Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1093/24.0T8PDL.L1-4
Relator: MARIA JOSÉ COSTA PINTO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
PROVA PERICIAL
IPATH
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/28/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Não há nulidade por falta de fundamentação (artigo 615.º do CPC) nem insuficiência da motivação da matéria de facto (artigo 662.º do CPC) se a sentença fundamenta em termos suficientes a sua divergência face à maioria pericial expressa na junta médica.
A fixação da natureza da incapacidade integra a matéria de facto mas resulta de uma operação complexa, que envolve a emissão de juízos de valor sobre certos factos.
Os ónus de impugnação da matéria de facto devem ser entendidos em conformidade com esta configuração específica da matéria em causa, que não se resume ao relato cru de acontecimentos concretos.
O parecer dos serviços competentes do ministério responsável pela área laboral sobre as características das funções exercidas pelo sinistrado e das exigências do respectivo posto de trabalho, tem a natureza de prova pericial, sendo a sua força probatória fixada livremente pelo tribunal.
A incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual surge quando o trabalhador vítima do sinistro fica impedido, em virtude das sequelas dele emergentes, de executar as tarefas concretas e essenciais, caracterizadoras ou definidoras do trabalho habitual a que se dedicava à data do acidente.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:~

П
1. Relatório
1.1. Os presentes autos emergentes de acidente de trabalho em que é sinistrado AA e entidade responsável a Fidelidade, Companhia de Seguros S.A., tiveram a sua origem no acidente sofrido pelo sinistrado em 04 de Maio de 2023, quando exercia as suas funções laborais ao serviço da Marques Ambiente, Lda..
No decurso da fase conciliatória, o sinistrado foi submetido a exame médico singular, concluindo o Exmo Perito Médico no seu relatório que o sinistrado se encontrava afectado de uma IPP de 27% a partir de 16 de Setembro de 2024.
Realizada a tentativa de conciliação sob a presidência do Ministério Público (fls. 60 e ss.), a mesma frustrou-se em virtude de o sinistrado não ter concordado com o grau de incapacidade de 27% de IPP que lhe foi atribuído pelo Sr. Perito Médico na fase conciliatória. O que determinou, então, a não conciliação entre as partes (vide o auto de fls. 60 e ss.).
O sinistrado requereu exame por junta médica.
Apresentou, além do mais, os seguintes quesitos1:
«(…)
5. De que forma a perda de visão monocular impacta diretamente a execução das tarefas habituais na profissão do sinistrado (IPATH)?
6. A alteração da visão afeta a perceção de profundidade, campo visual e coordenação motora necessária para o desempenho da profissão?
(…)
17. Qual é o grau de incapacidade permanente atribuído à perda total da visão no olho esquerdo, com base na Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais?
18. Qual é o impacto acumulado da perda funcional e da alteração estética no grau de incapacidade total?
(…)»
O Mmo. Juiz a quo determinou a realização de junta médica, definiu o âmbito da perícia e solicitou aos serviços da Direcção Regional de Qualificação Profissional e Emprego a emissão do parecer a que alude o art.º 21º, nº 4, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, conjugado com o ponto 5., alínea a), das instruções gerais da Tabela Nacional de Incapacidades.
Realizada a junta médica, os Exmos. Peritos responderam aos quesitos que se enunciaram e concluíram, por unanimidade, ser o coeficiente global de incapacidade de que o sinistrado se mostra afectado de 27% e, por maioria, que o mesmo não se mostra afectado de IPATH.
A Direcção Regional de Qualificação Profissional e Emprego emitiu o parecer constante de fls. 79 e ss., no qual concluiu que “as sequelas físicas resultantes do acidente de trabalho não se coadunam com as condições físicas necessárias para as funções descritas, não podendo, assim, o trabalhador sinistrado voltar a exercer o núcleo de funções essenciais da sua profissão de operário fabril e categoria profissional de servente, com exercício de funções em central de britagem, não aparentando ser possível a reconversão, ou seja, a adaptação do posto de trabalho às limitações do sinistrado de modo que continue a desempenhar, de forma substancial, as tarefas anteriormente executadas”.
Notificadas as partes do resultado do exame médico e do referenciado parecer, nada vieram alegar ou requerer.
O Mmo. Julgador a quo proferiu em 21 de Fevereiro de 2025 sentença que concluiu com o seguinte dispositivo:
«[…]
Pelo referido, atentas as orientações atrás explanadas, e ponderados todos os princípios e normas jurídicas que aos factos apurados se aplicam, julga o Tribunal a acção nos seguintes termos:
a) fixa-se, em favor do sinistrado, AA, uma incapacidade permanente parcial (IPP) de 40,5% (27% x 1,5), com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH);
b) fixa-se, em favor do sinistrado, uma pensão anual, no valor de € 8408,23, devida desde 17 de Setembro de 2024, a ser paga em 14 prestações mensais (com o subsídio de férias a ser pago em Junho e o subsídio de Natal a ser pago em Novembro de cada ano);
c) fixa-se, em favor do sinistrado, um subsídio por situação de elevada incapacidade, no valor de € 5.522,54;
d) condena-se a seguradora, Fidelidade – Companhia de Seguros, SA, a pagar ao sinistrado a pensão e o subsídio fixados em b) e c);
e) condena-se a seguradora a pagar ao sinistrado os juros de mora devidos sobre as prestações acima fixadas, calculados à taxa legal, desde a data do seu vencimento até definitivo e integral pagamento.
*
Custas a cargo da seguradora.
*
Valor: € 133.420,13 (€ 127.897,59 + € 5.522,54).
[…]»
*
1.2. A seguradora interpôs recurso desta decisão, tendo formulado, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões:
“1. Vem a Recorrente interpor o presente recurso de apelação tem por objeto a Sentença proferida pelo Juízo do Trabalho de Ponta Delgada, no âmbito do processo judicial n.º 1093/24.0T8PDL, por intermédio da qual se fixou ao sinistrado uma IPP de 40,5% com IPATH, correspondente a uma IPP de 27% acrescida do factor de bonificação 1,5, desde 17 de Setembro de 2024 (data seguinte à data da alta).
2. O sinistrado sofreu um acidente de trabalho em 4 de Maio de 2023.
3. Após ter recebido a participação de acidente de trabalho, a entidade responsável diligenciou no sentido de prestar toda a assistência médica e clínica necessária ao sinistrado em virtude do acidente ocorrido.
4. Os serviços clínicos da entidade responsável atribuíram uma incapacidade permanente parcial IPP) de 27% (vinte e sete por cento).
5. Realizou-se perícia médica singular em 14/11/2024, tendo a Senhora Perita Médica concluído exactamente nos mesmos termos dos serviços clínicos da entidade responsável, ou seja, atribuindo uma IPP de 27% sem IPATH.
6. Realizou-se a Tentativa de Conciliação nos autos em 18/12/2024 e o sinistrado manifestou a sua discórdia com o grau de desvalorização que lhe fora atribuído tanto pela entidade responsável como, posteriormente, pela perícia médica singular realizada, tendo requerido a sua submissão a exame por Junta Médica.
7. Realizou-se em 30/01/2025 o exame por Junta Médica, tendo resultado desta perícia médica um entendimento maioritário (Perito Médico em representação do Tribunal e Perito Médico em representação da entidade responsável) uma IPP de 27% sem IPATH.
8. Em 21/02/2025 foi proferida a Sentença dos autos e que ora se coloca em crise, por intermédio da qual o Tribunal fixou ao sinistrado uma IPP de condenou a aqui entidade responsável IPP de 40,5% com IPATH, correspondente a uma IPP de 27% acrescida do factor de bonificação 1,5, desde 17 de Setembro de 2024 (data seguinte à data da alta).
9. O Tribunal de primeira instância, na sentença ora em análise e que ora se coloca em crise, veio, pois, considerar que o sinistrado, na sequência do acidente de trabalho dos autos, ficou afetado de IPATH, factualidade com a qual a aqui Recorrente não se conforme, sendo este o objecto do presente recurso.
10. A Recorrente não concorda com a atribuição de IPATH nos presentes autos porquanto o Tribunal a quo apenas atendeu ao estudo do posto de trabalho elaborado nos autos para justificar tal atribuição, fazendo autêntica tábua-rasa daquilo que foi o entendimento maioritário que resultou da Junta Médica (Perito Médico em representação doTribunal e Perito Médico em representação da aqui Recorrente).
11. Também na perícia médica singular realizada nos autos (exame médico singular do INML) a Senhora Perita Médica não havia concluído pela atribuição de IPATH.
12. Os Peritos Médicos concluíram, de forma maioritária, na Junta Médica realizada nos autos a pela não atribuição de IPATH ao sinistrado, considerando que as sequelas são compatíveis com o trabalho habitual e que, mesmo admitindo esforços acrescidos/adaptações no local de trabalho, o sinistrado encontra-se perfeitamente capaz de exercer a sua actividade profissional.
13. Esta maioria foi composta pelo Perito Médico da entidade responsável (aqui Recorrente) e pelo Perito Médico do INML em representação do próprio Tribunal.
14. Salvo o devido respeito, é entendimento da aqui Recorrente que a sentença não se encontra devidamente fundamentada, porquanto, pese embora o Tribunal possa livremente apreciar a prova, nomeadamente o resultado da Junta Médica, certo é que para afastar ou divergir do entendimento pericial deve (o Tribunal) fundamentar devidamente tal entendimento.
15. O Tribunal desconsiderou não só o resultado do Auto de Exame Médico singular realizado em 14/11/2024 como, de igual modo, não logrou considerar o resultado maioritário da Junta Médica realizada nos autos, concretamente em 30/01/2025.
16. O Tribunal a quo sustenta e fundamenta a sua decisão quanto à atribuição de IPATH ao sinistrado apenas atendendo ao estudo do posto de trabalho que, como é bem de ver, não se trata de um parecer médico/técnico, mas sim de um mero estudo que elenca as tarefas habituais do sinistrado.
17. Os pareceres e estudos do posto de trabalho são apenas auxiliadores porquanto apenas indicam e elencam quais as actividades desenvolvidas pelos sinistrados no(s) seu(s) posto(s) de trabalho, cabendo a análise e pronúncia sobre a capacidade propriamente dita do sinistrado desempenhar essas tarefas apenas e tão só aos Peritos Médicos.
18. Veja-se, neste âmbito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 23/01/2025 e proferido no âmbito do processo judicial 4951/22.3T8VNF.G2, onde se concluiu, a este mesmo propósito, da seguinte forma: “Os pareceres e exames, como se refere no parecer do MºPº e resulta da lei, destinam-se a auxiliar os peritos médicos e o tribunal na apreciação da factualidade relativa à incapacidade. Veja-se o artigo 139º do CPT e o que consta das instruções gerais da TNI, referindo, designadamente para o caso de IPATH, a composição da junta médica e referenciando o inquérito profissional e análise do posto de trabalho, a fim de permitir “o maior rigor na avaliação das incapacidades resultantes de acidente de trabalho”, conforme instrução 13º da TNI. A análise do posto de trabalho tem pois em vista essencialmente permitir um maior rigor na avaliação da incapacidade, destinando-se porquanto a servir de apoio aos peritos médicos.”
19. Ficou expressamente claro nos presentes autos que o sinistrado continua a exercer a sua actividade profissional, tenho a Junta Médica concluído que o sinistrado está habilitado e capacitado para exercer as tarefas habituais inerentes à sua actividade profissional, admitindo que possam ser necessários esforços acrescidos ou adaptações do local de trabalho.
20. Nunca, em momento algum dos presentes autos, o sinistrado referiu estar afectado de IPATH. – Vide Auto Tentativa de Conciliação realizada nos autos em 18/12/2024.
21. Consta expressamente do Auto de Exame Médico singular o seguinte: “Vida profissional ou de formação: desempenha as suas atividades habituais embora com cansaço visual mais rápido. Evita tarefas como soldar e uso de rebarbadora para não comprometer o olho funcional sic..........” (sublinhado e negrito nossos) – Vide Auto de Exame Médico 14/11/2024
22. No que concerne à atribuição de IPATH, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 10/09/2024 e proferido no âmbito do processo judicial n.º 2009/22.4T8LRS.L1 (relatora Susana Silveira), onde se concluiu da seguinte forma: “Pese embora a força probatória que resulta da perícia por Junta Médica seja livremente apreciada pelo julgador, o juiz só deve divergir dos pareceres dos peritos que a compõem quando disponha de elementos seguros que lhe permitam fazê-lo. A atribuição de IPATH está reservada, como oportunamente se referiu, para situações em que as sequelas demandem a impossibilidade de desempenho das tarefas nucleares do posto de trabalho a que estava afecto o sinistrado. Não pode, até pelo impacto que tem na vida dos sinistrados – a impossibilidade de continuarem a exercer as tarefas que sempre executaram e para as quais estão habilitados, com importante relevância na sua futura capacidade de trabalho ou de ganho e nas dificuldades de ingresso em mercado de trabalho distinto – vulgarizar-se a sua atribuição ou atribuir-se em situações em que as sequelas apenas determinem mera limitação ou dificuldade na execução de algumas tarefas, sob pena de se desvirtuar o desiderato que lhe está subjacente.” (sublinhado e negrito nossos).
23. Nos presentes autos, não se vislumbra qualquer fundamento para atribuição de IPATH ao sinistrado.
24. Razão pela qual entende a Recorrente que é de concluir que se deverá proceder à alteração da decisão proferida, devendo o sinistrado ser considerado desvalorizado numa incapacidade permanente parcial de 27% (vinte e sete por cento) sem atribuição de IPATH, o que expressamente se requer.
Termos em que, deverá ser julgado o presente recurso totalmente procedente, por provado, na íntegra, devendo a Sentença recorrida ser revogada e substituída por outra, que acolha o resultado unânime da Junta Médica realizada e, por conseguinte, deverá ser fixada a incapacidade de 27% de IPP sem atribuição de IPATH, termos em que se respeitará o Direito, fazendo V.Exas. a habitual e tão desejada JUSTIÇA.”
1.3. O sinistrado, apresentou contra-alegações em que concluiu no sentido da manutenção da sentença recorrida.
1.4. Mostra-se lavrado despacho de admissão do recurso.
1.5. Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da manutenção da decisão recorrida em douto Parecer.
Foi cumprido o contraditório, sem que houvesse resposta.
Colhidos os “vistos” e realizada a Conferência, cumpre decidir.
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2. Objecto do recurso
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigo 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art.º 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho – ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal consistem em saber:
1.ª – se a sentença padece de falta de fundamentação;
2.ª – se deve no caso sub judice considerar-se o sinistrado afectado de IPATH, em consequência do acidente sofrido em 4 de Maio de 2023.
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3. A decisão de facto da 1.ª instância
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Na sentença da 1.ª instância, foram considerados provados os seguintes factos:
«1. Em 4 de Maio de 2023, AA encontrava-se admitido ao serviço de Marques Inovação e Ambiente, Lda. para exercício de funções sob as ordens, direcção e fiscalização desta última.
2. No âmbito destas funções, AA, como ‘operário’ / ‘servente de central de britagem’, procedia a:
a) prévia verificação do estado de máquina britadeira, para dar início à produção / transformação de pedra;
b) início à produção / transformação de pedra, com os comandos necessários para tal (neste caso, na ausência do operador habitual);
c) verificando-se a existência de alguma falha eléctrica na britadeira, quer na fase de prévia verificação, quer já na fase de produção, análise e identificação da avaria na sala dos disjuntores;
d) na sequência da acção descrita na alínea anterior, transmissão da informação ao operador da máquina, se necessário com intervenção de electricista;
e) tratando-se de ‘pequena avaria’, reparação da mesma sem necessidade de informar o operador e / ou chamar o electricista;
f) substituição das redes dos crivos desta máquina (com três tipos de rede, cujo diâmetro da malha pode ser inferior a 5 cm ou ascender aos 17 cm), alcançando os crivos através de uma escada vertical ou de uma plataforma elevatória
g) tratando-se da rede mais grossa, com 30 / 40 kg, recurso a uma grua e ao auxílio de um colega para a sua substituição;
h) no âmbito da acção descrita nas duas alíneas anteriores, desaparafusamento lateral, ‘à mão’ (com uso de uma ‘chave de boca e anel’ ou de uma ‘chave de caixa de roquete’) ou com ajuda de uma ‘pistola’ pneumática;
i) eventual soldadura de algumas destas redes, com utilização de máquina de soldar e de rebarbadora, com exposição à luminosidade e aos gases resultantes do processo de soldadura;
j) colocação da rede nova na posição correcta dos crivos, com ajuda de um varão de aço, em sintonia com um colega que, em simultâneo, procedia ao aparafusamento;
l) em caso de danificação do tapete rolante da britadeira, remoção desse tapete e colocação de um novo, com ajuda de uma grua, esticando-o o mais possível até a superfície de utilização ficar ‘plana’;
m) no âmbito da acção descrita na alínea anterior, passagem de uma corda por baixo do tapete, a qual, em momento posterior, passa por dentro de uma argola, com necessidade de precisão neste procedimento;
n) se necessário, substituição dos rolos do tapete rolante, face à análise da trepidação e do ruído provocados pelo desgaste;
o) substituição destes rolos com recurso a uma barra de aço, elevando-os, retirando-os com as duas mãos e introduzindo os novos rolos através do encaixe de marcas / ranhuras, com necessidade de concentração, precisão e visão clara;
p) em caso de avaria no motor da britadeira, remoção das pedras que se encontram no tapete, com necessidade de subida de umas escadas;
q) cumprimentos destas tarefas em contacto permanente com ‘muito pó’, dada a natureza das matérias-primas utilizadas.
3. As tarefas descritas no número anterior, de operagem e manutenção de máquina britadeira, exigiam-lhe força física, destreza manual e capacidade de visão, atenção e concentração.
4. A ‘responsabilidade por acidente de trabalho’ da sua empregadora, na data assinalada em 1), encontrava-se transferida para Fidelidade – Companhia de Seguros, SA, mediante a apólice nº AT65242740.
5. Nesta data, às 15:00 horas, no concelho de Ribeira Grande, AA, no exercício das suas funções, descritas em 2), ao martelar num barrote, foi atingido por este barrote, que ‘se soltou’, no seu olho esquerdo, sofrendo ferida na esclera deste olho, com descolamento da coroideia, e ficando, após a alta, com perda total da visão deste olho, para além da perda de ‘visão de profundidade’.
6. A seguradora aceitou, na tentativa de conciliação, os elementos caracterizadores destes factos como ‘acidente de trabalho’.
7. Na data destes factos, AA auferia uma retribuição anual no valor de € 14472,00.
8. Teve alta no dia 16 de Setembro de 2024.
9. A seguradora já entregou ao trabalhador a quantia calculada a título de indemnização por conta dos períodos de incapacidade temporária.
10. Como consequência do descrito em 5), AA:
a) apresenta uma incapacidade permanente parcial (IPP), com o coeficiente de 27%, tomando como referência o Capítulo V, 2.1, alínea h), da Tabela Nacional de Incapacidades;
b) e está afectado de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH);
11. AA nasceu no dia 24 de Novembro de 1982.»
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Em fundamento da sua convicção, o Mmo. Juiz a quo exarou o seguinte:
«A prova dos factos 1), 4), 5) – com excepção das lesões e sequelas –, 6), 7), 8) e 9) resulta do acordo quanto aos mesmos por parte do trabalhador e da seguradora, em sede de tentativa de conciliação.
Quanto à factualidade descrita em 2) e 3), o Tribunal atendeu ao parecer dos serviços da Direcção Regional de Qualificação Profissional e Emprego, a fls. 79 a 97, concretamente aos elementos e às informações recolhidos por estes serviços quanto às funções deste trabalhador à data deste evento (articulando os dados que foram recolhidos, quer junto do próprio trabalhador, quer também junto de empregadora), parecer cujo teor, deverá notar-se, não foi impugnado por nenhuma das partes.
No que diz respeito aos factos descritos em 5) – lesões e sequelas – e 10), conjugados com o não apuramento dos factos a), b) e c), nestes pontos da matéria o Tribunal valorizou a prova pericial, com o relatório do exame singular, realizado na fase conciliatória do processo, e o relatório do exame por junta médica, atendendo ainda, articuladamente, àquilo que se apura sobre as funções desempenhadas por AA à data deste episódio, descritas no referido parecer da Direcção Regional da Qualificação Profissional e Emprego.
Assim, e aprofundando esta matéria, as lesões oculares sofridas por AA estão descritas no relatório do exame singular, sem que, em junta médica, tivesse sido outro o entendimento quanto às mesmas. Para além do mais, os quatro peritos intervenientes nestes dois exames médicos foram unânimes quanto à sequela que o trabalhador apresenta e que passa pela perda total da vista esquerda, acrescentando ainda o perito apresentado pelo trabalhador em junta médica, com a especialidade de oftalmologia, que o mesmo ficou sem ‘visão de profundidade’, o que, de resto, não foi colocado em causa pelos outros peritos.
No mais, e em junta médica, a perita nomeada por indicação do Gabinete Médico-Legal e o perito apresentado pela seguradora concluíram que a tal sequela correspondia uma IPP arbitrada de 27%, à luz da Tabela Nacional de Incapacidades (TNI), o que constitui o coeficiente máximo, nos termos do Capítulo V, 2.1, alínea h), da Tabela (como, de resto, também já havia sido o entendimento da perita responsável pelo exame singular), ao passo que o perito indicado pelo trabalhador considerou que este coeficiente era “pouco”, devendo ascender a “60%”, assim defendendo sem qualquer argumento ou critério objectivo, desde logo sem qualquer sustentação na Tabela Nacional de Incapacidades.
No mesmo sentido, o perito apresentado pelo trabalhador, na resposta a vários dos quesitos formulados, insistiu na existência de um dano estético, o qual, pelo menos neste caso, com este tipo lesão, não é valorável à luz da Tabela Nacional de Incapacidades. E fez referência à existência de sequelas psiquiátricas (com mais uma IPP de 60%) resultantes, segundo se percebe do seu entendimento, do tal dano estético… não valorável à luz da TNI. O Tribunal considera, também nesta parte, mais sólida a posição dos dois outros peritos intervenientes no exame por junta médica, nomeado por indicação do Gabinete Médico-Legal e apresentado pela seguradora, segundo a qual as repercussões psicológicas / psiquiátricas habituais inerentes à sequela aqui em causa (a perda da visão esquerda) – sem que, neste caso, haja mais do que isso – já estão contempladas nos coeficientes de incapacidade previstos na TNI, assim se arbitrando, até pelo seu valor máximo, uma IPP de 27%. De resto, e coerentemente, segue-se o entendimento destes dois peritos quanto à não necessidade de transplante de córnea e de próteses, as quais apenas visam salvaguardar a componente estética.
Por fim, quanto à fixação da IPATH, aqui o Tribunal entende que é mais consentânea com a realidade e com o estado clínico do trabalhador a posição firmada pelo perito apresentado por este último, ao invés das conclusões a que chegaram, especificamente sobre esta matéria, os dois outros peritos que compuseram a junta médica. Com efeito, atendendo à sequela apurada, com a perda total da visão esquerda e a consequente perda da ‘visão de profundidade’ (a qual passa pela capacidade de alguém medir a distância a que estão os objectos e apurar o plano tridimensional no local onde se encontra), e ponderando, conjugadamente, as funções que AA, à data deste episódio, assumia como operário / servente de central de britagem, as quais passavam, no essencial, pela operagem e manutenção de uma máquina britadeira, sendo incumbido de tarefas como verificação de alguma falha eléctrica no funcionamento desta máquina, reparação de algumas avarias, substituição de redes deste aparelho, feita ‘em altura’ (com uso de escada vertical ou plataforma elevatória), aparafusamentos e desaparafusamentos, trabalhos de soldadura (com uso de máquina de soldar e de rebarbadora), substituição de rolos no tapete rolante, com introdução dos novos rolos através do encaixe de marcas / ranhuras (com necessidade de concentração, precisão e visão clara), remoção de pedras, e tudo isto em contacto permanente com ‘muito pó’, dada a natureza das matérias-primas usadas, num trabalho que, como se apurou (e até se mostra lógico), exige destreza manual e capacidade de visão, atenção e concentração, considera o Tribunal que, ficando este trabalhador, após a alta, precisamente com perda total da visão do olho esquerdo, assim como, necessariamente, com perda de ‘visão de profundidade’, estão reunidas as condições, não obstante ter sido outro o entendimento a que, neste ponto em particular, chegaram dois dos intervenientes na junta médica, para se concluir pelo apuramento, também, do facto 10-b), tendo AA, efectivamente, ficado afectado com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH).
O facto 11), por fim, é atestado tendo por base a certidão do assento de nascimento junta aos autos.»
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4. Da falta de fundamentação
Alega a recorrente que a sentença não se encontra devidamente fundamentada, porquanto, pese embora o Tribunal possa livremente apreciar a prova, nomeadamente o resultado da Junta Médica, para afastar ou divergir do entendimento pericial deve (o Tribunal) fundamentar devidamente tal entendimento (conclusão 14.ª).
A recorrente não qualifica o vício que deste modo imputa à sentença.
Designadamente não invoca qualquer nulidade da sentença nos termos do artigo 615.º do Código de Processo Civil, sendo certo que as nulidades da sentença previstas neste preceito não são de conhecimento oficioso.
Deduz-se da sua alegação que discorda de ter o Tribunal a quo concluído pela atribuição de IPATH ao sinistrado, ao arrepio do que foi o entendimento maioritário da Junta Médica e do entendimento da Senhora Perita Médica do INML na perícia singular, e de ter fundamentado a atribuição desta IPATH apenas e só no que consta de um mero parecer técnico que em nada fundamenta, em termos médicos e clínicos, a capacidade de um sinistrado de realizar as tarefas habituais que são inerentes à sua actividade profissional, preterindo toda a prova de onde resultam fundamentos clínicos e médicos devidamente fundamentados.
Pelo que o que pretenderá eventualmente, com a invocação da falta de fundamentação, será arguir a insuficiente motivação da decisão de facto, particularmente quanto à decisão de considerar o sinistrado afectado de IPATH.
A ausência (ou insuficiência) da justificação dos fundamentos de facto em que assenta a decisão não acarreta, efectivamente, qualquer consequência anulatória nos termos do preceituado no artigo 615.º do Código de Processo Civil.
O incumprimento do dever de motivação da decisão de facto previsto no artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil apenas pode, no circunstancialismo descrito no artigo 662.º, n.º 2, alínea d) e n.º 3, alínea d), determinar a baixa do processo à primeira instância para que o julgador sane a deficiência (com a concretização dos meios probatórios decisivos para a sua convicção).
Ora, na perspectiva de aferir de uma eventual patologia da decisão nos termos do artigo 662.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, cujo conhecimento é oficioso, deve sublinhar-se que o Mmo. Juiz a quo explicou suficientemente a fundamentação da sua convicção no que concerne aos factos provados e não provados nos termos que explanou na sentença, mesmo tendo em consideração o entendimento pacífico da jurisprudência no sentido de que o juiz só deve divergir dos pareceres dos peritos que compõem a junta médica quando disponha de elementos seguros que lhe permitam fazê-lo, devendo fundamentar a sua divergência2.
Não vemos que a sentença se encontre necessitada de maior fundamentação quanto a estas circunstâncias de facto, essenciais para o julgamento da causa, relativas à atribuição da IPATH – artigo 662.º, n.º 2, alínea d) do Código de Processo Civil.
Com efeito, o Mmo. Juiz a quo não deixou de enunciar as razões que o levaram a considerar demonstrada a IPATH, ao expressar a motivação da decisão de facto nos moldes que se transcreveram e dos quais destacamos que, na sua perspectiva, “atendendo à sequela apurada, com a perda total da visão esquerda e a consequente perda da ‘visão de profundidade’ (a qual passa pela capacidade de alguém medir a distância a que estão os objectos e apurar o plano tridimensional no local onde se encontra), e ponderando, conjugadamente, as funções que AA, à data deste episódio, assumia como operário / servente de central de britagem, as quais passavam, no essencial, pela operagem e manutenção de uma máquina britadeira, sendo incumbido de tarefas como verificação de alguma falha eléctrica no funcionamento desta máquina, reparação de algumas avarias, substituição de redes deste aparelho, feita ‘em altura’ (com uso de escada vertical ou plataforma elevatória), aparafusamentos e desaparafusamentos, trabalhos de soldadura (com uso de máquina de soldar e de rebarbadora), substituição de rolos no tapete rolante, com introdução dos novos rolos através do encaixe de marcas / ranhuras (com necessidade de concentração, precisão e visão clara), remoção de pedras, e tudo isto em contacto permanente com ‘muito pó’, dada a natureza das matérias-primas usadas, num trabalho que, como se apurou (e até se mostra lógico), exige destreza manual e capacidade de visão, atenção e concentração”, e ficando este trabalhador, após a alta, precisamente com perda total da visão do olho esquerdo, assim como, necessariamente, com perda de ‘visão de profundidade’, estão reunidas as condições para se concluir ter AA, efectivamente, ficado afectado com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH).
Nestas considerações radicando a sua conclusão de que a posição firmada pelo perito apresentado pelo sinistrado quanto à fixação da IPATH é mais consentânea com a realidade e com o estado clínico do trabalhador, do que as conclusões a que chegaram os dois outros peritos que compuseram a junta médica, e assim concluindo pelo apuramento do que ficou consignado no facto 10-b), não obstante ter sido outro o entendimento a que, neste ponto em particular, chegaram dois dos intervenientes na junta médica.
O que, a nosso ver, constitui fundamentação bastante, mesmo atendendo ao particular dever de fundamentar a divergência da maioria pericial que neste âmbito se coloca, mostrando-se devidamente evidenciadas as razões por que o Mmo. Julgador a quo enveredou por esse caminho e não sendo violado o comando expresso no artigo 607.º, n.º 4 do Código de Processo Civil, nem se justificando que nesta instância se determine melhor motivação nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Civil.
*
5. Da incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH)
5.1. Com o presente recurso, a recorrente refuta, essencialmente, a decisão constante da sentença de “considerar que o sinistrado, na sequência do acidente de trabalho dos autos, ficou afetado de IPATH, factualidade com a qual a aqui Recorrente não se conform[a]” e indica ser este “o objecto do presente recurso”.
Segundo alega, “não concorda com a atribuição de IPATH nos presentes autos porquanto o Tribunal a quo apenas atendeu ao estudo do posto de trabalho elaborado nos autos para justificar tal atribuição, fazendo autêntica tábua-rasa daquilo que foi o entendimento maioritário que resultou da Junta Médica (Perito Médico em representação do Tribunal e Perito Médico em representação da aqui Recorrente)” e da perícia médica singular (exame médico singular do INML) em que a Senhora Perita Médica não havia concluído pela atribuição de IPATH.
Invoca também que o tribunal a quo fundamentou a sua decisão quanto à atribuição de IPATH ao sinistrado apenas atendendo ao estudo do posto de trabalho “que não se trata de um parecer médico/técnico, mas sim de um mero estudo que elenca as tarefas habituais do sinistrado”, mas apenas auxiliador porquanto apenas indica quais as actividades desenvolvidas pelos sinistrados no seu posto de trabalho, “cabendo a análise e pronúncia sobre a capacidade propriamente dita do sinistrado desempenhar essas tarefas apenas e tão só aos Peritos Médicos”.
E defende que deve alterar-se a decisão proferida, sendo o sinistrado considerado desvalorizado numa incapacidade permanente parcial de 27% (vinte e sete por cento) sem atribuição de IPATH.
5.2. Deste desenho recursório resulta que o cerne da apelação consiste na impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, concretamente sobre o facto que ficou a constar do ponto 10. b) da sentença, cuja redacção completa se recorda:
“10. Como consequência do descrito em 5), AA:
a) apresenta uma incapacidade permanente parcial (IPP), com o coeficiente de 27%, tomando como referência o Capítulo V, 2.1, alínea h), da Tabela Nacional de Incapacidades;
b) e está afectado de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH)”
Ainda que para a afirmação desta factualidade seja, por natureza, necessária a emissão de juízos periciais, os mesmos constituem “juízos de facto” emitidos por pessoas com conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, sendo a própria lei substantiva (artigo 388.º do Código Civil) a indicar que a prova pericial pode consistir na emissão de juízos de valor sobre certos factos, tal como acontece com o nexo de causalidade entre um acidente e as lesões e sequelas que podem considerar-se dele decorrentes – mesmo que posteriores à data da alta – ou com o grau de incapacidade laboral temporária ou permanente que a estas corresponde.
O resultado probatório desses juízos é livremente apreciado pelo juiz (cfr. o artigo 389.º do Código Civil) e expresso na decisão de facto constante da sentença, a qual deve ter em consideração tais juízos periciais a par de outros meios de prova que tenham sido produzidos e que relevem para a definição da natureza e grau de incapacidade de que o sinistrado ficou afectado em consequência do acidente de trabalho objecto dos autos.
Por isso a sentença integrou – e bem – no elenco de factos provados os relacionados com a caracterização do acidente como de trabalho, com as lesões e sequelas de que o sinistrado padeceu em consequência desse evento, com as tarefas que integram o posto de trabalho do sinistrado e o que as mesmas exigem, com os factos necessários à quantificação das prestações eventualmente devidas e a entidade responsável pela sua satisfação, bem como com a natureza e grau de incapacidade laboral que lhes corresponde (vide os factos 1. a 11.).
5.3. Sendo assim, como é, deve desde logo dizer-se que a impugnação deduzida pela recorrente quanto ao que ficou provado no facto 10., mais propriamente na sua alínea b), não observa de modo muito ortodoxo os ónus legais de impugnação da decisão de facto impostos pelo artigo 640.º, n.ºs 1, e 2, do Código de Processo Civil, pois que a recorrente não assinalou nas suas conclusões qual o facto impugnado.
Todavia, não pode deixar de se ter presente que a determinação da incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual não pressupõe apenas juízos estritamente médicos, coenvolvendo a apreciação do concreto posto de trabalho do sinistrado, de quais as principais funções que o caracterizam e se é exigível ao trabalhador, face às lesões e sequelas sofridas, continuar a exercê-las3, tendo presente que para poder afirmar-se a IPATH não é necessário que o trabalhador fique incapaz para o exercício de todas as funções compreendidas no seu trabalho habitual, sendo suficiente, para tanto, a incapacidade para o exercício das funções essenciais a ele inerentes4.
A fixação da natureza da incapacidade integra a matéria de facto mas resulta de uma operação complexa, que envolve a emissão de juízos de valor sobre certos factos, o que nos leva a considerar que os ónus de impugnação da matéria de facto devem ser entendidos em conformidade com esta configuração específica da matéria em causa, que não se resume ao relato cru de acontecimentos concretos.
Tendo em consideração que, como temos repetidamente afirmado, o critério subjacente à definição da conformidade das conclusões com o comando dos artigos 639.º e 640.º do CPC está necessariamente relacionado com a respectiva aptidão para exercerem a sua função delimitadora e sinalizadora do campo de acção interventiva do tribunal de recurso, entendemos que deverá ser admitida a impugnação sempre que a deficiência no cumprimento dos indicados ónus não obstaculiza a percepção da matéria que se pretende impugnar. Neste sentido tem também decidido o nosso mais alto Tribunal, invocando que na verificação do cumprimento do ónus de alegação previsto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, os aspectos de ordem formal “devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, também eles presentes na ideia do processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição)5.
No caso vertente, a redacção da conclusão 9.ª, concatenada com as demais, não deixa dúvidas sobre qual o facto impugnado (a recorrente revela inequivocamente que não se conforma com a decisão de considerar o sinistrado afectado de IPATH). Por outro lado, na conclusão 24.ª a recorrente assinala o sentido da alteração pretendida, a saber, que se considere provado apenas que o sinistrado ficou desvalorizado numa incapacidade permanente parcial de 27% (vinte e sete por cento) sem atribuição de IPATH. Finalmente, são revelados também de modo inequívoco os meios probatórios em que a recorrente sustenta esta alteração que pretende, a saber, a maioria pericial expressa na junta médica e o exame singular realizado na fase conciliatória.
Entendemos, assim, nada obstar à apreciação da apelação na parte em que na mesma se questiona a decisão que ficou a constar do ponto 10. b) da decisão de facto.
5.4. Cabe, pois, analisar se pode considerar-se demonstrado nos presentes autos que o sinistrado AA se mostra afectado de incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH), incapacidade funcional que se mostra prevista no artigo 48.º, n.º 3, alínea b), da Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro (LAT), como decidiu a sentença, ou se, como alega a recorrente, o sinistrado se mostra simplesmente afectado de incapacidade permanente parcial de 27%, sem IPATH.
5.4.1. Nos termos do preceituado no artigo 20.º da LAT, “[a] determinação da incapacidade é efectuada de acordo com a tabela nacional de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais, elaborada e actualizada por uma comissão nacional, cuja composição, competência e modo de funcionamento são fixados em diploma próprio”, a saber, Tabela Nacional de Incapacidades aprovada pelo Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro (TNI).
E, de acordo com o artigo 21.º da LAT, relativo à avaliação e graduação da incapacidade, “[o] grau de incapacidade resultante do acidente define-se, em todos os casos, por coeficientes expressos em percentagens e determinados em função da natureza e da gravidade da lesão, do estado geral do sinistrado, da sua idade e profissão, bem como da maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível e das demais circunstâncias que possam influir na sua capacidade de trabalho ou de ganho” (n.º 1), sendo o coeficiente de incapacidade fixado “por aplicação das regras definidas na tabela nacional de incapacidades por acidentes de trabalho e doenças profissionais, em vigor à data do acidente” (n.º 3).
5.4.2. A incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual só surge quando o trabalhador vítima do sinistro fique impedido de executar as tarefas concretas e essenciais, caracterizadoras ou definidoras do trabalho a que se dedicava habitualmente à data do acidente, o qual pode, ou não, corresponder a uma categoria profissional institucionalizada.
Como escreve Carlos Alegre, “[a] noção de trabalho habitual é, mais uma vez, de contornos vagos e imprecisos. O trabalho de um trabalhador é, normalmente constituído por um conjunto de tarefas, nas quais (em uma ou mais) está suficientemente exercitado para fazer delas a sua função ou missão e diz-se que constitui o seu trabalho habitual. Ma não é habitual apenas porque é executado todos os dias – pode, até, não ser executado a largos espaços de tempo – é habitual, porque constitui aquilo que sabe fazer, em que se especializou, no que é a razão do seu emprego ao serviço de determinada entidade6.
Podendo não se traduzir numa impossibilidade de desempenho de todas as tarefas inerentes ao posto de trabalho, é entendimento pacífico que a incapacidade para o trabalho habitual se deve aferir em função do núcleo essencial das funções, seja do ponto de vista qualitativo, seja do ponto de vista quantitativo. Tal como vem dito no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 30 de Maio de 2018, “[o] exercício de uma profissão/trabalho habitual é caracterizado pela execução, e necessidade dessa execução, de um conjunto de tarefas que constituem o núcleo essencial dessa atividade profissional, não se podendo deixar de concluir que o sinistrado fica afetado de IPATH se as sequelas do acidente lhe permitem, apenas, desempenhar função meramente residual ou acessória do trabalho habitual de tal modo que não permitiria que alguém mantivesse, apenas com essa(s) tarefa(s) residual (ais), essa profissão/trabalho habitual”. E, continua o aresto, “definidas e enquadradas que sejam, na TNI, as lesões que o sinistrado apresente (questão esta de cariz essencialmente técnico/médico), o juízo a fazer quanto à questão de saber se as mesmas determinam, ou não, IPATH passa também pela apreciação de diversos outros aspetos, como o tipo de tarefas concretas que o trabalho habitual do sinistrado envolve, conjugado, se for o caso, com outros elementos probatórios e com as regras do conhecimento e experiência comuns, o que extravasa um juízo puramente técnico-científico”7.
5.4.3. Deve dizer-se que a questão da atribuição de incapacidade para o trabalho habitual se colocava na fase contenciosa do presente processo emergente de acidente de trabalho despoletado com o requerimento do sinistrado para realização de perícia por Junta Médica nos termos dos artigos 119.º, n.º 1, alínea b), e 138.º, n.º 2, ambos do Código de Processo do Trabalho, na medida em que na tentativa de conciliação o sinistrado sinalizou que discordava do acordo proposto pelo Digno Magistrado do Ministério Público por discordar da incapacidade que lhe foi atribuída.
Além disso, no requerimento com que despoletou a fase contenciosa, formulou quesitos especificamente sobre a matéria da IPATH, que, em conformidade, vieram a ser objecto de resposta pelo colégio de peritos da junta médica organizada nos termos do artigo 139.º do CPT.
E por isso se compreende que o Mmo. Juiz a quo tenha pedido aos serviços da Direcção Regional de Qualificação Profissional e Emprego a emissão do parecer a que alude o art.º 21º, nº 4, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro – nos termos do qual “[s]empre que haja lugar à aplicação do disposto na alínea b) do n.º 3 do artigo 48.º e no artigo 53.º, o juiz pode requisitar parecer prévio de peritos especializados, designadamente dos serviços competentes do ministério responsável pela área laboral”, conjugado com o ponto 5., alínea a), das instruções gerais da Tabela Nacional de Incapacidades.
Seja como for, está fora da área de disponibilidade do sinistrado a caracterização da natureza da incapacidade de que se mostra afectado em consequência do acidente de trabalho de que foi vítima, não tendo qualquer relevância para estes efeitos que, como alega a recorrente, o sinistrado não tenha referido na tentativa de conciliação estar afectado de IPATH, nem de algum modo esta circunstância veda a tribunal que a mesma se averigúe.
5.4.4. Na reapreciação da prova produzida a operar no caso vertente, haverão de ponderar-se as perícias médicas constantes do processo, a saber, o exame singular realizado na fase conciliatória (fls. 56 e ss.) e o exame por junta médica (fls. 76-77), em que a recorrente essencialmente se alicerça na sua apelação – cfr. os artigos 139.º e 140.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho.
Mas também cabe ponderar o Parecer da Direcção Regional do Emprego e Qualificação Profissional constante dos autos (fls. 79 e ss.) e invocado na sentença, que contém o “inquérito profissional” e o “estudo do posto de trabalho” do sinistrado, tendo presente que na determinação, avaliação e graduação da incapacidade devem observar-se as instruções constantes da TNI, para a qual remetem os artigos 20.º e 21.º da LAT e que, de acordo com o n.º 13 do Anexo I à TNI, a apreciação jurisdicional para avaliar as incapacidades resultantes de acidente de trabalho deve levar em conta, além do mais, o inquérito profissional, a análise do posto de trabalho, a história clínica e os exames complementares que se mostrem necessários.
O exame médico singular realizado na fase conciliatória (artigos 105.º e 106.º do CPT) e o exame por junta médica realizado na fase contenciosa (artigos 138.º e 139.º do CPT) constituem meios de prova pericial, como emerge expressamente da sua previsão legal.
Quanto ao parecer da Direcção Regional do Emprego e Qualificação Profissional, cuja junção foi ordenada por despacho judicial, prevendo a LAT a possibilidade da solicitação de parecer prévio, por parte do Tribunal, aos serviços competentes do ministério pela área laboral (n.º 4, do artigo 21.º da LAT) e tendo em conta as competências legais atribuídas aos respetivos órgãos e serviços regionais na aplicação deste diploma (cfr. o artigo 185.º da LAT)8, é também de considerar que tem natureza da prova pericial, sendo a sua força probatória fixada livremente pelo tribunal nos termos dos artigos 388.º e 389.º do Código Civil. Como se disse no recente Acórdão desta Relação de Lisboa de 9 de Abril de 2025, ainda que a propósito de um parecer emitido pelos serviços competentes do ministério responsável pela área laboral com competência no Continente, “a esta matéria subjaz tanto uma base factual como um juízo científico, pois deve considerar-se, não só as sequelas que o sinistrado apresenta, mas também as características do posto de trabalho do sinistrado, bem como as funções concretas que o mesmo desempenhava à data do acidente, e que deixou de desempenhar. Portanto, para além dos pareceres médico-periciais, é determinante a intervenção do IEFP, cujo parecer sobre as características das funções exercidas pela sinistrada e das exigências do respectivo posto de trabalho, corresponde também a um exame pericial, por emitido em matéria da sua competência (artigos 21º nº4. 48º nº3 b), 154º e 159º nº1 da LAT, e artigo 18º do Decreto-Lei 167-C/2013, de 31 de Dezembro), e que também está sujeito ao principio da livre apreciação da prova9.
Como defendem Pires de Lima e Antunes Varela, “o princípio da prova livre (por contraposição à prova legal: prova por documentos, por confissão e por presunções legais) vigora no domínio da prova pericial (ou por arbitramento), da prova por inspecção (artigo 391.º) e da prova por testemunhas (artigo 396.º)”10.
Mas prova livre não quer dizer prova arbitrária, «mas prova apreciada pelo juiz segundo a sua experiência, a sua prudência, o seu bom sendo, com inteira liberdade, sem estar vinculado ou adstrito a quaisquer regras, medidas ou critérios legais»11.
Assim, sem prejuízo da já referida necessidade de fundamentação da sua discordância – como, aliás, relativamente a qualquer decisão judicial (cfr. o artigo 154.º do CPC) –, quando o juiz não acompanha o parecer unânime, ou maioritário, dos peritos, a lei não coloca qualquer entrave a tal distanciamento ou divergência12, ainda que o juiz só deva dele divergir quando disponha de elementos seguros que lhe permitam fazê-lo, atenta a natureza essencialmente técnica das questões sobre que incide a perícia, estando os peritos mais vocacionados para sobre elas se pronunciarem.
5.4.5. Uma vez reapreciado o acervo probatório de que dispôs a 1.ª instância, segundo o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 389.º do Código Civil, e vistos os factos que ficaram assentes na sentença sem impugnação de qualquer das partes, podemos adiantar que convergimos com a decisão que o Mmo. Juiz a quo fez constar da sentença no que concerne à IPATH.
Senão vejamos.
É importante atentar, em primeiro lugar, em que se mostram assentes nos autos vários factos que este tribunal deve acatar por não impugnados na apelação.
Assim, mostram-se provadas as várias tarefas que prosseguia o sinistrado, à data do acidente, no âmbito das suas funções de operário/servente de central de britagem (facto provado 2.).
Mostra-se igualmente provado, sem impugnação das partes, que as tarefas de operagem e manutenção da máquina britadeira de que o sinistrado se mostrava incumbido, “exigiam-lhe força física, destreza manual e capacidade de visão, atenção e concentração” (facto provado 3.).
E, finalmente, mostra-se assente que no dia 4 de Maio de 2023, no exercício das suas funções, descritas em 2), ao martelar num barrote, o sinistrado foi atingido por este barrote, que ‘se soltou’, no seu olho esquerdo, sofrendo ferida na esclera deste olho, com descolamento da coroideia, e “ficando, após a alta, com perda total da visão deste olho, para além da perda de ‘visão de profundidade’” (factos provados 1 e 5.).
Passando à análise dos exames periciais, verifica-se que o realizado pela Exma. Perita do INML concluiu ser o coeficiente de incapacidade permanente parcial (IPP) resultante do acidente de 27,00%, integrando as sequelas sofridas (sem aquidade visual no olho esquerdo) no Cap. V, 2.1, alínea, h), da Tabela Nacional de Incapacidades, e não aludindo a qualquer incapacidade para o trabalho habitual.
Por seu turno a junta médica concluiu pelo mesmo grau de IPP de 27% e, por maioria, negou que o sinistrado se encontrasse afectado de IPATH, respondendo aos quesitos acima enunciados do seguinte modo:
Quesito 5. De que forma a perda de visão monocular impacta diretamente a execução das tarefas habituais na profissão do sinistrado (IPATH)?
Perito nomeado pelo sinistrado:
«Perante a perda de visão de profundidade perde a capacidade de executar com segurança as tarefas que executava à data do acidente.»
Peritos nomeados pelo tribunal e pela seguradora:
«Sem IPATH, acrescentando-se que o facto de existir um risco acrescido, obrigando a medidas de segurança também elas acrescidas, não impede o exercício da actividade profissional concreta, que poderá ser concretizada com as limitações inerentes à IPP de que ficou portador.»
