Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1225/20.8T8BRR.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: I- Nos termos do disposto no artigo 51.º ("Âmbito e efeitos do recurso"), n.º 1, do regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social, RPCLSS, "Se o contrário não resultar da presente lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões". Isto bem se compreende, seja tendo em atenção os ilícitos que estão em causa, meramente contra-ordenacionais, seja considerando que os Tribunais do Trabalho funcionam como instância de recurso, pelo que a matéria de facto pode ser sempre reapreciada antes de os autos chegarem à Relação.
II. Nas contra-ordenações cabe à Relação apreciar a decisão de facto nos casos paralelos àqueles em que o Supremo Tribunal de Justiça a pode conhecer nos processos crime (cfr. art.º 434 e 410/2 e 3, Código de Processo Penal), em que resulta da própria decisão recorrida que esta tem por base um erro de direito (por exemplo, se, tendo duvidas inultrapassáveis, o Tribunal decidiu contra o arguido; ou se o fez violando claramente as presunções aplicáveis e regras da experiência).
III. É esse o caso se a própria sentença reconhece que o estabelecimento de lar da arguida continuou a funcionar sem licença nem autorização provisória, facto relevante, porquanto para aferir as sanções concretamente aplicadas se ponderou o comportamento posterior da arguida.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
Recorrente: AAA
Recorrida: BBB
A ora recorrida impugnou judicialmente a decisão administrativa da ACT, Autoridade para as Condições do Trabalho, de condenação pela prática de factos integradores da contraordenação muito grave prevista e punida (p.p.) pelos art.º 11.º, 39.º-B al. a) e 39.º-E al. a) do DL n.º 64/2007, de 14 de março, republicado em anexo ao DL n.º 33/2014, de 04 de março, a titulo de dolo, uma vez que, e de acordo com aquela entidade administrativa, a arguida não dispunha de licenciamento nem de autorização provisória de funcionamento válida e referente ao lar de idosos que explorava na Rua …, na coima de € 30.000,00 (trinta mil euros) acrescida da sanção acessória de encerramento por dois anos. A arguida suscitou a nulidade da decisão administrativa por falta de fundamentação uma vez que, no seu entender, dos factos alegados não é possível ao destinatário da decisão reconstruir o percurso lógico do decisor, com o que lhe fosse permitido compreender por que razões considera ter agido com dolo necessário. Mais arguiu a sua nulidade por omissão de pronúncia, uma vez que a decisão condenatória refere não constar no processo existente no Núcleo de Respostas Sociais da Unidade de Desenvolvimento Social do Centro Distrital da Segurança Social … o registo de eventuais diligências no sentido do licenciamento do estabelecimento, quando, a seu ver, tal conclusão é falsa face ao parecer técnico junto aos autos, assim como o pedido de licenciamento para execução de obras de adequação do equipamento junto da Câmara Municipal …, circunstâncias essas que deveriam ter sido ponderadas.
*
O Tribunal a quo decidiu a final "conceder parcialmente provimento ao recurso interposto pela Recorrente e:
- Indeferir as nulidades invocadas;
- Manter a condenação da Recorrente pela prática de uma contra ordenação prevista e punida pelo art. 11.º, 39.º-B, al. a) e 39.º-E, al. a), do DL n.º 64/2007, de 14 de Março, republicado em anexo ao DL n.º 33/2014 de 04 de Março;
- Reduzir a coima aplicada à Recorrente para o valor de € 25.000,00;
- Revogar a decisão administrativa apenas na parte em que aplica a sanção acessória de encerramento do estabelecimento da mesma pelo período de dois anos".
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Não se conformando, o Ministério Público recorreu para este Tribunal da Relação de Lisboa, formulando no fim estas conclusões:     
(…)
A recorrida contra-alegou, pedindo a improcedência do recurso e concluindo:
(…)
O Sr. Procurador Geral Adjunto nesta Relação aderiu às alegações do MºPº em 1ª instancia.
A arguida respondeu.
