Decisão Texto Integral: | Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
«AA», casado, contribuinte fiscal n.º …, autor na presente ação que move a Seguradoras Unidas, S.A., NIPC 500940231, notificado da sentença proferida em 26/01/2024 e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.
Na petição inicial, o autor pediu a condenação da ré a pagar-lhe os seguintes valores:
I. € 10.738,16 pela perda do veículo seguro;
II. € 13.005,00 pela privação do uso do veículo (289 dias x 45,00/dia), acrescidos de € 45,00 por cada dia a partir de 2/09/2020 e até integral pagamento;
III. € 2.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos;
IV. € 929,27 de juros à taxa de 8% previstos no art. 38.º do Dec. Lei 291/2007, contados até 1/09/2020, a que acrescem os que se vencerem até à data da sentença ou até à data estabelecida na sentença;
V. € 18.000,00 como sanção imposta pelo n.º 2 do art. 40.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, acrescidos de € 100,00 por cada dia a partir de 2/09/2020 e até integral pagamento;
VI. juros de mora à taxa legal supletiva em vigor sobre os valores acima indicados, desde a data de citação até integral pagamento.
Para tanto e em síntese, alegou que:
- Em 16/11/2019, pelas 11h40, na Estrada Nacional 304, ao km 78,70, no lugar de ..., Vieira do Minho, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula …23, propriedade do autor, seguro na ré, e conduzido por «BB», e o motociclo de matrícula …FG, conduzido por «CC»;
- O contrato de seguro incluía cobertura de danos próprios, incluindo choque, colisão e
capotamento, com capital seguro de € 16.738,16, sem franquia;
- Desse acidente resultaram danos no veículo do autor, que participou o acidente à ré;
- Por carta de 13/12/2019, a ré informou o autor que a reparação do veículo garantido era excessivamente onerosa face ao valor seguro, e que, nos termos do Dec.-Lei 214/97, de 16/08, o capital à data do sinistro era de € 15.622,28, valor esse que se dispunha a liquidar, após dedução do valor do salvado, que, caso o autor pretendesse vender, poderia contactar a empresa A2B Visual, sita no Parque das Nações, em Lisboa, que o compraria pelo valor de € 6.376,00;
- Perante a discrepância de valores de capital, isto é, o indicado na carta e o capital da apólice, o autor reclamou;
- A ré respondeu em 6/01/2020, invocando que a desvalorização foi calculada de acordo com uma tabela que é fornecida anualmente pela Associação Portuguesa de Seguradores (APS), que juntou, mas da qual nunca antes tinha sido dado conhecimento ao autor;
- Ao caso são aplicáveis as cláusulas do contrato de seguro celebrado e o disposto no DL 214/97, de 16 de agosto;
- Acresce que, tendo o DL 214/97 instituído a regra da desvalorização automática do valor do seguro (no caso de coberturas facultativas), com a consequente redução proporcional do prémio, daí não resulta que a Ré seguradora possa prevalecer-se da desvalorização do veículo à data do sinistro, se ainda não tinha decorrido o período de 1 ano necessário para que se pudesse consumar a desvalorização;
- Pelo que o autor reclama pelo veículo o valor contrata de € 16.738,16;
- O autor tentou vender o salvado por melhor valor, nomeadamente junto da empresa indicada pela ré, mas apenas fazê-lo por € 6.000,00 e uma empresa terceira, da qual recebeu o respetivo valor em finais de janeiro de 2020;
- A recusa da ré em pagar ao autor o capital seguro fá-la incorrer em responsabilidade contratual, respondendo pelos danos que decorrem dessa violação, designadamente a privação do uso de veículo;
- O aluguer de um veículo idêntico ao do autor ronda os € 120,00 diários;
- O autor não alugou qualquer outro veículo por não ter disponibilidade económica para esse encargo, o que deu origem à privação de muitas deslocações, à necessidade de recurso a boleias de amigos e familiares, e, bem assim, ao uso dos transportes públicos, com as demoras e incómodos que os mesmos sempre significam para quem os usa;
- A privação do veículo, e reclamação e negociações goradas têm causado ao autor, revolta, horas perdidas, insónias, alteração de humor e irritabilidade constantes.
Citada, a ré contestou, negando qualquer incumprimento da sua parte ou qualquer violação das disposições legais aplicáveis.
Alegou, entre o mais, que:
- Nos termos das condições particulares do seguro, o valor do capital seguro do veículo indicado nas Condições Particulares corresponde ao do início do período de vigência do contrato e sofrerá até ao termo do mesmo período a desvalorização mensal prevista na tabela;
- Nos termos do disposto na cláusula 43.º das Condições Gerais do contrato, após a determinação do valor seguro nos termos da cláusula anterior, e salvo se outro regime de desvalorização for acordado e expresso nas Condições Particulares, o valor do veículo seguro para efeitos de determinação do montante a indemnizar em caso de perda total, será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com a tabela de desvalorização aplicável;
- Face à tabela de desvalorização constante das condições particulares do contrato em apreço, verifica-se que aos 80 meses de idade do objeto seguro na renovação do contrato corresponde a uma desvalorização de 64% em relação ao valor em novo;
- Os 16.738,16 correspondem a 36% do valor em novo do objeto seguro (€ 46.494,44);
- Por fim, tendo em conta que o veículo à data do sinistro tinha 85 meses de idade e que aplicando novamente a tabela de desvalorização associada ao contrato, verifica-se que o coeficiente de desvalorização é de 66,4%, pelo que o capital seguro no mês em que ocorre o sinistro é de € 15.622,13 que devido aos arredondamentos pode ter resultado num valor ligeiramente diferente no momento em que foi feito o cálculo.
Termina pedindo que a ação seja julgada apenas parcialmente procedente.
Após os articulados, julgou-se que a ação reunia condições para conhecimento do mérito, sem necessidade de produção de prova, e, após decurso do prazo para alegações escritas, foi proferida uma primeira sentença em 27/03/2022, pela qual a ré foi condenada a pagar ao autor a quantia de € 10.738,16, acrescida de juros de mora, contados desde a citação, e absolvida do demais peticionado.
Desta sentença foi interposto recurso para o TRL, que foi distribuído na 8.ª Secção, onde foi proferido acórdão em 23/02/2023, pelo qual foi decidido anular oficiosamente «a decisão recorrida, nos termos previstos nos art.ºs 662.º, n.ºs 1 e 2, al. c), NCPC, por deficiência da decisão sobre a matéria de facto alegada pelo autor na petição inicial e pela ré na contestação, designadamente no que diz respeito aos pontos 8º, 42º, 48º, 54º e 61º dos factos provados e, em consequência, revogar o saneador sentença recorrido e determinar o prosseguimento da causa, com vista à fixação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova, instrução da causa, com julgamento e posterior prolação da sentença».
Os autos regressaram à 1.ª instância, onde prosseguiram nos termos determinados e, após audiência final, foi proferida sentença que condenou a ré ao pagamento ao autor da quantia de € 9.246,28 (nove mil duzentos e quarenta e seis euros e vinte e oito cêntimos), absolvendo-a dos demais pedidos.
O autor não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1. O presente recurso versa sobre a impugnação relativa à matéria de facto, e bem assim, a errada interpretação e aplicação da lei face aos factos provados.
2. Fez errada apreciação dos factos provados, ao legitimar a recusa da seguradora pagar ao segurado, ora recorrente, o valor de capital seguro por perda total do veículo.
3. O valor reclamado pelo recorrente era e foi facilmente calculado com a leitura das Condições Gerais, Especiais e Particulares, as quais são, ademais, são da exclusiva autoria da seguradora apelada.
4. A tabela de desvalorização a que alude o facto provado 5, para além de não se mostrar aplicável por marginal ao contrato de seguro, não foi corretamente aplicada pela seguradora e pelo Tribunal.
5. Não resulta que a seguradora possa prevalecer-se da desvalorização do veículo à data do sinistro, se ainda não tinha decorrido o período de um ano necessário para que se pudesse consumar nova desvalorização.
6. Sendo certo que o capital seguro foi atualizado à data da renovação da apólice em Junho de 2019, para € 16.738,16, sem que esse valor resulte da aplicação da tabela de desvalorização que a apólice contém.
7. Não pode ser legitimada a correção da informação prestada pela seguradora, por escrito, ao recorrente, invocando a aplicação de uma tabela distinta da apólice para o cálculo de perda total que lhe foi proposto, sendo essa tabela a da APS.
8. A recorrida confessou por escrito que "O cálculo de desvalorização não é calculado de acordo com a tabela de desvalorização, mas sim de acordo com uma tabela que nos é fornecida anualmente pela APS, conforme anexo C", tal como consta do mail de 6 Janeiro 2020, junto como doc. 6 da PI.
