Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
| ||
Relator: | JORGE ROSAS DE CASTRO | ||
Descritores: | PRISÃO PREVENTIVA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA PERIGOS | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 09/26/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NÃO PROVIDO | ||
Sumário: | SUMÁRIO (da responsabilidade do relator) 1. A prisão preventiva é consabidamente de aplicação excecional, mesmo no universo da violência doméstica. 2. Porém, perante um histórico alargado e violento de condutas, a não privação da liberdade do agente, em caso de perigo intenso de continuação da atividade criminosa, pode vir a representar a violação, pelo Estado, das obrigações positivas de atuação que sobre si impendem na proteção da vítima, à luz da jurisprudência do TEDH e dos 2º e 8º da CEDH, bem assim como das obrigações assumidas no quadro da Convenção de Istambul. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: 1 – RELATÓRIO Pelo Juízo de Instrução Criminal da ... foi proferido despacho em 3 de junho de 2024 que aplicou ao AA, com os demais sinais identificativos nos autos, as seguintes medidas de coação: - prisão preventiva; - proibição de contactos e de aproximação em relação à vítima. Inconformado, o Arguido interpôs recurso, no qual formula a final as seguintes conclusões, que aqui transcrevemos: «1. Nos presentes autos não se mostram verificados, in casu, os requisitos legais previstos nos art.ºs 193.º, 202.º e 204.º, todos do Código de Processo Penal, para que o recorrente pudesse ser sujeito à medida de coação mais gravosa do nosso ordenamento jurídico. 2. Na verdade, como já atrás se alegou, o perigo de continuação da atividade criminosa encontra-se fortemente mitigado face, não só à personalidade do recorrente, à sua inserção familiar e social mas também ao elemento dissuasor decorrente da existência dos presentes autos. 3. O mesmo se diga, relativamente à verificação do perigo para aquisição, conservação e veracidade da prova. 4. Com efeito, os indícios probatórios, nos presentes autos, são constituídos, fundamentalmente, pelo relatório pericial do INML e pelas informações clínicas, por um lado, e as declarações da ofendida por outro. 5. Trata-se de meios de prova que já estão consolidados nos autos, quer por se tratar, em grande parte, de prova documental e, no que concerne às declarações da ofendida, as mesmas irão, nos próximos dias, ser tomadas para memória futura. 6. Acresce que a aplicação da medida de coação de prisão preventiva não é justa, adequada e muito menos necessária. 7. Não é adequada, atendendo à indiciação quanto à participação do recorrente, nos factos em investigação, bem como da conduta da ofendida ao longo de todo o inquérito – ora faltando a diligências, ora dizendo que não pretende procedimento criminal contra o recorrente, ora afirmando que quer o recorrente preso – bem como das diversas contradições, inexplicáveis, por esta apresentadas. 8. Não sendo, igualmente, adequada face à idade do recorrente, à sua inserção social, familiar e profissional, bem como à inexistência de condenações por qualquer crime desta natureza. 9. Também não é necessária porque, em última análise, os perigos que a prisão preventiva visa acautelar poderiam ser conseguidos com a sujeição do arguido à medida prevista no art. 201.º do C.P.P. – OPHVE e à proibição de contactos já decretada. 10. Ao decidir como decidiu, violou o despacho recorrido os artigos 28.º, nº. 1 e 32.º, n.º 1 da CRP, 5.º, nº 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 64.º, nº. 1 d), 92.º, n.º 2, 97.º, n.º 4, 141.º, n.º 4, 193.º, nºs 1 e 2, 202.º e 204.º, todos do Código de Processo Penal. Nestes termos e nos demais de direito, sem esquecer o douto suprimento de V. Ex.as, deve ser concedido provimento ao presente recurso e, consequentemente, ser revogado o despacho recorrido, sujeitando-se o ora recorrente a uma outra medida de coação, nos termos atrás referidos, com as legais consequências.» O recurso foi admitido por despacho de 25 de julho de 2024, com subida imediata, em separado e efeito meramente devolutivo. O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando as seguintes conclusões, que também transcrevemos: «1º Os factos indiciados levam a imputar ao arguido a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, na forma agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, alíneas b) e n.