Tendo os autos ido aos vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 60º do Regime Processual das Contraordenações Laborais e de Segurança Social (Lei n.º 107/2009, de 14/09) e 412.º do Código de Processo Penal. Neste caso, cumpre apurar se:
a) a decisão da matéria de facto enferma de vício que exija a sua alteração, tendo em conta que não cabe a esta Relação apreciar a decisão da matéria de facto, apenas podendo sindicar os vícios previstos nos art.º 410, n.º 2, do CPP;
b) se em face disso a decisão de direito merece censura, devendo ser a arguida condenada nos termos pretendidos pelo recorrente.
A – Factos provados
São estes os factos considerados provados pelo Tribunal a quo (que ora se enumeram):
1. A Arguida, BBB, mantinha em funcionamento a 23 de Outubro de 2014, uma estrutura residencial para pessoas idosas, denominada “BBB”, sita na Rua …, sem dispor da respectiva licença ou sequer autorização provisória.
2. O estabelecimento em causa, que prosseguia a resposta social em apreço pelo menos desde 2008, à data da visita inspectiva, acolhia 20 utentes de ambos os sexos, encontrando-se armadas 26 camas.
3. As mensalidades situavam-se nos € 500,00.
4. A Arguida agiu livre e voluntariamente, com consciência de que, para iniciar e manter em funcionamento uma estrutura residencial para pessoas idosas, necessitava de, previamente, obter a respectiva licença, que a sua conduta era proibia e censurável.
5. Na acção inspectiva realizada a 23 de Outubro de 2014 verificou-se que:
a) Nas instalações do estabelecimento a inexistência das seguintes áreas funcionais: - recepção – instalações para o pessoal – serviços de apoio – instalações sanitárias junto à área de convívio/actividades e refeições separadas por sexo e compostas por cabines com sanita.
b) A cozinha não estava organizada por zonas distintas, de acordo com as exigências legais: de higienização dos manipuladores de alimentos, de preparação de alimentos e confecção de alimentos, bem como destinadas à lavagem de loiça e de utensílios de cozinha (também designada por copa suja) e à distribuição das refeições (também designada por copa limpa).
c) A lavandaria, por seu turno, não dispunha de depósitos para recepção da roupa suja, de depósito, armário e prateleiras para guardar a roupa lavada, de mesa de costura e bancada para passar a ferro.
d) Na área de alojamento não estava assegurada a percentagem mínima de 20% de quartos individuais, uma vez que não existia nenhum. Por outro lado, verificou-se a existência de quartos quádruplos.
e) No que concerne ao pessoal do estabelecimento, encontravam-se em falta os seguintes elementos:
- Dois ajudantes de acção directa, um ajudante de cozinheiro e um empregado auxiliar.
6. À altura da acção inspectiva as condições de higiene e conforto eram regulares, apresentando-se as instalações limpas, organizadas, arejadas e sem odores desagradáveis, os utentes regularmente higienizados, não aparentando sinais de negligência e os stocks alimentares existentes eram de quantidade satisfatória.
7. O total dos proveitos da Arguida, no ano de 2018, situou-se nos € 123.550,00, sendo o total do valor negativo anterior de igual valor e o lucro tributável de € 71,42.
8. A Arguida conhecia os trâmites necessários à exploração da estrutura residencial optando deliberada e conscientemente, por manter a estrutura residencial em causa em funcionamento numa situação irregular actuando com dolo necessário.
9. A administração emitiu parecer técnico a pedido da Recorrente, cujo despacho se encontra datado de 18 de Novembro de 2014 e assinado pela Sra. …
10. A Recorrente diligenciou pela obtenção de parecer sanitário.
11. A Recorrente também diligenciou no sentido de obter parecer da Autoridade Nacional de Protecção Civil.
12. A Recorrente apresentou junto da Câmara Municipal de …o pedido de licenciamento para execução das obras de adequação do equipamento.
13. A Recorrente requereu a emissão do alvará de licença de obras de edificação.
*
O Tribunal a quo considerou não provado:
1. Após acção inspectiva ocorrida em 23 de Outubro de 2014, não consta no processo existente nesse serviço o registo de eventuais diligências no sentido do licenciamento do estabelecimento.
