Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | EDUARDO PETERSEN SILVA | ||
Descritores: | TÍTULO EXECUTIVO CONTRATO DE MÚTUO CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS PRINCÍPIO DA IGUALDADE INCONSTITUCIONALIDADE | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
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Sumário: | Nos mútuos celebrados posteriormente à entrada em vigor da versão do Código de Processo Civil conferida pela Lei nº 41/2013 de 26 de Junho, a norma prevista pelo n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, é inconstitucional por violação do princípio da igualdade. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório[1] A CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., instaurou acção executiva para pagamento de quantia certa sob a forma de processo ordinário contra C, nos autos m.id., para deste haver o pagamento da quantia de 17.202,78€, acrescida de juros de mora vincendos e imposto selo até integral pagamento. O tribunal de primeira instância ponderou: “II - Garantem-me os autos o seguinte: 1. A exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A. deu à execução um documento particular denominado “Contrato de Mútuo”, destinado à aquisição de um veículo automóvel, não especificado, datado de 22 de fevereiro de 2021, cujo teor se dá aqui como integralmente reproduzido. 2. A exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A. alega, no requerimento executivo, o seguinte: “Factos: Do Crédito: 1. Por documento particular lavrado a 22 de fevereiro de 2021, no âmbito da sua atividade creditícia, o Banco Exequente, Caixa Geral de Depósito S.A., concedeu ao Executado C a importância de Euros 16.600,96, sendo o montante total imputado ao mutuário o valor de Euros 20.023,74, com destino a aquisição de viatura automóvel, pelo prazo de 84 meses, a liquidar em 84 prestações mensais, constantes e sucessivas, de capital e juros, acrescidas do imposto de selo em vigor, e nas demais condições constantes do referido título, que junta e aqui se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais como Doc. nº 1. 2. A taxa de juro contratada foi à taxa Euribor a 12 meses, acrescida do spread de 5,350% - vide condições contratuais junta como documento n.º 1 3. Em caso de mora ou incumprimento, tal taxa seria elevada de 3%. Cfr. Doc. nº 1. 4. A quantia emprestada, referida no aludido título foi efetivamente entregue ao Executado C, mediante crédito processado na sua Conta de Depósitos à Ordem, domiciliada na agência do Banco Exequente, Cfr. Doc. nº 1. 5. Tendo aquele movimentado e utilizado em proveito próprio o valor resultante daquele crédito, 6. Confessando-se devedor da quantia recebida perante o Banco Exequente, Cfr. Doc. nº 1. Acontece que, 7. O mutuário ora Executado C interrompeu o pagamento das prestações do empréstimo acima melhor identificado em 22/06/2021, 8. Nada mais tendo pago por conta do mesmo, 9. Apesar das diversas diligências suasórias desenvolvidas pelo Banco Exequente. 10. A situação descrita determinou, nos termos legais e contratuais, o direito de considerar vencida toda a dívida, reportada à data das últimas prestações pagas, e, 11. Consequentemente, exigir o pagamento imediato de todo o capital em dívida, à data daquelas últimas prestações pagas. Nesta medida, 12. No empréstimo a que se vem fazendo referência, e melhor identificado sob o ponto 1., o capital em dívida ascende a Euros 15.808,80 13. Para além do capital em dívida, são devidos as seguintes quantias: - Juros de 0422/06/2021 a 09/11/2022, no valor de Euros 1.201,98 - Comissões, no valor de Euros 192,00 14. Perfazendo o valor global em dívida a quantia de Euros 17.202,78 (dezassete mil, duzentos e dois euros e setenta e oito cêntimos). 15. A partir de 09/11/2022 exclusive, a dívida será agravada diariamente em 3,49 EUR, encargo correspondente a juros calculados à taxa de 7,8730000 %, acrescida das despesas extrajudiciais que a Caixa Geral de Depósitos efectue de responsabilidade do devedor. De harmonia com o Art.º 8.º do Decreto-Lei n.º 58/2013, de 8 de maio, aquela taxa incluiu a sobretaxa de 3,0000000 % ao ano. 16. Tem, assim, o Exequente a haver a título de quantia exequenda o montante global de Euros 17.202,78 (…), valor ao qual mais hão-de acrescer os juros vincendos e imposto selo que venham a ser devidos até efetivo e integral pagamento. 17. O título acionado é exequível de acordo com o artigo 703º nº 1 al. b) do C.P.C. e nos termos do art.º 9.º, n.º 4 do DL n.º 287/93, de 20 de Agosto, «Os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela CGD, prevejam a existência de uma obrigação de que a CGD seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades», e a quantia exequenda é certa, líquida e exigível.”. Foi proferido despacho de indeferimento liminar, de cuja parte dispositiva consta: “IV - Pelo exposto, nega-se força executiva ao título que a exequente deu à execução, por violar o princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da Constituição da República Portuguesa a interpretação do normativo do n.º 4 do art.º 9º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, segundo o qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades e, consequentemente, indefere-se liminarmente o requerimento executivo. V- Custas pela exequente (art.º 527º, n.º 1, do Código de Processo Civil)”. * Inconformada, a exequente interpôs o presente recurso, formulando, a final, as seguintes conclusões: 1. Vem o presente recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo que decidiu negar força executiva ao título executivo que o ora recorrente deu à execução, por violar o princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da Constituição da República Portuguesa a interpretação do normativo do n.º 4 do art.º 9º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, segundo o qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades e, consequentemente, indeferiu liminarmente o requerimento executivo. 2. Dispõe o n.º 4 do art.º 9º do Decreto-Lei n.º 287/93 de 20 de Agosto que “Os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela CGD, prevejam a existência de uma obrigação de que a CGD seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades.” 3. O referido diploma não se mostra revogado pelo art.º 4º da Lei n.º 41/2013 de 26 de Junho, nem foi derrogado pelo espírito da lei, donde resulta que, mantendo-se em vigor, e resultando do contrato de empréstimo dado à execução a assinatura do mutuário, o mesmo reveste natureza de título executivo, cabendo, em consequência, na previsão da al. a) do n.