Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
73/16.4T8CSC.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DE UM DOS CÔNJUGES
RUPTURA DEFINITIVA DO CASAMENTO
SEPARAÇÃO DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Um divórcio sem consentimento pedido com base em factos que mostrem a ruptura definitiva do casamento (art. 1781/-d do CC), não poderia ser considerado procedente pela prova de factos que apenas permitem concluir por uma separação de facto (art. 1781/-a e 1782, do CC) por pouco mais de 3 meses.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

Em 11/01/2016, N intentou contra o seu marido J, com a mesma morada da autora (tendo em conta a procuração junta aos autos; no cabeçalho da petição a autora apenas identifica o domicílio profissional), a presente acção de divórcio sem consentimento do cônjuge.
Para além da referência ao casamento de 1978 e à inexistência de filhos menores, dizia o seguinte: autora e réu não fazem vida conjugal há vários anos, embora mantivessem residência comum por motivos económicos; dormem há vários anos em quartos separados, inexistindo, consequentemente, débito conjugal há vários anos; não tomam as refeições em conjunto; são frequentes as discussões e os desentendimentos do casal; em Julho de 2015 a autora deslocou-se em férias ao estrangeiro, sem a companhia do marido, e, ao regressar a Portugal, deparou-se com actos de agressividade e insultos por parte do réu, vendo-se forçada a refugiar-se em casa de uma filha receando pelo seu bem-estar físico e psíquico, em virtude das atitudes violentas e das ameaças constantes do réu; conclui no sentido da ruptura definitiva e irremediável da vida em comum e, em consequência do casamento, com referência aos requisitos do disposto na al. d) do art. 1871 do código Civil; requereu que os efeitos do divórcio se retrotraíssem à data da separação definitiva do casal em Julho de 2015.
O réu foi citado para a tentativa de conciliação e depois notificado para contestar, não o tendo feito.
Depois da audiência final (cujo tema de prova foi a ruptura da relação matrimonial), foi, a 18/07/2017. proferida sentença julgando a acção improcedente, por não provada, absolvendo o réu do pedido.
A autora recorre desta sentença – para que seja anulada e substituída por outra que declare procedente a acção – terminando as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem na íntegra na parte minimamente útil:
b) Os factos considerados provados estão em clara contradição com o depoimento das testemunhas e com as declarações de parte da autora no que tange à data da ruptura da vida em comum;
c) Com efeito, a ruptura do casal ocorreu bem antes da data considerada pelo tribunal a quo.
d) Quer as testemunhas, quer a autora foram unânimes em situar a ruptura do casamento em mais de um ano (há bem mais de dois anos, de acordo com o depoimento ajuramentado da autora).
e) Há clara contradição entre a fundamentação e a motivação da sentença ao considerar que autora e réu deixaram de viver na mesma casa em Outubro de 2015, quando no seu depoimento a autora e as testemunhas explicam a razão do abandono temporário do lar conjugal, bem como a razão de permanecerem a viver debaixo do mesmo tecto, por motivos financeiros.
f) As contradições ínsitas na sentença recorrida violam o disposto no art. 615/1-c do CPC, determinando a nulidade da mesma.
g) A causa de pedir da autora funda-se na previsão do disposto na alínea d do art. 1781 do CC, ou seja, na existência de factos que, independentemente de culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura definitiva do casamento.
h) De acordo com a factualidade assente, ficou inequivocamente demonstrada a ruptura definitiva do casamento ainda que, sem conceder, apenas a partir de Outubro de 2015, factos que se mantinham à data do julgamento da matéria de facto.
i) A autora peticionou o divórcio com fundamento no disposto na alínea d do art. 1781 do CC, cláusula geral e objectiva que não exige, para a sua verificação, qualquer duração mínima, como sucede com as restantes causas que impõem um ano de permanência, como decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça (proc. 2610/10.9TMPRT.P1.S1 [a autora não o diz, mas o ac. do STJ é de 03/10/2013]).
j/k) O tribunal a quo pronunciou-se pela improcedência da acção por não verificados os pressupostos consignados na alínea a do art. 1781, ignorando o enquadramento factual desenhado pela autora, a prova produzida que demonstrou a existência e a veracidade dos fundamentos invocados e o enquadramento legal dos mesmos: alínea d do art. 1781 do CC, assim incorrendo em nulidade por omissão de pronúncia (art. 615/1-d do CPC).
l) É violado, para além dos já referidos, o art. 264/2 do CPC [a autora não o diz mas está-se a referir ao CPC na redacção anterior à reforma de 2013].