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De Direito
a) Do erro na apreciação da matéria de facto
Nos termos do disposto no artigo 51.º ("Âmbito e efeitos do recurso"), n.º 1, do regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social, RPCLSS, "Se o contrário não resultar da presente lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões".
Nos mesmos termos estipula o art.º 75/1 do R. Geral das Contraordenações, Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, com as alterações do Decreto-Lei n.º 244/95, de 14/09
Como escreveu o Tribunal Constitucional, Acórdão n.º 612/2014 (3.ª Secção), ponto 3, citado igualmente no acórdão n.º 141/2019, de 12 de março (rel. Fátima Matamouros), "[U]ma contraordenação não é equiparável, quer na perspetiva do bem tutelado, quer na perspetiva das reações sancionatórias que determina, à prática de um crime; neste último caso, e como é sabido, está em causa a ofensa de bens e valores tidos como estruturantes da sociedade e a notícia da prática de um crime desencadeia, pela sua gravidade, um complexo processo com vista a determinar o seu autor e a responsabilizá-lo criminalmente com penas que, sendo de prisão ou multa, assumem sempre um sentido de retribuição ou expiação ética e uma finalidade ressocializadora cuja realização pode implicar, no limite, a privação da liberdade do arguido; nada disso se passa com as contra-ordenações que, sendo ilícitos, não comprometem os alicerces em que assenta a convivência humana e social, e dando lugar à aplicação de coimas, não se dirige, através delas, qualquer juízo de censura ético-jurídica à pessoa do agente mas uma simples advertência de alcance comportamental, cuja garantia é apenas e só de ordem patrimonial. Por isso, acautelados que estejam, como estão, os direitos de audiência e defesa do arguido, quer na fase administrativa (artigo 32.º, n.º 10, da CRP), quer na fase judicial (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), justifica-se que o legislador, na ponderação dos valores em presença, opte por um padrão de simplicidade e celeridade processuais (…)»".
Assim sendo, a regra é que não cabe apreciar a decisão da matéria de facto do Tribunal a quo.
Ao exposto supra quanto à natureza das contra-ordenações há que aditar que, nesta sede, a Relação funciona como ultimo grau de jurisdição; e que a matéria de facto já foi ponderada por duas entidades: a administrativa, que decidiu de início, e o Tribunal a quo, que funcionou aqui como de recurso.
Ou seja, a matéria de facto foi já duplamente apreciada, e a recorrente teve reiteradas oportunidades de defesa.
Em que termos poderá agora a recorrente esgrimir sobre a matéria de facto?
Apenas nos casos paralelos àqueles em que o Supremo Tribunal de Justiça pode conhecer da decisão de facto (cfr. art.º 434 e 410/2 e 3, Código de Processo Penal), que são aqueles em que opera um erro de direito na decisão recorrida que se reflete no modo como a matéria de facto foi apurada.
Pouco importa, pois, aquilo que as testemunhas disseram, e a convicção com que o Tribunal a quo se quedou produzida a prova de livre apreciação (e que é insindicável); interessa, sim, desvendar se a decisão se estriba em argumentos que contrariam os princípios e regras fundamentais de direito, como se o fez, usando o velho exemplo de escola de impertinência dado por Alberto dos Reis, "porque o papa está em Roma" (e que redunda em manifesta insuficiência da prova e erro notório na sua apreciação), ou violando o axioma in dubio pro reo.