º 1 do art.º 703º do CPC. 4. Veja-se neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 26-01-2015, no âmbito do processo n.º 1162/14.5T8PRT.P1, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 16-02-2017, no âmbito do processo n.º 2673/16.3T8CBR.C1 ou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17-06-2021, proferido no âmbito do processo nº 2633/14.9T8SNT.L1-6, todos disponíveis em www.dgsi.pt. 5. Se fosse intenção do legislador retirar força executiva a este tipo de documentos, tê-lo-ia feito expressamente, o que não sucedeu, pelo que mantém em vigor o regime excepcional previsto no nº 4 do art.º 9 do D.L. n.º 287/93, de 20 de Agosto. 6. O recorrente não concorda de uma forma geral com quanto expendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-02-2018, proferido no âmbito do processo n.º 2438/17.5T8GMR.A.G1, mas também em particular quando se refere que a revisão do elenco dos títulos executivos teve como intenção “reduzir o risco de execuções injustas “risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório”. 7. Com efeito, a acção executiva beneficia de um enquadramento jurídico que tem estreitado cada vez mais o referido “risco de execuções injustas”. 8. Por outro lado, não corresponde à verdade que este risco seja potenciado pela possibilidade de a acção executiva se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório. 9. Além de o contraditório ser sempre assegurado, os processos que seguem a forma ordinária, como é o caso dos presentes autos, são conclusos ao juiz para despacho liminar, sendo que quando o processo deva prosseguir, é proferido despacho de citação do executado para, no prazo de 20 dias, pagar ou opor-se à execução, sendo que qualquer diligência de penhora é levada a cabo apenas e só decorrido aquele prazo. 10. Entendeu o Acórdão do Tribunal Constitucional, proferido em 13-11-2019, e no qual o Tribunal a quo também fundamentou a sua posição, que a norma aqui em causa, o n.º 4 do art.º 9º do D.L. n.º 287/93, de 20 de Agosto, é inconstitucional por violar o princípio da igualdade consagrado no art.º 13º da Constituição da República Portuguesa. 11. O recorrente não pode conformar-se com tal entendimento, e considera que o mesmo é manifestamente simplista e redutor face ao que aqui se encontra em causa. 12. O n.º 4 do art.º 9º do D.L. n.º 287/93, de 20 de Agosto não foi revogado nem o espírito da lei foi derrogado. 13. Ao manter a sua vigência, o legislador permitiu que os intervenientes, nomeadamente a recorrente, mantivessem a sua convicção que “Os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela CGD, prevejam a existência de uma obrigação de que a CGD seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades.”, criando, deste modo, legitimas e válidas expectativas que os mesmos constituiriam título válido e suficiente. 14. Os títulos executivos encontram-se previstos no art.º 703º do CPC e nos termos da al. d) do seu n.º 1 podem servir de base à execução “Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva.” 15. A entrada em vigor do diploma que aprovou o CPC em nada colide com o regime jurídico previsto no n.º 4 do art.º 9º do D.L. n.º 287/93, de 20 de Agosto, interpretação esta que decorre do previsto nº n.º 3 do art.º 7º do Código Civil que estipula o princípio lex generalis specialis non derrogai, a lei geral não revoga a lei especial. 16. Por tudo quanto ficou dito, entendo, pois, o recorrente, que a decisão recorrida deve ser substituída por outra que considere válido o título dado à execução, determinando-se, consequentemente, o prosseguimento da execução. (…)”. O recurso foi admitido, mandando-se citar o executado “tanto para os termos do recurso como para os da causa (art.º 641º, n.º 7, do Código de Processo Civil)”, não tenho o mesmo apresentado contra-alegações. * Corridos os vistos legais, cumpre decidir: II. Direito Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do Código de Processo Civil - a única questão a decidir é a de saber se “os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor” constituem título executivo. * III. Matéria de facto – a constante do relatório que antecede. * IV. Apreciação O tribunal de primeira instância discorreu, em fundamentação do decidido indeferimento liminar, e transcrevemos: “III - A ação executiva, que visa a realização efetiva, por meios coercivos, do direito violado, tem por suporte um título que constitui a matriz ou limite quantitativo e qualitativo da prestação a que se reporta (art.º 10º, n.ºs 4, 5 e 6, do Código de Processo Civil). Estabelece o art.º 703º do Código de Processo Civil (Espécies de títulos executivos) o seguinte: “1 — À execução apenas podem servir de base: a) As sentenças condenatórias; b) Os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação; c) Os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo; d) Os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva. 2 — Consideram-se abrangidos pelo título executivo os juros de mora, à taxa legal, da obrigação dele constante”. O contrato de empréstimo dado à execução pela exequente foi celebrado no dia 22 de fevereiro de 2021, ou seja, já na vigência do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho. (…) Estabelecia o n.º 1 do art.º 61º da Lei Orgânica da Caixa Geral de Depósitos, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 48 953, de 05.04.1969, que “A cobrança coerciva de todas as dívidas de que seja credora a Caixa e suas instituições anexas é da competência dos tribunais de 1.ª instância das contribuições e impostos, servindo de títulos executivos as escrituras, títulos particulares, letras, livranças ou qualquer outro documento apresentado pela instituição exequente, incluindo as certidões extraídas dos livros da sua escrita”. A referida lei orgânica foi revogada pelo Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, o qual transformou a Caixa Geral de Depósitos em Sociedade Anónima de capitais exclusivamente públicos, mas manteve o normativo que conferia força executiva, sem necessidade de outras formalidades, aos documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela Caixa, prevejam a existência de uma obrigação de que a Caixa seja credora e estejam assinados pelo devedor (cfr. art.º 9º, n.º 4). A referida norma não foi revogada, expressa ou tacitamente, pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, e tais documentos considerados títulos executivos por força de disposição especial. Nestes termos, conclui-se que n.