Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
12747/21.3T8SNT-B.L1-6
Relator: TERESA SOARES
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
PRESCRIÇÃO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Não é o simples decurso do tempo sem actuação por parte do credor que permite, sem mais, concluir pela existência de um comportamento abusivo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

FR, CR e MR vieram deduzir os presentes embargos de executado à execução que lhe moveu a Caixa Geral de Depósito, alegando, no essencial, a prescrição do direito da exequente, a falta de interpelação e o preenchimento abusivo das livranças, pugnando pela procedência dos embargos deduzidos.
A exequente/embargada contestou, pugnando pela improcedência dos embargos deduzidos.
Foi proferido saneador/sentença que julgou os embargos improcedentes.
Desta decisão recorrem os embargantes alegando, com as seguintes conclusões:
A) O Tribunal “a quo” na douta sentença entendeu que não houve violação do abuso de direito no preenchimento da livrança.
B) O Tribunal “a quo” com a sua douta interpretação, violou o artigo 334º do C. Civil.
C) O abuso de direito pressupõe, a existência do direito (direito subjectivo) e que o titular respectivo se exceda no exercício dos seus poderes.
D) Nos presentes autos a figura típica da manifestação do abuso de direito é a da locução supressio, que se traduz a qualquer situação jurídica que não tendo sido exercida em determinadas circunstâncias e por um curto lapso de tempo, não possa mais sê-lo por, de outro modo se contrariar a boa fé.
E) O Tribunal “a quo” fez uma interpretação incorreta do artigo 334º do C. Civil, do artigo 33 e 70 do LULL, cometendo-se em consequência erro na interpretação, determinação e aplicação das disposições legais.
Contra-alegou a embargada pugnando pela manutenção do decidido.
Nada obsta ao conhecimento do recurso.
A matéria de facto dada como assente e não impugnada foi a seguinte:
Dos factos assentes:
1. A Caixa Geral de Depósitos, S.A. (entretanto substituída pela cessionária SCALABIS –STC, S.A.) intentou a execução de que dependem estes autos contra a sociedade “Peninsulacar – Reparações, Lda.” (na qualidade de subscritora), MR, SR, MR, NR, FR, MMR (na qualidade de avalistas), com base nas livranças cujos rostos e versos se mostram copiados infra:












2. A Caixa Geral de Depósitos, S.A. celebrou, em 31-07-2003, o “CONTRATO DE ABERTURA DE CRÉDITO EM CONTA-CORRENTE DE UTILIZAÇÃO SIMPLES” com:



Representada pelos executados:


E com




3. Acordaram as partes, no referido contrato, além do mais, o seguinte:





4. As partes fizeram acompanhar o referido contrato do seguinte documento:
a. Frente:


b. Verso:





5. As mesmas partes celebraram, em 23-11-2007, um CONTRATO DE UTILIZAÇÃO DO CARTÃO DE CRÉDITO CAIXAWORKS, acompanhado, em complemento, dos seguintes documentos:



a.



b)



6. A executada “Peninsulacar – Reparação de Automóveis Lda.”, foi declarada insolvente em 22-03-2011, pelo Tribunal de Comércio de Sintra Proc.nº6918/1.8T2SNT, que correu termos no Juiz 6.
7. A Exequente reclamou créditos no referido processo de insolvência, no valor de 36.540,59€, com fundamento no incumprimento dos dois contratos – nº PT…1892 e CAIXAWORKS nº …789 (referidos nos pontos 2 e 5) –, cujo cumprimento se mostrava garantido pelas livranças dadas à presente execução.
8. A exequente remeteu a FR, por correio registado com aviso de recepção, duas cartas datadas de 19-08-2021, com os seguintes teores:



a.



b.

9. O aviso de recepção de uma das cartas dirigida a FR foi assinado pela aqui embargante MR em 24-08-2021:



10. A outra missiva foi devolvida com a menção “objecto não reclamado”.
11. Por sentença proferida em 09-06-2022 no processo principal, FR, CR, e MR foram habilitados no lugar do falecido FR
O âmbito do recurso determina-se pelas conclusões dos recorrentes (639.º e 635.º do Novo CPC, aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 41/2013 de 26/06  só abrangendo as questões que nelas se contêm, ainda que outras tenham sido afloradas nas alegações propriamente ditas, salvo tratando-se de questões  que o Tribunal deva conhecer oficiosamente (artigo 608º, n.º 2, ex vi artigo 663.º, n.º 2).
Em face das alegações dos recorrentes a única questão colocada é a do abuso de direito da embargada no preenchimento das livranças.
Esta questão vem sendo amplamente tratada a nível jurisprudencial.
Tenha-se presente que, no pacto de preenchimento, a subscritora e os avalistas declararam autorizar a CGD a preencher a livrança “quando tal se mostre necessário”.
Faremos agora um percurso sobre o que vem sendo entendido sobre a questão do abuso de direito.
Veja-se o Ac. STJ de 7/6/2022, proc 1819/20.1T8STB-A.E1.S1, acessível na base de dados da dgsi, que faz uma resenha das decisões proferidas onde se pode ler:
«Nas palavras do referido acórdão deste Supremo Tribunal de 21-04-2022, proferido no âmbito do processo n.º 3941/20.5T8STB-A.E1.S1:
“Não se apurando que a vontade dos intervenientes tenha ou tivesse sido a de estabelecer condicionamentos à data do vencimento e, não sendo estes impostos pela boa-fé (cfr. art.º 762.º, n.º 2, do CC), o portador da livrança em branco é livre de a preencher em data que considerar conveniente”.
Neste sentido, pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19-05-2020 (proc. n.º 7062/16.7T8LSB-A.S1), de 24-10-2019 (proc. n.º 6871/17.4T8VNF-A.G1.S1), não publicados, assim como os acórdãos de 24-10-2019 (proc. n.º 1418/14.7TBPVZ-B.P2.S2) e de 16-06-2019 (proc. n.º 1025/18.5T8PRT.P1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt.
Não estando em causa a existência do direito ao preenchimento livre da livrança, importa apreciar se o exercício desse direito, por parte do portador, deve considerar-se abusivo ou dito de outro modo se, de acordo com o princípio da boa-fé, seria de exigir ao portador o preenchimento da livrança com outra data de vencimento.
É este exercício abusivo, na veste de abuso do direito, que o recorrente invoca.
Importa, assim, apreciar se, atentos os contornos do caso concreto, o portador exerceu de forma abusiva o seu direito ao livre preenchimento da livrança.
Quanto à matéria do preenchimento abusivo da livrança (abuso do direito), refira-se o acórdão deste Supremo Tribunal de 19-10-2017 (proc. n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1), disponível em www.dgsi.pt, assim sumariado, na parte relevante:
“III - Ao dar o aval ao subscritor em livrança em branco, fica o avalista sujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nos termos constantes do contrato de preenchimento, assumindo mesmo o risco de esse contrato não ser respeitado e de ter de responder pela obrigação constante do título.
IV - O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole, com a sua conduta, os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio.
V - O simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende.
VI - O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos mais de doze anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de sete anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a instauração da ação executiva contra a avalista desta sociedade, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no art.º 334.º do CC, na modalidade de "venire contra factum proprium". »
No Acórdão do STJ de 1998-09-23, Proc. nº 98A616 pode ler-se:
I- A admissibilidade da livrança em branco resulta claramente do artigo 10 da LULL para que remete o artigo 77 do mesmo diploma, podendo, ao menos no domínio das relações imediatas, a excepção do preenchimento abusivo (com violação da autorização que lhe fixa os limites) ser oposta pelo subscritor demandado.
II - Segundo o artigo 334 do CCIV, há abuso de direito sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social desse direito, não sendo necessária a consciência por parte do agente de se excederem, com o exercício do direito, esses limites, bastando que, objectivamente, se excedam. Traduz-se assim no exercício anormal do direito próprio, em termos reprovados pela lei; embora se respeite a estrutura formal do direito, viola-se a sua afectação substancial, funcional ou teleológica.
No Ac. STJ de 28/6/2023 proc 9036/19.7T8ALM-B.L1.S1, escreve-se
I- No quadro da jurisprudência sedimentada no STJ, não é o simples decurso do tempo de inação do credor, portador de uma livrança assinada em branco, que permite concluir automaticamente pela existência de um comportamento abusivo no preenchimento e vencimento dessa livrança.
II- Para se concluir que existe preenchimento abusivo pelo decurso do tempo, terão de ser demonstradas circunstâncias que permitam sustentar a convicção do devedor no sentido de que, para além de determinado tempo de inação, o credor já não exercerá o direito.
No Ac. do STJ, de 20.04.2021, no processo 7268/18.4T8LSB-A.L1.S1:
«Não abusa do direito a credora que instaura uma execução com base em livranças, assinadas pela subscritora e pelo avalista, que lhe foram entregues aquando da celebração de contratos de garantia bancária e que preencheu de acordo com esses contratos, apondo-lhes data de vencimento cerca de 8 anos após poder exigir o cumprimento da obrigação subjacente aos devedores
No Ac. do STJ, de 06.09.2022, no proc. n. 3940/20.7T8STB-A.E1.S1 (no qual decorreram mais de 8 anos entre o momento do incumprimento e o momento em que o Banco procedeu ao preenchimento da livrança) dispõe assim:
«A LULL não fixa o prazo dentro do qual deve ser preenchida a livrança entregue em branco, tão pouco o fazendo qualquer outro dispositivo legal. Será normalmente o acordo de preenchimento subjacente à emissão da livrança em branco que define os termos do preenchimento.
Nada tendo sido estabelecido diversamente em sede de acordo de preenchimento, é direito potestativo do portador preencher a livrança com uma qualquer data de vencimento ulterior ao momento do alegado incumprimento da subscritora.
No Ac. do STJ, de 18.09.2018 proc. 3316/11.7TBSTB-A.E1.S1:
“Quem subscreve uma livrança em branco atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher em conformidade com o que tiver sido ajustado no âmbito da sua emissão, pelo que, mantendo-se válida a relação fundamental que determinou tal subscrição e completado, de acordo com ela, o preenchimento da livrança, do simples facto do respetivo portador ter desencadeado os meios legais para obter a cobrança do crédito titulado na livrança não se pode inferir, sem mais, que ele atuou com abuso de direito, nomeadamente por violação da tutela da confiança – venire contra factum proprium – ou por qualquer outro fundamento susceptível de integrar a figura do abuso de direito prevista no art.º 334.º do CC.”
No Ac. do STJ, de 19.10.2017, proc. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1:
O simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende.
O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos mais de doze anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de sete anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a instauração da ação executiva contra a avalista desta sociedade, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no art.º 334.º do CC, na modalidade de "venire contra factum proprium".
Vemos assim que a jurisprudência vem, de forma maioritária e reiteradamente  a entender que não é o simples decurso do tempo sem actuação por parte do credor que permite,  sem mais, concluir pela existência de um comportamento abusivo.
“Não tendo a lei estabelecido um prazo para o preenchimento da livrança após o incumprimento, dificilmente poderá ser a jurisprudência a estabelecer prazos.” – ac. do STJ supra citado de 28/6/2023.
Como diz a embargada “não existe nenhuma justificação objetiva para que os Recorrentes criassem a convicção de que a responsabilidade contraída e avalizada não seria exigida”.
Efectivamente, não está enunciada qualquer matéria que nos pudesse levar a concluir que a embargada tivesse incutido nos embargantes a convicção de que não iria agir, para cobrança do seu crédito. Se assim a embargada tivesse procedido, então era caso para se considerar estarmos perante um comportamento abusivo, porque violador do princípio da confiança que deve estar subjacente a todas as relações contratuais. O decurso do tempo, por si só, não é fundamento para se considerar o comportamento abusivo, como atrás se deixou expressos nas várias decisões jurisprudenciais citadas e que nos merecem concordância.
Neste quadro, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando a improcedência dos embargos.
Custas pelos embargantes.

Lisboa, 04-07-2024
Teresa Soares
Adeodato Brotas
Eduardo Petersen Silva