9. Pela primeira vez com a contestação, a seguradora apresenta nova teoria para a alteração do valor de capital seguro com a desvalorização de 85 meses relativamente ao veículo novo, cujo valor unilateralmente e sem justificação decide ser € 46.494,44.
10. Aplicando um fator de correção de 66,40%.
11. A data da matrícula do RF é de Novembro 2012, e o contrato de seguro com a recorrida foi feito em estado usado, desconhecendo-se o valor que lhe foi atribuído.
12. Contudo, estando aceite o valor ou capital que o tomador do seguro indica no início do contrato, não podem despois as "desvalorizações periódicas automáticas" o serem por referência ao ano e/ou ao valor de aquisição em novo.
13. À data do acidente o veículo apresenta 84 meses de antiguidade / 7 anos e não os 85 meses fixados na sentença.
14. Sem conceder, e em caso de aplicação de Tabela de desvalorização, e tendo por premissa o valor do Facto Provado 7 da sentença em crise - € 46.494.89 — o cálculo resulta em € 15.808,27, e não os € 15.622,28 constante do Facto Provado 8.
15. Acresce que reportado a Junho de 2019, data da renovação da apólice, o capital seguro foi de € 16.738,16, que não corresponde à desvalorização correspondente do veículo em novo.
16. Na verdade, ao mês 6 do 7° ano, na aplicação da aludida tabela, o valor do veículo seria € 17.658,11, ao mês 7 seria € 16.970,64, ao mês 8 seria € 16.505,69.
17. É obrigação legal que se impõe às seguradoras agir com lealdade e boa-fé para com os segurados, esperando estes que possam confiar nestas instituições.
18. A considerar ainda que o valor do veículo em novo, segundo a Tabela Eurotax era de € 46.945,00 e não os pretendidos € 46.494,44 que a Ré alega no art° 19° da contestação, e que a sentença veio a fixar em € 46.494,89, sem base factual.
19. A avaliação da Eurotax comunicada pelo recorrente à seguradora não se mostrou nestes autos ser diferente para valor inferior, não colhendo a adesão da sentença à teoria da contestação da seguradora.
20. Os factos provados 7 e 8 devem ser corrigidos, e alterada a sua redação.
21. O facto provado 7 deve ser corrigido, passando a ter a seguinte redação:
À data da renovação do contrato o valor da aquisição em novo do veículo similar ao veículo pertencente ao autor era de aproximadamente 46.945,00.
22. O facto provado 8 deve ser corrigido, passado a ter a seguinte redação:
À data do sinistro — 16 Novembro 2019, o veículo tinha 84 meses de antiguidade e, segundo a tabela de desvalorização que está inserida nas Condições Particulares da Apólice, o seu valor era de € 15.961,30.
23. FACTO NOVO — O contrato de seguro foi contratado com a seguradora ré a 3/6/2016, em estado usado do veículo RF.
24 A sentença errou na apreciação dos factos provados relativamente ao capital seguro em caso de perda total do RF, o qual deve ser fixado em € 16.738,16, ou, in limite, caso se aplique a tabela de desvalorização, em € 15.961,30.
25. A sentença errou ao fixar ao salvado o valor atribuído pela seguradora, de € 6.376,00, quando se mostra provado o segurado não ter contribuído para a recusa da empresa indicada pela recorrida, a "A2BVisual", em lhe adquirir ou garantir o salvado por aquele indicado preço.
26. A questão de as seguradoras pretenderem passar o ónus de venda dos salvados a terceiros foi suscitada com mais relevância em 2007, a propósito de a Autoridade Tributária não admitir a isenção de IVA na compra e venda de salvados, por parte das seguradoras, a terceiros.
27. Não existe qualquer imposição legal ou contratual que imponha ao segurado providenciar vender o salvado, por sua conta e risco, ainda que a seguradora lhe facilite um contacto para esse efeito.
28. Indicar uma empresa que potencialmente adquire o salvado por determinado preço, não corresponde ao reembolso desse valor no património do segurado.
29. In casu, foi demonstrado que o segurado, ora recorrente, fez tudo o que estava ao seu alcance para poder vender o salvado a A2BVisual, mas que esta empresa lhe impôs condições antes desconhecidas para a transação e, quando solicitada a pôr por escrito, não o fez nem mais o atendeu.
30. Não colhe a falsa justificação de a seguradora não ter por atividade comercial a compra e venda de salvados.
31. Aliás, essa obrigação de assumir o valor de salvado decorre mais predominante no seguro dos danos próprios, pois que o segurado paga prémio pelo bem seguro, incluindo a perda total.
32. Mais se mostrou ter sido o segurado diligente na venda do salvado, pelo melhor preço a quem aceitou comprá-lo, não lhe podendo ser imputada responsabilidade pela diferença e prejuízo de € 376,00, relativamente ao valor apresentado, mas não garantido, pela seguradora.
33. Os vários acórdãos invocados e transcritos na alegação deste recurso demonstram bem ser da atividade da seguradora, ainda que complementarmente, a compra e venda de salvados, pois que essa atividade decorre do risco seguro por perda total nos danos próprios do veículo.
34. É admissível, como erradamente o fez a sentença em crise, ser o recorrente quem tem de assumir o prejuízo de € 376,00, por a empresa indicada pela seguradora não lhe ter comprado o salvado?
35. Não se pode admitir este entendimento, que perverte as obrigações da recorrida, a imporem-se leais, de boa-fé e de confiança por quem com ela contratou.
36. O depoimento do autor, parcialmente transcrito em alegações, e bem assim, de …, justifica a correção dos factos provados, com o aditamento de FACTO NOVO, com a seguinte redação:
A partir de 14 de Janeiro de 2020, e apesar das insistentes tentativas de contacto com a empresa A2bVisual por parte do autor, aquela não mais respondeu aos seus contactos telefónicos e comunicações por email, tendo-se frustrado a possibilidade de este proceder á venda do salvado pelo valor que a seguradora lhe havia indicado.
37. O prejuízo suportado pelo segurado na venda do salvado constitui manifesto enriquecimento sem causa por parte da seguradora, que numa atitude desleal e reprovável, se exime de assumir o salvado por razões meramente fiscais, mas não se exime de receber o prémio do valor da perda total do bem seguro.
38. Acresce que este comportamento integra o conceito de abuso de direito, por falsa a argumentação que "impõe" ao segurado o risco e incómodos decorrente da venda de salvado, quando o correspondente valor está incluído no prémio de seguro.
39. Deve ainda ser alterado o FACTO PROVADO 17, passando a ter a seguinte redação:
Face à recusa da seguradora em assumir o valor do salvado — facto provado 16 -, indicado na carta de 13/Dezembro 2019, e a posição da A2BVirtual que não mais atendeu ou contactou o segurado para adquirir o salvado pelo preço indicado na referida missiva, o autor diligenciou pela venda do salvado a entidade terceira pelo montante de 6.000,00, que recebeu no final de Janeiro 2020, em data não concretamente apurada.
40. Relativamente à posição vertida na sentença, de ter sido o recorrente quem recusou receber a indemnização que a seguradora lhe propôs, sendo este quem se constituiu em mora, diga-se que esse entendimento se mostra errado, e revela errada apreciação da prova produzida.
41. Constam nos autos várias comunicações do recorrente á recorrida onde este afirma que pretende receber, pelo menos, a quantia que lhe está a ser disponibilizada pela seguradora.
42. Justifica o recorrente que, pelo menos com o recebimento dessa verba, mais a que haveria de receber pelo salvado, poderia adquirir outro veículo e assim não ficar privado do uso decorrente da perda total do veículo seguro.
43. O A. envia à seguradora cópia do cartão de cidadão, documentos do veículo, cópia da caderneta da CGD com o IBAN para transferência dos indicados € 9.820,00, sendo este valor o que resultava das contas feitas pelo autor.
44. Mas, no final de Fevereiro, quando a seguradora lhe envia recibo de quitação total no valor de € 9.246,28, este queria aceitar esta verba.
45. E só não o pode receber, por a seguradora lhe exigir declaração abdicatória de qualquer outra importância decorrente da perda total do veículo seguro.
46. O depoimento do autor a este respeito foi totalmente desatendido, sem qualquer razão plausível, mostrando-se, através das declarações transcritas neste recurso, a sua aceitação em receber a verba que lhe foi oferecida.
47. Tem de se entender ser excessiva, e indevida, a imposição de um pagamento sob condição abdicatória do segurado, quando não estava ainda definido o valor que a este correspondia na perda total do veículo seguro.
48. Esta posição da seguradora "ou recebes o que te ofereço, ou não pago nada", revela-se coativa, desleal, e manifestamente ilegal, atento a sua posição dominante na relação com o segurado.