O réu não contra-alegou.
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O recurso só foi remetido a este tribunal da relação a 16/04/2018, tendo sido distribuído a 23/04/2018.
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Questões que importa decidir: das nulidades da sentença; e, se forem (ou alguma delas for) procedente/s, da verificação do fundamento do divórcio invocado pela autora, com prévio conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto.
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Das nulidades da sentença
A 1.ª nulidade invocada não é nulidade nenhuma: a ‘contradição’ entre aquilo que resulta dos elementos de prova e os factos provados é um erro de julgamento (art. 662/1 do CPC), a ser apreciado na parte da impugnação da decisão da matéria de facto que se seguirá, e não uma contradição da sentença, ou melhor uma oposição dos fundamentos com a decisão, nulidade esta prevista no art. 615/1-c do CPC.
Já a 2.ª nulidade verifica-se realmente, pois que a sentença julga a acção improcedente com referência a uma causa de pedir que não tinha sido invocada (a separação de facto - art. 1781/-a do CC) e nada diz quanto à verificação da causa de pedir que tinha sido invocada (factos que mostravam a ruptura definitiva do casamento – art. 1781/-d do CPC). Ou seja, por um lado, conhece de questão de que não podia conhecer, ocupando-se de questão não suscitada pela parte (e até acrescentando um facto que dizia respeito a uma causa de pedir não invocada e que não tinha sido alegado: veja-se a parte sublinhada no ponto 2 que se segue e compare-se com os factos alegados pela autora na petição inicial), e, por outro lado, não conhece de questão de que devia conhecer, não resolvendo questão que a autora tinha submetido à sua apreciação, produzindo assim a nulidade prevista no art. 615/1-d do CPC (e art. 608/2 do CPC).
A consequência é apenas a necessidade de esta tribunal se substituir ao tribunal recorrido (art. 665/1 do CPC) na decisão do pedido de divórcio por ruptura definitiva do casamento.
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Para a apreciação das questões que falta conhecer, importa ter em conta os factos que foram dados como provados, que são os seguintes:
1. A autora e o réu casaram um com o outro, sem convenção antenupcial, no dia 23/09/1978.
2. Desde, pelo menos, Outubro de 2015, a autora e o réu deixaram de viver na mesma casa, de dormir na mesma cama e de tomar as refeições em conjunto, inexistindo qualquer intenção por parte da autora de retomar a vida em comum com o réu.
(I)
Da impugnação da decisão da matéria de facto
Dizia a autora no corpo das alegações:
4. [A data de Outubro de 2015 em que ocorreram os factos provados] não corresponde à realidade, manifestada no depoimento isento das testemunhas e nas próprias declarações de parte, consideradas credíveis, por seguras e espontâneas.
5. Não se vislumbra nos autos, contudo, a data em que é fixada a separação de facto [com isto a autora quer dizer que não tinha alegado aquela data na petição inicial e que os elementos de prova não referiam a mesma data], quando o que a autora afirma é que em Julho de 2015 se deslocou em férias ao estrangeiro e que, ao regressar, deparou-se com actos de agressividade que a levaram a refugiar-se em casa da filha, sendo tal situação transitória.
6. Certo é que ambas as testemunhas afirmaram, de forma igualmente segura e espontânea que a ruptura da vida em comum do casal ocorrera muito antes da data considerada pelo Sr. juiz.
7. A testemunha A, que mostrou conhecer bem os factos invocados pela autora, que declarou conhecer há cerca de 20 anos, foi clara e concisa no depoimento efectuado, ao afirmar que: “Há muitos anos, pelo menos 8/9 anos que a autora não é feliz no casamento” (c.2:50); “… não partilhavam o mesmo quarto há muitos anos” (c.3:25); e “…não dormiam juntos há pelo menos 1 ano” (c.7:00 a instância do Sr. juiz).
