Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
30085/22.2T8LSB.L1-2
Relator: HIGINA CASTELO
Descritores: ERRO NA FORMA DE PROCESSO
PROCESSO ESPECIAL PARA APRESENTAÇÃO DE COISAS OU DOCUMENTOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I. Se o único pedido do autor consiste na exibição de determinados documentos (exibição que lhe permita deles obter reprodução, ainda que por fotografia ou digitalização no momento da exibição), o processo próprio para fazer valer a sua pretensão consiste na ação especial para apresentação de coisas ou documentos.
II. Pretendendo-se a exibição de documentos no âmbito de um processo pendente, são aplicáveis as disposições dos artigos 429.º e ss. do CPC, que preveem os casos de o documento se encontrar em poder da parte contrária ou em poder de terceiro; não havendo processo pendente e nenhum outro pedido se cumulando, o processo de jurisdição voluntária para apresentação de coisas ou documentos é o adequado à pretensão.
III. Neste processo, o requerente tem de justificar a necessidade da diligência, alegando a recusa da contraparte na apresentação e o seu (do requerente) interesse na exibição; são interesses atendíveis esclarecer-se acerca da existência ou do conteúdo do seu direito, ou habilitar-se a exercê-lo ou a conservá-lo.
IV.  Tal como o possuidor ou o detentor da coisa, o detentor do documento pode opor-se invocando uma razão séria de recusa, nomeadamente um dever ou direito de sigilo, a violação da integridade moral, a intromissão na vida privada ou familiar, na correspondência ou nas telecomunicações.
V. Requisitado o documento a uma instituição bancária, e recusando ela legitimamente a exibição com fundamento em segredo bancário, cabe ao tribunal imediatamente superior decidir sobre a quebra do segredo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
«GG», S.L., autora na ação que move a NOVO BANCO, S.A., notificada do saneador-sentença proferido em 23 de novembro de 2023, que julgou haver erro na forma de processo, declarou a nulidade de todo o processado e absolveu o Banco da instância, e com essa sentença não se conformando, interpôs o presente recurso.

A autora, sociedade de direito espanhol, intentou a presente ação para apresentação de documentos, com processo especial, contra o banco réu, pedindo que este seja forçado a apresentar-lhe os seguintes documentos:
i. Os dados de identificação dos titulares da conta bancária com o IBAN n.º PT …82, incluindo as respetivas fichas de assinaturas, com indicação do balcão onde terá sido aberta, os documentos de identificação do requerente da abertura da conta e eventual instrumento de representação dos titulares da conta e todos os demais documentos que instruíram o processo de abertura de conta.
ii. Os documentos internos da Requerida referentes às diligências de compliance realizadas no âmbito dos procedimentos “KNOW YOUR CLIENT” (KYC), “KNOW YOUR TRANSACTION” (KYT) e “KNOW YOUR PROCESS” (KYP) da «II».
iii. Os documentos relativos à avaliação do risco da «II» realizada pela Requerida e o perfil de risco da «II» atribuído por aquela instituição bancária.
iv. Os eventuais procedimentos realizados pela Requerida com vista à atualização da informação inicial recolhida sobre a «II».
v. Os documentos comprovativos das diligências de monitorização e controlo da «II» e das operações por esta realizadas desde a data de abertura de conta até à presente oportunidade, incluindo os referentes à transferência bancária de €2.600.000,00 realizada pela requerente em 2022.08.05 e à transferência bancária do mesmo montante realizada pela «II» para uma outra conta bancária no dia 2022.08.08.
vi. Informação sobre as concretas medidas de compliance aplicadas pela Requerida (i) no âmbito da transferência bancária de €2.600.000,00 realizada pela requerente em 2022.08.05 para a conta bancária titulada pela «II» e (ii) no âmbito da transferência bancária do mesmo montante realizada pela «II» para uma outra conta bancária em 2022.08.08.
vii. Os extratos bancários comprovativos de que o montante de €2.600.000,00 entrou na conta bancária com o IBAN n.º PT …82 titulada pela «II» e também extratos bancários comprovativos de que dela saiu, mediante indicação completa da(s) conta(s) bancária(s) destino e da(s) instituição(es) de crédito em que essa(s) conta(s) destino se encontra(em) domiciliada(s).
viii. Os extratos bancários da identificada conta bancária da «II» desde a data da sua constituição/abertura até esta oportunidade.