49. A verdade é que foi a seguradora quem se recusa a liquidar a importância de € 9.246,28 sem antes receber da parte do credor renúncia abdicativa de todos os danos não integrados naquele valor.
50. É exigível esta imposição por parte da seguradora ao seu segurado?
51. Claro que não o é, desde logo porque o próprio segurado ainda ter em curso procedimentos para melhor averiguar o valor que lhe correspondia receber da recorrida (reclamações na ASF, provedor de cliente, etc.)
52. E também não é exigível à seguradora impor uma renúncia abdicatória sob condição de pagar o valor oferecido, uma vez que o recorrente aceitou receber essa verba de forma a permitir adquirir outro veículo.
53. A renúncia abdicatória é uma renúncia não exigível no presente caso.
54. Com o que a recusa da seguradora liquidar a quantia já assumida de € 9.246,28, que ademais estavam vencidos e foram reclamados, é culposa.
55. Manda o art.º 798.º CC: o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor.
56. Este comportamento de recusa do pagamento da indemnização traduz-se em manifesto e intolerável abuso de direito, e deve ser sancionado como tal.
57. Para uma boa apreciação da causa, há que aditar aos factos provados um FACTO NOVO, com a seguinte redação:
O autor solicitou à ré que esta procedesse ao pagamento da importância assumida de indemnização no valor de 9.246,28, quando esta lhe envia o recibo de quitação correspondente à quantia que aquela se dispunha a pagar, mas a seguradora recusou fazê-lo sem que esse recebimento constituísse quitação abdicativa por todo e qualquer direito indemnizatório decorrente do acidente.
58. O apelante contratou com a recorrida veículo de substituição em caso de avaria, incêndio, raio ou explosão, fenómenos da natureza e atos de vandalismos, garantia essa que se aplica em caso de perda total até que a correspondente indemnização lhe seja paga.
59. Deve ser aditado FACTO NOVO, onde conste:
O autor tem contratado para o veículo RF a cobertura de substituição de veículo nos termos das Condições Gerais e/ou Especiais constante na pág.. 19 do doc. 3 da PI, cláusula 1" e 2", aplicável no caso de perda total, até que seja posta à disposição do Segurado a indemnização garantida.
60. Sem conceder, sempre se colocaria direito de indemnização por privação de uso de veículo, atento a recusa de pagamento do valor definido pela seguradora e reclamado pelo segurado - € 9.246,28 - pois é excessiva a exigência de uma declaração abdicatória.
61. Caso tivesse sido recebido pelo segurado, como era devido, pelo menos a quantia já vencida e aceite pagar pela seguradora, a somar ao recebido pelo salvado, este poderia ter adquirido outro veículo para as suas deslocações pessoais, profissionais e de lazer.
62. Remanescer ou não qualquer outro direito indemnizatório pecuniário que assistisse o autor na contenda que ora está em apreço, não constitui justificação atendível à recusa em pagar por parte da apelada, sob pena de incumprimento do contrato de seguro por intolerável abuso de direito e coação para liberação de responsabilidades.
63. A privação de uso de veículo em apreço resulta da violação de deveres legais que se impõem à seguradora recorrida, sendo indiferente, por esta razão, se o veículo seguro tem ou não contratado cobertura facultativa do dano de privação de uso.
64. A exigência de quitação pelo cumprimento de uma obrigação não pode exceder os limites do que foi cumprido.
65. Assim o determina o art.º 787.º CC.
66. E, no caso, o que teria de ser cumprido pela seguradora, era uma obrigação pecuniária fixada por esta em € 9.246,28, sendo indiferente se o total a pagar seria desse valor ou o excedia.
67. Não o fazendo, entrou em mora, responsabilizando-se pelos prejuízos causados que, no caso, resultam na contagem de juros moratórios e na privação de uso de veículo — art.º 798.º CC.
68. Invoca-se a inúmera jurisprudência e doutrina transcrita nas alegações, que aderem à posição do recorrente.
69. A indemnização por privação de uso de veículo, atento a utilização que o recorrente poderia ter feito do mesmo, e não o fez por falta de capacidade económica para comprar outro semelhante, deverá ser fixada nos termos por este peticionados, à razão de € 45,00 dia/ por justo e equitativo.
70. A decisão em crise viola os dispositivos legais contidos nos art.ºs 562.º, 564.º, 762.º, n.º 2, 763.º, 2, 787.º, 798.º do CC., art.ºs 128.º e 130.º, 1, da Lei Contrato Seguro, cláusulas contratuais do contrato de seguro e o art.º 153.º, 1 da Lei 147/2015, 09/09.
71. Os danos não patrimoniais sofridos, e que se mostram provados nos factos 17.º, 19.º e 20.º, devem merecer a tutela do direito.
72. Os incómodos e transtornos vivenciados pelo recorrente não teriam existido se a seguradora se comportasse com a lealdade e confiança que o segurado nela depositou.
73. Uma vez comprovada a ilicitude e desproporção de comportamento da seguradora para com o recorrente, espera-se que o presente recurso corrija a sentença, com a fixação de uma indemnização equitativa.
74. Devendo, assim, ser a sentença revogada, e a apelada condenada no pagamento de compensação por danos não patrimoniais ao apelante, no modesto valor peticionado, por violação do art.º 496.º, 1 e 494.º do CC.
75. A sentença em crise valida o comportamento da seguradora, e reconhece a esta a licitude do valor proposto pagar, afastando a violação dos seus deveres de boa-fé lealdade para com o segurado.
76. O apelante alegou que o comportamento da apelada, ao apresentar uma proposta de indemnização inferior ao valor que corresponde ao capital contratado em caso de perda total, constitui violação de básicas obrigações contratuais e que, por aplicação do art.º 92.º do Dec. Lei 291/2007, 21/8.
77. Mantém-se válida a apreciação deste diploma no presente recurso, atento a matéria de facto que deve ser fixada por provada.
78. A Seguradora tem obrigação de pagar ao segurado a indemnização do valor seguro, pois que essa é a sua obrigação contratual.
79. Não foi só a diferença entre o que resultou do entendimento do recorrente e da recorrida sobre o capital seguro à data do acidente que converge nesta apreciação, mas todo o comportamento desleal da seguradora.
80. O diploma em apreço tem cabimento nesta causa pois o art.º 92.º inclui o regime de seguro automóvel com cobertura de danos próprios no preceituado dos ares 32.º, 33.º, 35.º a 40.º, 43,º a 46,.º e 86.º a 89,º.
81. A recusa da seguradora em pagar o que se propunha por falta de declaração abdicatória do segurado é, só por si, um comportamento violador dos deveres de diligência e ressarcimento de danos em prazo razoável.
82. E, sem conceder, a própria diferença entre o capital seguro e o valor inferior proposto pagar pela seguradora, constitui violação dos seus deveres contratuais, e nessa medida, impões as penalidades previstas no Dec. Lei 291/2007.
83. Uma vez confirmadas as violações das obrigações e deveres da Seguradora para com o recorrente, deve aquela ser penalizada em conformidade com o Dec. Lei 291/2007, com a condenação no pagamento de juros em dobro — 8% - e multa diária de € 100,00 a favor do recorrente, tudo conforme peticionado nas alíneas IV e V do pedido.
84. A sentença em crise violou os art.ºs 32.º, 33.º, 35.º a 40.º, 43.º a 46.º e 86.º a 89.º do diploma acima identificado, devendo nessa medida a sentença ser revogada.»
A ré contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.
O relator do acima citado acórdão 23/02/2023, da 8.ª secção (que anulou oficiosamente a sentença de 27/03/2022), já não se encontra ao serviço desta Relação, pelo que, na impossibilidade de manutenção do relator (cf. artigo do 218.º CPC), foi o processo novamente distribuído.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
a) A matéria de facto deve ser alterada?
b) Dessa alteração resultará um diferente valor do veículo e, consequentemente, da indemnização pela sua perda?
c) O autor tem direito a ser ressarcido pelo dano de privação de uso? Em que medida?
d) O autor tem, ainda, direito ao pagamento de juros em dobro e da sanção previstos nos artigos 38.º e 40.º do DL 291/2007?
e) O autor sofreu danos de natureza não patrimonial indemnizáveis?
II. Fundamentação de facto
Os factos provados são os considerados na sentença recorrida, com as alterações justificadas em III.1.a), e) e f) (alteração do facto 8 e aditamento dos factos 6-A e 14-A):
1. Em 16 de novembro de 2019, pelas 11h40, na Estrada Nacional 304, ao km 78,70, no lugar de ..., Vieira do Minho, ocorreu um acidente, no qual foram intervenientes o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula …23, pertencente ao autor, conduzido por «BB» e o motociclo de matrícula …FG, conduzido por «CC».