º 4 do art.º 9º do Decreto-Lei 287/93, de 20 de agosto, é uma das disposições especiais previstas pela alínea d), do n.º 1 do art.º 703º, do Código de Processo Civil, que confere força executiva ao contrato de mútuo dado à execução (cfr., neste sentido, na jurisprudência, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.01.2015, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25.06.2015 e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.02.2017 e de 17.04.2017, acessíveis em www.dgsi.pt; na doutrina, Lebre de Freitas, Ação Executiva à luz do Código de Processo Civil de 2013, 7ª ed. pág. 83, Marco Carvalho Gonçalves, Lições de Processo Civil Executivo, 2016, pág. 120). Todavia, entendemos que esta interpretação enferma de inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade ínsito no art.º 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. A este propósito, afirma-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2018, Processo 2438/17.5T8GMR-A.G1, acessível em www.dgsi.pt, ao qual aderimos, o seguinte: “O artigo 2º do Dec-Lei DL nº 48 953, de 05.04.1969 definia o Banco A como “uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, com património próprio, competindo-lhe o exercício das funções de instituição de crédito do Estado e a administração das instituições a que se referem os artigos 4º e 6º”, incumbindo-lhe, “como instituto de crédito do Estado”, “colaborar na realização da política de crédito do Governo e, designadamente, no incentivo e mobilização da poupança para o financiamento do desenvolvimento económico e social, na ação reguladora dos mercados monetário e financeiro e na distribuição seletiva do crédito” (Art.º 3º). Em função desse estatuto e interesses públicos que visava prosseguir, tal como refere o citado acórdão do TC nº. 65/2009 não se mostrava “abusivo, arbitrário ou manifestamente desproporcionado, que, simultânea e diferentemente do que se passa relativamente às outras entidades bancárias, a tenha aliviado de certos encargos processuais com a cobrança dos créditos com que, pelo menos em parte, satisfazia essas necessidades públicas. De resto, a atribuição dessas prerrogativas processuais não deixa de constituir, precisamente, uma expressão de afirmação da subordinação constitucional do poder económico ao poder político, na medida em que elas representam uma contrapartida pelo prosseguimento por parte do Banco A dos interesses públicos que são predeterminadamente definidos pelo legislador, em concretização de valores que a Constituição de 1976 não deixou de igualmente assumir como direitos sociais ou como injunções constitucionais (cf., artºs 65º e 101º, da CRP, na versão actual).” Com a transformação operada pelo Dec-Lei 287/93, o Banco A deixou de constituir uma pessoa colectiva de direito público e passou a reger-se pelas regras do direito privado, i.é., não subsistem desde então os fundamentos que justificavam a atribuição ao Banco A de especiais e prerrogativas que as demais instituições de crédito não tinham, como a força executiva conferida aos documentos que, titulando acto ou contrato realizado pelo Banco A, prevejam a existência de uma obrigação de que o Banco A seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades. E a força executiva desses actos ou contratos previstos no nº4 do artigo 9º do referido Decreto-Lei 287/93, dispensa o processo declarativo tendo em vista o reconhecimento do direito e permite desde logo medidas coercivas para cobrança dos créditos, v.g. a penhora de bens, ou seja, os devedores são colocados em condições manifestamente mais desfavoráveis relativamente aos devedores doutras instituições de crédito que tenham celebrado contratos da mesma natureza, sem que exista razão objectiva que justifique essa desigualdade de tratamento de situações substancialmente iguais. Ademais, a revisão do elenco dos títulos executivos operada pelo regime introduzido pela Lei nº. 41/2013, de 26 de Junho, como refere no seu preâmbulo, é precisamente o de reduzir o risco de execuções injustas “risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório”. E conclui, assim, que deve ser negada força executiva ao título dado à execução, por violar o princípio da igualdade do art.º 13º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa a interpretação do normativo do n.º 4 do art.º 9º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, segundo a qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades. Também o Tribunal Constitucional assim o declarou no Acórdão n.º 670/2019, de 13 de novembro de 2019, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, ao julgar inconstitucional, por violação do art.º 13º da Constituição, a norma do n.º 4 do art.º 9º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, segundo a qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades. Com efeito, na fundamentação do mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional afirma-se o seguinte: “8. Como bem assinala o Ministério Público, a solução legal contestada nos presentes autos tem a sua origem no artigo 61.º do Decreto-Lei n.º 48953, de 5 de abril de 1969, que aprovou um novo regime orgânico da então denominada B.1, definida no artigo 2.º como «uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, com património próprio, competindo-lhe o exercício das funções de instituto de crédito do Estado e a administração das instituições a que se referem os artigos 4.º [Caixa Geral de Aposentações e Montepio de Servidores do Estado] e 5.º [Caixa Nacional de Crédito].» O artigo 3.º dispunha que, «[c]omo instituto de crédito do Estado, incumbe à B. colaborar na realização da política de crédito do Governo e, designadamente, no incentivo e mobilização da poupança para o financiamento do desenvolvimento económico e social, na ação reguladora dos mercados monetário e financeiro e na distribuição seletiva do crédito.» E a respeito dos funcionários da B., preceituava o n.º 2 do artigo 31.