Quesito 6. A alteração da visão afeta a perceção de profundidade, campo visual e coordenação motora necessária para o desempenho da profissão?
Perito nomeado pelo sinistrado:
«Sim, obviamente.»
Peritos nomeados pelo tribunal e pela seguradora:
«A perda total da visão afeta essa e outras percepções na justa medida, sendo por isso que corresponde a significativa incapacidade que lhe é atribuída.»
Quesito 17. Qual é o grau de incapacidade permanente atribuído à perda total da visão no olho esquerdo, com base na Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais?
Perito nomeado pelo sinistrado:
«Atendendo à idade do trabalhador e à incapacidade que o mesmo apresenta, é manifestamente pouco, devendo ser fixada uma IPP de 60%. Em relação às sequelas psiquiátricas deverá tomar-se como referência o Cap. X .3, grau IV, com uma IPP de 60%.»
Peritos nomeados pelo tribunal e pela seguradora: ´
«IPP de 27% com referência ao Cap. V 2.1. h) (0,23-0,27).»
Quesito 18. Qual é o impacto acumulado da perda funcional e da alteração estética no grau de incapacidade total?
Peritos nomeados pelo sinistrado pelo tribunal e pela seguradora:
«O impacto acumulado da perda funcional é expresso no coeficiente de IPP aqui fixado (sem prejuízo da discordância do perito apresentado pelo trabalhador, manifestada na resposta anterior).»
Quanto ao parecer da Direcção Regional de Qualificação Profissional e Emprego que se encontra a fls. 79 a 97, compreende a elaboração de “inquérito profissional” para efeitos de história profissional [n.º 5, alínea a), n.º 10 e n.º 13, alínea a) das instruções gerais da Tabela Nacional de Incapacidades constante do Anexo I ao Decreto-Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro] e uma “análise do posto de trabalho” do qual constam os vários elementos e informações recolhidos pelos serviços (articulando os dados que foram recolhidos, quer junto do próprio trabalhador, quer também junto de empregadora), dos quais se destacam as funções do trabalhador sinistrado à data do acidente.
Concluiu o parecer que “as sequelas físicas resultantes do acidente de trabalho não se coadunam com as condições físicas necessárias para as funções descritas, não podendo, assim, o trabalhador sinistrado voltar a exercer o núcleo de funções essenciais da sua profissão de operário fabril e categoria profissional de servente, com exercício de funções em central de britagem, não aparentando ser possível a reconversão, ou seja, a adaptação do posto de trabalho às limitações do sinistrado de modo que continue a desempenhar, de forma substancial, as tarefas anteriormente executadas”.
É de notar que nenhuma das partes impugnou o teor deste parecer ou de algum modo refutou o seu conteúdo.
Tendo em consideração aqueles factos que este tribunal deve ter por verificados, pois que não foram objecto de impugnação por qualquer das partes, e procedendo à análise atenta destes elementos periciais constantes dos autos, constatamos desde logo que os quatro peritos médicos intervenientes nos dois exames (singular e junta médica) foram unânimes quanto à sequela que o trabalhador apresenta: a perda total da visão do olho esquerdo.
Quanto ao grau de IPP que lhe corresponde, a perita que subscreveu o exame realizado na fase conciliatória e, na junta médica, os peritos nomeados pelo tribunal e pela seguradora, concluíram que a tal sequela correspondia a IPP de 27%, à luz da TNI, o que constitui o coeficiente máximo, nos termos do Capítulo V, 2.1, alínea h), da Tabela. Neste aspecto, a sentença não acolheu a opinião do perito do sinistrado, que situava o grau de IPP em 60%, por o mesmo não ter adiantado qualquer argumento ou critério objectivo, nem ter este grau de incapacidade sustentação na Tabela Nacional de Incapacidades, o que neste momento não está em causa.
Está apenas em causa a IPATH, que o perito nomeado pelo sinistrado afirmou existir, em divergência com a maioria formada pelos peritos nomeados pelo tribunal e pela seguradora.
Quanto a este aspecto, resulta das respostas aos quesitos constantes do relatório da junta médica que para a opinião do perito nomeado pelo sinistrado foi essencial o facto de, “perante a perda de visão de profundidade”, o sinistrado perder a capacidade de “executar com segurança as tarefas que executava à data do acidente”. Já os peritos nomeados pelo tribunal e pela seguradora afirmaram existir “um risco acrescido, obrigando a medidas de segurança também elas acrescidas”, mas não impedindo o exercício da actividade profissional concreta, “que poderá ser concretizada com as limitações inerentes à IPP de que ficou portador”.
A este propósito, não pode perder-se de vista ter ficado provado que o sinistrado perdeu efectivamente a ‘visão de profundidade’ (facto 5.), o que, além de ter sido relevante para a opinião pericial do perito oftalmologista a propósito da IPATH (como se vê da sua resposta ao quesito 5.), foi ponderado pelo Mmo. Juiz a quo na análise que fez das repercussões desta circunstância na capacidade do sinistrado para desempenhar as tarefas inerentes ao seu posto de trabalho (como se extrai da sua motivação, acima transcrita).
É de notar que os peritos que fizeram maioria, referiram em resposta ao quesito 6. que a perda total da visão [monofocal] afeta essa [‘visão de profundidade’] e outras percepções na justa medida, sendo por isso que corresponde a significativa incapacidade que lhe é atribuída”, o que denota que consideram que a ‘visão de profundidade’ do sinistrado foi afectada e não que o mesmo a perdeu, como se provou, ou seja, partem de uma realidade de facto diversa da que ficou apurada no facto 5. e a que este Tribunal da Relação se impõe atender, por se tratar de facto definitivamente assente nos autos, o que fragiliza o seu contributo pericial.
Ora, como bem diz o Mmo. Juiz a quo, com a perda total da visão esquerda e a perda da ‘visão de profundidade’ (a qual passa pela capacidade de alguém medir a distância a que estão os objectos e apurar o plano tridimensional no local onde se encontra), e ponderando, conjugadamente, as funções que o sinistrado AA assumia como operário/servente de central de britagem, “as quais passavam, no essencial, pela operagem e manutenção de uma máquina britadeira, sendo incumbido de tarefas como verificação de alguma falha eléctrica no funcionamento desta máquina, reparação de algumas avarias, substituição de redes deste aparelho, feita ‘em altura’ (com uso de escada vertical ou plataforma elevatória), aparafusamentos e desaparafusamentos, trabalhos de soldadura (com uso de máquina de soldar e de rebarbadora), substituição de rolos no tapete rolante, com introdução dos novos rolos através do encaixe de marcas/ranhuras (com necessidade de concentração, precisão e visão clara), remoção de pedras, e tudo isto em contacto permanente com ‘muito pó’, dada a natureza das matérias-primas usadas” (facto 2.), e tendo ainda em consideração que, como se provou, estas tarefas de operagem e manutenção de máquina britadeira exigiam-lhe “destreza manual e capacidade de visão, atenção e concentração” (facto 3.), estão reunidas as condições para se concluir que o sinistrado AA ficou efectivamente afectado com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual (IPATH).
À face do que provado ficou nos factos 3. e 5., cremos que se mostra comprometida a execução do enunciado conjunto de tarefas que, no enquadramento do facto 2., constituem tarefas essenciais do trabalho habitual do sinistrado de “operário/servente de central de britagem”, em conformidade com a conclusão do parecer de fls. 79 e ss.
Não podem ainda descurar-se nesta análise as questões de segurança envolvidas e que também se mostram comprometidas com a indicada perda de ‘visão de profundidade’, particularmente no que concerne às tarefas de: substituição das redes dos crivos da máquina britadeira de produção/transformção de pedra (com três tipos de rede, cujo diâmetro da malha pode ser inferior a 5 cm ou ascender aos 17 cm), alcançando os crivos através de uma escada vertical ou de uma plataforma elevatória; tratando-se da rede mais grossa, com 30 / 40 kg, recurso a uma grua e ao auxílio de um colega para a sua substituição; no âmbito da acção descrita nas duas alíneas anteriores, desaparafusamento lateral, ‘à mão’ (com uso de uma ‘chave de boca e anel’ ou de uma ‘chave de caixa de roquete’) ou com ajuda de uma ‘pistola’ pneumática; soldadura de algumas destas redes, com utilização de máquina de soldar e de rebarbadora, com exposição à luminosidade e aos gases resultantes do processo de soldadura; colocação da rede nova na posição correcta dos crivos, com ajuda de um varão de aço, em sintonia com um colega que, em simultâneo, procedia ao aparafusamento; substituição dos rolos do tapete rolante da máquina com recurso a uma barra de aço, elevando-os, retirando-os com as duas mãos e introduzindo os novos rolos através do encaixe de marcas / ranhuras, com necessidade de concentração, precisão e visão clara; e, em caso de avaria no motor da britadeira, remoção das pedras que se encontram no tapete, com necessidade de subida de umas escadas.