8. Também a testemunha M, igualmente amiga de longa data da autora, prestou um depoimento claro, conciso e isento, declarando que: “… e nos últimos anos … a completa solidão da autora em relação à vida familiar” (c.2:00) … “… há mais de cinco anos” (c.2:45); “não parece que tenham vida social em conjunto” (c.3:10); “(…) não dormem juntos no mesmo quarto e não mantêm uma relação de casal” (c.3:30); “falei a respeito das refeições, falámos sobre a vida familiar ou da não vida familiar” (c. 3:45).
9. Por sua vez, em declarações de parte que mereceram credibilidade ao Sr. juiz a quo, a autora não apenas confirmou o depoimento das testemunhas, como esclareceu, de forma credível, por segura e espontânea, assim considerada pelo Sr. juiz, os seguintes factos: “Não dorme com o marido há muito mais de dois anos” (c.8:20); “Em Outubro de 2015 já dormiam em quartos separados” (c.8:40); “Vivem na mesma casa por razões económicas, não têm dinheiro para comprar outra casa” (c.9:50); “tomam refeições em conjunto muito raramente e falam muito pouco (…) dos gatos, do tempo, às vezes do neto” (c.10:00); “normalmente cada um come para o seu lado” (c.11:20); e “não têm relações desde antes de Outubro de 2015” (c.11:50).
A fundamentação da decisão da matéria de facto, na sentença, consta do seguinte:
Quanto aos demais factos [para além do casamento], a autora, em declarações de parte, de forma credível, por segura e espontânea, confirmou estes factos, situando a separação de facto na data aqui em causa. As testemunhas (A e Maria, amigas da autora) confirmaram (com excepção da data da separação de facto), de forma credível, por segura e espontânea, os factos aqui em causa, reforçando, em consequência, a credibilidade da versão dos factos trazida aos autos pela autora. Porém, quanto à data da separação de facto do casal, não pode oferecer-se credibilidade à versão dos factos trazida aos autos pelas testemunhas, sendo certo, aliás, que tais factos não são do seu conhecimento directo: efectivamente, convém não esquecer que todas as testemunhas tomaram conhecimento destes factos apenas e só por intermédio da autora, bem como por uma determinada percepção de indícios que foram chegando aos seus sentidos em função da forma como tais factos lhes foram transmitidos pela autora.
Decidindo:
Decorre do disposto nos arts. 635/4, 639/1 e 640/1-a, todos do CPC, que o recorrente tem de fazer constar das próprias conclusões de recurso os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.
Das conclusões do recurso, transcritas na íntegra de propósito para se poder confirmar o que se diz agora, resulta claro que o único ponto de facto que a autora impugna é a data daquilo que chama da ruptura do casamento, isto é, tentando aproveitar ao máximo aquilo que a autora argumenta, a data em que ocorreram os factos que a sentença deu como provados no ponto 2 da matéria de facto (e não a data da ruptura que é uma conclusão jurídica sobre a qual as testemunhas não podem depôr).
É pois isso aquilo que aqui se discute.
Entretanto, nota-se que a recorrente não deu expressamente cumprimento ao disposto no art. 640/1-c do CPC, isto é à obrigação de especificar, sob pena de rejeição, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Mas, tendo em conta a delimitação do objecto da impugnação da decisão da matéria de facto e a circunstância de esta decisão conter apenas dois pontos de facto, considera-se esta omissão, no caso, suprível, entendendo-se que a recorrente queria que, em vez do que consta do ponto 2 dos factos provados, constasse antes o seguinte (sendo a última parte do ponto 2 desconsiderada, tendo em conta que a recorrente diz que não deduziu a acção com base na separação de facto e, como se vê da transcrição da petição inicial, ela não afirmou nunca o que consta dessa parte final do ponto 2, embora nas declarações de parte e no depoimento das testemunhas o facto seja referido…):
2. Há pelo menos dois anos [não se sabe qual o ponto de referência, tendo-se que partir do princípio que está reportada à data da petição, isto é, Janeiro de 2016, portanto, desde Janeiro de 2014], a autora e o réu deixaram de viver na mesma casa, de dormir na mesma cama e de tomar as refeições em conjunto.
