Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18338/21.1T8LSB.L1-9
Relator: SIMONE ABRANTES DE ALMEIDA PEREIRA
Descritores: ISOLAMENTO PROFILÁTICO
DECISÃO ADMINISTRATIVA DA AUTORIDADE DE SAÚDE
CORONAVIRUS SARS-COV-2
HABEAS CORPUS
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I- A detenção relevante para efeito da providência de habeas corpus implica uma privação física da liberdade de alguém que lhe é imposta e à qual não pode eximir-se, tal não ocorrendo no caso dos autos, que se reporta a uma situação de isolamento profilático que, constituindo uma medida de saúde pública, não implica detenção, dependendo do seu cumprimento voluntário;
II- Logo a situação de isolamento profilático determinada por autoridade de saúde não se revela como uma detenção enquadrável no artigo 220º al. c) e d) do Código de Processo Penal nem do artº 27º nº 1 e 2 da CRP.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
No âmbito do processo nº 18338/21.1 T8LSB, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo de Instrução Criminal de Lisboa (juiz 7), foi proferida decisão de indeferimento liminar do pedido de Habeas Corpus, formulado por AA.
Inconformada com a decisão, a requerente interpôs recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«I. A filha da aqui requerente obteve resultado positivo para o vírus Coronavírus SARS-CoV-2 no dia 18 de julho do corrente ano.
II. Nesse mesmo dia a requerente, que coabita com a filha, recebeu uma ordem escrita do delegado de saúde, de nome BB, para ficar em isolamento profilático no período compreendido entre os dias 18 de julho e 12 de agosto.
III. A requerente não foi vista por nenhum médico, nunca acusou qualquer sintoma associado à doença Covid-19, efetuou três testes, no período compreendido entre 18 e 27 de julho, os quais deram sempre negativo, posto o que não se conformando com a privação de liberdade a que foi sujeita, por tão longo período, intentou um pedido de Habeas Corpus no dia 28 de julho, no Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa.
IV. A 29 de julho foi a ARS, Lisboa e Vale do Tejo notificada, na pessoa do delegado de saúde que determinou que a requerente ficasse em isolamento, para em 3 dias esclarecer o que tivesse por conveniente.
V. No dia 1 de agosto a requerente recebeu um email da USP/Lisboa Central, de outra pessoa, de nome “CC”, não o delegado de saúde que a 18 de julho a mandou ficar em isolamento profilático, a dizer que este tinha terminado.
VI. No dia 3 de agosto a requerente foi notificada da douta decisão de que ora se recorre.
VII. Na douta decisão pode ler-se que a requerente …” encontra-se sujeita a isolamento profilático na sequência de uma decisão administrativa das autoridades de saúde. A situação referida não configura uma detenção.
A requerente não se encontra sujeita a uma privação física e efetiva da sua liberdade, que lhe seja imposta por outrem e da qual não consiga eximir-se. Desde logo a requerente não se encontra guardada à vista ou colocada num local fechado e vigiado por uma autoridade.“
VIII. A requerente viu a sua liberdade pessoal e física ser privada por uma ordem de um funcionário administrativo do Estado, o qual fundamentou a sua decisão remetendo para o art. 5º do Decreto-Lei n.º 82/2009 de 2 de abril – Diploma que regulamenta a designação, competência e funcionamento das entidades que exercem o poder de autoridades de saúde.
IX. O conceito de isolamento profilático está definido na Orientação da DGS n.º 10/2020 de 16 de março de 2020 (ainda em vigor): “O isolamento é a medida utilizada em indivíduos doentes, para que através do afastamento social não contagiem outros cidadãos. “.
X. A requerente nunca apresentou sintomas associados à doença Covid-19, todos os testes efetuados deram sempre negativo, ou seja: nunca esteve doente. Pelo que, o delegado de saúde agiu a contrario àquela Orientação.
XI. Mas a desconformidade das decisões das Autoridades de Saúde continuou. A Orientação da DGS n.º 015/2020, atualizada em 19/02/2021, Assunto: COVID-19: Rastreio de Contactos estabelece no seu Ponto 33 que: “O fim do isolamento profilático corresponde ao 14º dia após a data da última exposição de alto risco ao caso confirmado, conforme estabelecido na Declaração de Isolamento Profilático”.