º que, «[o] referido pessoal continua sujeito ao regime jurídico do funcionalismo público, com as modificações exigidas pela natureza específica da atividade da B. como instituição de crédito, de harmonia com o disposto no presente diploma e nos restantes preceitos especialmente aplicáveis ao estabelecimento.» Entretanto, o diploma em que se insere a norma cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida – o Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto – transformou a B. numa sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com o propósito expresso de a colocar em igualdade de circunstâncias com as demais instituições de crédito que operam no sistema financeiro português. O preâmbulo do diploma é esclarecedor a esse respeito: «Diversas e significativas modificações verificadas no sistema financeiro português desde a data da publicação dos acuais diplomas orgânicos e a alteração dos condicionalismos interno e externo em que a instituição exerce a sua atividade recomendam agora a sua profunda revisão. Atendo-nos, unicamente, aos eventos mais marcantes dos últimos anos, impõe-se, em primeiro lugar, uma referência à adesão de Portugal às Comunidades Europeias, com a consequente aplicação das regras do direito comunitário. No plano interno, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, veio equiparar a B. aos bancos no que respeita às atividades que está autorizada a exercer. Todo o circunstancialismo referido aponta deste modo para a sujeição da B. a um regime de direito privado ou, mais rigorosamente, para a aplicação à instituição de regras idênticas às que regem as empresas privadas do sector. O mesmo objetivo de aproximação da B. às restantes empresas do sector levou à adoção da forma de sociedade anónima. Ao contrário do que se estabeleceu noutros casos, considerou-se no caso da B., dada a natureza da atividade exercida, a posição e o papel que a empresa ocupa no mesmo sector, que deveria ser apenas o Estado, e não qualquer outra pessoa coletiva de direito público, o detentor do capital. No que respeita ao pessoal, o novo regime consagra a aplicação à B. do regime jurídico do contrato individual de trabalho, sem prejuízo, à semelhança de solução adotada em casos idênticos, da possibilidade concedida aos trabalhadores atualmente ao serviço da instituição de optarem pela manutenção do regime a que estavam sujeitos.» Atenta a natureza que a lei então atribuiu à B., aproximando-a das demais instituições de crédito, submetendo-a a regras de direito privado e aplicando ao seu pessoal o regime do contrato individual de trabalho, nada justifica a conclusão de que os documentos abrangidos pelo artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 28 de agosto, possuem um grau diferenciado de idoneidade de acertamento dos créditos neles representados. A B. alega que é ainda uma empresa pública destinada a servir o interesse público, ao contrário das instituições de crédito privadas, que «têm como prioridade de gestão criar valor para os acionistas». Porém, não se vê de que modo tal influi no juízo sobre a maior ou menor vocação de acertamento dos documentos que titulam os seus créditos, o tertium comparationis relevante para se determinar se a solução legal é arbitrária. Na verdade, decisiva não é a finalidade prosseguida pela B., mas a forma escolhida para o efeito; sob esse ponto de vista, nada distingue os documentos a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 28 de agosto, de documentos particulares homólogos detidos por outras instituições de crédito, e aos quais o legislador processual civil veio a negar, com a aprovação do «novo código», força executiva. Sublinhe-se, por último, que os documentos aqui em causa carecem da força probatória que decorreria do reconhecimento de uma especial fé pública em que estivessem investidos os funcionários da B. que os outorgam – fé pública essa que poderia justificar uma analogia com os documentos autênticos ou autenticados referidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, dado que a exequibilidade destes, por comparação com os equivalentes documentos particulares simples constitutivos de obrigações e assinados pelo devedor, aos quais atualmente não é reconhecida exequibilidade, radica precisamente numa especial qualidade do sujeito que os outorga ou que os certifica. Ora, para que se pudesse falar de fé pública – ou qualidade equivalente – seria indispensável que a mesma integrasse o estatuto dos funcionários da B.. Não é esse o caso: o estatuto dos trabalhadores da B. não os distingue, nos termos da lei, dos trabalhadores das instituições de crédito privadas. Do facto de a B., enquanto sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, estar adstrita à prossecução do interesse público, não se segue que os seus funcionários, designadamente aqueles que intervêm na outorga dos documentos a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 28 de agosto, gozem de uma qualquer fé pública, suscetível de comunicar aos contratos abrangidos pela norma sindicada um grau de acertamento do direito exequendo que justifique a sua exequibilidade imediata, em contraste com contratos da mesma natureza celebrados por outros credores, designadamente as demais instituições de crédito. Por tudo quanto se disse, resta concluir que a norma sindicada nos presentes autos é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição.”. Mais recentemente se decidiu, em sentido idêntico, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.09.2022, Processo 18485/21.0T8LSB.L1-7, e no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.09.2022, Processo 1648/22.8T8OER.L1-7, ambos acessíveis em www.dgsi.pt” fim de transcrição. * Para a recorrente, a não revogação do dispositivo que conferia natureza de título executivo ao contrato de empréstimo dos autos, deve ponderar que se o legislador quisesse de outro modo, teria revogado expressamente, o que não fez, e que o risco de execuções injustas por postergação do princípio do contraditório se não verifica. A recorrente invoca a seu favor os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 26-01-2015, no âmbito do processo n.º 1162/14.5T8PRT.P1, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido em 16-02-2017, no âmbito do processo n.º 2673/16.3T8CBR.C1 ou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17-06-2021, proferido no âmbito do processo nº 2633/14.9T8SNT.L1-6. Relativamente ao princípio da igualdade assinalado como violado no acórdão do Tribunal Constitucional de 13.11.2019, a recorrente considera que o “n.º 4 do art.º 9º do D.L. n.º 287/93” de 20 de Agosto não foi revogado nem o espírito da lei foi derrogado” e que ao “manter a sua vigência, o legislador permitiu que os intervenientes, nomeadamente a recorrente, mantivessem a sua convicção que “Os documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela CGD, prevejam a existência de uma obrigação de que a CGD seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades.”, criando, deste modo, legítimas e válidas expectativas que os mesmos constituiriam título válido e suficiente”. Finalmente, entende a recorrente que a “entrada em vigor do diploma que aprovou o CPC em nada colide com o regime jurídico previsto no n.