Neste sentido, decidiu com relevo nesta matéria o mais alto Tribunal:
I - O princípio da livre apreciação da prova é um princípio atinente à prova que determina que esta é apreciada, não de acordo com regras legais pré-estabelecidas, mas sim segundo as regras da experiência comum e de acordo com a livre convicção do juiz, uma livre convicção que não pode ser arbitrária ou subjectiva e, por isso, deve ser motivada. A motivação da convicção apresenta-se, pois, como o meio de controlo da decisão de facto, em ordem a garantir a objectividade e a genuinidade da convicção formada pelo tribunal. II - Perante a motivação da decisão em matéria de facto, é patente que o Tribunal Colectivo apreciou toda a prova de forma objectiva e motivada, e os raciocínios aí expendidos merecem a concordância do Tribunal da Relação no acórdão recorrido. A decisão quanto à matéria de facto proferida na 1.ª instância, confirmada na decisão sob recurso, assenta em operações intelectuais válidas e justificadas e com respeito pelas normas processuais atinentes à prova. III - Assim, observando-se que a decisão de facto está fundamentada de forma coerente, sendo possível reconstituir o caminho lógico seguido pelo tribunal para chegar às conclusões a que chegou, lembrando que este Supremo Tribunal só conhece de direito, improcede a questão da violação do princípio da livre apreciação da prova. IV - Sendo que não se observa na decisão recorrida o mínimo sinal de desrespeito do princípio da presunção da inocência ou do princípio conexo do in dubio pro reo. V - Estabelece o princípio in dubio pro reo, referente à prova, que a dúvida sobre um facto deve ser sempre resolvida a favor do arguido. Trata-se, aliás, de um princípio conexo com o da presunção de inocência do arguido, ou, inclusivamente, de uma outra vertente do mesmo. Ora, o Supremo Tribunal só poderá sindicar tal princípio (para além dos casos em que funciona como única instância) se resultar da fundamentação da matéria de facto que o tribunal, tendo enfrentado dúvidas quanto a certo(s) facto(s), entendeu resolver essa dúvida em prejuízo do arguido. VI - No caso vertente, tal princípio só teria sido violado se da prova produzida e documentada resultasse que, ao condenar a arguido com base em tal prova, o juiz tivesse contrariado as regras da experiência comum ou atropelasse a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a seu favor. VII - Ora, se a fundamentação da decisão em matéria de facto não viola, como já foi dito, o princípio da legalidade das provas e da livre apreciação da prova, estribando-se em provas legalmente válidas e valorando-as de forma racional, lógica, objectiva, e de harmonia com a experiência comum, não pode concluir-se que a mesma prova gera factos incertos, que implique dúvida razoável que afaste a valoração efectuada pelo tribunal para que deva alterar-se a decisão de facto recorrida, sendo, por conseguinte, lícita e válida a decisão de facto. VIII - Da análise da decisão proferida sobre a matéria de facto, não resulta que o Tribunal recorrido tenha violado os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo e, por força deste, o da presunção de inocência. IX - O princípio in dubio pro reo é um princípio geral, estruturante do processo penal, decorrente do princípio constitucional da presunção da inocência do arguido, assumindo, como tal e como qualquer outro princípio jurídico, a natureza de uma questão de direito de que o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, deve conhecer. X – Mas, devendo ser o princípio in dubio pro reo configurado como princípio de direito, como princípio jurídico atinente à avaliação e valoração da prova, certo é também que, como tem sido reconhecido, ele tem uma íntima correlação com a matéria de facto, em cujo domínio ele é verdadeiramente operativo, aí assumindo toda a relevância prática. Daí que o princípio só diz respeito à prova da questão-de-facto. XI - Nesta perspectiva, como o STJ vem entendendo, a violação do princípio in dubio pro reo, que dizendo respeito à matéria de facto e sendo um princípio fundamental em matéria de apreciação e valoração da prova, só pode ser sindicado pelo STJ dentro dos seus limites de cognição, devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção - Supremo Tribunal de Justiça, acórdão de 27-01-2021, rel. Consº Manuel Matos[1].
II - Por força do disposto nos arts. 432.° n.º 1, al. b) e 434.°, todos do CPP, o STJ pode apenas reexaminar a matéria de direito (sem prejuízo do conhecimento, de ofício, dos vícios prevenidos nos n.º 2 e 3 do art. 410.°, do CPP que sejam evidenciados pela decisão recorrida), tal seja, não pode conhecer das questões inerentes ao julgamento sobre a matéria de facto nem das questões que concernem à própria formulação da decisão de 1.ª instância (como as nulidades e os vícios de procedimento, incluindo a questão da alegada inconstitucionalidade, que lhe dizem respeito), que já não está sob apreciação - Supremo Tribunal de Justiça, 4.6.20, rel. Cons. Clemente Lima
O recurso interposto impugna matéria de facto ainda que travestida de erro notório na apreciação da prova, estando subjacente a esta impugnação da matéria de facto um erro no julgamento para o qual este STJ não tem poderes de cognição; assim considera-se este STJ incompetente em razão da matéria, por força do disposto nos arts. 427.º, 428.º, 432.º, e 434.º, do CPP. - Supremo Tribunal de Justiça, 4.2.21, rel. Consª Helena Moniz.