2. Na sequência de uma ultrapassagem do veículo …23, naquela via, ocorreu um embate frontal com o motociclo de matrícula …FG, que circulava em sentido contrário.
3. O autor e a ré acordaram, por escrito, titulado pela apólice n.º …09, a transferência dos riscos emergentes da circulação do veículo automóvel de matrícula …23, pertencente ao autor, mais acordando na cobertura facultativa de danos próprios (choque, colisão e capotamento), acordo, esse, que foi renovado em 3 de junho de 2019, com liquidação do respetivo prémio no montante global e anual de 477,22 €, sendo 341,60 € correspondente ao prémio pela aludida cobertura facultativa.
4. À data da renovação as partes acordaram nas seguintes coberturas:
5. Da respetiva apólice consta, além do mais:
6. Do aludido acordo constam, entre outras, as seguintes condições gerais:
Cláusula 39.ª – Coberturas facultativas
1. (…) o Presente Contrato poderá garantir, nos termos estabelecidos nas Condições especiais e relativamente àquelas que expressamente constem das Condições Particulares, o pagamento das indemnizações, para além do âmbito do seguro de responsabilidade civil automóvel, devidas por:
(…)
b) Choque, colisão e capotamento;
c) Choque, colisão, capotamento e Quebra isolada de vidros;
(…)
2. Quando tal for expressamente acordado e constar das Condições Particulares, as garantias conferidas pelas Condições Especiais a que se referem as alíneas b), c), d), e), j) e k) do número anterior somente darão cobertura ao risco de Perda Total do veículo seguro, não havendo consequentemente lugar a qualquer pagamento de indemnização quando se verificar uma perda parcial no referido veículo.
Cláusula 42.ª – Valor seguro
1. Com exceção das coberturas com capitais próprios, a determinação dos valores seguros para cada cobertura facultativa contratada, devidamente identificados nas Condições Particulares, será da responsabilidade do Tomador do Seguro e/ou do Segurado.
2. Salvo estipulação em contrário nas Condições Particulares, o valor seguro para as coberturas previstas nas alíneas b), c), d), g) e h) do n.º 1 da cláusula 39.ª corresponde ao valor atual do veículo no momento do início da produção de efeitos do contrato, ou das suas alterações, podendo ser determinado de acordo com uma das seguintes formas:
a) Por indicação do respetivo valor em novo, tal como definido na cláusula 38ª, deduzido, se o veículo for usado, do coeficiente de desvalorização constante na tabela de desvalorização aplicável ao veículo e prevista nas Condições Particulares;
b) Por estipulação entre as partes de outro critério de determinação de valor seguro.
3. Salvo estipulação em contrário prevista nas Condições Particulares, o valor dos extras seguros indicado pelo Segurado no momento da celebração do contrato, deverá corresponder ao respetivo valor em novo.
Cláusula 43.ª – Regras de desvalorização.
1. Após determinação do valor seguro nos termos da cláusula anterior, e salvo se outro regime de desvalorização for acordado e expresso nas Condições Particulares, o valor do veículo seguro para efeitos de determinação do montante a indemnizar em caso de perda total, será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com a tabela de desvalorização aplicável.
6-A. As cláusulas 1.ª, 2.ª e 3.ª das Condições Especiais referentes ao «Automóvel de substituição», das Condições Gerais da Apólice de Seguro Automóvel em causa, têm o seguinte conteúdo:
Cláusula 1.ª – Âmbito da cobertura
1. A presente Condição Especial garante ao Segurado, em caso de privação forçada do uso do veículo seguro, em consequência de danos enquadráveis nos riscos de Choque, colisão ou capotamento, Furto ou roubo ou de Incêndio, raio e explosão, a atribuição, nas condições previstas na presente Condição Especial, de uma viatura de substituição da classe C, F ou H, conforme definido nas Condições Particulares.
(…)
Cláusula 2.ª – Condições de funcionamento da cobertura
1. A privação, para efeitos desta cobertura, considera-se imediatamente após o início da reparação ou do pedido de peritagem, quando o veículo seguro não possa circular, ou, em caso de furto ou roubo, após a participação do desaparecimento do veículo seguro às Autoridades, e cessa com o termo da sua reparação efetiva ou com a sua localização. Para acionar a presente cobertura, o Tomador do Seguro ou o Segurado deverão solicitar previamente ao Segurador a viatura de substituição, a qual deverá ser levantada pelo Tomador do Seguro/Segurado no local e Rent-a-Car indicados pelo Segurador.
2. Em caso de perda total, os efeitos da cobertura cessam na primeira das seguintes datas:
- No dia em que for posta à disposição do Segurado a indemnização garantida pela cobertura do risco em causa, quando a mesma tenha sido subscrita;
- No final do prazo limite definido na cláusula 3.ª desta Condição Especial.
(…)
Cláusula 3.ª – Limites da cobertura
1. O período de privação, para efeitos da presente Condição Especial, não poderá ultrapassar o período máximo de quinze (15) dias por anuidade.
2. Sem prejuízo do número máximo de dias acima definido, as garantias da presente Condição Especial somente poderão ser acionadas duas vezes durante a mesma anuidade.
7. À data da renovação do acordo, o valor da aquisição em novo de veículo similar ao veículo pertencente ao Autor era de aproximadamente 46.494, 89 €.
8. À data do sinistro [16 de novembro de 2019], o valor do veículo seguro no âmbito da cobertura facultativa de danos próprios (choque, colisão e capotamento) era de 16.040,73 €.
9. Após o aludido sinistro, o Autor fez a respetiva participação à Ré.
10. Em 13 de dezembro de 2019, a Ré remeteu missiva ao Autor informando-o que:
“No seguimento da vistoria efetuada pelos nossos serviços técnicos à viatura sem desmontagens, informamos que a estimativa de reparação (€ 16.001,19) se torna excessivamente onerosa face ao valor do seguro.
Nos termos do Decreto-Lei n.º 214/97, de 16 de Agosto, o valor seguro à data do sinistro é de € 15.622,28 e o veículo com danos foi avaliado em € 6.376,00.
Face ao exposto, embora ainda não nos seja possível assumir uma posição quanto a responsabilidades, colocamos condicionalmente à sua disposição a quantia de € 9.246,28, mantendo V/Exa(s). a posse do veículo com danos do qual pode dispor livremente, pelo que aguardamos que nos remeta fotocópias do cartão de cidadão ou bilhete de identidade e cartão de contribuinte do proprietário, assim como dos documentos da viatura.
Para uma maior comodidade, rapidez e segurança, solicitamos que nos envie o comprovativo da titularidade do IBAN onde conste a identificação do titular (ex.: documento homebanking, cópia de caderneta, cópia do cabeçalho do extrato) de modo a que com a sua autorização possamos proceder ao pagamento do valor em causa por transferência bancária. Informamos que não é aceite comprovativo retirado do multibanco onde não constem os elementos acima indicados.
Na eventualidade de pretender desde já comercializar o veículo sinistrado, no estado em que ele se encontra, pelo valor de € 6.376,00, indicamos desde já uma entidade que deverão contactar:
A2B Visual
Av. D. João II, nº 50 - 4º Piso
Edf. Mar Vermelho - Parque das Nações
1990-095 Lisboa
Tel: 211212075
Email: gestão@a2bvisual.pt
(Alertamos que a proposta de aquisição termina no dia 26-01-2020, pelo que a partir desta data não nos responsabilizamos pela redução deste valor.)
Na hipótese de V/ Exa. não pretender reparar o veículo nem o comercializar no estado em que ele se encontra, cumpre-nos adverti-lo para a obrigação de obter um certificado de destruição da viatura com vista aos cancelamentos da matrícula e do registo de propriedade de acordo com as disposições legais dos veículos em fim de vida.”
11. Após realização de peritagem [elaborada sem qualquer desmontagem do veículo] a Ré inseriu os respetivos dados e fotografias do veículo numa plataforma, onde se encontram registadas várias empresas, que se dedicam à compra de salvados com vista à apresentação de propostas, tendo procedido à identificação da proposta de maior valor de 6.376,00 € apresentada por parte da empresa, A2B Visual.
12. Em 19 de Dezembro de 2019, o Autor remeteu-email à Ré com o seguinte teor:
“Em referência ao assunto em apreço e em referência à missiva apresentada, informo que não concordo com os valores do valor seguro à data do sinistro de € 15.622,28 e, gostaria que me apresentassem a forma como chegaram aos mesmos.
Neste sentido, informo ainda que o valor seguro foi avaliado 03/06/2019, por renovação da anuidade pela seguradora no valor de € 16.738,16
Assim, solicito esclarecimento sobre a desvalorização do valor seguro em € 1.115,88 em apenas cinco (05) meses, o qual não corresponde à tabela de desvalorização apresentada à data da renovação.”