A este propósito da segurança, deve ainda notar-se que, especificamente na resposta à questão de saber se se verificava IPATH (quesito 5.), o perito nomeado pelo sinistrado salientou o facto de que, perante a perda de ‘visão de profundidade’, o sinistrado “perde a capacidade de executar com segurança as tarefas que executava à data do acidente”. Por seu turno os peritos nomeados pelo tribunal e pela seguradora – que, como vimos, partem do pressuposto de que a ‘visão de profundidade’ do sinistrado foi afectada e não que o mesmo a perdeu, como se provou –, afirmaram existir “um risco acrescido, obrigando a medidas de segurança também elas acrescidas”, sem impedir o exercício da actividade profissional, asserção esta que, à face dos factos provados, pode não ser totalmente correcta, designadamente no que concerne às tarefas que enunciámos [facto 2., alíneas f) a j), o) e p)] em cuja execução poderá estar efectivamente comprometida a segurança do sinistrado.
O que também fragiliza o contributo pericial da maioria expressa no relatório do exame por junta médica e, concomitantemente, a impede de abalar a nossa convicção no sentido de que as lesões e sequelas de que o sinistrado padeceu em consequência do acidente de trabalho sofrido em 4 de Maio de 2023 lhe determinaram IPATH, nada havendo a censurar à decisão que ficou a constar do facto 10. b).
Cabe acrescentar que, ao invés do afirmado pela recorrente, o Tribunal a quo não atendeu apenas ao estudo do posto de trabalho elaborado nos autos para justificar atribuição de IPATH (pois que ponderou também o parecer do perito com a especialidade de oftlmologia que integrou a junta médica, como resulta da sentença), nem fez autêntica tábua-rasa daquilo que foi o entendimento maioritário da junta médica e da perícia médica singular realizada nos autos (pois que não deixou de referir estes elementos periciais e de, fundadamente, expressar por que razão os não seguia).
Uma palavra ainda para refutar a afirmação da recorrente de ter ficado claro nos presentes autos que o sinistrado continua a exercer a sua actividade profissional, o que não resulta dos factos provado, nem a recorrente requer que se lhes acrescente, de modo algum invocando meios de prova que o sustentem. Pelo que carece de qualquer relevo para estes efeitos.
Em suma, face ao cenário probatório de natureza pericial com que nos deparamos nos presentes autos, não pode este tribunal superior sufragar decisão distinta da acolhida na 1.ª instância no que concerne a ter o sinistrado ficado afectado de IPATH.
Pelo que a factualidade a atender para a decisão jurídica do pleito é a fixada na 1.ª instância.
6. Fundamentação de direito
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Uma vez confirmada a decisão sob censura quanto aos factos nela assentes, tal determina se mantenham inalterados os pressupostos factuais que a determinaram.
Tendo em consideração que os fundamentos jurídicos da decisão recorrida não foram autonomamente postos em causa nas conclusões da recorrente, queda sem fundamento bastante a pretensão recursória, restando julgar totalmente improcedentes as conclusões da apelação, com a manutenção da decisão da 1.ª instância que reconheceu a obrigação da recorrente de pagamento ao sinistrado, quer dos valores relativos à pensão anual e vitalícia a que o mesmo tem direito, quer do subsídio de elevada incapacidade permanente, que ficaram a constar do dispositivo, sem necessidade de outras considerações13.
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Porque a recorrente ficou vencida no recurso, a lei faz recair sobre si o pagamento das custas respectivas (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho). Mostrando-se paga a taxa de justiça e não havendo lugar a encargos, a responsabilidade da recorrente é restrita às custas de parte que haja.
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7. Decisão
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Pelo exposto, decide-se:
7.1. julgar improcedente a invocada falta de fundamentação da sentença;
7.2. julgar improcedente a impugnação da decisão de facto;
7.3. negar provimento à apelação e confirmar a decisão da 1.ª instância.
Condena-se a recorrente nas custas de parte que haja.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil, anexa-se o sumário do presente acórdão.

Lisboa, 28 de Maio de 2025
Maria José Costa Pinto
Alexandra Lage
Paula Santos
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1. Não se reproduzem os não admitidos por despacho judicial subsequente, bem como os que irrelevam para as questões colocadas no recurso.
2. Vide os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08 de Junho de 2021, processo n.º 3004/16.8T8FAR.E1.S1, de 04 de Julho de 2018, processo n.º 1165/13.7TTBRG.G2.S1, de 26 de Setembro de 2018, processo n.º 25.552/16.0T8LSB.L1.S1, de 06 de Fevereiro de 2019, processo n.º 639/13.4TTVFR.P1.S1, e de 06 de Maio de 2020, processo n.º 1085/10.7TTPNF.5.P1.S1, todos in www.dgsi.pt. Vide também, por mais recente, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 09 de Outubro de 2024, processo n.º 2009/22.4T8LRS.L1, no mesmo sítio.
3. Entre outros, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2022, Processo 23119/16.1T8LSB.C2.S2, in www.dgsi.pt.
4. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Dezembro de 2023, Processo 3053/19.4T8LSB.L1.S1.
5. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2021.10.27, processo n.º 1372/19.9T8VFR.P1-A.S1.
6. In Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, 2.ª Edição, Coimbra, pp. 122-123.
7. Processo n.º 2024/15.4T8AVR.P1, in www.dgsi.pt.
8. Resulta do próprio Parecer de fls. 79 e ss. que caberá à Direção de Serviços do Trabalho (DST) a competência para a sua emissão, bem como resulta que na Região Autónoma dos Açores as competências na área do emprego e formação profissional estão cometidas à Secretaria Regional da Juventude, Habitação e Emprego, cujo funcionamento é assegurado através da Direção Regional de Qualificação Profissional e Emprego, competindo a esta a apreciação dos pedidos previstos na lei – artigos 3.º, n.º 1, alínea f), 16.º e 66.º, n.º 1, alínea a), do Decreto Regulamentar Regional n.º 20/2024/A, de 18 de Novembro.
9. Processo 1114/18.6T8BRR-A.L1, relatado pela Exma. Sra. Desembargadora ora primeira Adjunta.
10. In Código Civil Anotado, I Volume, 3.ª Edição, 1982, Coimbra, pp. 338 e 339, em anotação ao artigo 389.º
11. Vide o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 1997.12.30, in BMJ 271/185.
12. Vide os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 25 de Outubro de 2023, processo n.º 1775/22.1T8PDL.L1-4, in www.dgsi.pt, de 23 de Março de 2022, processo n.º 2107/17.6T8BRR.L1, relatado pela ora relatora e inédito, tanto quanto nos é dado saber, de 2012.02.08, Processo n.º 270/03.2TTVFX.L1-4, in www.dgsi.pt, de que a ora relatora foi 1.ª adjunta e, bem assim, os Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 2006.05.02, in Colectânea de Jurisprudência, Tomo III, página 229 e do Tribunal da Relação de Évora de 13 de Fevereiro de 2025, Processo:698/23.1T8STB.E1, in www.dgsi.pt, e de 2004.06.22 in “Acidentes de Trabalho - Jurisprudência 2000-2007”, Colectânea de Jurisprudência Edições, coordenação de Luís Azevedo Mendes e Jorge Manuel Loureiro, p. 336.
13. Como se afirmou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2022.06.01, processo n.º 1104/18.9T8LMG.C1.S1, uma vez rejeitada a impugnação da matéria de facto, “fica prejudicada a apreciação de uma questão de direito que, em termos de precedência lógico-jurídica, pressupunha a prévia alteração da factualidade provada, ficando a Relação desvinculada de sobre a mesma se pronunciar”.