º 4 do art.º 9º do D.L. n.º 287/93, de 20 de Agosto, interpretação esta que decorre do previsto no n.º 3 do art.º 7º do Código Civil”, (…) a lei geral não revoga a lei especial”. * Duas observações prévias: Concordamos que o risco de execuções injustas se não verifica. Quanto à não revogação expressa, o argumento não é equiparável à força do elemento literal da interpretação da lei, que admite desvio sem perda de correspondência, e parece resistir pouco às considerações de ordem teleológica, ou seja, não há muito como defender que a Caixa Geral de Depósitos não esteja equiparada às demais instituições bancárias. Neste sentido, com o devido respeito, não aderimos ao acórdão da Relação do Porto proferido no processo 1162/14.5T8PRT.P1, citado pela recorrente. De modo que, em resumo, o argumento essencial da recorrente é o princípio da confiança. A questão já está bastamente estudada, e para nós, até em função do acórdão relatado pelo ora segundo adjunto, no processo 2633/14.9T8SNT.L1-6, reportado a um contrato de mútuo “considerado perfeito em 01-06-2012”, parece-nos claro que o princípio da confiança, que a recorrente invoca, é defensável para títulos constituídos antes da entrada em vigor da Lei 41/2013, com de resto muito bem se assinala no sumário do acórdão da Relação de Coimbra também citado pela recorrente, no último ponto do seu sumário: “V - Temos para nós que a interpretação das normas conjugadas do art.º 703º do novo CPC - que elimina do elenco dos títulos executivos os documentos particulares assinados pelo devedor que importem constituição ou reconhecimento de obrigações pecuniárias – e 6º, nº 3 do seu diploma preambular - que não ressalva a exequibilidade dos títulos emitidos em data anterior a 1 de Setembro de 2013 - no sentido de o primeiro se aplicar a documentos particulares, exequíveis por força do disposto no art.º 46º nº1 c) do CPC de 1961, é manifestamente inconstitucional, por violação do principio da segurança e da protecção da confiança”. Porém, no que toca aos contratos de mútuo celebrados a partir dessa data, já não pode invocar-se a referida violação do princípio da segurança e da certeza jurídicas, como muito se assinala na declaração de voto do ali 2º Adjunto[2] constante do acórdão desta Relação proferido no processo 1648/22.8T8OER.L1-7, do seguinte teor parcial: “No passado dia 13 de setembro de 2022 subscrevi, enquanto relator, o acórdão proferido no âmbito do Proc. n.º 3528/14.1YYLSB.L1, em que é também exequente a Caixa Geral de Depósitos e onde igualmente se discutia a questão de saber se constituíam títulos executivos, contratos de mútuo dados à execução com as características daquele que é identificado no presente acórdão, com uma «nuance», no entanto: - os contratos de mútuo dados à execução no Proc. n.º 3528/14.1YYLSB.L1, têm data anterior à da entrada em vigor do art.º 703.º do atual CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, tendo o Ac. do Tribunal Constitucional n.º 408/2015, de 23.09, publicado no DR n.º 201/2015, Série I, de 14.10.2015, declarado, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que aplica o artigo 703.º do C.P.C., aprovado em anexo à Lei nº 41/2013, de 26.06, a documentos particulares emitidos em data anterior à sua entrada em vigor, então exequíveis por força do artigo 46.º, nº 1, alínea c), do C.P.C. de 1961, constante dos artigos 703º do C.P.C., e 6º, nº 3, da Lei nº 41/2013, de 26.06; - o contrato de mútuo em causa nestes autos é datado de 12 de fevereiro de 2020. Constituindo os contratos de mútuo, dados à execução no Proc. n.º 3528/14.1YYLSB.L1, títulos executivos à luz da lei processual vigente anteriormente ao atual art.º 703.º do CPC/13, eles continuaram a manter tal qualidade após a entrada em vigor da Lei n.º 41/2013, de 26.06, por força daquele acórdão do Tribuna Constitucional”. No acórdão proferido no processo 18485/21.0T8LSB.L-7[3] aprofunda-se a análise da perda de estatuto especial da Caixa Geral de Depósitos, e o acórdão proferido no processo 1648/22.8T8OER.L1-7 apresenta uma extensa e muito completa argumentação à qual aderimos, mais uma vez, no sentido de que aplicável a contratos de mútuo celebrados pela recorrente posteriormente à entrada em vigor da Lei 41/2013, como é exactamente o caso destes autos. Citamos, a partir da fundamentação de direito e da ponderação da tese da ali recorrente: “Para essa tese, podemos até dizer que se logram encontrar mesmo apoios de peso, quer na Doutrina (caso de Menezes Cordeiro[5]), quer na Jurisprudência (caso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/10/2019 – Processo n.º 3153/17.5T8OER-A.L1.S1, Oliveira Abreu[6]). Mas o problema é mais fundo e, independentemente da vigência ou não[7] da norma do n.º 4 do artigo 9.º, o certo é que o que está verdadeiramente em causa é uma possível violação do princípio da igualdade, constante do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa[8]. É que, como se assinala no Acórdão desta mesma Secção, de 27 de Setembro (Processo n.º 18485/21.0T8LSB.L1, Conceição Saavedra[9]), a razão que justifica a assimetria e o tratamento diferenciado teria que ver unicamente com o estatuto da Caixa Geral de Depósitos, sendo que, o referido Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, transformou a CGD em sociedade anónima “para aproximação às empresas privadas do sector, entendendo-se que apenas o Estado seria o detentor do capital “dada a natureza da actividade exercida, a posição e o papel que a empresa ocupa no mesmo sector”, como consta do preâmbulo daquele Diploma”. Ora, apesar da sua natureza de empresa pública e do interesse público que prossegue, não parece que tal baste “só por si e em abstrato, sem outros elementos diferenciadores como especiais deveres de ordem pública, à situação de exclusividade conferida pelo referido preceito no atual quadro normativo. Tanto mais que, na pretendida aproximação ao regime das congéneres privadas, não revela a CGD conferir aos documentos por si elaborados acrescidas garantias da constituição da dívida”. Assim sendo, não se vislumbrando especiais e relevantes deveres de ordem pública cometidos à CGD, é difícil não considerar desproporcionado, que, “de forma diversa do que ocorre com relação às outras entidades bancárias após a entrada em vigor do C.P.C. de 2013 com a redução drástica em matéria de títulos executivos, se continue a privilegiar aquela com a dispensa da instauração da ação declarativa para a cobrança dos seus créditos em detrimento das demais, com o correspondente tratamento desigual dos devedores. Dito de outro modo, a transformação operada e a aproximação às regras que regem as empresas privadas do sector deixam de justificar, sem outras razões atendíveis, o tratamento privilegiado daquela instituição em tal matéria à luz do princípio da igualdade”. Nesta linha, importa sublinhar que já por três vezes o Tribunal Constitucional decidiu da mesma forma esta questão e sempre no sentido da inconstitucionalidade da norma em apreciação[10] (um Acórdão de 13/11/2019[11] e duas Decisões Sumárias, uma de 23/11/2021[12], outra de 10/05/2022[13]). Na decisão mais recente, de 10 de Maio de 2022, reafirma-se a decisão inicialmente tomada, escrevendo-se o seguinte: “Ora, esta questão jurídico-constitucional foi já apreciada pelo Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 670/2019, desta 3.ª Secção (retificado pelo Acórdão n.º 710/2019, da 3.ª Secção). Ali se concluiu pela inconstitucionalidade da norma, por violação do disposto no artigo 13.º da Constituição: «6.- A questão de constitucionalidade colocada nos presentes autos incide sobre o n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, que dispõe o seguinte: “Os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela A., prevejam a existência de uma obrigação de que a caixa seja credora e estejam assinados pelo devedor revestem-se de força executiva, sem necessidade de outras formalidades [ênfase acrescentado].” Este preceito conjuga-se com o disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, que inclui no elenco dos títulos executivos a categoria residual “[d]os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”. A atribuição de força executiva significa que a lei dispensa a A., nas condições muito amplas nela previstas (qualquer ato ou contrato assinado pelo devedor), de propor ação declarativa contra o devedor. O documento assinado pelo devedor é, neste aspeto, um sucedâneo da sentença condenatória, eximindo o credor do ónus de demonstrar o seu crédito num processo declarativo, regulado pelos princípios do contraditório e da igualdade de armas, e sujeitando o devedor à imediata ablação do seu património, mormente através da penhora de bens. Sem prejuízo da real magnitude da diferença depender das particularidades do processo de execução, o certo é que o regime especial consagrado no n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, constitui, quando comparado com o regime-regra que faz depender a execução de prévio reconhecimento judicial, uma vantagem para o credor e uma desvantagem para o devedor. De acordo com o quadro legal em vigor, os demais credores, designadamente as outras instituições de crédito que não a A., não gozam de tal vantagem, e os correlativos devedores não sofrem a desvantagem simétrica. Com efeito, ao contrário do “velho” Código de Processo Civil, na versão que resultou da aprovação do Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, o «novo» Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, não atribui força executiva à generalidade dos documentos particulares assinados pelo devedor. A Proposta de Lei n.º 113/XII, que esteve na origem do diploma que aprovou o novo regime processual civil, esclarece os motivos da opção legislativa de restringir a classe dos títulos executivos: “É conhecida a tendência verificada nas últimas décadas, com especial destaque para a reforma de 1995/1996, no sentido de reduzir os requisitos de exequibilidade dos documentos particulares e, com isso, permitir ao respetivo portador o imediato acesso à ação executiva. Se é certo que tal solução teve por efeito reduzir significativamente a instauração de ações declarativas, a experiência mostra que também implicou o aumento do risco de execuções injustas, risco esse potenciado pela circunstância de as últimas alterações legislativas terem permitido cada vez mais hipóteses de a execução se iniciar pela penhora de bens do executado, postergando-se o contraditório. Associando-se a isto uma realidade que, embora estranha ao processo civil, não pode ser ignorada, como seja o funcionamento um tanto desregrado do crédito ao consumo, suportado em documentos vários cuja conjugação é invocada para suportar a instauração de ações executivas, é fácil perceber que a discussão não havida na ação declarativa (dispensada a pretexto da existência de título executivo) acabará por eclodir mais à frente, em sede de oposição à execução. Afigura-se incontroverso o nexo entre o progressivo aumento do elenco de títulos executivos e o aumento exponencial de execuções, a grande maioria das quais não antecedida de qualquer controlo sobre o crédito invocado, nem antecedida de contraditório.” Com a alteração legislativa, a norma sindicada nos presentes autos deixou de constituir uma redundância, por conter uma solução individual substancialmente idêntica à solução geral de atribuir força executiva aos documentos particulares assinados pelo devedor, para passar a consubstanciar um benefício específico da A.e um prejuízo específico para os respetivos devedores. Coloca-se, assim, a questão de saber se o tratamento privilegiado da A. relativamente aos demais credores, nomeadamente instituições de crédito, ou – o que é dizer o mesmo sob o ponto de vista simétrico – o tratamento prejudicial dos devedores da A. relativamente aos demais devedores, nomeadamente os devedores de instituições de crédito, ofende o princípio da igualdade. 7.–Sobre o alcance do princípio geral da igualdade enquanto norma de controlo judicial do poder legislativo, escreveu-se no Acórdão n.º 409/99: “O princípio da igualdade, consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, impõe que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. O princípio da igualdade enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio.” Trata-se precisamente de sindicar a racionalidade da vantagem de que goza a A. e da desvantagem simétrica que sofrem os seus devedores, quando comparados com a classe geral dos credores e devedores, ou mesmo com a classe menos extensa das instituições de crédito e respetivos devedores. «Para responder a tal questão», afirmou-se no Acórdão n.