13. Em 6 de Janeiro de 2020, em resposta, …, funcionária do departamento de sinistros da Ré, remeteu e-mail com o seguinte teor:
OCORRÊNCIA Nº: 0012488178
SINISTRO Nº: 0013684228
Exmo. Senhor,
Reportamo-nos ao sinistro em título, de cuja regularização nos estamos a ocupar.
Informamos que o valor de indemnização foi alvo de uma nova verificação por parte do nosso gabinete técnico de peritagens e constatou-se que o mesmo se encontra correto.
O cálculo de desvalorização não é calculado de acordo com a tabela de desvalorização, mas sim de acordo com uma tabela que nos é fornecida anualmente pela Associação Portuguesa de Seguradores (APS).
14. Em 24 de Janeiro de 2020, a Ré comunicou ao Autor que assumia a responsabilidade pela regularização dos danos decorrentes do aludido sinistro, informando-se que se encontrava ao dispor do Autor a quantia de 9.246,28 €, o que o Autor recusou.
14-A. A ré apenas pagaria indemnização no valor de 9.246,28, mediante assinatura pelo autor de recibo de quitação do qual constava que abdicava de qualquer outro direito indemnizatório decorrente do mesmo acidente.
15. Em 14 de Janeiro de 2020, o Autor contactou, por correio eletrónico, a empresa, A2B Visual, tendo remetido, por ter sido solicitado, fotos do salvado e referido que o mesmo se encontrava com mais algumas peças desmontadas, tendo a aludida empresa comunicado ao Autor que não garantia o valor proposto sem antes o estado do veículo ser verificado nas suas instalações.
16. Em 24 de Janeiro de 2020, após contacto do Autor com a Ré, a Ré comunicou-lhe que:
Exmo. Senhor,
Reportamo-nos ao sinistro em título, de cuja regularização nos estamos a ocupar.
Informamos que o objeto social da Tranquilidade não é a comercialização de viaturas, pelo que na qualidade de proprietário e legítimo detentor da viatura, deverá dar-lhe o destino que melhor entender, tendo em alternativa do proceder à respetiva venda junto do promitente comprador que lhe demos conta.
As condições impostas pelo comprador indicado não são da responsabilidade da Companhia.
17. O Autor diligenciou pela venda do salvado a entidade terceira pelo montante de 6.000,00 €, que recebeu no final de Janeiro de 2020 [em data não concretamente apurada].
18. O Autor, profissional da GNR, usava o aludido veículo no seu dia a dia, na sua vida pessoal, familiar e profissional, nas deslocações de ida e volta para o trabalho, que se situava em Santa Apolónia, Lisboa, bem como deslocações ao Porto.
19. O Autor, a par das comunicações e reclamações efetuadas junto da Ré, reclamou junto de outras entidades, v.g. Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões (ASF).
20. O Autor sentiu revolta e transtorno.
III. Apreciação do mérito do recurso
III.1. Da impugnação da matéria de facto
O autor impugnou a decisão sobre a matéria de facto, pedindo a alteração de alguns dos factos consignados e o aditamento de outros.
De acordo com o disposto no artigo 640.º do CPC, o recorrente pode impugnar a decisão sobre a matéria de facto, conquanto observe as regras aí contidas. Segundo elas, e sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar: i) os pontos da matéria de facto de que discorda; ii) os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, incluindo, quando se trate de meios probatórios gravados, a indicação das exatas passagens da gravação em que se funda o recurso; iii) a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Estas normas foram cumpridas pelo autor, recorrente nos autos.
Vejamos ponto por ponto.
a) Alterações pretendidas aos factos 7 e 8 (conclusões 20 a 22)
Os factos 7 e 8 têm a seguinte redação:
«7. À data da renovação do acordo, o valor da aquisição em novo de veículo similar ao veículo pertencente ao Autor era de aproximadamente 46.494, 89 €.
8. À data do sinistro [16 de novembro de 2019], o valor seguro no âmbito da cobertura facultativa de danos próprios (choque, colisão e capotamento) era de 15.622,28 €.»
O autor pretende que passem à seguinte:
«7. À data da renovação do contrato o valor da aquisição em novo do veículo similar ao veículo pertencente ao autor era de aproximadamente 46.945,00.
8. À data do sinistro — 16 Novembro 2019, o veículo tinha 84 meses de antiguidade e, segundo a tabela de desvalorização que está inserida nas Condições Particulares da Apólice, o seu valor era de € 15.961,30.»
Valor do veículo em novo, à data da renovação da apólice (03/06/2019)
No que respeita ao valor do veículo em novo, à data da renovação da apólice (03/06/2019), considerando a data da primeira matrícula (novembro de 2012, facto 5) a diferença entre o valor provado na sentença e o pretendido no recurso (450,11 €) e o advérbio «aproximadamente», na falta de melhores argumentos, mantém-se o valor atribuído em 1.ª instância.
Valor do veículo à data do sinistro (16/11/2019)
Para justificar a alteração pretendida para o facto 8, o recorrente invoca que a tabela de desvalorização a que alude o facto provado 5 não foi corretamente aplicada uma vez que ainda não tinha decorrido o período de um ano necessário para que se pudesse consumar nova desvalorização; sendo certo que o capital seguro tinha sido atualizado à data da renovação da apólice em junho de 2019, para € 16.738,16, sem que esse valor resulte da aplicação da tabela de desvalorização que a apólice contém.
Assiste-lhe, em parte e de certa forma, razão.
Conforme facto 5., a data da 1.ª matrícula é «2012-11» (novembro de 2012); na falta de dia, considera-se o último do mês (30); o contrato de seguro foi renovado em 3 de junho de 2019, com o capital seguro de € 16.738,16; o acidente ocorreu em 16 de novembro de 2019, portanto no decurso de 7.º ano, com 6 anos e 11 meses completos.
Aquando do sinistro, 16/11/2019, o veículo tinha, portanto, apenas 83 meses completos.
Aplicando a tabela constante das condições particulares aquando da renovação da apólice em junho de 2019, aplicamos a percentagem de desvalorização correspondente a 6 anos e 11 meses, ou seja a linha 11 do 7.º ano, que é de 65,50%. O valor do veículo à data do sinistro seria, assim, de 16.040,73 €.
Em primeira instância foi aplicada a desvalorização correspondente a 85 meses, linha 1 do 8.º ano, ou seja 66,40%. Com efeito, 46.494, 89 € (facto 7), menos 66,40% resulta em 15.622,28 € (facto 8).
Mesmo mantendo o facto 7, devemos aplicar a desvalorização da linha 11 do ano 7.º (o veículo tinha à data do sinistro 6 anos e 11 meses completos), que é de 65,50%, pelo que chegamos ao valor de 16.040,73 €.
De mencionar que, ao contrário do inicialmente pretendido pelo autor, a atualização da desvalorização do veículo é mensal (e não anual). Assim consta das Condições Particulares – v. antepenúltimo § da tabela constante do facto 5 («O valor do capital seguro do veículo indicado nas Condições Particulares corresponde ao do início do período de vigência do contrato e sofrerá até ao termo do mesmo período a desvalorização mensal prevista na tabela»); e da Cláusula 43.º, n.º 1, das Condições Gerais do contrato (facto 6).
Do DL 214/97, de 16 de agosto, por seu turno, não decorre que a desvalorização se calcula no final de um ano. Lendo, nomeadamente os seus artigos 2.º e 4.º, a atualização mensal não está, de forma alguma, afastada:
- Artigo 2.º (Alteração automática) O valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4.º , sendo o respetivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro.
- Artigo 4.º (Tabela de desvalorização) 1 - As empresas de seguros que contratem as coberturas previstas no artigo 1.º devem elaborar a tabela de desvalorizações periódicas automáticas a que se refere o artigo 2.º para determinação do valor da indemnização em caso de perda total, incluindo, necessariamente, como referências, o ano ou o valor da aquisição em novo, ou ambos (…).