XII. O Ponto 34 da mesma Orientação concretiza que “Para efeitos do número anterior, nas situações em que não é possível garantir adequadas condições de isolamento dentro da habitação entre o caso confirmado e o seu coabitante, a data da última exposição de alto risco corresponde à data do fim do isolamento do caso confirmado “. (sublinhado nosso)
XIII. O fim do isolamento da filha da requerente (o caso confirmado) foi dia 29 de julho. Pelo que, a ser cumprido aquele Ponto 34 da Orientação n.º 015/2020 da DGS, nunca a requerente poderia ter recebido um email a 1 de agosto a informar que o seu período de isolamento tinha terminado. Ou seja: esta decisão da autoridade de saúde vai, também, contra uma Orientação da própria DGS.
XIV. E a verdade é que nos afigura que a decisão que determinou o fim do isolamento profilático da requerente, foi tomada na sequência da ARS – Lisboa e Vale do Tejo ter sido notificada para se pronunciar quanto ao Habeas Corpus intentado pela requerente. Só assim se compreende a mudança de decisão da autoridade de saúde (sem qualquer justificação) e, inclusive, em violação do referido Ponto 34.
XV. Certo é que a requerente viu a sua liberdade ser decidida por duas decisões administrativas, dadas por duas pessoas diferentes e cada uma delas, inclusive, em violação de Orientações da própria DGS. Decisões essas desprovidas de qualquer suporte legal e sem serem fundamentadas, como se impunha em qualquer decisão que restrinja direitos, liberdades e garantias.
XVI. Pelo que, o único meio legal de que a recorrente podia socorrer-se para fazer valer os seus Direitos, perante a ordem de 18 de julho para ficar em isolamento profilático, era o Habeas Corpus porque, efetivamente, estava privada da sua liberdade e não podia sair da sua residência. Contrariamente ao que o Tribunal a quo veio sustentar.
XVII. Conforme pode ler-se no Acórdão do Tribunal Constitucional N.º 424/2020 – Processo 403/2020 “ A privação da liberdade traduz-se numa perturbação do âmago do direito à liberdade física, à liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado local, sendo a essência do direito atingida por um determinado tempo (que pode ser, aliás, de duração muito reduzida). “
XVIII. Temos, pois, que a requerente estava, sim, privada da sua liberdade, sendo que não podia sair da sua residência. Até porque se o fizesse incorria na prática do crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348.º nº 1 al. b) do Código Penal.
XIX. Com efeito, à data em que a factualidade ocorreu estava, ainda, em vigor a Resolução do Conselho de Ministros n.º 74-A/2021, publicada no DR de 09.06.2021, cujo art. artigo 3.º sob a epígrafe “Confinamento Obrigatório” dispunha que:
“ 1- Ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde, no domicílio ou, não sendo aí possível, noutro local definido pelas autoridades competentes:
(…)
b) Os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa. “
XX. Conforme consignado em Douto Aresto desse Venerando Tribunal da Relação “ face à Constituição e à Lei, não têm as autoridades de saúde poder ou legitimidade para privarem qualquer pessoa da sua liberdade - ainda que sob o rótulo de “confinamento”, que corresponde efectivamente a uma detenção – uma vez que tal decisão só pode ser determinada ou validada por autoridade judicial, isto é, a competência exclusiva, face à Lei que ainda nos rege, para ordenar ou validar tal privação da liberdade, é acometida em exclusivo a um poder autónomo, à Magistratura Judicial. Daí decorre que, qualquer pessoa ou entidade que profira uma ordem, cujo conteúdo se reconduza à privação da liberdade física, ambulatória, de outrem (qualquer que seja a nomenclatura que esta ordem assuma: confinamento, isolamento, quarentena, resguardo profiláctico, etc), que se não enquadre nas previsões legais, designadamente no disposto no artº 27 da CRP e sem que lhe tenha sido conferido tal poder decisório, por força de Lei - proveniente da AR, no âmbito estrito da declaração de estado de emergência ou de sítio, respeitado que se mostre o princípio da proporcionalidade - que a mandate e especifique os termos e condições de tal privação, estará a proceder a uma detenção ilegal, porque ordenada por entidade incompetente e porque motivada por facto pelo qual a lei a não permite (diga-se, aliás, que esta questão já foi sendo debatida, ao longo dos tempos, a propósito de outros fenómenos de saúde pública, nomeadamente no que se refere à infecção por HIV e por tuberculose, por exemplo. E, que se saiba, nunca ninguém foi privado da sua liberdade, por suspeita ou certeza de padecer de tais doenças, precisamente porque a Lei o não permite).”. - Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, de 11.11.2020, Proc. Nº1783/20.7T8PDL, Relatora Margarida Ramos de Almeida, disponível em www.dgsi.pt (sublinhado nosso)
XXI. No caso em apreço, conforme já acima consignámos, a requerente viu a sua liberdade pessoal e física ser privada por uma ordem de um funcionário administrativo do Estado, o qual fundamentou a sua decisão remetendo para o art. 5º do Decreto-Lei n.º 82/2009 de 2 de abril.