º 2 al. a), 4 e 5 do Código Penal. 2º Os factos mostram-se fortemente indiciados da credibilidade conferida à inquirição da vítima, que confirmou e relatou os factos, de forma credível e sincera, cujo depoimento mereceu a maior credibilidade, bem como do teor da documentação clínica, relatório pericial e fotogramas juntos aos autos. 3º Atento os crimes acima fortemente indiciados, ao contrário do que entende o arguido, pode, de facto, vir a ser-lhe aplicada uma pena de prisão efetiva de, pelo menos, 3 anos, caso se venha a fazer prova em sede de julgamento dos factos aqui fortemente indiciados. 4º Nos presentes autos existe um forte perigo de continuação da atividade perigosa e de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas, não apenas olhando (em abstrato) para este tipo de criminalidade, cada vez mais presente na nossa sociedade e que urge combater eficazmente, mas também analisando, em concreto, a natureza e as circunstâncias do crime indiciado nos autos. 5º Tais perigos apenas podem ser afastados, com a aplicação ao arguido da medida de coação prisão preventiva. 6º Com efeito, a medida de coação de obrigação de permanência na habitação não tem a virtualidade de afastar o forte perigo de continuação da atividade criminosa, podendo no recesso do lar, o arguido, atenta a sua personalidade descontrolada e perturbação emocional, procurar a vítima para atentar contra a sua vida. 7º Pelo que, a douta decisão recorrida não nos merece qualquer reparo. 8º Salienta-se que, em 10-07-2024, o Ministério Público já deduziu acusação. 9º Entendendo-se que não se mostram violados os dispositivos legais invocados ou outros. Nestes termos, deverá negar-se provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se a douta decisão recorrida, nos seus precisos termos.» Uma vez remetidos os autos a este Tribunal, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta lavrou parecer acompanhando a posição expressa pelo Ministério Público junto da 1ª Instância, pugnando pela improcedência do recurso. Foi cumprida a notificação prevista pelo art. 417º/2 do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta pelo Arguido; a Assistente veio aos autos aderir à posição manifestada naquele douto parecer. Em sede de exame preliminar não se julgou verificado nenhum obstáculo ao conhecimento do recurso. Foram colhidos os vistos e teve lugar a conferência. * 2 - FUNDAMENTAÇÃO 2.1 Questões a decidir É pacífico que são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal de Recurso, sem prejuízo do dever de apreciar as questões de conhecimento oficioso. Face às conclusões plasmadas no recurso interposto, a problemática a apreciar é, em síntese, a de saber se se mostra ajustada a prisão preventiva decretada ou se, diversamente, deve ser aplicada ao Arguido uma medida de coação menos gravosa, como a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, em acréscimo à proibição de contactos também já em curso. 2.2 Os factos e o despacho recorrido Os factos que constam do despacho de apresentação do Arguido a interrogatório judicial são os que aqui se transcrevem: «1. O arguido AA e BB (adiante designada vítima) viveram em situação análoga à dos cônjuges, pelo período de 4 anos e até Setembro/Outubro de 2023. 2. Fruto dessa relação nasceu a 03/03/2023 CC. 3. Durante o relacionamento, o arguido sempre foi violento com a vítima. 4. Desferindo-lhe, não raras vezes, quando discutiam, devido a infidelidades deste, puxões de cabelo, socos, chapadas e empurrões 5. Partindo-lhe, pelo menos, dois telemóveis. 6. E, várias vezes, partiu a viatura propriedade da vítima. 7. Uma dessas vezes ocorreu em data não concretamente apurada, mas quando se encontravam em ..., tendo o arguido tentado arrancar a porta da viatura, forçando-a, encontrando-se a vítima no seu interior. 8. Noutra ocasião, em data não concretamente apurada, arrancou os espelhos retrovisores da viatura e partiu o vidro da frente com um pontapé. 