Porquanto exposto, alteramos o facto 8 para o seguinte:
«8. À data do sinistro [16 de novembro de 2019], o valor do veículo seguro no âmbito da cobertura facultativa de danos próprios (choque, colisão e capotamento) era de 16.040,73 €.»
b) Aditamento do “facto novo”: O contrato de seguro foi contratado com a seguradora ré a 3/6/2016, em estado usado do veículo RF (conclusão 23)
O aditamento do facto «O contrato de seguro foi contratado com a seguradora ré a 3/6/2016, em estado usado do veículo RF» é supérfluo. Já consta assente o mês e ano de matrícula do veículo (facto 5, novembro de 2012), pelo que não era novo aquando da contratação do seguro em 2016.
c) Aditamento do “facto novo”: A partir de 14 de Janeiro de 2020, e apesar das insistentes tentativas de contacto com a empresa A2bVisual por parte do autor, aquela não mais respondeu aos seus contactos telefónicos e comunicações por email, tendo-se frustrado a possibilidade de este proceder á venda do salvado pelo valor que a seguradora lhe havia indicado (conclusão 36)
O facto que o autor aqui pretende aditar não se pode extrair da prova produzida, desde logo considerando que, após o autor ter contactado, em 14/01/2020, a A2B Visual, esta comunicou-lhe que não garantia o valor proposto sem antes verificar o estado do veículo nas suas instalações (facto 15, não impugnado pelo recorrente). Aparentemente, o autor não diligenciou no sentido de permitir essa verificação.
d) Alteração do facto 17 (conclusão 39)
O facto 17 apresenta o seguinte teor: O Autor diligenciou pela venda do salvado a entidade terceira pelo montante de 6.000,00 €, que recebeu no final de Janeiro de 2020 [em data não concretamente apurada].
O recorrente pretende que o mesmo passe a ter a seguinte redação: Face à recusa da seguradora em assumir o valor do salvado — facto provado 16 -, indicado na carta de 13/Dezembro 2019, e a posição da A2BVirtual que não mais atendeu ou contactou o segurado para adquirir o salvado pelo preço indicado na referida missiva, o autor diligenciou pela venda do salvado a entidade terceira pelo montante de 6.000,00, que recebeu no final de Janeiro 2020, em data não concretamente apurada.
Pela razão referida na antecedente alínea c), indefere-se a desejada alteração.
e) Aditamento do “facto novo”: O autor solicitou à ré que esta procedesse ao pagamento da importância assumida de indemnização no valor de 9.246,28, quando esta lhe envia o recibo de quitação correspondente à quantia que aquela se dispunha a pagar, mas a seguradora recusou fazê-lo sem que esse recebimento constituísse quitação abdicativa por todo e qualquer direito indemnizatório decorrente do acidente (conclusão 57)
Na sentença, o tribunal a quo concluiu que o recorrente se recusou a receber a indemnização que a seguradora lhe propôs, pelo que não haveria mora da seguradora quanto ao referido montante.
Afirma o recorrente haver nos autos várias comunicações suas à recorrida, nas quais afirma que pretende receber, pelo menos, a quantia que lhe está a ser disponibilizada pela seguradora; no final de fevereiro, quando a seguradora lhe envia recibo de quitação total no valor de € 9.246,28, o autor queria aceitar esta verba, mas não a pôde receber por a seguradora lhe exigir declaração abdicativa de qualquer outra importância decorrente da perda total do veículo seguro. O autor depôs sobre esta matéria e neste sentido.
O recorrente pede o aditamento do seguinte facto:
«O autor solicitou à ré que esta procedesse ao pagamento da importância assumida de indemnização no valor de 9.246,28, quando esta lhe envia o recibo de quitação correspondente à quantia que aquela se dispunha a pagar, mas a seguradora recusou fazê-lo sem que esse recebimento constituísse quitação abdicativa por todo e qualquer direito indemnizatório decorrente do acidente.»
Este facto torna-se necessário na medida em que consta provado no facto 14 que, em 24/01/2020, a ré informou o autor de que se encontrava ao seu dispor a quantia de 9.246,28 €, e que o autor a recusou. De dizer que esta “recusa” não foi alegada pela ré. Esta limitou-se a alegar ter disponibilizado a quantia ao autor. É da lavra do tribunal a quo a dita “recusa”, bem como a consequência de mora do credor que o mesmo tribunal dela retirou.
A partir do momento em que ficou consagrada a “recusa”, não se pode negar ao autor o direito a que fique consignada a razão dessa “recusa” ou, melhor dizendo, em que sentido admitiu falar de “recusa”.
É consabido, porque é prática corrente (e geradora de litígio, v.g. Acs. do TRC de 03/10/2006, proc. 115/05.9TBVGS.C1, de 13/11/2018, proc. 533/16.7T8FND.C1, e de 04/05/2021, proc. 195/14.6T8VIS.C1, do TRE de 14/07/2011, proc. 441/10.5T2STC.E1, e do TRG de 25/05/2016, proc. 1021/13.9TBCHV.G1), que as seguradoras apenas procedem ao pagamento das indemnizações mediante prévia assinatura de um recibo de quitação, no qual o beneficiário também declara nada mais ter a haver e abdicar de imputar quaisquer outras responsabilidades, emergentes do mesmo sinistro, à seguradora. Estando em discussão entre as partes o valor de indemnização devido, a não aceitação da indemnização nas circunstâncias em que a seguradora se disponibiliza a pagar (contra renúncia abdicativa a outros montantes), não constitui recusa geradora de mora do credor.
Assim, adita-se o seguinte facto:
«14-A. A ré apenas pagaria indemnização no valor de 9.246,28, mediante assinatura pelo autor de recibo de quitação do qual constava que abdicava de qualquer outro direito indemnizatório decorrente do mesmo acidente.»
f) Aditamento do “facto novo”: O autor tem contratado para o veículo RF a cobertura de substituição de veículo nos termos das Condições Gerais e/ou Especiais constante na p. 19 do doc. 3 da PI, cláusulas 1ª e 2ª, aplicável no caso de perda total, até que seja posta à disposição do Segurado a indemnização garantida (conclusão 59)
O teor das Condições Gerais da Apólice de Seguro Automóvel em causa pode ser considerado sem necessidade de as cláusulas estarem extensamente reproduzidas nos factos. Basta que esteja provado que entre as partes foi celebrado contrato de seguro sujeito àquelas condições gerais, conforme já se mostra assente.
Em todo o caso, para facilitar a exposição, transcrevem-se as partes relevantes das cláusulas 1.ª, 2.ª e 3.ª das Condições Especiais referentes ao «Automóvel de substituição», acrescentando o facto
«6-A. As cláusulas 1.ª, 2.ª e 3.ª das Condições Especiais referentes ao «Automóvel de substituição», das Condições Gerais da Apólice de Seguro Automóvel em causa, têm o seguinte conteúdo:
Cláusula 1.ª – Âmbito da cobertura
1. A presente Condição Especial garante ao Segurado, em caso de privação forçada do uso do veículo seguro, em consequência de danos enquadráveis nos riscos de Choque, colisão ou capotamento, Furto ou roubo ou de Incêndio, raio e explosão, a atribuição, nas condições previstas na presente Condição Especial, de uma viatura de substituição da classe C, F ou H, conforme definido nas Condições Particulares.
(…)
Cláusula 2.ª – Condições de funcionamento da cobertura
1. A privação, para efeitos desta cobertura, considera-se imediatamente após o início da reparação ou do pedido de peritagem, quando o veículo seguro não possa circular, ou, em caso de furto ou roubo, após a participação do desaparecimento do veículo seguro às Autoridades, e cessa com o termo da sua reparação efetiva ou com a sua localização. Para acionar a presente cobertura, o Tomador do Seguro ou o Segurado deverão solicitar previamente ao Segurador a viatura de substituição, a qual deverá ser levantada pelo Tomador do Seguro/Segurado no local e Rent-a-Car indicados pelo Segurador.
2. Em caso de perda total, os efeitos da cobertura cessam na primeira das seguintes datas:
- No dia em que for posta à disposição do Segurado a indemnização garantida pela cobertura do risco em causa, quando à mesma tenha sido subscrita;
- No final do prazo limite definido na cláusula 3.ª desta Condição Especial.
(…)
Cláusula 3.ª – Limites da cobertura
1. O período de privação, para efeitos da presente Condição Especial, não poderá ultrapassar o período máximo de quinze (15) dias por anuidade.
2. Sem prejuízo do número máximo de dias acima definido, as garantias da presente Condição Especial somente poderão ser acionadas duas vezes durante a mesma anuidade.»
III.2. Quadro jurídico aplicável à relação controvertida
No presente recurso está apenas em causa a indemnização devida pela ré, ao abrigo de contrato de seguro com cobertura de danos próprios, por danos causados no veículo do autor num acidente da responsabilidade do seu condutor.
À relação controvertida aplicam-se as regras contratuais, estipuladas pelas partes no contrato de seguro celebrado, incluindo as condições gerais da apólice (desde que não contrariem disposição legal imperativa). O que as partes não previram (ou não previram validamente) rege-se por normas jurídicas gerais com correspondência com as várias situações, normas que, in casu, vamos encontrar no regime jurídico do contrato de seguro, regimes especiais do seguro automóvel, e no Código Civil.
O regime jurídico do contrato de seguro (de ora em diante RJCS) encontra-se no anexo ao DL 72/2008, de 16 de abril (entretanto alterado pelas Lei 147/2015, de 9 de setembro, Lei 75/2021, de 18 de novembro, e Lei 82/2023, de 29 de dezembro). O diploma começa por descrever o conteúdo típico do contrato de seguro como aquele pelo qual o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente.
As normas do regime geral aplicam-se aos contratos de seguro com regimes especiais constantes de outros diplomas, desde que não sejam incompatíveis com esses regimes (artigo 2.º do RJCS); e ressalva-se a aplicação ao contrato de seguro do disposto na legislação sobre cláusulas contratuais gerais, sobre defesa do consumidor e sobre contratos celebrados à distância, nos termos do disposto nos respetivos diplomas (artigo 3.º do RJCS). Às questões sobre contratos de seguro não reguladas no RJCS nem em diplomas especiais aplicam-se, subsidiariamente, as correspondentes disposições da lei comercial e da lei civil, sem prejuízo do disposto no regime jurídico de acesso e exercício da atividade seguradora (artigo 4.º).
Do RJCS, com relevância na situação dos autos, destacamos as seguintes normas:
§ A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro (artigo 128.º);
§ O objeto salvo do sinistro (salvado) só pode ser abandonado a favor do segurador se o contrato assim o estabelecer (artigo 129.º);
§ No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro (n.º 1 do artigo 130.º);
§ No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado, norma que igualmente se aplica quanto ao valor de privação de uso do bem (n.ºs 2 e 3 do artigo 130.º);
§ O contrato de seguro caduca na eventualidade de superveniente extinção do risco, nomeadamente em caso de perda total do bem seguro (artigo 110.º).
O DL 291/2007, de 21 de agosto, alterado pelo DL 153/2008, de 6 de agosto, e pela Lei 32/2023, de 10 de julho, estabelece o regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (de ora em diante SORCA), o que faz também em transposição de Diretivas europeias.
Neste diploma encontramos normas relevantes para a compreensão dos aspetos jurídicos da situação sub judice e, em parte, para a solução do litígio. Entre elas, noções e regime de “perda total”, “salvado”, “valor venal”, “dano de privação do uso”.
O regime de ressarcimento pelo veículo danificado em situação de “perda total” e pelo dano de “privação do uso”, tratando-se, como no caso dos autos, de danos próprios e tendo o seguro essa cobertura, há de procurar-se nas condições contratadas. O regime que consta dos artigos 41.º e 42.º do SORCA, e de que damos conta em seguida, apenas se aplica de forma direta ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Não obstante, a norma contida no n.º 1 do artigo 43.º – segundo a qual a empresa de seguros responsável deve proceder ao pagamento ao lesado da indemnização decorrente do sinistro no prazo de oito dias úteis a contar da data da assunção da responsabilidade –, também se aplica aos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros, desde que os sinistros tenham ocorrido em virtude de choque, colisão ou capotamento. É o que se encontra estabelecido no artigo 92.º do mesmo diploma.
Nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 41.º do SORCA, entende-se que um veículo interveniente num acidente se considera em situação de perda total, quando se verifique uma das seguintes hipóteses:
a) Tenha ocorrido o seu desaparecimento ou a sua destruição total;
b) Se constate que a reparação é materialmente impossível ou tecnicamente não aconselhável, por terem sido gravemente afetadas as suas condições de segurança;
c) Se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100 % ou 120 % do valor venal do veículo consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos.
Ainda nos termos do mesmo número e artigo, verificando-se a situação de perda total, a obrigação de indemnização é cumprida em dinheiro e não através da reparação do veículo.
O valor venal do veículo antes do sinistro corresponde ao seu valor de substituição no momento anterior ao acidente (n.º 2 do artigo 41.º).
O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro, deduzido do valor do respetivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário (n.º 3 do mesmo artigo e diploma).
Ao propor o pagamento de uma indemnização com base no conceito de perda total, a empresa de seguros está obrigada a prestar, cumulativamente, as seguintes informações ao lesado: i. a identificação da entidade que efetuou a quantificação do valor estimado da reparação e a apreciação da sua exequibilidade; ii. o valor venal do veículo no momento anterior ao acidente; e, iii. a estimativa do valor do respetivo salvado e a identificação de quem se compromete a adquiri-lo com base nessa avaliação (n.º 4 do mesmo artigo e diploma).
Verificando-se a imobilização do veículo sinistrado, o lesado tem direito a um veículo de substituição de características semelhantes a partir da data em que a empresa de seguros assuma a responsabilidade exclusiva pelo ressarcimento dos danos resultantes do acidente (artigo 42.º, n.º 1, do DL 291/2007).
No caso de perda total do veículo imobilizado, a obrigação de assegurar veículo de substituição cessa no momento em que a empresa de seguros coloque à disposição do lesado o pagamento da indemnização (n.º 2 do mesmo artigo e diploma).
Salvo acordo em contrário, a empresa de seguros responsável deve proceder ao pagamento ao lesado da indemnização decorrente do sinistro no prazo de oito dias úteis a contar da data da assunção da responsabilidade (artigo 43.º, n.º 1, do DL 291/2007).
Porque na situação dos autos estão em causa “danos próprios”, causados pelo próprio ou pelo condutor do veículo objeto de seguro, há que ter em consideração o disposto no Decreto-Lei 214/97, de 16 de agosto, que institui regras destinadas a assegurar uma maior transparência nos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros.
Com este diploma foi instituída a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio correspondente à eventualidade de perda total que seja calculada com base nesse valor. Lê-se no seu artigo 2.º, que o valor seguro dos veículos deverá ser automaticamente alterado de acordo com a tabela referida no artigo 4.º, sendo o respetivo prémio ajustado à desvalorização do valor seguro. Nos termos do artigo 4.º, as empresas de seguros que contratem as coberturas previstas no artigo 1.º (que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros) devem elaborar a tabela de desvalorizações periódicas automáticas a que se refere o artigo 2.º para determinação do valor da indemnização em caso de perda total, incluindo, necessariamente, como referências, o ano ou o valor da aquisição em novo, ou ambos. Fica, no entanto, ressalvada a possibilidade de as partes contratantes estipularem, por acordo expresso em sede de cláusulas particulares, qualquer outro valor segurável (artigo 5.º).
Aqui chegados, apreciemos as várias questões suscitadas pelo recorrente.
III.3. Do valor do veículo antes do acidente, da indemnização por perda total e dos juros devidos
Resulta dos factos provados que autor e ré (seguradora) celebraram contrato de seguro pelo qual o primeiro transferiu para a segunda os riscos emergentes da circulação do veículo automóvel de matrícula …23, pertencente ao autor, incluindo a cobertura facultativa de danos próprios, designadamente por choque, colisão e capotamento, quando haja perda total do veículo – factos 3 e 6.
Esse contrato foi renovado em 03/06/2019, sendo então o capital seguro na cobertura de choque, colisão e capotamento de 16.738,16 € - facto 4.
Acordaram, ainda, as partes que o valor do capital seguro indicado nas condições particulares correspondia ao do início do período de vigência do contrato e sofreria até ao termo do mesmo período a desvalorização mensal prevista na tabela – facto 5.
Nos termos das condições gerais contratadas, o valor seguro para as coberturas de choque ou colisão corresponde ao valor atual do veículo no momento do início da produção de efeitos do contrato, ou das suas alterações, podendo ser determinado de acordo com uma das seguintes formas: a) Por indicação do respetivo valor em novo, tal como definido na cláusula 38ª, deduzido, se o veículo for usado, do coeficiente de desvalorização constante na tabela de desvalorização aplicável ao veículo e prevista nas Condições Particulares; b) Por estipulação entre as partes de outro critério de determinação de valor seguro (facto 6, cl. 42.º).
Após determinação do valor seguro nos termos da cláusula anterior, e salvo se outro regime de desvalorização for acordado e expresso nas Condições Particulares, o valor do veículo seguro para efeitos de determinação do montante a indemnizar em caso de perda total, será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com a tabela de desvalorização aplicável (facto 6, cl. 43.º).
As partes estipularam, no momento da renovação do contrato (3 de junho de 2019) que o valor do veículo era de 16.738,16 €.
À data da renovação do acordo, o valor da aquisição em novo de veículo similar ao veículo pertencente ao Autor era de aproximadamente 46.494, 89 € (facto 7).
Considerando o valor em novo, à data da renovação, assente no facto 7; considerando que à data do sinistro (16/11/2019) o veículo tinha 6 anos e 11 meses completos; e aplicando a desvalorização da tabela constante da apólice (linha 11 do 7.º ano, que é de 65,50%), o valor venal do veículo antes do sinistro (valor de substituição no momento anterior ao acidente de 16/11/2019 – n.º 2 do artigo 41.º do SORCA) era de 16.040,73 € (facto 8).
