n.º 2 do artigo 397.º, n.º 2 do CSC, se se demonstrar que o negócio foi celebrado por pessoa interposta, o que nos conduz à lei civil, assim como o prévio preenchimento deste conceito indeterminado mostra-se igualmente necessário para que se possa concluir pela invocada vantagem concedida à segunda requerida, quanto a um putativo “financiamento”); assim como para aferir da celebração de um negócio simulado ou em abuso de direito, as normas serão as dos artigos 240.º e 334.º, respectivamente, do mesmo código.
Assim também sucede com o invocado instituto do levantamento ou da desconsideração da personalidade jurídica o qual, não obstante não ter expressa consagração legal, fundamenta-se nos princípios gerais de abuso de direito, má fé e intuito de prejudicar terceiros (os quais são, todos eles, conceitos civilísticos).
Os fundamentos invocados para a nulidade do contrato de compra e venda não são especificamente societários, não sendo única e exclusivamente no âmbito do direito societário que o litígio poderá ser decidido (o pedido deduzido e a respectiva causa de pedir não respeitam a matéria especificamente regulada pelo direito societário).
Como recentemente se entendeu no acórdão do STJ de 22/02/2024 (Proc. n.º 617/16.1T8VNG.P2.S1, relatora Maria Olinda Garcia), “O facto de o conflito apresentado pelas autoras se desenvolver no âmbito da vida interna de várias sociedades (ou das relações entre elas), tendo, portanto, uma origem societária, em sentido amplo, e podendo, eventualmente, ter subjacente a violação de normas de direito societário, não significa que a imediata causa de pedir e o pedido tenham natureza dominantemente societária. Como é sabido, múltiplas decisões tomadas no âmbito da vida das sociedades (que podem implicar também a violação de normas de direito societário) acabam por ter consequências de natureza normativa diversa, como, por exemplo, contraordenacional, fiscal, laboral, etc., não sendo, portanto, os tribunais de comércio os competentes para apreciar tal tipo de conflitos. // De igual modo, quando o resultado normativo que o autor pretende alcançar convoca, essencialmente (e, portanto, a título não subsidiário) quadros jurídicos de direito civil, a correspondente ação tem, consequentemente, natureza civil (ou dominantemente civil), sendo, portanto, adequada a intervenção dos tribunais de competência genérica. // Por outro lado, considerando o modo como o art.128º da LOSJ define a competência do tribunal de comércio (espartilhando-a em diferentes alíneas), conclui-se que o legislador não pretendeu consagrar um critério de abrangência total dessa competência a todos os conflitos de origem societária (ou gerados no âmbito da vida ou da dinâmica das sociedades comerciais). Se tivesse sido esse o propósito, certamente que o legislador o teria enunciado de forma clara, dizendo que os tribunais de comércio são competentes para conhecer de todos os conflitos respeitantes a matéria societária, em vez de ter estabelecido diferentes hipóteses de ações nas várias alíneas. // A configuração das alíneas dessa norma (que não tem natureza exemplificativa) leva, portanto, a concluir que as ações que não couberem nas diferentes hipóteses a que correspondem tais alíneas, serão reconduzidas ao critério supletivo que convoca os tribunais de competência genérica. É assim que a jurisprudência tem decidido (…). // No caso concreto, as autoras sustentaram a sua pretensão normativa [a declaração de nulidade dos contratos celebrados entre autoras e ré] na demonstração dos pressupostos da figura jurídica da simulação, regulada no artigo 240º e seguintes do CC. // A essencialidade dessa pretensão normativa não radica, assim, na obtenção de uma decisão diretamente sancionadora da violação de determinados direitos societários das autoras.” – sendo certo que o facto de, na situação a que se reporta este aresto, ter sido invocado, a título principal, a nulidade com fundamento em simulação, não leva a que seja posto em causa o que anteriormente se defendeu.
Em face de tudo o que se expôs, tendo subjacente que estamos em sede cautelar e que é a apelante quem expressamente refere que o procedimento aqui em causa é preliminar de acção a ser proposta com vista apenas a obter a declaração de nulidade e, subsidiariamente, de anulabilidade, do negócio de venda dos 11 imóveis e consequente cancelamento dos respetivos registos de transmissão[11], é nosso entendimento não estarmos perante um caso que se enquadre na previsão do artigo 128.º, n.º 1, al. c), e n.º 3 da LOSJ.
Nessa medida, nada nos apraz censurar à decisão recorrida, a qual não violou as disposições normativas invocadas pela apelante, nomeadamente os artigos 1.º n.º 1; 6.º n.ºs 1, 2 (a contrário) e 4; 21.º n.º 1 alínea a); 64.º; e, 397.º do CSC; e, os artigos 40.º, 78.º e 128.º, n.º 1 al. c), da LOSJ.