Veja-se, ainda, o sentido de erro notório na apreciação da prova que resulta do disposto no art.º 674/3 do Código de Processo Civil (“O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de um determinado meio de prova"), e que remete para a violação dos limites em que a prova deixa de ser de livre apreciação.
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"A contradição insanável da fundamentação dá-se quando, analisando-se a matéria de facto dada como provada e não provada se chega a conclusões contraditórias, insanáveis, irredutíveis, que não podem ser ultrapassadas recorrendo-se ao contexto da decisão no seu todo e ainda com recurso às regras da experiência comum" - ac. Supremo Tribunal de Justiça, 30.09.98, rel. Cons. Mariano Pereira
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Fundamentou a sentença recorrida desta sorte:
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(…)
A sentença recorrida acrescentou ainda, com relevo, afinal, que "dúvidas não existem, face à matéria de facto considerada como provada, que a recorrente explora um estabelecimento que funciona como lar de terceira idade sem dispor de licença para tal".
Também nos próprios factos dados por assentes consta que
7. O total dos proveitos da Arguida, no ano de 2018, situou-se nos € 123.550,00, sendo o total do valor negativo anterior de igual valor e o lucro tributável de € 71,42.
8. A Arguida conhecia os trâmites necessários à exploração da estrutura residencial optando deliberada e conscientemente, por manter a estrutura residencial em causa em funcionamento numa situação irregular actuando com dolo necessário.
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Tendo em conta que o vício da sentença, a existir, há de resultar do texto da mesma, dever-se-á concluir que este facto está efetivamente provado.
Quer dizer, não foram meramente pedidas autorizações e licenciamento podendo não se verificar simultaneamente o funcionamento não autorizado e não licenciado do lar, porquanto a arguida teve rendimentos, que pressupõem o funcionamento do mesmo. E foi essa a convicção assumida da sentença - que o estabelecimento continuou e continua a funcionar
Dir-se-ia, porém, que o alegado funcionamento atual da arguida é matéria que não consta sequer da acusação. Efetivamente, está em causa a visita inspetiva realizada em 23.10.2014, e foi com fundamento nesses factos que a autoridade administrativa sancionou a arguida em 30.08.2019 (fls. 52 e ss.).
Ora, com a interposição de recurso para o Tribunal a quo, os autos foram remetidos ao MºPº, que os apresentou ao Juiz, valendo esse ato como acusação, nos termos dos art.º 37/1, da Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, que contém o regime processual aplicável às contra-ordenações laborais e de segurança social (seguindo, aliás, os termos do disposto no art.º 62/1 do Regime Geral da Contra-ordenações, Decreto-Lei n.º 433/82, de 27/10, com as alterações do DL n.º 244/95, de 14/09). Isto seria porventura uma alteração dos factos, não substancial (art.º 358, do CPP), já que não altera a contraordenação imputada e os limites das sanções aplicáveis (nesse sentido cfr. o acórdão da Relação de Lisboa de 04-04-2018, no processo n.º 239/17.0YUSTR.L1-3 - in www.dgsi.pt -: "Qualquer alteração dos factos que não implique a imputação de crime (leia-se contra-ordenação) diverso(a) ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, é uma alteração não substancial dos factos").
Dir-se-ia então ser extemporânea a alteração, em plena fase de recurso para a Relação, e agravando a responsabilidade da arguida (como se vê da conclusão 9ª do recurso do MºPº).
No entanto, tal é pertinente, até em face da defesa e da ponderação das sanções efetuada na sentença, e que teve em conta, essencialmente, a conduta da arguida posterior à visita inspetiva.