A estimativa de reparação era de 16.001,19 € – facto 10; e o autor logrou vender o salvado por 6.000,00 € - facto 17.
Verifica-se, assim, que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 120% do valor venal do veículo, o que corresponde a uma situação de perda total (artigo 41.º, n.º 1, al. c) do SORCA), qualificação que as partes não discutem.
Como acima mencionado, o regime de ressarcimento pelo veículo danificado em situação de “perda total” (e pelo dano de “privação do uso”), tratando-se, como no caso dos autos, de danos próprios e tendo o seguro essa cobertura, há de procurar-se nas condições contratadas. O regime que consta dos artigos 41.º e 42.º do SORCA apenas se aplica de forma direta ao seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
Nas Condições Gerais da Apólice (Cláusula 43.ª), encontramos as regras de desvalorização: após determinação do valor seguro nos termos da cláusula 42.ª, e salvo se outro regime de desvalorização for acordado e expresso nas Condições Particulares, o valor do veículo seguro para efeitos de determinação do montante a indemnizar em caso de perda total, será, nos meses e anuidades seguintes aos da celebração do contrato, automática e sucessivamente alterado de acordo com a tabela de desvalorização aplicável. Esta condição contratual é consentânea com o constante do Decreto-Lei 214/97, de 16 de agosto, acima referido, e que institui a regra da desvalorização automática do valor seguro, com a consequente redução proporcional da parte do prémio correspondente à eventualidade de perda total que seja calculada com base nesse valor.
Aplicando a dita tabela chegámos ao valor de 16.040,73 € (facto 8).
A este valor há que subtrair o do salvado, que ficou na posse do autor. O valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro, deduzido do valor do respetivo salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário (n.º 3 do artigo 41.º do SORCA) – as condições da apólice nada dizem em contrário.
Chegamos assim ao valor de 10.040,73 €.
Não aceitamos a conclusão do tribunal a quo no sentido de o autor (credor) ter incorrido em mora por não ter recebido a prestação que a ré colocou ao seu dispor. O autor tinha o direito de discutir o montante da indemnização e outras prestações. Aliás, tal renúncia abdicativa seria de duvidosa validade (neste sentido os Acs. do TRC de 13/11/2018, proc. 533/16.7T8FND.C1, e de 04/05/2021, proc. 195/14.6T8VIS.C1).
São, assim, devidos juros de mora à taxa legal supletiva geral, sobre a totalidade do valor devido, desde a data da comunicação da assunção de responsabilidade (24/01/2020) até efetivo e integral pagamento (artigos 805.º e 806.º do CC). A responsabilidade funda-se in casu apenas no contrato de seguro com cobertura de danos próprios, não em facto ilícito, pelo que os juros se contam nos termos da al. a) do n.º 2 do artigo 805.º do CC (e não da al. b) do mesmo número, artigo e diploma).
Pretende o autor que esses juros sejam fixados no dobro da taxa legal aplicável, ao abrigo do disposto no artigo 38.º do SORCA, bem como reclama, ainda, o pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso, prevista no n.º 2 do artigo 40.º do SORCA. As referidas normas do SORCA aplicam-se aos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros, desde que os sinistros tenham ocorrido em virtude de choque, colisão ou capotamento (v. artigo 92.º do SORCA). Não obstante, não assiste razão ao recorrente, como passamos a demonstrar.
Nos termos do disposto no artigo 36.º do SORCA, sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve: a) Proceder ao primeiro contacto com o tomador do seguro no prazo de dois dias úteis, marcando as peritagens que devam ter lugar; b) Concluir as peritagens no prazo dos oito dias úteis seguintes; c) Em caso de necessidade de desmontagem, as peritagens devem ser concluídas no prazo máximo dos 12 dias úteis seguintes ao fim do prazo mencionado na alínea a); d) Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas; e) Comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis, a contar do termo do prazo fixado na alínea a).
Entre o acidente (16/11/2019) e a assunção de responsabilidade (24/01/2020) decorreram 48 dias úteis. Admitimos que possam ter sido mais alguns dias além dos dois mais trinta dias úteis que resultam das normas acima descritas e cujo termo de início é a data da participação do sinistro. Não sabemos, porém, quando se deu essa participação.
Em todo o caso, os juros no dobro a que se reporta o artigo 38.º, n.º 3, do SORCA – juros sobre a diferença entre o montante oferecido e o montante ora fixado na decisão judicial – nunca seriam devidos, por não se verificar o pressuposto da estatuição: o montante proposto nos termos da proposta razoável ser manifestamente insuficiente. Não se pode considerar manifestamente insuficiente uma proposta que apenas fica aquém da devida em 7,91% [100x(10040,73-9246,28):10040,73].
Quanto aos juros em dobro a que se reporta o n.º 2 do mesmo artigo 38.º do SORCA, eles apenas seriam devidos entre os trinta e dois dias úteis posteriores à participação do acidente e 24/01/2020 e não sabemos quando se iniciaram esses 32 dias úteis.
Pela mesma razão não se aplica a sanção a que se reporta o n.º 2 do artigo 40.º do SORCA.
III.4. Da indemnização do dano de privação de uso
Voltamos a relembrar que o regime de ressarcimento pelo veículo danificado em situação de “perda total” e pelo dano de “privação do uso”, tratando-se, como no caso dos autos, de danos próprios e tendo o seguro essa cobertura, há de procurar-se nas condições contratadas. O regime que consta dos artigos 41.º e 42.º do SORCA não se aplica de forma direta aos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguros (artigo 92.º do SORCA). Tais normas, referentes ao direito a um veículo de substituição, nomeadamente no caso de perda total do veículo imobilizado, apenas se aplicam aos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios a título supletivo, ou seja, na falta de previsão contratual.
Conforme descrito no facto 6-A, a cláusula 1.ª das Condições Especiais referentes ao «Automóvel de substituição», das Condições Gerais da Apólice de Seguro Automóvel em causa, garante ao Segurado, em caso de privação forçada do uso do veículo seguro, em consequência de danos enquadráveis nos riscos de Choque, colisão ou capotamento, uma viatura de substituição.
Nos termos da cl. 2.ª, a privação, para efeitos desta cobertura, considera-se imediatamente após o pedido de peritagem, e cessa na primeira das seguintes datas: dia em que for posta à disposição do segurado a indemnização garantida pela cobertura do risco em causa, ou no final do prazo limite definido na cláusula 3.ª desta Condição Especial, ou seja, decorrido o prazo máximo de quinze (15) dias.
Ou seja, o direito a viatura de substituição (ou a equivalente pecuniário) teria um prazo máximo de 15 dias. Por outro lado, para acionar a respetiva cobertura, o tomador do seguro deveria ter solicitado previamente à seguradora a viatura de substituição, a qual deveria ser levantada no local e rent-a-car indicados pela seguradora (cl. 2.ª, n.º 1).
O recorrente não demonstrou ter acionado esta garantia.
III.5. Dos danos de natureza não patrimonial
À responsabilidade civil não interessa qualquer dano (desvantagem, lesão material ou imaterial de um bem, direito ou interesse juridicamente protegido), mas apenas o dano indemnizável, que reveste determinadas características: terá de se imputar a terceiro (diferente do lesado – «aquele que… violar… o direito de outrem» – artigo 483.º do CC), terá de apresentar nexo de causalidade com o facto lesivo (v., inter alia mas sobretudo, artigos 483.º, 562.º e 563.º do CC) e, quando assuma natureza não patrimonial, terá de ter gravidade suficiente para merecer tutela (artigo 496.º do CC).
Lembramos que estamos no âmbito da responsabilidade civil contratual. Os danos pelos quais a seguradora está a responder são danos próprios, causados no veículo seguro pelo seu condutor (filho do autor), num acidente da responsabilidade do autor (não de terceiro), causado pelo condutor do veículo seguro.
Não se nega que possa haver indemnização de danos de natureza não patrimonial decorrentes de incumprimento contratual, mas, por tudo quanto acima exposto, não se vê ilícito culposo (não nos merecendo essa qualificação a mera discordância quanto à liquidação do devido), nem danos não patrimoniais suficientemente graves para merecerem a tutela do direito (facto 20), e, menos ainda, que o sentimento subjetivo descrito no facto 20 tenha como causa adequada o comportamento da ré.
IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de 10.040,73 € (dez mil e quarenta euros e setenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde 24/01/2020 até efetivo e integral pagamento, absolvendo-a do demais pedido.
Custas por autor e ré na proporção de 90% e 10%, respetivamente.
Lisboa, 12/09/2024
Higina Castelo
Laurinda Gemas
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