9. O arguido, nessas discussões, apelida a vítima de “puta”, “vaca”, “falsa”, “trabalhas como prostituta”, “ordinária” (sic). 10. Em data não concretamente apurada, mas quando se encontrava no 7.º mês de gestação, no interior da habitação da progenitora do arguido, na Rua …, em Lisboa, o arguido pulverizou os olhos da vítima com um spray de tinta. 11. Nesse instante, enquanto a ofendida se debatia com os olhos a arder, o arguido empurrou-a para dentro do guarda-fato. 12. Em data não concretamente apurada, mas em junho de 2022, o arguido iniciou uma discussão com a vítima, exigindo que esta o levasse para a habitação da sua progenitora, sendo a sua pretensão negada pela vítima. 13. Face à recusa, o arguido ficou muito irritado e saiu de casa, permanecendo à porta do prédio, aguardando pela vítima, esta que realizou uma chamada telefónica para a progenitora do arguido a contar-lhe o sucedido. 14. Volvidos alguns minutos, o arguido subiu e arrombou a porta da habitação da vítima. 15. E, em ato contínuo, dirigiu-se à cozinha, munindo-se de uma faca, regressando para junto da vítima. 16. Já junto da vítima, o arguido apontou a faca em direção ao seu pescoço, encostando-a, na parte da lâmina. 17. Concomitantemente, exigiu-lhe a entrega das chaves da viatura, acabando a vítima por ceder, com medo e receio que o arguido atentasse contra a sua integridade física ou vida, levando este a viatura da vítima. 18. No dia 10 de Junho de 2023, quando a vítima se encontrava com o arguido, em Lisboa, no interior da sua viatura, no decurso de uma discussão, o arguido desferiu vários socos na cabeça da vítima, apertou-lhe o pescoço, fazendo-lhe um golpe denominado “mata-leão”, ficando ainda a vítima presa com o pé direito por baixo do pedal do automóvel. 19. Como consequência da conduta do arguido, a vítima foi medicamente assistida, no Hospital de Santa Maria, apresentando dores nas mobilidades do pescoço e nas mãos, quando dobra os dedos, bem como no braço direito, lesões essas que determinaram, em condições normais, um período de doença fixável em 8 dias, com afetação da capacidade de trabalho geral (4 dias) e com afetação da capacidade de trabalho profissional (4 dias). 20. O arguido não aceitou o final do relacionamento. 21. Para constranger a vítima a reatar o relacionamento, diz-lhe que se mata. 22. Após se separarem, o arguido já partiu os vidros da habitação da vítima e, pelo menos, em duas ocasiões, rebentou a porta da sua habitação. 23. E, não raras vezes, anunciou que, caso a vítima tivesse outra relação amorosa, a matava, dizendo-lhe “se arranjares outro homem eu mato-te, o meu filho não vai ter um padrasto” (sic). 24. No dia 16 de maio de 2024, com o fito de visitar o filho de ambos, o arguido dirigiu-se à habitação da vítima, sita na Rua …, na Amadora a casa da ofendida afirmando que queria ver o filho. 25. Ali chegado, durante algum tempo, privou com o seu filho, acabando a vítima por lhe verbalizar estar na hora de ir-se embora, o que o arguido não gostou. 26. Contrariado, o arguido saiu e foi-se embora. 27. Passados cerca de dez minutos, o arguido voltou e bateu a porta pedindo à vítima que queria dar um beijo ao seu filho, pretensão que a vítima negou. 28. Continuando o arguido a bater, insistentemente, à campainha e a chorar que queria dar um beijo ao seu filho, acabando a vítima por ceder. 29. Abrindo a porta, com o filho de ambos ao colo. 30. Sendo instada pelo arguido se queria mesmo continuar separada, retorquindo-lhe que sim. 31. Nesse instante, o arguido desferiu um soco que atingiu o nariz da vítima. 32. Fazendo com que a mesma perdesse o equilíbrio e caísse ao chão, com a criança ao colo, que começou a chorar, ainda que protegida pela vítima. 33. Com a vítima caída no solo, o arguido desferiu-lhe mais dois socos na sua cara, atingindo-a, novamente, no nariz. 34.De seguida o arguido entrou para dentro de casa, fechou a porta de casa e trancou com a chave, que deixou na fechadura, dirigindo-se à cozinha, momento em que a vítima conseguiu fugir para o exterior, a pedir socorro. 35. Como consequência da conduta do arguido, a vítima necessitou de ser medicamente assistida, apresentando trauma da pirâmide nasal com dor e edema e deformidade da pirâmide nasal, escoriações na face, com enfisema na espessura da vertente anterior do septo nasal. 36. No dia 21 de maio de 2024, no interior da habitação da vítima, para chamar atenção da vítima, o arguido muniu-se de uma faca e cortou antebraço direito infligindo a ele um corte profundo. 37. Desde outubro de 2023 até à presente data, o arguido contacta com a vítima, por correio eletrónico, enviando-lhe fotos com outras mulheres. 38. Com as condutas descritas, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, quis e conseguiu molestar a saúde física e psíquica da sua ex-companheira e mãe do seu filho, bem como provocar-lhe receio e temor, intimidando-a, impondo a sua vontade em detrimento da vítima, bem como usando-se da sua superioridade física para atingir o corpo da vítima, humilhando-a, não se coibindo de o fazer, no recesso do lar e na presença da criança. 39. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e, ainda assim, prosseguiu os seus intentos, atuando da forma supra descrita.» * Os meios de prova indicados no despacho de apresentação são os seguintes, que se transcrevem: «- autos de notícia/denúncia, de fls. 21-25, do NUIPC 440/23.7..., de fls. 98-107, - aditamento, de fls. 31, 68, 69, - Declarações da vítima, - relatório pericial, de fls. 183-185, - documentação clínica, de fls. 215-220 (...) e de fls. 244-245 (...), - fotogramas, de fls. 229v-239 - email da vítima, referência 26042371.» * O despacho recorrido tem o seguinte teor, que se transcreve na parte relevante: «Indiciam fortemente os autos a prática pelo arguido dos factos narrados no despacho de apresentação, que aqui se dão integralmente por reproduzidos, igualmente o fazendo quanto aos meios de prova indicados. Mais se apuraram os seguintes factos: - O arguido foi já condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa. - É ajudante em empresa de mudanças, auferindo 6,00 € à hora. - Vive com sua mãe, empregada doméstica, e seu irmão, que também labora em mudanças, mas em diferente entidade patronal. * Encontra-se, assim, fortemente indiciada a prática, pelo arguido, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, na forma agravada, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, alíneas b) n.º 2 al. a), 4 e 5 do Código Penal. * Neste interrogatório judicial o arguido não prestou declarações, fazendo uso do seu direito, apenas tendo esclarecido as suas condições socioeconómicas. Porém, resulta dos autos que os factos relatados no despacho de apresentação se mostram firmemente indiciados com esteio não só nas declarações da própria vítima como nos autos de notícia/aditamento, o relatório pericial do INML, as informações clínicas hospitalares do Hospital de Santa Maria e do ..., os fotogramas que documentam bem visíveis as lesões apresentadas pela vítima, demonstrativas da envergadura da força dirigida pelo arguido contra sua ex-companheira, mesmo com o filho menor de ambos ao colo, aquando da última agressão à ofendida sua ex-companheira. Mais, mesmo após a última agressão à sua ex-companheira, sabedor que era o arguido que a ofendida careceria inexoravelmente de atendimento hospitalar, onde seria dada notícia dos factos que cometeu, com necessária intervenção judicial, não se inibiu, no fim de semana que ora terminou, de remeter inúmeras mensagens a sua ex-companheira, dirigindo-lhe graves anúncios de mal, fazendo uso e referência ao filho comum de ambos, o que é causador de grande temor à vítima, que clama por intervenção judicial. Basta atentarmos nestes elementos para visualizarmos os acontecimentos e atentarmos sobre os perigos de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito quanto à aquisição, conservação e veracidade da prova e de grave perturbação da ordem e da tranquilidade públicas. A continuação da atividade criminosa está demonstrada pelos próprios factos, que se foram sucedendo, sendo que o arguido, não obstante saber da necessária intervenção judiciária, perante nova e grave agressão a sua ex-companheira, com o filho menor, de 1 ano, ao colo da mãe, manteve-se perseguindo a vítima, bem sabendo estar a cometer o tipo de crime, querendo-o e disso mesmo fazendo uso em contínuas ameaças à vítima. O arguido veio confirmar os receios que se veiculavam já aquando da primeira grave agressão à sua ex-companheira, há cerca de um ano atrás, não tendo aproveitado a oportunidade para inverter os seus comportamentos e evitar maior intervenção judicial, com gravoso estatuto coativo que, ora, se impõe, pois agiu novamente contra a ofendida, tornando a atentar contra a mesma. Acresce, ainda, o perigo de grave perturbação da ordem e da tranquilidade públicas, pois não se poderá aceitar que o arguido torne à liberdade, concedendo-lhe um juízo de impunidade, já que, de forma reincidente voltou a agir contra a sua ex companheira. Por último, mas não despiciendo, o perigo para aquisição, conservação e veracidade da prova, já que certamente seguir-se-á a tomada de declarações à vítima, mostrando-se esta essencial para a comprovação cabal dos factos e previsível condenação do arguido. Mostra-se óbvia a pertinência do promovido estatuto coativo. Apenas a prisão preventiva salvaguardará os aludidos perigos, mostrando-se esta adequada, proporcional, suficiente, atual e necessária face aos perigos e aos factos indiciados nestes autos, bem como à previsível condenação do arguido em pena de prisão efetiva, ainda que no seu patamar inicial - médio. Em todo o caso, igualmente as proibições de contactos e aproximação da vítima, não podendo os mesmos acontecer por forma alguma, o que deverá ser comunicado ao E.P.. Não se concede à possibilidade de ser o mesmo sujeito a OPHVE, já que a reiteração e impulsividade do arguido fazem temer que pudesse retirar os mecanismos de vigilância, sem que houvesse tempo de as autoridades judiciais evitarem o pior na pessoa da ofendida, como o arguido o vem anunciando. Tudo nos termos dos artigos 191º a 195º, 196º, 200º, n.º 1, al. d), 201º a contrario sensu, 202º, n.º 1, al. b) e 204º, nº 1, als. b e c), todos do C.P.P., e 31º, n.º 1, al. d) da Lei n.º 112/2009, de 16.09. Passe mandados de condução do arguido ao estabelecimento prisional.» 3. Conhecendo do mérito do recurso A questão central a apreciar, em síntese, é a de saber se se mostra fundada a pretensão do Recorrente em ver modificada a sua situação coativa, substituindo-se a prisão preventiva que lhe foi aplicada por medida menos gravosa, e nomeadamente a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica. Ora, cumpre antes de mais notar que o Recorrente não põe em crise neste recurso o enunciado dos factos considerados fortemente indiciados, nem o enquadramento jurídico-substantivo dos mesmos, nem nós vemos razões para oficiosamente questionarmos uns ou o outro; o que subjaz ao recurso é então e apenas a discussão em torno das exigências cautelares que o caso concita e da medida de coação mais apropriada para lhes fazer face: se a vigente prisão preventiva (e proibição de contactos e aproximação à ofendida), se a obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica. Dito isto, desde já adiantamos que a solução a que chegou o despacho recorrido merece a nossa inteira concordância. Porquê? Havendo fortes indícios da prática de um crime de violência doméstica, a prisão preventiva é uma medida de coação que em abstrato pode ser aplicada, dada a natureza daquele ilícito, que se integra no conceito de «criminalidade violenta» [arts. 1º, alínea j) e 202º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Penal]. É óbvio, em qualquer caso, que se trata de uma medida que só pode aplicar-se quando não for possível acautelar suficientemente as exigências cautelares que o caso convoque por via menos onerosa para o Arguido. Tais «exigências cautelares» são as enunciadas no art. 204º, nº 1 do Código de Processo Penal: «a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.» Na situação em apreço, considerou o Tribunal de 1ª Instância que existiam os perigos de continuação da atividade criminosa, de perturbação do inquérito quanto à aquisição, conservação e veracidade da prova e de grave perturbação da ordem e da tranquilidade públicas. Quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa, diz o Arguido, em suma, que não tem passado penitenciário, que dispõe de trabalho, que vive com a mãe e dois irmãos, que é estimado pelos seus familiares e amigos e que não existem quaisquer factos concretos dos quais possa decorrer a afirmação de um tal perigo; acrescenta ainda que a simples existência deste inquérito constitui um elemento dissuasor da prática de novos ilícitos. Conclui então que o assinalado perigo, a existir, apresenta-se tão mitigado que não poderá fundamentar a aplicação da medida de coação mais gravosa. Que dizer? Os factos alinhados pela 1ª Instância como fortemente indiciados induzem-nos a pensar que existe na verdade um muito intenso perigo de continuação da atividade criminosa: a natureza, a gravidade e a reiteração das condutas do Arguido apontam de forma clara para esse intenso perigo, denunciando do mesmo passo uma personalidade conflituosa, muito agressiva, que desconsidera totalmente a integridade física e moral da vítima. A agressividade do Arguido fez-se sentir de múltiplas formas e em diversas ocasiões, várias delas com uma violência muito impressiva, merecendo aqui destaque as seguintes situações: - quando a ofendida se achava no 7º mês de gravidez, no interior da residência de sua mãe, o Arguido pulverizou-lhe os olhos com um spray de tinta; - nesse instante, estando a ofendida a debater-se com os olhos a arder, o Arguido empurrou-a para dentro do guarda-fatos; - em junho de 2022 apontou uma faca de cozinha na direção do pescoço da ofendida e encostou-lha na parte da lâmina; - em 10 de junho de 2023 desferiu vários socos na cabeça da ofendida, apertou-lhe o pescoço e fez-lhe o golpe conhecido por «mata-leão», tendo aquela tido que ser medicamente assistida e sofrido um período de oito dias de doença; - em 16 de maio de 2024, numa altura em que a ofendida tinha o filho de ambos ao colo, desferiu-lhe um soco no nariz e tendo a ofendida caído nessa sequência ao chão, ainda lhe deu mais dois socos na cara, atingindo-a de novo no nariz. Para além disso, importa ainda não esquecer que o Arguido: - não aceitou o final do relacionamento; - várias vezes anunciou que, caso a ofendida tivesse outra relação amorosa, a matava; - que a agressão de 16 de maio de 2024 ocorreu depois de a ofendida, instada a dizer se queria continuar separada, ter respondido que sim. Acresce que o Arguido: - partiu dois telemóveis à ofendida; - tentou numa ocasião arrancar uma porta da viatura da ofendida e noutra arrancou os espelhos retrovisores e partiu o vidro da frente com um pontapé; - em junho de 2022 arrombou a porta da habitação da ofendida; - já depois de se terem separado, o Arguido partiu os vidros da habitação da ofendida e, pelo menos em duas ocasiões, rebentou a porta da sua habitação. Mais: em discussões o Arguido apelidava a ofendida de «puta», «vaca», «falsa», «trabalhas como prostituta» e «ordinária». E por fim não se ignore que o Arguido, para constranger a ofendida a reatar o relacionamento, dir-lhe-ia que se matava. Do conjunto do que vimos de dizer ressalta então uma personalidade que não respeita minimamente a dignidade, a autonomia e a integridade física e moral da ofendida, agredindo-a de várias formas e com particular intensidade. O número de situações ocorrida e o caráter recente da última delas torna assim altamente preocupante a postura do Arguido e em grave perigo a pessoa da ofendida. O demais enquadramento familiar, profissional e social do Arguido e a sua ausência de antecedentes criminais em nada o desviaram de fazer o que se indicia fortemente ter feito, em nada se mostrando por conseguinte mitigado o risco de continuação da atividade criminosa em razão desses fatores. E a ideia, que o Arguido aventa no seu recurso, de que a simples existência do processo o dissuadirá de comportamentos semelhantes no futuro, é algo que mais não passa, neste momento, que de uma afirmação proclamatória, carecida de sustentação probatória. Em suma, entendemos que existe, e de forma muito intensa, o perigo de continuação da atividade criminosa. * Considerou presente ainda a 1ª Instância o perigo para a aquisição, conservação e veracidade da prova, lendo-se na decisão recorrida que seguir-se-ia no processo a tomada de declarações para memória futura da ofendida, declarações essas essenciais para a comprovação cabal dos factos. A este respeito defende o Arguido que um tal perigo não existe, na medida em que a prova documental está consolidada nos autos e que as aludidas declarações para memória futura iriam ser prestadas já no dia .... Ora, antes de mais importa recordar que o Tribunal da Relação, como instância de recurso que é, aprecia a decisão proferida pela 1ª Instância tendo em conta os elementos e a situação dos autos à data em que aquela decisão é tomada; o que somos chamados a conhecer é pois se, à data daquela decisão (3 de junho de 2024) e em face do estado em que os autos se encontravam, se decorria ou não dos factos fortemente indiciados um perigo para a aquisição, conservação e veracidade da prova. E na verdade, as condutas que o Arguido repetidamente praticou na pessoa da ofendida, pela natureza das coisas e à luz das regras da experiência comum, são de molde a condicioná-la fortemente na sua liberdade e na sua autonomia, visto que se apresentam altamente propensas a gerar sentimentos de medo e angústia, que amiúde são causa, como se sabe, de hesitações nos depoimentos e até de resistência a continuar a participar nos autos de forma ativa, bem podendo mesmo fundar comportamentos processuais algo titubeantes, pelo receio dos riscos e consequências pessoais a enfrentar com o avançar dos autos. Decerto que a apreciação feita, também nesta matéria, é indiciária e não isenta da possibilidade de erro; mas tendo presente o conjunto dos factos e a personalidade do Arguido neles revelada, afigura-se-nos que foi acertado o juízo da 1ª Instância quando afirmou o perigo em causa. * Aponta ainda a 1ª Instância a existência de perigo de grave perturbação da ordem e da tranquilidade públicas. Resulta do texto da decisão recorrida que aquele perigo é identificado na circunstância de o Arguido ter reincidido nas suas condutas e que a sua libertação traduzir-se-á em conceder-lhe uma sensação de impunidade. O Arguido contesta esta asserção, defendendo que a decisão recorrida não se apoia nesta matéria em qualquer facto. Vejamos. O perigo em causa está descrito no art. 204º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal: «c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.» Do que se trata é do perigo de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas devida a um previsível comportamento futuro do arguido (cfr. Vítor Sequinho dos Santos, Medidas de Coacção, Revista do CEJ, 1º semestre de 2008, nº 9 Especial, pág. 131 e os Acs. da RE de 21-11-2023, relatado por Artur Vargues). O grau de emotividade e descontrolo no comportamento que exibe tornam o Arguido uma pessoa propensa à reiteração da atividade criminosa que tem incidência na ofendida, como dissemos atrás; já não nos parece que seja neste momento indiscutível que se encontrem na factualidade indiciada elementos que, com toda a segurança, nos permitam dizer que o Arguido poderia ainda atentar de forma grave contra a boa ordem e tranquilidade públicas. Desconsideraremos então, na decisão, esta exigência cautelar. * Assente que existem as assinaladas exigências cautelares, a questão a debater é a de saber se a prisão preventiva é, como defende o Recorrente, excessiva e se bastante seria, a par da também aplicada proibição de contactos, uma obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância eletrónica. Entendemos que a decisão recorrida merece que se adira à solução material a que chegou nesta matéria, particularmente tendo em conta o perigo de continuação da atividade criminosa. Senão vejamos. De acordo com o preceituado pelos arts. 191.º, n.º 1 e 193.º, n.ºs 1 a 3 do Código de Processo Penal: i. todas as medidas de coação têm que ser necessárias e adequadas em face das exigências cautelares que motivam a sua aplicação; ii. devem elas ser ainda proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente virão a final a ser aplicadas; iii. a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação apenas podem ter lugar se as demais medidas de coação forem inadequadas ou insuficientes; iv. e cabendo ao caso uma medida de coação privativa da liberdade, deve dar-se prevalência à obrigação de permanência na habitação, sempre que ela se revele suficiente para satisfazer as exigências cautelares. O que se mostra questionado pelo Arguido é que seja necessária e proporcional a prisão preventiva e se não bastaria a imposição de obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância eletrónica. Estamos em crer que a prisão preventiva é no caso concreto adequada, necessária e proporcional. É adequada, no sentido em que permite acorrer em medida de eficácia máxima à exigência cautelar que se identificou. E é também necessária. Com efeito, os factos indiciados revelam que o Arguido não aceita a separação, desrespeita profundamente a autonomia da ofendida, a sua dignidade e integridade física e moral, revelando nesse quadro que está disposto a gestos de intensa violência, nem sequer se coibindo de a agredir a soco quando aquela tem o filho ao colo e de continuar a agressão a soco uma vez já caída no solo. A não aplicação da prisão preventiva redundaria aliás, se bem vemos as coisas, num risco enorme de o Arguido consumar o que anunciou aliás – matar a ofendida -, percebendo-se que é bem capaz de o tentar: não ignoremos que para além da ameaça verbal, já lhe encostou uma faca ao pescoço, já lhe apertou o pescoço, já lhe fez um «mata-leão», já lhe deu várias vezes socos na cabeça, já arrombou a porta da habitação e já lhe pulverizou os olhos com um spray. A gravidade e a reiteração dos seus gestos demonstram que o Arguido, pelo menos ao tempo da decisão recorrida, não conhece barreiras, assim tornando pouco crível que a imposição de uma obrigação de permanência na habitação, ainda que com vigilância eletrónica e ainda que com a proibição de contactos também aplicada, o dissuadisse e impedisse de, num novo assomo de violência, se abeirar da ofendida e colocar um final ainda mais trágico à história já trágica que vem protagonizando. Um único momento bastaria para o efeito. E a prisão preventiva passa por fim o teste de proporcionalidade face à gravidade do crime e à sanção que poderá previsivelmente vir a ser aplicada. É certo que o Arguido não tem antecedentes criminais e que isso naturalmente beneficiá-lo-á, e terá também um enquadramento social mais geral com aparente estabilidade, mas certo é também, como já atrás referimos, que não só estes aspetos favoráveis não garantiram o seu afastamento da prática das condutas em apreço, como estas têm uma gravidade intensa e previsivelmente desencadearão o recurso, a final, a uma pena de prisão efetiva. * Em jeito conclusivo diremos mesmo que, nas circunstâncias conhecidas, a prisão preventiva constitui uma medida que, a não ser implementada, sujeitaria a ofendida a um risco tal que, concretizando-se ulteriormente novo gesto de violência por parte do Arguido, poderia conduzir ao reconhecimento da violação, pelo Estado Português, das obrigações positivas que sobre si impendem de proteção da vida e da integridade física de quem se encontra sob sua jurisdição, nomeadamente por referência aos arts. 2º e 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos [Acs. do TEDH Kurt v. Austria (GC), nº 62903/15, §§ 177, 178 e 190, de 15/06/2021, Hajduová v. Slovakia, nº 2660/03, §§ 45-46, de 30/11/2010, A. v. Croatia, nº 55164/08, §§ 58-60, 67 e 68, de 14/10/2010 e Opuz v. Turkey, nº 33401/01, § 128, de 9/06/2009, todos disponíveis in https://hudoc.echr.coe.int/#{%22documentcollectionid2%22:[%22GRANDCHAMBER%22,%22CHAMBER%22]}] . A sujeição do Arguido a prisão preventiva, no circunstancialismo apurado, inscreve-se ainda no cumprimento, pelo Estado Português, das obrigações que assumiu no quadro da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Doméstica contra as Mulheres e a Violência Doméstica, mais conhecida como Convenção de Istambul [cfr. nomeadamente os seus arts. 1º, nº 1, alínea a), 3º, alínea b) e 18º, nº 1]. * Em síntese, o recurso não merece provimento. 3. DISPOSITIVO Pelo exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida. * Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em três UC (arts. 513º, nº 1 e 514º/1 do Código de Processo Penal e 8º/9 do Regulamento das Custas Processuais e a Tabela III anexa), sem prejuízo de apoio judiciário de que beneficie e do art. 4º, nº 1, alínea j) do Regulamento das Custas Processuais. Registe e notifique. Comunique de imediato à 1ª Instância. * Lisboa, 26 de setembro de 2024 Jorge Rosas de Castro Ivo Nelson Caires B. Rosa Ana Marisa Arnedo |