Desta sorte, tem razão o recorrente ao imputar-lhe vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto, porquanto não tem presente parte da conduta da arguida posterior à dita visita
Assim (art.º 410/2/a, CPP, ex vi art.º 60 da Lei n.º 197/2009, de 14.9 e 41 do RGCO), altera-se a resposta aditando o seguinte facto:
14. Em 15.06.2021 a arguida BBB continuava a laborar sem licença ou sequer autorização provisória.
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b) Da sanção
Insurge-se o recorrente porquanto a sentença reduziu a coima aplicada de 30.000 para 25.000 euros e revogou a sanção acessória de encerramento do estabelecimento por dois anos.
Dispõe o art.º 11/1, do Decreto-Lei n.º 64/2007, de 14.03, com as alterações e republicado no Decreto-Lei n.º 33/2014, de 4.3., sob a epígrafe "Início da atividade", que "Os estabelecimentos abrangidos pelo presente decreto-lei só podem iniciar a atividade após a concessão da respetiva licença de funcionamento, sem prejuízo do disposto nos artigos 37.º e 38.º". O art.º 39.º-B/a considera infração muito grave "a abertura ou o funcionamento de estabelecimento que não se encontre licenciado nem disponha de autorização provisória de funcionamento válida"; o art.º 39.º-E/a determina que "às infrações previstas nos artigos 39.º-B a 39.º-D são aplicáveis as seguintes coimas: a) Entre 20 000,00 € e 40 000,00 €, para a infração muito grave referida na alínea a) do artigo 39.º-B; e o art.º Artigo 39.º-H/1/a, sob a epigrafe "Sanções acessórias", determina que "1 - Cumulativamente com as coimas previstas pela prática de infrações muito graves e graves, podem ser aplicadas ao infrator as seguintes sanções acessórias: a) Interdição temporária do exercício, direto ou indireto, de atividades de apoio social em quaisquer estabelecimentos de apoio social".
Cabe ainda notar que (art.º 39-I/1), "A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação".
Face ao exposto, verifica-se que a arguida, por um lado, continuou a explorar o estabelecimento sem a licença necessária (ou sequer autorização provisória), o que já vem sucedendo há tempo significativo (desde 2008), por outro, tem vindo a diligenciar a obtenção de licenças e pareceres para ultrapassar a situação. Não tinha quartos individuais e tinha 20 utentes (além de ter mais 6 camas armadas) e também havia falta de instalações para pessoal e serviços de apoio, e sanitárias na área de convívio/atividades.
Por outro lado, ainda, os utentes apresentavam-se higienizados e sem sinais de negligência, as instalações limpas, arejadas, sem odores desagradáveis, organizadas. A arguida tem diligenciado pela obtenção de parecer sanitário, solicitou parecer técnico da administração, intentou obter parecer da Autoridade Nacional de Proteção Civil, requereu a emissão de alvará de licença de obras de edificação e apresentou um pedido de licenciamento de obras de adequação do equipamento na Câmara de Almada.
Em face disto e dos critérios legais, designadamente supra referidos entendemos que nem a culpa da arguida é especialmente diminuta nem se justifica, atenta a forma como tem atuado com vista a ultrapassar os impedimentos à obtenção de licença, e sem que se veja que a falta tenha revertido sobre os utentes, ou de algum modo os prejudicado, a aplicação da sanção acessória de encerramento do estabelecimento por dois anos. Antes melhor ficarão, atenta a gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica da arguida e do benefício económico que obteve, na coima de 30.000,00 € inicialmente fixada, sem sanção acessória.
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III – DECISÃO
Pelo exposto o Tribunal julga parcialmente procedente o recurso e altera a sentença recorrida, condenando a arguida na coima de trinta mil euros (30.000,00 €) pela prática da infração porque vem condenada.
Mantém a sentença recorrida no restante.
Custas pela recorrida.

Lisboa, 06 de abril de 2022
Sérgio Almeida
Francisca Mendes

[1] Os acórdãos referidos sem menção da fonte estão disponíveis em www.dgsi.pt
Decisão Texto Integral: