Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | GUILHERMINA FREITAS (VICE-PRESIDENTE) | ||
Descritores: | CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL CONTAGEM DOS JUROS DE MORA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 12/11/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Sumário: | I-Existindo legislação especial, quer quanto a taxas de juro de mora, quer quanto à forma do seu cálculo, o que incluiu, necessariamente, a determinação do início da mora, relativamente às dívidas por contribuições à segurança social, é esta a legislação aplicável aos pedidos de indemnização deduzidos em processo de natureza criminal que tenha por objecto crime de abuso de confiança contra a segurança social e não a legislação geral. Aliás, mal se entenderia que estando em causa a indemnização devida pela prática de um crime, os juros de mora fossem mais benévolos do que os devidos pela constituição em mora pelo atraso no cumprimento, ainda possível, da prestação devida. II-Em todo o caso, as dívidas originadas pela omissão de entrega das contribuições devidas à segurança social estão determinadas, sendo, por isso, líquidas no momento em que a entrega deveria ter ocorrido e portanto antes da dedução do pedido de indemnização civil. É esta omissão de entrega das contribuições que corporiza o facto ilícito típico. Significa isto que há lugar à aplicação do n° 2 do art. 805° do C. Civil e não do seu n° 3, como foi decidido na sentença em crise, existindo mora independentemente de interpelação do devedor, quer porque se trata de obrigação com prazo certo, quer porque ela provém de facto ilícito tipico. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9.' Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa I. Relatório 1. Nos autos com o n.° 184/ 17.8T9LRS, a correr termos no Juízo Local Criminal de Loures — Juiz 1, foram os arguidos Elevado & Competente — Construção Civil, Lda, pessoa colectiva n.° 508705193, com sede na Rua …………….., cave direita, Vale Figueira, São João da Talha, Loures; e AA, filho de BB, natural da freguesia do Campo Grande, concelho de Lisboa, nascido em ………., casado, empresário, residente na Avenida ………….., Montijo, acusados - o arguido, pessoa singular, da prática, na forma consumada e em autoria material de um 1 (um) crime de abuso de confiança contra a segurança social, p. e p. pelo art. 107.°, n.°s 1 e 2, com referência ao art. 105.°, n.°s 1, 4 e 7, ambos do Regime Geral das Infracções Tributárias (doravante, também, designado R.G.I.T.); - a sociedade arguida é responsável pela prática de tal crime, nos termos dos arts. 7°, n.°s 1 e 3, e 12°, n.° 3, ambos do R.G.I.T., bem como do art. 90°-B, n.° 3, do C.P. O Instituto da Segurança Social, I.P. deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia de 14.159,87€, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos, calculados de acordo com a legislação especial de que beneficia a Segurança Social, constante do artigo 3.° n.° 1 do DL 73/99, de 16 de Março, até integral e efectivo pagamento. 2. Realizado julgamento foi proferida decisão nos termos seguintes: Nestes termos, e pelo exposto, julgo a acusação procedente, nos termos demonstrados e, em consequência. decide-se: Parte criminal a) Condenar a arguida "Elevado & Competente — Construcão Civil, Lda.", como responsável pela prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. pelo art. 107°, n. °s 1 e 2, por referência ao art. 105°, n. °s 1. 4 e 7, ambos do R.G.I.T. e 30°, n.° 2, e 79°, n.° 1, ambos do C.P., nos termos dos arts. 7°, n. °s 1 e 3, e 12°, n.° 3, ambos do R.G.I.T., bem como do art. 90°-B, n.° 3, do C.P., na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à razão de 5,00e (cinco euros) diários. um total de 1.500,006 (mil e quinhentos euros). b) Condenar o arguido AA, pela prática, como autor material e na forma consumada, um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na _forma continuada. p. e p. pelo art. 107', n. °s 1 e 2, com referência ao art. 105°, n. °s 1, 4 e 7, ambos do R.G.IT., e arts. 30°, n.° 2, e 79°, n.° 1, ambos do C.P., na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão de 5,00e (cinco euros) diários, um total de 750,00e (setecentos e cinquenta euros). c) Condenar cada um dos arguidos em 3 e Y. (três e meia) U.C. de taxa de justiça, reduzida a metade por forca da confissão integral e sem reservas. e nas restantes custas, sendo ainda devidos honorários às Ilustres defensoras nomeadas (nos termos da Portaria 1386/2004 de 10 de Novembro). tudo responsabilidade dos arguidos (cfr. arts. 513° e 514°, ambos do C. P. P.). Parte civil a) Julga-se o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante, parcialmente procedente e, em consequência, condena-se os demandados/arguidos "Elevado & Competente — Construção Civil, Lda." e AA,, no pagamento de 14.159,87e (catorze mil cento e cinquenta e nove euros e oitenta e sete cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescido de juros de mora. contabilizados a partir da prolação da presente decisão, nos termos do A.U.J. do Supremo Tribunal de Justiça. 4/2002. de 17/1 (publicado na 1° série do D.R., de 27/6), até efectivo e integral pagamento. b) Custas a cargo de demandante/ofendido e demandados/arguidos. na proporção do decaimento (0-. art. 527°, 17. ° 2, do C.P.C). 3. Inconformado com a decisão, dela recorreu o demandante Instituto da Segurança Social, I.P. concluindo, em síntese, que a sentença deve ser revogada na parte em que condenou os arguidos/demandados no pagamento dos juros de mora contabilizados a partir da data da prolação da sentença, devendo antes os arguidos/demandados serem condenados no pagamento dos juros de mora peticionados, contabilizados desde a data em que cada uma das prestações contributivas devia ter sido paga, até efectivo e integral pagamento, revogando-se, ainda, a sentença recorrida na parte em que condenou em custas o recorrente na proporção do decaimento, condenando-se os arguidos/demandados na totalidade das custas do pedido civil. 4. O recurso foi admitido por despacho de fls. 268 dos autos. 5. O MP, junto da 1.a instância, apresentou resposta ao recurso, pugnando pela sua procedência. 6. Nesta Relação a Digna Procuradora Geral Adjunta apôs o seu visto, ruis termos e para os efeitos do disposto no art. 416.° do CPP. 7. Procedeu-se à conferência, cumprindo, agora, apreciar e decidir. II. Fundamentação 1. Delimitação do objecto do recurso É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (art. 410.°, n.°s 2 e 3, do CPP). Assim sendo, a única questão a apreciar por este Tribunal ad quem prende-se em saber se os juros de mora são devidos a partir da prolação da decisão recorrida, conforme nela foi decidido, ou antes desde a data de vencimento de cada uma das prestações, nos termos previstos nos arts. 43.° e 211.°, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.° 110/2009, de 16/9, conforme defende o recorrente. 2. A decisão recorrida É do seguinte teor a decisão recorrida na parte que ora interessa: "VI — APRECIAÇÃO DO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL Resta apreciar a matéria do pedido de indemnização civil. Constata-se que, com o pedido de indemnização civil deduzido em fls. 189 e ss. dos presentes autos, o lesado "Instituto da Segurança Social, IP." pretende, através do instituto da responsabilidade civil extracontratual, obter a reparação dos danos patrimoniais emergentes da prática pelos demandados cíveis de um facto ilícito, conforme o disposto no n.° 1 do art. 483.° e art. 562.° do Código Civil aplicáveis ex vi art. 129.° do Código Penal . Assim, dispõe o n.° 1 do art. 483.° do Código Civil que: "Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação". Ora, cumpre assim verificar se se encontram preenchidos os respectivos pressupostos, ou seja: a) O facto voluntário, isto é, a conduta dominada ou dominável pela vontade; b) A ilicitude desse facto, que tanto pode consistir na violação de direitos de outrem como na infracção de normas preventivas destinadas à protecção de direitos alheios; c) A imputação do facto ao lesante, que tanto poderá ter lugar a título de dolo ou de negligência; d) O dano; e e) O nexo de causalidade entre o facto e o dano. Ora, tendo em consideração a factualidade apurada, desde logo resulta que se encontram preenchidos os pressupostos supra aludidos. De facto, de forma voluntária e consciente, os demandados (actuando o arguido, AA, na qualidade de gerente da arguida "Elevado & Competente — Construção Civil, Lda.", em nome e proveito desta), procederam ao desconto das cotizações dos salários pagos aos trabalhadores e membros dos órgãos estatutários, de Julho de 2012 a Março de 2014, no valor global de 14.159,876, não tendo entregado tais montantes na instituição da segurança social competente, nos prazos legais fixados para o efeito. Ora, tal conduta consubstancia, indubitavelmente, a prática de um facto ilícito, porquanto violador de disposição legal destinada a proteger interesses alheios. Na verdade, atentos os requisitos normalmente identificados pela doutrina , cuja verificação permitem invocar este fundamento da responsabilidade extracontratual, à lesão dos interesses do demandante cível corresponde a violação de uma norma legal destinada a proteger interesses alheios (sem que, no entanto, confira quaisquer direitos subjectivos), uma vez que tais factos integram a prática de um crime de abuso de confiança contra a segurança social. Além disso, a tutela destes interesses figura entre os fins da norma violada (interesses alheios legítimos ou juridicamente protegidos por essa norma), na medida em que subjacente àquelas incriminações está a tutela do bem jurídico erário da segurança social e o dano registou-se no círculo de interesses que a lei visava tutelar (a lesão concretizou-se nesse bem jurídico). Por outro lado, os demandados agiram voluntariamente, não podendo desconhecer que com as suas condutas lesavam os interesses do demandante, uma vez que sabiam que lhes competia providenciar pelo cumprimento da mencionada obrigação legal, apesar do que, de modo igualmente consciente e deliberado e com o propósito de alcançar, como alcançaram, um indevido e ilegítimo beneficio patrimonial, não permitiria à Segurança Social o devido recebimento de tais contribuições, delas se apoderando. Fizeram-no com a vontade livre e esclarecida. Acresce que, como consequência de tal conduta e da posterior não restituição daquela quantia, resultou directamente, para o demandante, um prejuízo naquele valor (uma vez que se viu privado daquela verba), verificando-se um nexo de causalidade adequado entre aquele facto e este dano. Em suma, conclui-se assim que estão verificados todos os pressupostos geradores da responsabilidade extracontratual e, consequentemente, da obrigação de indemnizar. Note-se que o arguido AA é pessoal e solidariamente responsável, nos termos previstos no art. 13° do Decreto-Lei n.° 103/80, de 9/5. Assim, constituindo o prejuízo causado ao demandante no valor global actual de 14.159,87€ estão os demandados obrigados a reconstituir a situação que existiria se tal facto não se tivesse verificado (cfr. art. 562.° do Código Civil), através da entrega ao demandante cível de igual montante, conforme peticionado. Peticiona, ainda, o demandante, o pagamento de indemnização correspondente aos juros moratórios vencidos e vincendos até integral pagamento, juros, esses resultantes da obrigação de indemnizar emergente da prática de facto ilícito. Resulta que tais juros são devidos, porém, apenas a partir da prolação da presente decisão, nos termos do A.UJ. do Supremo Tribunal de Justiça, 4/2002, de 17/1 (publicado na 1' série do D.R., de 27/6). Assim é, parcialmente, procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante." 3. Apreciando Como se refere no Ac. da RC de 22.02.2017, proferido no âmbito do Processo n.° 599/14.4TACBR.C1, disponível in www.dgsi.pt, com o qual se concorda, com a entrada em vigor, em 1 de Janeiro de 2010, do "Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social [CRCSPSSJ, aprovado pela Lei n.° 110/2009, de 16 de Setembro, que revogou o Dec. Lei n° 103/80, de 9 de Maio, o Dec. Lei n° 199/99, de 8 de Junho e o Dec. Lei n° 411/91, de 17 de Outubro (cfr. arts. 5° n° 1, b), j) e o) e 6°, n° 1 da referida lei), as contribuições para as instituições de segurança social devem ser pagas até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que disserem respeito (art. 43.9, sendo devidos juros de mora por cada mês de calendário ou fracção, pelo não pagamento das contribuições nos prazos legais (art. 211.