º 195/2017: “[É] indispensável que se determine qual o ponto de vista ou termo de comparação entre os sujeitos a tratamento diferenciado pela norma sindicada. Uma distinção legal é racional se for ditada pela própria finalidade da lei; atente-se na distinção entre automóveis ligeiros e pesados no regime que estabelece os limites de velocidade na circulação rodoviária. E será arbitrária se não tiver qualquer relação, ou uma relação minimamente comensurável, com a ratio legis, como seria o caso se a lei fixasse limites de velocidade diversos consoante a proveniência geográfica do construtor do automóvel. Chega-se a estas conclusões, como é bom de ver, através da determinação, ainda que implícita, de um termo de comparação entre as situações diferenciadas pela lei; no caso dos limites de velocidade, cuja finalidade é mitigar o risco de acidentes e dos danos emergentes da sua ocorrência, o tertium comparationis é o conjunto das propriedades dos veículos que os tornam mais ou menos perigosos e mais ou menos aptos a provocar danos em caso de acidente − contando-se entre tais propriedades a massa do veículo, mas não a origem do seu construtor.” O termo de comparação entre os dois regimes – o regime geral que não dispensa os créditos titulados por documentos particulares assinados pelo devedor de reconhecimento judicial através da ação declarativa e o regime especial que atribui força executiva a documentos em igualdade de circunstâncias que titulem créditos da A. – não pode deixar de ser a idoneidade de tal documento como meio de acertamento do direito exequendo. Esta constitui a propriedade de um título em virtude da qual se pode concluir pela verosimilhança da situação jurídica nele documentada. A sentença condenatória é o título executivo paradigmático (artigo 703.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil), visto que a função essencial da ação declarativa é precisamente a de “acertar”, “demonstrar” ou “verificar” a relação jurídica obrigacional, através de um processo de partes com igualdade de armas, decido por um terceiro imparcial cuja pronúncia, uma vez esgotadas as vias de recurso, faz caso julgado quanto ao objeto do litígio. O acertamento jurisdicional, como é bom de ver, constitui o ponto de chegada da ação declarativa e o ponto de partida da ação executiva. A atribuição de força executiva a títulos diversos de sentenças condenatórias, designadamente documentos exarados ou autenticados por notário ou títulos de crédito (alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil), baseia-se no juízo de o legislador de que aqueles possuem características tais que a situação jurídica neles documentada é verosímil ao ponto de justificar a dispensa do acertamento comum no processo declarativo. Por outras palavras, entende-se, nesses casos, que o sacrifício das garantias processuais que a ação declarativa confere ao devedor é compensado pela maior celeridade na satisfação dos créditos, sendo certo que o devedor tem a possibilidade – mitigadora do efeito restritivo do regime – de, através da oposição à execução, discutir a existência do direito exequendo num processo declarativo que corre por apenso à acção executiva. O legislador goza seguramente, em todo este domínio, de uma ampla margem de conformação política, que encontra o seu limite na proibição constitucional da restrição excessiva dos direitos a um processo equitativo e a tutela jurisdicional efetiva. Não é esta, porém, a questão que se coloca nos presentes autos. O problema de constitucionalidade identificado na decisão recorrida não se prende com a opção do legislador de, restringindo mais ou menos intensamente direitos fundamentais em matéria processual, atribuir força executiva a certa classe de títulos, abstraindo da qualidade dos respetivos sujeitos. Prende-se com o facto, que releva do princípio da igualdade, de ter atribuído a títulos de determinado sujeito a força executiva que as regras gerais negam à generalidade dos títulos da mesma natureza. Para que esta opção seja racional – para que não viole a proibição do arbítrio –, é necessário que se identifique uma qualidade do sujeito privilegiado pelo legislador em virtude da qual seja plausível afirmar-se que os documentos assinados pelo devedor que titulam os créditos daquele possuem uma vocação de acertamento diferenciada. Ora, tal qualidade não parece existir. Vejamos. 8.–Como bem assinala o Ministério Público, a solução legal contestada nos presentes autos tem a sua origem no artigo 61.º do Decreto-Lei n.º 48953, de 5 de abril de 1969, que aprovou um novo regime orgânico da então denominada A., Crédito e Previdência, definida no artigo 2.º como “uma pessoa coletiva de direito público, dotada de autonomia administrativa e financeira, com património próprio, competindo-lhe o exercício das funções de instituto de crédito do Estado e a administração das instituições a que se referem os artigos 4.º [Caixa Geral de Aposentações e Montepio de Servidores do Estado] e 5.º [Caixa Nacional de Crédito].” O artigo 3.º dispunha que, “[c]omo instituto de crédito do Estado, incumbe à A. colaborar na realização da política de crédito do Governo e, designadamente, no incentivo e mobilização da poupança para o financiamento do desenvolvimento económico e social, na ação reguladora dos mercados monetário e financeiro e na distribuição seletiva do crédito.» E a respeito dos funcionários da A., preceituava o n.º 2 do artigo 31.º que, «[o] referido pessoal continua sujeito ao regime jurídico do funcionalismo público, com as modificações exigidas pela natureza específica da atividade da A. como instituição de crédito, de harmonia com o disposto no presente diploma e nos restantes preceitos especialmente aplicáveis ao estabelecimento.” Entretanto, o diploma em que se insere a norma cuja aplicação foi recusada na decisão recorrida – o Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto – transformou a A. numa sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, com o propósito expresso de a colocar em igualdade de circunstâncias com as demais instituições de crédito que operam no sistema financeiro português. O preâmbulo do diploma é esclarecedor a esse respeito: “Diversas e significativas modificações verificadas no sistema financeiro português desde a data da publicação dos acuais diplomas orgânicos e a alteração dos condicionalismos interno e externo em que a instituição exerce a sua atividade recomendam agora a sua profunda revisão. Atendo-nos, unicamente, aos eventos mais marcantes dos últimos anos, impõe-se, em primeiro lugar, uma referência à adesão de Portugal às Comunidades Europeias, com a consequente aplicação das regras do direito comunitário. No plano interno, o Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de dezembro, veio equiparar a A. aos bancos no