***
IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes desta Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação e, nessa sequência, manter a decisão recorrida.
Custas pela apelante.

Lisboa, 21 de Maio de 2024
Renata Linhares de Castro
Manuel Ribeiro Marques (vencido nos termos da declaração junta)
Isabel Maria Brás Fonseca
*
Voto de vencido:
Votei vencido por entender que, fundando-se a causa de pedir invocada a título principal em factos integradores da nulidade prevista no art. 397º, n.º 2, do CSC, nos encontramos perante um procedimento relativo ao exercício de direitos sociais, dado emergir do regime jurídico das sociedades comerciais (art. 128º, n.º 1, al. c) da LOSJ).
Daria, por isso, provimento ao recurso.
Manuel Marques
_______________________________________________________
[1] A competência do tribunal determina-se pelo quid disputatum (quid decidendum, por contraposição com aquilo que será mais tarde o quid decisum) – cfr. MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 91.
[2] Vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio da auto-responsabilidade das partes, corolário do princípio do dispositivo, incumbe às partes decidir quais os factos que pretendem invocar e qual a estratégia processual que pretendem adoptar, sendo que, no entanto, terão igualmente de assumir as consequências que daí lhes poderá advir.
[3] Quer se tratem de direitos gerais (entre os quais, os previstos no artigo 21.º do CSC) ou de direitos especiais (resultantes do contrato de sociedade).
[4] Como se pode ler no acórdão da Relação de Coimbra de 03/05/2016 (Proc. n.º 851/14.9TBCLD-A.C1, relator Fonte Ramos), “Na atribuição de competência especializada aos Tribunais do Comércio para preparar e julgar as acções relativas ao exercício dos direitos sociais e que têm por objeto questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais, releva a circunstância de estarmos perante matérias que exigem especial preparação técnica e sensibilidade e envolvem dificuldades/complexidades que podem repercutir-se também na respectiva solução”, para as quais “são necessários, naturalmente, conhecimentos especiais para que estão mais vocacionados os tribunais a que foi atribuída competência especializada nessa área (tribunais do comércio) relativamente aos tribunais cíveis.”
[5] Cfr. também o acórdão da Relação de Lisboa de 11/11/2021 (Proc. n.º 9553/20.6T8LDB.L1, relator António Valente), em cujo sumário se pode ler: “Visando o autor na acção intentada que seja decretada a anulação de um contrato de cessão de quota, sendo a relação materialmente controvertida composta, objectivamente, pelos vícios conducentes a essa nulidade e que não visam o exercício de um direito social do Autor – apesar de ser evidente que o negócio em causa o prejudicou patrimonialmente enquanto participante no capital da 1ª Ré – então de acção se trata cuja preparação e julgamento não incumbe aos Tribunais/juízos de Comércio.”
[6] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. I, Almedina, 2.ª edição, pág. 941.
[7] Como a própria apelante refere no artigo 16.º do requerimento inicial, “a 1.ª Requerida tem por objeto social o “Alojamento, incluindo o alojamento local de curta duração, arrendamento de imóveis; actividades de gestão e administração de imóveis; prestação de serviços de gestão, marketing e consultoria imobiliária, compra e venda de imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, promoção imobiliária, importação, exportação, comercialização e aluguer de veículos automóveis; prestação de serviços de consultoria e de apoio aos negócios e à gestão”.
[8]Conflito de interesses entre accionistas nos negócios celebrados entre a sociedade anónima e o seu accionista controlador”, in PAULO CÂMARA (coord.), Conflito de interesses no direito societário e financeiro: Um balanço a partir da crise, Almedina, 2010, capítulo II, pág. 102.
[9] Responsabilidade civil dos administradores de sociedades, Almedina, 2.ª edição, 2010, pág. 27, nota 42, e Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Vol. VI, Almedina, págs. 343/344.
[10] Nesse sentido, veja-se, também, o acórdão do STJ de 26/05/2021 (Proc. n.º 3282/14.7T8SNT.L1.S1, relatora António Barateiro Martins), sendo que, no entanto, neste aresto, ao contrário do presente caso, a pretensão do autor era claramente indemnizatória, de responsabilização do administrador único da sociedade (por violação dos respectivos deveres enquanto tal), o qual havia constituído com o seu irmão uma outra sociedade (da qual era co-gerente) – pretensão juridicamente suportada, como alegado, nos artigos 72.º, 77.º, 78.º, n.º 1 e 79.º, todos do CSC.
[11] O que foi referido no requerimento inicial e reiterado no requerimento apresentado em 23/01/2924 e nas alegações de recurso.