XXII. Da leitura daquele artigo em parte alguma se retira que o funcionário em questão tenha poder ou legitimidade para privar a requerente da sua liberdade.
XXIII. A al. c) do n.º 3 daquele preceito legal prevê que: “Às autoridades de saúde compete, em especial de acordo com o nível hierárquico técnico e com a área geográfica e administrativa de responsabilidade: desencadear, de acordo com a Constituição e a lei, o internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a indivíduos em situação de prejudicarem a saúde pública”. (sublinhado nosso)
XXIV. Pelo que, “ daqui se retira que, devendo as medidas tomadas pelas autoridades de saúde respeitar a Constituição e a lei, e não prevendo a Lei Constitucional a privação da liberdade das pessoas portadoras de doenças infeto-contagiosas, caso a interpretação a dar à expressão «internamento ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde a indivíduos em situação de prejudicarem a saúde pública» seja no sentido de que as autoridades de saúde podem ordenar o internamento, ou outra medida restritiva da liberdade de circulação, ou a prestação compulsiva de cuidados de saúde de pessoas portadoras de doenças infeto-contagiosas, tal interpretação da lei é materialmente inconstitucional por violação do art. 27.°, n.° 1, da C.R.P.
(cfrme. Douto Acórdão acima mencionado)
XXV. Pode ler-se ainda na douta sentença recorrida que o isolamento profilático “… é aceite a nível internacional e aplicada para a prevenção do desenvolvimento da pandemia em que vivemos, nomeadamente pela Organização Mundial de Saúde (https://www.who.int/teams/risk-communication/covid-19-transmission-package) sendo, por conseguinte, um ato que pretende a defesa do direito à vida e da integridade física dos demais cidadãos (arts. 18., n.º 1 e n.º 2, 24.º, n.º 1 e 25.º n.º 1 da constituição)“.
XXVI. Salvo o devido respeito, que é muito, a Mmª. Juiz do Tribunal a quo faz uma remissão genérica para um link da O.M.S. que contém orientações que não constituem fonte de Direito e não são normas de Direito Internacional para efeitos do art. 8.º da nossa Constituição. Tão pouco podem ser aplicadas se violarem a mesma. E quanto aos artigos constitucionais invocados não foram os mesmos cotejados com o caso concreto e com o direito inviolável da Liberdade.
XXVII. Nesta sede, dispõe o art. 27.º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe Direito à liberdade e à segurança que:
1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.
2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.”
XXVIII. As exceções a esta norma encontram-se taxativamente elencadas nas alíneas a) a h) do n.º 3 do mesmo artigo.
XXIX. Por outro lado, todo o regime dos direitos liberdades e garantias está englobado na reserva relativa de competência da Assembleia da República, em conformidade com o art. 165.º n.º 1 al. b) da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos, todas as normas disciplinadoras de um qualquer direito desta natureza carecem de uma autorização prévia da Assembleia da República. Esta exigência ganha particular relevância quando estão em causa compressões ou condicionamentos a um direito.
XXX. À data dos factos estava declarado o “estado de calamidade” e não no estado de emergência. E assim sendo temos que concluir que « … a “situação de calamidade” não tem relevância constitucional para efeitos de suspensão de direitos, liberdades e garantias, relevando para esse efeito apenas a “calamidade” que funda a declaração do estado de emergência (artigo 19.º n.º 2 da constituição) – » in Douto Acórdão do Tribunal Constitucional já mencionado (sublinhado nosso)
XXXI. Ainda que se invoque que a situação objeto de discussão, e do presente recurso, acarreta uma questão de saúde pública, e se procure dessa forma legitimar a restrição imposta à requerente, sempre se chamaria aqui à colação o requisito da proporcionalidade na vertente da proibição do excesso prevista no art. 18.º n.º 2 da Constituição.
XXXII. Como pode ler-se no Douto Aresto do Tribunal Constitucional já citado “Nunca a determinação de confinamento obrigatório, como radical privação da liberdade, pode configurar ato arbitrário, mas antes proporcional, reclamando uma adequada ponderação entre a privação da liberdade e o valor da saúde pública”. Não foi, certamente, o caso dos Autos, conforme pode concluir-se face a todo o supra exposto.
XXXIII. Afigura-se-nos grave, e de legalidade e constitucionalidade muito duvidosas, que esta restrição de direitos fique apenas dependente de uma decisão administrativa que impôs ab initio 26 dias de privação da liberdade à requerente. Pelo que, o mecanismo legal de que a mesma dispunha para por termo à privação a que se encontrava sujeita (que mais não é do que uma verdadeira detenção) só poderia ser o Habeas Corpus.
XXXIV. Em suma e como pode ler-se no já citado Douto Acórdão do Tribunal Constitucional “o confinamento obrigatório a que o requerente se encontra sujeito pela Autoridade de Saúde consubstancia uma privação da liberdade … na ausência de previsão procedimental própria, que preveja a sindicabilidade sistemática pela via judicial daquela decisão de confinamento, é legítimo o recurso pelo requerente ao mecanismo extraordinário de Habeas corpus previsto no artigo 31.º da CRP “. (sublinhado nosso)
Assim, em face de todo o supra exposto e por considerarmos que ao decidir como decidiu o douto Tribunal a quo não fez uma boa aplicação dos artigos 18.º n.º 2, 19.º, 27.º n.º 1, n.º 2 e n.º 3, 31.º e 165.º n.º 1 al. b) da Constituição da República Portuguesa e artigos 220.º e 221.º do Código de Processo Penal,
Requer-se muito respeitosamente a V. Exas. Venerandos Juízes Desembargadores, se dignem proceder à revogação da douta sentença recorrida, porquanto face aos fundamentos expendidos o Habeas Corpus, então, entregue não era manifestamente infundado pelo que não deveria ter sido indeferido liminarmente e, assim doutamente decidindo, não será de imputar à requerente o pagamento de qualquer montante nos termos do n.º 4 do art. 221.º, devendo, também, nessa sede ser a douta sentença revogada».
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O recurso foi admitido por despacho proferido a 19 de Agosto de 2021, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Pelo Ministério Público, junto da 1ª instância, não foi apresentada resposta.
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Remetidos os autos a este Tribunal da Relação de Lisboa, pelo Exmº. Procurador-Geral Adjunto foi lavrado parecer através do qual pugna pela improcedência do recurso, alegando, em síntese, que a detenção relevante para efeito da providência de habeas corpus implica uma privação física da liberdade de alguém que lhe é imposta e à qual não pode eximir-se, tal não ocorrendo no caso dos autos, que se reporta a uma situação de isolamento profilático que, constituindo uma medida de saúde pública, não implica detenção, dependendo do seu cumprimento voluntário.
Sustentou ainda que terminado o isolamento profilático da recorrente, a utilidade do presente recurso apenas persiste em virtude da condenação da requerente/recorrente em custas.
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Cumprido o preceituado no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, nada mais foi acrescentado.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o artigo 419º do Código de Processo Penal, cumpre decidir.
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II – Teor da decisão recorrida (transcrição):
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
«AA, veio intentar a presente providencia de habeas Corpus, pedindo a sua devolução á liberdade.
Alega em síntese que por decisão de funcionário administrativo do Estado foi sujeita a isolamento profilático, durante o período compreendido entre 18 de Julho a 12/8/2021, vendo-se impedida de sair da sua habitação e privada da sua liberdade.
Conforme decorre do referido pela requerente a mesma encontra-se sujeita a isolamento profilático na sequencia de uma decisão administrativa das autoridades de saúde.
A situação referida não configura uma detenção.
A requerente não se encontra sujeita a uma privação física e efetiva da sua liberdade, que lhe seja imposta por outrem e da qual não consiga eximir-se. Desde logo a requerente não se encontra guardada à vista ou colocada num local fechado e vigiado por uma autoridade.
A requerente encontra-se como decorre dos autos, sujeita a uma ordem de confinamento em isolamento profilático por razões de saúde pública. Tal situação não é uma detenção pelas circunstancias acima referidas.
A medida a que a requerente se encontra sujeita foi determinada por autoridade de saúde pública, competente para o efeito, conforme decorre de fls. 48 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Tal medida é aceite a nível internacional e aplicada para a prevenção do desenvolvimento da pandemia em que vivemos, nomeadamente pelo Organização Mundial de Saúde (https://www.who.int/teams/risk-communication/covid-19-transmission-package), sendo, por conseguinte, um ato que pretende a defesa do direito à vida e da integridade física dos demais cidadãos (arts. 18.º, n.º1 e n.º2, 24.º, n.º1 e 25.º, n.º1, da Constituição).
A decisão da autoridade de saúde que determinou a sujeição da requerente a confinamento/isolamento profilático, por se tratar de uma decisão administrativa é passível de a pedido da requerente, ser apreciada em sede própria (Tribunais Administrativos), mas não configura uma detenção para efeitos do artº220º e 221º do CPP, não integrando nenhuma das alíneas a que alude o nº1 do referido artº 221º.
Face ao exposto e porquanto a requerente não se encontra sujeita a DETENÇÂO é manifestamente infundado o presente pedido de HABEAS CORPUS, razão pela qual o indefiro liminarmente.
Condeno o requerente no pagamento de 6 UC (cfr. artº221º nº4 do CPP).
Notifique.».
III – Factos com relevância para a decisão:
Dos elementos com que vem instruído o processo e com relevância para a apreciação da providência requerida, mostra-se assente, com base nos documentos de fls. 8, 18 a 23 e 24, a seguinte factualidade:
1. DD, nascida a ……………… de 2003, filha da requerente AA, com sintomas de infecção por SARS-CoV-2 desde 18 de Julho de 2021, apresentou resultado positivo da infecção em 19 de Julho de 2021, tendo-lhe sido dada alta clínica em 28 de Julho de 2021.
2. A requerente AA, nascida a ………….. 1974, mãe e coabitante de DD foi identificada, pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, como contacto de alto risco de DD (nos termos da Norma nº 015/2020, da Direcção-Geral da Saúde).
3. O Delegado de Saúde Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo emitiu a “Declaração para Efeitos de Isolamento Profilático”, constante de fls. 8 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido, da qual consta “determina o isolamento profilático de AA, portador/a do Cartão de Cidadão nº (…), com o Número de Identificação da Segurança Social (…), pelo período de 2021-07-18 até 2021-08-12, por motivo de perigo de contágio e como medida de contenção de contágio pelo COVID-19.”.
4. Foram prescritos à requerente 2 testes RT-PCR, que esta realizou em 21.07.2021 e 27.07.2021, tendo o resultado dos mesmos dado “Negativo”, em 22.07.2021 e 28.07.2021, respectivamente.
IV - Fundamentos do recurso:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso (cf. art.º 412.º e 417.º do Cód. Proc. Penal e, entre outros, Acórdão do STJ de 29.01.2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB. S1, 5ª Secção).
Assim, atentas as conclusões da recorrente, vem colocada à apreciação deste tribunal a seguinte única questão:
- Se a situação de isolamento profilático determinada por autoridade de saúde, consubstancia uma detenção enquadrável no artigo 220º do Código de Processo Penal.
Como consideração preliminar à questão sub judice, e acompanhando a posição do Exmº. Procurador-Geral Adjunto, cumpre referir ser indiscutível que a utilidade do presente recurso apenas subsiste por persistir a condenação da recorrente em custas, já que o isolamento profilático da mesma terminou em data anterior à própria decisão sob recurso (como admitido pela recorrente na sua conclusão V).
A providência de habeas Corpus, com assento constitucional no artigo 31º da Constituição da República Portuguesa e integrando o Capítulo «Direitos, liberdades e garantias pessoais» é, como vem sendo caracterizada pela doutrina e jurisprudência, um instituto destinado a assegurar a liberdade física individual e a impedir as prisões arbitrárias [com origem no direito inglês (1679), sendo acolhida entre nós pela Constituição de 1911, por influência do direito brasileiro, transitando para a Constituição de 1933, vindo posteriormente a ser plasmada na legislação ordinária portuguesa, com o DL 45033, de 20 de Outubro de 1945, cujas disposições vieram a ser integradas no Código de Processo Penal de 1929 pelo D.L. 185/72, de 31.05, e posteriormente disciplinada, no pós-revolução, pelo D.L. 744/74, de 27.12.1974 e D.L. 320/97, de 4 de Maio de 1976].
No plano ordinário e mantendo a matriz originária de medida de carácter excepcional e urgente de protecção da liberdade individual, mostra-se actualmente prevista em duas modalidades:
- No artigo 220º do Código de Processo Penal para a situação de detenção ilegal [Habeas Corpus em virtude de detenção ilegal];
- No artigo 222º do mesmo diploma para o caso de prisão ilegal [Habeas Corpus em virtude de prisão ilegal]. 
Em qualquer dos casos, constitui pressuposto de facto da providência cautelar em causa, a prisão ou detenção efectiva e actual, e seu fundamento jurídico a ilegalidade dessa prisão ou detenção, decorrente dos fundamentos taxativamente previstos.
No caso dos autos, está em causa a primeira das modalidades.
Como decorre do disposto no artigo 220º, nº 1, do CPP, a lei faz depender a procedência da petição, isto é, a qualificação de detenção ilegal justificativa do Habeas Corpus de:
a) Estar excedido o prazo para entrega ao poder judicial;
b) Manter-se a detenção fora dos locais legalmente permitidos;
c) Ter sido a detenção efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
d) Ser a detenção motivada por facto pelo qual a lei não permite.
Sustenta a recorrente que a ordem emitida, por um funcionário administrativo do Estado (o delegado de saúde), em 18 de Julho de 2021, para ficar em isolamento profilático é privativa da sua liberdade pessoal e física por impeditiva de a mesma sair da sua residência, pelo que a decisão recorrida ao decidir que a “A situação referida não configura uma detenção” fez incorrecta aplicação dos artigos 18.º n.º 2, 19.º, 27.º n.º 1, n.º 2 e n.º 3, 31.º e 165.º n.º 1 al. b) da Constituição da República Portuguesa e artigos 220.º e 221.º do Código de Processo Penal.
Adianta-se, sem dificuldade, não lhe assistir razão, pelos fundamentos suficientemente enunciados na decisão recorrida e em decisões dos Tribunais Superiores, entre as quais no recente Acórdão desta 9º secção do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09.09.2021, proc. 15677/21.5 T8LSB.L1 (publicado in www.dgsi.pt).
A recorrente convoca, em abono da sua pretensão, o seu direito à liberdade previsto no artigo 27º da Constituição da República Portuguesa e a interpretação que de tal normativo vem sendo acolhida pelo Tribunal Constitucional, resultante do Acórdão nº 424/2020 [“A privação da liberdade traduz-se numa perturbação do âmago do direito à liberdade física, à liberdade de alguém se movimentar e circular sem estar confinado a um determinado local, sendo a essência do direito atingida por um determinado tempo (que pode ser, aliás, de duração muito reduzida)”].
Estabelece o artigo 27º da Constituição, sob a epígrafe “Direito à Liberdade e à segurança”:
“1. Todos têm direito à liberdade e à segurança.
 2. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.
3. Excetua-se deste princípio a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos seguintes:
a) Detenção em flagrante delito;
b) Detenção ou prisão preventiva por fortes indícios da prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos;
c) Prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão;
d) Prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente;
e) Sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal competente;
f) Detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente;
g) Detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários;
h) Internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.”.
4. (…).
5. (…).”.
É consensual que o direito à liberdade física ou à liberdade pessoal, entendido como a “liberdade de ir e vir, a liberdade física ambulatória, a liberdade de locomoção”, consagrado no nº 1 do artigo 27º é, tal como a generalidade dos direitos fundamentais, susceptível de ser limitado ou constrangido (V. a este propósito Jorge Reis Novais, in Direitos Fundamentais e inconstitucionalidade em situação de crise – a propósito da epidemia COVID-19, E-pública Revista Eletrónica de Direito Público).
A questão que nos autos se equaciona é a de saber se a situação do “confinamento profilático”, está abrangida pela garantia constitucionalmente conferida pelo nº 2 do artigo 27º para as restrições mais graves e extremas à liberdade e que se reconduzem a uma “privação total ou parcial da liberdade” [estas sim consagradas com carácter absoluto].
Se é certo, como bem salienta a doutrina, que a delimitação da fronteira entre os âmbitos dogmáticos de “privação” [total ou parcial] e de “restrição” não são unívocos, temos por correcto o entendimento [alcançado através da intensidade da afectação da liberdade imposta no caso] de que existe privação da liberdade quando alguém contra a sua vontade é confinado, coativamente, através do poder público, a um local delimitado, de modo que a liberdade corporal-espacial de movimento lhe é subtraída, e que existe mera limitação ou restrição de liberdade quando alguém é impedido, contra sua vontade, de aceder a certo local que lhe seria jurídica e facticamente acessível[1].
Na situação do isolamento profilático o que ocorre é, manifestamente, uma perturbação periférica da liberdade de movimentos, mantendo-se, no entanto a possibilidade de exercício das faculdades fundamentais que integram o direito à liberdade física e pessoal. Não ocorrendo privação da liberdade, estamos fora do alcance normativo do nº 2 do artigo 27º da Constituição.
A situação de privação da liberdade inerente a uma situação de detenção ou prisão concretiza-se pela supressão da liberdade de movimento (na plenitude da sua dimensão) imposta coercivamente, sem que haja possibilidade de a ela se eximir.
No caso particular que nos ocupa, o de isolamento profilático, o mesmo não só não corresponde a uma situação de privação de liberdade, como ainda lhe acresce a característica de necessitar da comparticipação do visado, titular do direito subjectivo potencialmente atingido, para se concretizar. Tal circunstância determinaria sempre o seu não enquadramento no âmbito normativo do nº 2 do artigo 27º da Constituição e a impossibilidade de qualificar a situação como detenção para efeitos de Habeas Corpus.
A situação de isolamento profilático imposta à recorrente não se enquadra, pois, na previsão das convocadas alíneas c) e d) do artigo 220º do CPP porquanto não consubstancia uma detenção.
 A detenção que, como referimos, constitui pressuposto de facto da providência em análise, determina que se conclua pela manifesta improcedência do recurso.
A providência de Habeas Corpus não é uma via de impugnação da decisão administrativa que determinou o isolamento profilático e sua duração, pelo que não cabe nesta sede analisar da conformidade legal da decisão administrativa emitida pelo Delegado de Saúde (a que se reportam as conclusões VIII a XIII).
O recurso improcede, na sua totalidade, não se verificando qualquer violação dos artigos 18.º n.º 2, 19.º, 27.º n.º 1, n.º 2 e n.º 3, 31.º e 165.º n.º 1 al. b) da Constituição da República Portuguesa e artigos 220.º e 221.º do Código de Processo Penal.
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V - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 9ª secção deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Mais se condena a recorrente AA nas custas do recurso, fixando-se em 4 Ucs a taxa de justiça devida – artigos 513º e 514º, ambos do Código de Processo Penal, e tabela III do Regulamento das Custas Processuais aprovado pelo Decreto-Lei nº 34/2008, de 26 de Fevereiro.
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Notifique.

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2022
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos signatários)

Simone Abrantes de Almeida Pereira
Francisco de Sousa Pereira

[1] V. Maunz-Dürig, citado no Ac. TC nº 88/2022.