Ora, quanto à data em que deixaram de viver na mesma casa, das declarações da própria autora, transcritas por ela (“Em Outubro de 2015 já dormiam em quartos separados” e “não têm relações desde antes de Outubro de 2015”), não resulta mais do que aquilo que foi dado como provado, isto é, que tal ocorreu, pelo menos, em Outubro de 2015. Dito de outro modo, se a autora não escolhe outra data como ponto de referência, o tribunal não a podia inventar. É certo que isso resulta da forma como foram feitas as perguntas pelo Sr. juiz nas declarações de parte tomadas oficiosamente, depois do depoimento das testemunhas. Mas se não foram feitas outras perguntas, a autora só dela se pode queixar, já que estava representada por advogado.
Pode-se dizer o mesmo quanto ao momento em que deixaram de dormir na mesma cama, tendo o ‘dormir’ obviamente o sentido de relações sexuais, pois que a autora diz que “Em Outubro de 2015 já dormiam em quartos separados” e “não têm relações desde antes de Outubro de 2015”, o que implica que não nega a hipótese de terem tido relações até pouco antes de Outubro de 2015. De novo aqui, se a autora não escolhe outra data como ponto de referência, o tribunal não a podia inventar. Note-se, entretanto, que noutra parte – e nesta de forma mais espontânea - a autora diz que “Não dorme com o marido há muito mais de dois anos” (c.8:20), mas isto não aponta para nada de substancialmente diferente, pois que, estando ela a depôr em fins de Junho de 2017, tal fórmula imprecisa só apontaria para antes de fins de Junho de 2015.
E pode-se dizer o mesmo quanto à data em que deixaram de tomar refeições em conjunto pois que a autora se limita a dizer que “tomam refeições em conjunto muito raramente”, o que quer dizer que a autora nem diz que deixaram de tomar refeições em conjunto definitivamente, o que quer dizer mesmo o que parece, isto é, que ainda hoje o fazem, já que a saída de casa não foi definitiva, como decorre das declarações e depoimentos ouvidos, mas temporária [por quatro meses] e a autora já está de novo a viver na mesma casa do réu. O que, aliás, a própria autora diz (veja-se a parte final da conclusão e do recurso). Note-se que os factos que interessam são os que foram alegados na petição inicial ou aqueles que sejam supervenientes e tenham sido introduzidos no processo de modo adequado (art. 611/1, parte final, do CPC). Não tendo sido deduzidos articulados supervenientes, o tribunal não podia acrescentar aos factos provados que a autora, depois da saída de casa, tinha voltado a ela, pelo que fez bem em só ter referido a saída de casa e não fazer referência ao facto de a autora ter voltado. O que não impede, na discussão da impugnação da decisão da matéria de facto, que para efeitos de convicção e para se perceber o que é que foi dito, se possa ter em conta o que, na realidade aconteceu.
O depoimento das testemunhas não acrescenta nada de preciso ao que consta acima, pelas razões referidas pela fundamentação da decisão recorrida e como se pode ver nas próprias passagens transcritas, sendo que noutras passagens são ainda mais imprecisas: a primeira testemunha diz que a discussão de que a autora lhe falou foi há relativamente pouco tempo, no ano passado ou no ano anterior, sendo que a audiência final ocorreu em Junho de 2017, o que faz reportar a saída de casa ao período de Junho de 2016 a Junho de 2015…; por outro lado, a transcrição da passagem desta testemunha ao minuto 7 está errada: a testemunha não respondeu ao Sr. juiz, que “…não dormiam juntos há pelo menos 1 ano”, mas sim que a conversa sobre o assunto tinha ocorrido há pelo menos 1 ano e no caso é claro que se estava a referir a um ano antes de Junho de 2017. E a segunda testemunha, por exemplo, não disse que “(…) não dormem juntos no mesmo quarto e não mantêm uma relação de casal” (c.3:30), mas sim que “[acho que] não dormem juntos no mesmo quarto e não mantêm uma relação de casal” (c.3:33) e ‘acho’ pela conversa que tive com a autora…
Posto isto, a impugnação da decisão da matéria de facto – já considerada no máximo da extensão possível tendo em conta o conteúdo das conclusões e alegações da recorrente e o disposto nas normas referidas - improcede.
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A ruptura definitiva do casamento
A autora considera que os factos provados sob o ponto 2 são suficientes para concluir pela ruptura definitiva do casamento, fundamento objectivo do divórcio sem consentimento do outro cônjuge.
Os factos provados sob 2 correspondem a parte dos requisitos objectivos e subjectivo para se falar numa separação de facto, isto tendo em conta (i) que se fala, grosso modo, numa comunhão de vida quando se vive na mesma casa, se dorme na mesma cama e se tomam refeições em conjunto, com o propósito de se viver em comum, e (ii) o disposto nos arts. 1781/-a e 1782/1, ambos do CC: “são fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges a separação de facto por um ano consecutivo” e “Entende-se que há separação de facto, para os efeitos da alínea a do art. anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer.”
O único requisito que, à data da petição inicial, faltava para se poderem dizer preenchidos todos os requisitos desta causa de divórcio é a separação por um ano consecutivo.
Ora, seria um contra-senso exigir-se que a separação de facto durasse um ano para se poder dizer preenchido o respectivo fundamento do divórcio e, ao mesmo tempo, bastar a separação de facto por mais de 3 meses para se poder dizer preenchida a outra causa do divórcio que é cláusula geral da ruptura definitiva do casamento (1781/-d do CC: “Quaisquer factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a ruptura do casamento.”).
Isto é o bastante para se poder dizer que a separação de facto, por um período inferior a 1 ano, não é uma situação que, só por si, demonstre a ruptura definitiva do casamento. Tinha que se provar mais alguma coisa.
Assim sendo e sendo só aqueles os factos que se provaram, a acção não pode proceder com base no fundamento invocado.
Neste sentido, Rute Teixeira Pedro, CC anotado, vol. II, 2017, Almedina, pág. 684, diz: “[…] a separação de facto, a alteração das faculdades mentais e a ausência não poderão, por si, constituir fundamento bastante do divórcio, se não se verificarem os requisitos previstos, respectivamente, nas als, a, b e c. Nesse caso, poderão, ainda assim, ser carreados para o processo para, conjuntamente com outros factos que lhes acrescentem significado, fundar um pedido à luz da al. d.”
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No ac. do STJ invocado pela autora julgou-se que os factos nele provados sob 6 a 11 eram suficientes para se concluir que estava suficientemente demonstrada a cessação irreversível da comunhão conjugal. Esses factos eram os seguintes: O casal deixou de fazer qualquer vida em comum; O autor e a ré não tomam as refeições juntos; O autor e a ré não saem juntos, não fazem qualquer vida social em comum e vai sempre cada um para seu lado para visitar amigos ou familiares; Em Abril de 2010, o autor abandonou o lar conjugal e deixou de pernoitar em casa e de dormir com a ré; O autor e a ré não mantêm qualquer contacto íntimo; O autor não mais quer voltar nem reatar a vida em comum com a ré.
O acórdão, no entanto, acrescentou: […] mas acresce decisivamente, que a presente acção foi proposta em Novembro de 2010 e que o julgamento da matéria de facto tem a data de 11/06/2012 e que dos seus termos, lida a respectiva fundamentação, resulta que os factos reveladores da cessação da vida privada e social em comum se mantinham nessa altura (portanto, cerca de um ano e meio depois de proposta a acção). Não se trata, repete-se, de uma situação em que o decurso do prazo de um ano desempenhe a função de facto constitutivo do direito que o autor pretende exercer nesta acção, o direito ao divórcio; no contexto da causa de pedir enunciada na al. d do artigo 1781, o tempo ou a duração desses factos releva como elemento de prova da cessação duradoura e irreversível da comunhão conjugal, podendo e devendo ser considerada pelo tribunal ao abrigo do disposto na parte final do nº 2 do art. 264 do CPC (“factos instrumentais que resultem da instrução e discussão da causa”). Esta observação não significa que este STJ esteja a apreciar matéria de facto, em infracção dos seus poderes de cognição; apenas pretende explicar que a sentença desconsiderou o sentido do julgamento de facto em que assentou. Ora, da conjugação entre o nº 2 do art. 264 e o nº 1 do art. 663 do CPC decorre que esse sentido deveria ter sido tomado em conta, para que a sentença correspondesse à situação de facto que lhe era contemporânea, sem, para tanto, infringir qualquer regra sobre a matéria de facto de que lhe é lícito conhecer.
Ora, assim sendo os factos utilizados pelo STJ são substancialmente mais significativos, não só por serem mais numerosos mas, ‘decisivamente’, porque foram lidos a uma luz que não é, claramente a dos autos: é que da fundamentação da decisão da matéria de facto, no caso do ac. do STJ, decorria que a situação de facto se tinha prolongado por mais um ano e meio depois da propositura da acção, enquanto que, no caso dos autos, a discussão da impugnação da matéria de facto não aponta nesse sentido: os cônjuges continuam a viver na mesma casa, a falar um com o outro, e, embora raramente, a comer juntos.
Saliente-se ainda o seguinte: quer se queira quer não, aceitar que se verifica uma ruptura definitiva do casamento apenas com base nos factos provados nesta acção, seria aceitar que uma separação de facto de que se sabe apenas ser certo ocorrer há pouco mais de 3 meses corresponde à cláusula geral da ruptura definitiva do casamento, isto é, que afinal uma separação de facto por pouco mais de 3 meses pode servir de fundamento a um divórcio; o que seria uma óbvia violação quer à norma do art.1787/-d quer à do art. 1787/-a do CC, entrando em contradição com a lógica do sistema (sendo que a aplicação da al. d deve ser feita em harmonia com as alíneas anteriores, como lembra Guilherme de Oliveira, citado no ac. do TRL de 23/11/2011, proc. 88/10.6TMFUN.L1-2, e os factos nela em causa terão de ser outros que não os constantes das demais alíneas do referido artigo, como diz Amadeu Colaço, citado no mesmo acórdão; Francisco Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, no Curso de Direito da família, vol. I, 5.ª edição, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pág. 736, acrescentam: “a norma mais conhecida e aplicada é a que permite a dissolução baseada na demonstração objectiva da separação de facto entre os cônjuges, durante um ano. Ou seja, a norma paradigmática desta via de divórcio estabelece um padrão de exigência quanto aos índices objectivos de ruptura definitiva do casamento: separação de facto por um ano.”; no mesmo sentido, Rute Teixeira Pedro, CC anotado, citado, 683/684, diz: “[…] a inclusão das várias alíneas no mesmo artigo, importará que, também na alínea d, se exija a demonstração da ruptura do casamento através de factos externamente apreensíveis e que os mesmos apresentem uma gravidade equivalente à das constelações fácticas descritas nas als. anteriores. Deverá tratar-se de factos diferentes dos que são enunciados nas als. anteriores deste preceito. A factualidade nelas previstas só relevará qua tale no particular quadro aí legalmente tipificado.”)
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Note-se que o facto de, na data da sentença, já poderem ter decorrido mais de 2 anos desde a data do início da separação de facto, não tem qualquer relevo no caso dos autos.
A acção foi intentada em Janeiro de 2016 e a autora, sabendo que a separação de facto não tinha decorrido por período de pelo menos 1 ano, não invocou essa causa de pedir o divórcio.
E como não foi deduzido nenhum articulado superveniente tudo o que se pode fazer decorrer, dos factos provados sob 2, é que separação de facto se iniciou antes de Outubro de 2015 e que à data da petição inicial (11/01/2016) ela ainda se verificava (no caso isto é tanto mais verdade e relevante quanto se sabe, pela discussão da decisão da matéria de facto, que a situação de facto se tinha alterado, tendo a autora regressado a casa - isto muito embora tal não impeça, só por si, que se fale em separação de facto, já que esta pode ocorrer debaixo do mesmo tecto: assim, por exemplo, Miguel Teixeira de Sousa, O Regime Jurídico do Divórcio, Almedina, 1991, pág. 85: “[apesar de os cônjuges habitarem numa mesma casa, […] pode não existir qualquer comunhão de vida se entre os cônjuges se romperam todas as relações características dessa convivência (cfr. ac. RP de 18/12/1979, BMJ. 293/440; ac. RP de 30/10/1984, BMJ. 341/477). É o que sucede se, por exemplo, cada um dos cônjuges cria em partes separadas da casa o seu próprio ambiente de intimidade e de privacidade, que é imposto por cada um dos cônjuge ao outro e mutuamente respeitado.”; no mesmo sentido, ainda, Marta Falcão, Miguel Dinis Pestana Serra e Sérgio Tenreiro Tomás, Direito da Família, 2016, 2ª edição, Almedina, pág. 91, nota 162; e ainda Rute Teixeira Pedro, anotação 4 ao art. 1781, no CC anotado citado, pág. 685).
Assim sendo, não se pode dizer que esteja provada – e tinha de o estar – a separação de facto por um período de pelo menos um ano, sendo que este facto é um requisito objectivo da separação de facto como fundamento do divórcio, pelo que tinha de estar provado e tinha de ser provado pela autora (art. 342/1 do CC).
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Ou seja, mesmo aqueles que aceitam que o período de um ano possa ser preenchido no decurso da acção de divórcio
(contra outra parte da doutrina e jurisprudência que seguem a posição também seguida no ac. do TRL de 22/10/2013, proc. 16/11.1TBHRT.L1-7, citado pela sentença recorrida, ou seja, que o requisito de um ano tem de estar verificado à data da propositura da acção; no mesmo sentido, veja-se o próprio ac. do STJ citado pela autora; e o ac. do TRL de 15/05/2012, proc. 9139/09.6TCLRS.L1-7, citado pelo primeiro; assim também, Miguel Teixeira de Sousa: “esse prazo […] deve estar completamente decorrido à data da propositura da acção de divórcio, porque sem o decurso daquele prazo a separação de facto não pode ser invocada como causa do divórcio (ac. RP de 11/10/1979, BMJ. 291/538)” (obra citada, pág. 84); posição que é igualmente a de Abel Pereira Delgado, O Divórcio, Petrony, 1980, pág. 69 (é um prazo de carácter substantivo, pelo que há-de verificar-se à data do pedido => acórdão do STJ de 1/3/1979, publicado no BMJ. 285/324), de Pais do Amaral, Do Casamento ao Divórcio, Cosmos, Direito, 1997, pág. 96 (: o prazo deve estar completo no momento da propositura da acção, por se tratar de um elemento constitutivo do direito ao divórcio) e Ferreira Pinto, Causas do Divórcio, Almedina, 1980, pág. 122; e o acórdão do STJ de 24/10/2006, proc. 06B2898; e também o estudo de Nuno de Salter Cid, publicado na Lex Familiae, ano 4, nº. 7, 2007, págs. 14 a 23, que desenvolve a questão e relembra muitos autores e artigos que vão todos no sentido; e ainda Rute Teixeira Pedro, anotação 4 ao art. 1781, no CC anotado citado, pág. 682),
não podem deixar de exigir, pelo menos, que esteja demonstrado de forma processualmente válida – isto é, como facto provado – que a separação de facto se verificou por pelo menos 1 ano, o que no caso não se pode deixar de considerar que não acontece.
No caso dos autos, por outro lado, ainda faltaria demonstrar que uma acção de divórcio por factos que mostrem a ruptura definitiva do casamento (art. 1781/-d do CC), podia ser convolada numa acção de divórcio por separação de facto (art. 1781/1-a do CC), ultrapassando o obstáculo posto pelos arts. 611/1 e 265/1, ambos do CPC.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, anulando-se a sentença por força do disposto no art. 615/1-d do CPC, e substituindo-a por este acórdão que julga a acção improcedente por não provado o fundamento invocado (art. 1781/-d do CC).
Não há mais custas da acção e do recurso que tenham de ser pagas pela autora (que perde apenas as taxas de justiça já pagas).
Lisboa, 13/09/2018.
Pedro Martins
Arlindo Crua
António Moreira