que respeita às atividades que está autorizada a exercer. Todo o circunstancialismo referido aponta deste modo para a sujeição da A. a um regime de direito privado ou, mais rigorosamente, para a aplicação à instituição de regras idênticas às que regem as empresas privadas do sector. O mesmo objetivo de aproximação da A. às restantes empresas do sector levou à adoção da forma de sociedade anónima. Ao contrário do que se estabeleceu noutros casos, considerou-se no caso da A., dada a natureza da atividade exercida, a posição e o papel que a empresa ocupa no mesmo sector, que deveria ser apenas o Estado, e não qualquer outra pessoa coletiva de direito público, o detentor do capital. No que respeita ao pessoal, o novo regime consagra a aplicação à A.do regime jurídico do contrato individual de trabalho, sem prejuízo, à semelhança de solução adotada em casos idênticos, da possibilidade concedida aos trabalhadores atualmente ao serviço da instituição de optarem pela manutenção do regime a que estavam sujeitos.” Atenta a natureza que a lei então atribuiu à A., aproximando-a das demais instituições de crédito, submetendo-a a regras de direito privado e aplicando ao seu pessoal o regime do contrato individual de trabalho, nada justifica a conclusão de que os documentos abrangidos pelo artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, possuem um grau diferenciado de idoneidade de acertamento dos créditos neles representados. A A. alega que é ainda uma empresa pública destinada a servir o interesse público, ao contrário das instituições de crédito privadas, que «têm como prioridade de gestão criar valor para os acionistas». Porém, não se vê de que modo tal influi no juízo sobre a maior ou menor vocação de acertamento dos documentos que titulam os seus créditos, o tertium comparationis relevante para se determinar se a solução legal é arbitrária. Na verdade, decisiva não é a finalidade prosseguida pela A., mas a forma escolhida para o efeito; sob esse ponto de vista, nada distingue os documentos a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, de documentos particulares homólogos detidos por outras instituições de crédito, e aos quais o legislador processual civil veio a negar, com a aprovação do «novo código», força executiva. Sublinhe-se, por último, que os documentos aqui em causa carecem da força probatória que decorreria do reconhecimento de uma especial fé pública em que estivessem investidos os funcionários da A. que os outorgam – fé pública essa que poderia justificar uma analogia com os documentos autênticos ou autenticados referidos na alínea b) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil, dado que a exequibilidade destes, por comparação com os equivalentes documentos particulares simples constitutivos de obrigações e assinados pelo devedor, aos quais atualmente não é reconhecida exequibilidade, radica precisamente numa especial qualidade do sujeito que os outorga ou que os certifica. Ora, para que se pudesse falar de fé pública – ou qualidade equivalente – seria indispensável que a mesma integrasse o estatuto dos funcionários da A.. Não é esse o caso: o estatuto dos trabalhadores da A. não os distingue, nos termos da lei, dos trabalhadores das instituições de crédito privadas. Do facto de a A., enquanto sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos, estar adstrita à prossecução do interesse público, não se segue que os seus funcionários, designadamente aqueles que intervêm na outorga dos documentos a que se refere o artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, gozem de uma qualquer fé pública, suscetível de comunicar aos contratos abrangidos pela norma sindicada um grau de acertamento do direito exequendo que justifique a sua exequibilidade imediata, em contraste com contratos da mesma natureza celebrados por outros credores, designadamente as demais instituições de crédito. Por tudo quanto se disse, resta concluir que a norma sindicada nos presentes autos é inconstitucional, por violar o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição». Não se vendo motivo para divergir desta jurisprudência, resta reiterá-la, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, confirmando o julgamento de inconstitucionalidade da norma do n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de agosto, segundo a qual se revestem de força executiva os documentos que, titulando ato ou contrato realizado pela A., S.A., prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades, negando provimento ao recurso”. Perante este circunstancialismo e diante desta argumentação, nada se apresenta configurado que permita ou justificar a posição de vantagem desproporcionada perante as outras instituições financeiras que operam em Portugal, ou a posição de desvantagem dos particulares (devedores), em que se consubstancia a atribuição geral de força executiva aos documentos que, titulando acto ou contrato realizado pela Caixa Geral de Depósitos, prevejam a existência de uma obrigação de que essa entidade bancária seja credora e estejam assinados pelo devedor, sem necessidade de outras formalidades. Assim sendo, só podemos concluir que a decisão tomada pelo Tribunal a quo foi a mais acertada, importando, em conformidade com tudo o exposto, recusar a aplicação da norma constante do n.º 4 do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 287/93, de 20 de Agosto, em face da sua inconstitucionalidade, por violação do artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa. Com esta decisão, o documento particular sob o qual assenta o presente processo executivo, deixa de possuir força executiva e, como tal, teria sempre de ser objecto de indeferimento liminar, por manifesta falta de título, como impunha a alínea a) do n.º 2 do artigo 726.º do Código de Processo Civil[14]” – fim de citação. Em suma, concordando-se integralmente com esta fundamentação, o recurso improcede. Tendo nele decaído, é a recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil. * V. Decisão Nos termos supra expostos, acordam os juízes que compõem este colectivo da 6ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso e em consequência em confirmar o despacho de indeferimento liminar proferido. Custas pela recorrente. Registe e notifique. Lisboa, 12 de Setembro de 2024 Eduardo Petersen Silva Nuno Gonçalves Nuno Lopes Ribeiro ______________________________________________________ [1] Com aproveitamento do relatório da sentença recorrida. [2] Desembargador José Capacete [3] Desembargadora Conceição Saavedra |