º), sendo a taxa de juros de mora igual à estabelecida no regime geral dos juros de mora para as dívidas do Estado e outras entidades públicas, e aplicada nos mesmos termos (art. 212.9. Por sua vez, o n.° 1 do art. 3.° do Dec. Lei n.° 73/99, de 16 de Março, com a alteração introduzida pela Lei n° 3-B/2010, de 28 de Abril, passou a ter a seguinte redacção: A taxa de juros de mora tem vigência anual com início em 1 de Janeiro de cada ano, sendo apurada e publicitada pelo Instituto de Gestão da Tesouraria e do Crédito Público, I. P. (IGCP, I. P.), através de aviso a publicar no Diário da República, até ao dia 31 de Dezembro do ano anterior. (...) Existindo legislação especial, quer quanto a taxas de juro de mora, quer quanto à forma do seu cálculo, o que incluiu, necessariamente, a determinação do início da mora, relativamente às dívidas por contribuições à segurança social, é esta a legislação aplicável aos pedidos de indemnização deduzidos em processo de natureza criminal que tenha por objecto crime de abuso de confiança contra a segurança social, e não a legislação geral. Aliás, mal se entenderia que estando em causa a indemnização devida pela prática de um crime, os juros de mora fossem mais benévolos, do que os devidos pela constituição em mora pelo atraso no cumprimento, ainda possível, da prestação devida. Em todo o caso, as dívidas originadas pela omissão de entrega das contribuições devidas à segurança social estão determinadas, sendo por isso, líquidas, no momento em que a entrega deveria ter ocorrido e portanto, antes da dedução do pedido de indemnização civil. Por outro lado, como já tivemos oportunidade de dizer, é esta omissão de entrega das contribuições que corporizam o facto ilícito típico. Significa isto que há lugar à aplicação do n° 2 do art. 805° do C. Civil [e não, do seu n° 3, como foi decidido na sentença em crise], existindo mora independentemente de interpelação do devedor, quer porque se trata de obrigação com prazo certo, quer porque ela provém de facto ilícito. " No mesmo sentido se pronunciou o Ac. do STJ de 6/2/2014, bem como os Ac. da RL de 12/1/2016, 23/2/2016, 13/9/2016 e da RP de 26/5/2015, proferidos no âmbito dos Proc. 2020/08.8TAVFX.L1.S 1, 599/13.1TDLSB.L1 -5, 6149/13.2T3SNT.L1-5, 9048/13.4TDLSB.L1-5, 684/11.4TAVLG.P2, respectivamente. Daqui decorre que assiste razão ao demandante devendo, em consequência, os demandados Elevado & Competente — Construção Civil, Lda e Rui Orlando Teixeira Xavier serem condenados a pagarem-lhe a quantia de € 14.159,87, acrescida de juros de mora à taxa prevista no n.° 1 do artigo 3.° do DL n.° 73/99, de 16 de Março, contados a partir do termo do prazo em que cada uma das quantias referentes às quotizações deduzidas (período entre Julho de 2012 até Março de 2014) deveriam ter sido entregues ao demandante, até integral e efectivo pagamento. III. Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes na 9.a Secção Criminal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o recurso interposto pelo demandante Instituto da Segurança Social, I.P. condenando-se os demandados Elevado & Competente — Construção Civil, Lda e AA, a pagar-lhe, para lá da quantia de € 14.159,87, os juros de mora, à taxa prevista no n.° 1 do artigo 3.° do DL n.° 73/99, de 16 de Março, contados a partir do termo do prazo em que cada uma das quantias referentes às quotizações deduzidas (período entre Julho de 2012 até Março de 2014) deveriam ter sido entregues ao demandante, até integral e efectivo pagamento, revogando-se, ainda, a sentença recorrida na parte em que condenou o demandante em custas na proporção do decaimento, condenando-se, agora, os demandados na totalidade das custas do pedido de indemnização civil. Custas do recurso pelos demandados civis (arts. 523.° do CPP e 527.°, n.°s 1 e 2 do CPC). Lisboa, 11 de Dezembro de 2019 Guilhermina Freitas José Sérgio Calheiros da Gama |