Para tanto e em síntese, alegou que:
- É uma sociedade comercial de direito espanhol que se dedica essencialmente à promoção imobiliária, à compra e venda de bens imóveis e ao seu arrendamento;
- Tem como sua acionista única a sociedade «HH» GROUP, AS, sociedade comercial de direito norueguês (que doravante se designará por «HH» GROUP);
- A prossecução da atividade comercial da requerente é habitualmente financiada pela referida «HH» GROUP, acionista única daquela, através da prestação de suprimentos;
- O legal representante da requerente é a mesma pessoa que exerce a representação legal da «HH» GROUP: «AA»;
- A requerente é titular de uma conta bancária aberta junto do BANKINTER, com o n.º ...44 (IBAN ES …44);
- Por meio de instrumento de representação voluntária conferido para o efeito, a requerente constituiu em 2021.02.25., como seu procurador em Espanha, «BB» (que doravante se designará por “«BB»), consultor fiscal e contabilista da requerente, conferindo-lhe, entre outros, amplos poderes de administração civil e também poderes especiais de movimentação da referida conta bancária por si titulada no BANKINTER;
- No exercício da sua normal atividade comercial, a requerente alienou um imóvel de que era proprietária em Marbella (Málaga), Espanha, pelo montante de €10.100.000,00;
- A requerente decidiu que uma parte do preço recebido pelo referido negócio seria entregue à «HH» GROUP, a título de devolução antecipada de suprimentos que esta havia prestado àquela;
- Assim, em 2022.08.02, às 8h24, o identificado «AA», legal representante da requerente e da sua acionista única («HH» GROUP), enviou um mail a «CC», informando-o sobre os dados de uma conta bancária na Noruega titulada pela «HH» GROUP para onde deveria ser transferida a quantia de € 2.600.000,00;
- Sucede que, nesse mesmo dia - 02.08.2022 -, às 9h47, aparentemente através da conta de email do referido «AA», foi enviado um outro mail ao identificado «CC», transmitindo-lhe o seguinte: “Pensando melhor, por favor envie o dinheiro para a conta do Grupo «HH» em Portugal «HH» Group AS IBAN: PT …23 SWIFT CODE: BESCPTPLXXX NOVO BANCO SA CAMPO GRANDE N 28 7 C, 1700-093 LISBOA PORTUGAL”;
- O referido e-mail não foi, contudo, enviado por «AA», nem o seu envio foi do seu conhecimento, não se encontrando o mesmo arquivado na sua caixa de correio;
- No entanto, nem o referido «CC», nem as restantes pessoas que estavam em cópia nesse email, estranharam ou suspeitaram da autenticidade da alteração das instruções bancárias fornecidas, uma vez que (i) o endereço de correio eletrónico de onde foi enviado o mail a que corresponde o doc.º n.º 7 correspondia ao habitualmente utilizado por «AA» (...@«HH» group. no) e (ii) era do conhecimento de «CC» e «BB», respetivamente advogado e contabilista (além de consultor fiscal) da requerente em Espanha, que a «HH» GROUP SA prosseguia a sua atividade comercial em diferentes geografias no mundo, tendo, por conseguinte, sido assumido que Portugal seria um desses locais, e confiado que a conta indicada pertencia efetivamente à «HH» GROUP SA;
- Nesta sequência, em 2022.08.05, o referido «BB» deslocou-se à agência bancária do BANKINTER, sita na Calle Jesus Puente, 17, Puerto Banus, Marbella (Málaga), e, em nome e representação da requerente, deu ordem de transferência bancária internacional, no montante de €2.600.000,00, para a conta bancária do NOVO BANCO que consta do e-mail por último referido, indicando como beneficiário de tal transferência a «HH» GROUP AS;
- Em 2022.08.12, «AA» contactou o referido «CC», através de mensagem enviada por whatsapp, a perguntar o motivo pelo qual o montante de €2.600.000,00 ainda não havia sido recebido pela «HH» GROUP, tendo este informado aquele que tal montante havia sido transferido em 2022.08.05 para a conta bancária do NOVO BANCO em Portugal, ao que «AA» retorquiu que a «HH» GROUP não era titular de nenhuma conta bancária no NOVO BANCO, em Portugal;
- Foi nesse momento que a requerente constatou ter sido vítima de falsidade informática no âmbito da correspondência eletrónica que precedeu a transferência e de uma burla informática qualificada que ascende ao montante de €2.600.000,00 (dois milhões e seiscentos mil euros);
- Em consequência, no mesmo dia 2022.08.12, o referido «CC», em nome e em representação da requerente, comunicou ao BANKINTER o sucedido para que o referido banco interpelasse a requerida com vista à sustação da conta bancária ali domiciliada para onde foi transferida a quantia em causa e;
- Em 2022.08.13 (e não no próprio dia 12.08.2022, por indicação do órgão policial espanhol), apresentou uma queixa-crime em Espanha tendo por objeto os factos acima descritos;
- Por outro lado, em 2022.08.19, a requerente apresentou também em Portugal queixa-crime contra «DD», «II» e Incertos pela prática dos crimes de burla informática e nas comunicações e falsidade informática, a qual deu origem aos autos de inquérito que correm termos na Secção única do Departamento Central de Investigação Criminal de Lisboa, sob o n.º .../22.4TELSB;
- A requerente tem conhecimento de que a conta bancária para onde foi indevidamente transferido o montante de €2.600.000,00, domiciliada no banco Requerido com o IBAN PT …23, pertence, não à «HH» GROUP que havia sido indicada como titular da conta beneficiária na ordem de transferência, mas à sociedade “«II», UNIPESSOAL, LIMITADA”, sociedade de direito português, com o número de identificação de pessoa coletiva 516 849 549, com sede no Campo Grande, n.º 28, 7.º C, 1700-093 Lisboa, da qual é seu único sócio-gerente «DD», de nacionalidade checa, portador do número de contribuinte português …, residente em Topolce, Républica Checa;
- Sabe também a requerente que o montante de €2.600.000,00 entrou na referida conta titulada pela «II», em 2022.08.08, na sequência da referida ordem de transferência, tendo saído, nesse mesmo dia, através de transferência bancária realizada via homebanking, daquela conta para uma outra conta bancária;
- A «II» é uma sociedade de direito português constituída em 2022.05.23, com um capital social de €250,00;
- No Registo de Beneficiário Efetivo da sociedade, no campo destinado ao “endereço eletrónico institucional” não é indicado um e-mail institucional, mas sim o e-mail «EE» @«EE».com, correspondente ao endereço eletrónico de «EE», advogada de nacionalidade russa, com inscrição na Ordem dos Advogados em Portugal desde 2009.12.17, portadora da cédula profissional n.º …8P;
- A sede da «II» situa-se exatamente na mesma morada em que aquela Advogada tem escritório: Campo Grande, Lisboa;
- A requerente tem um interesse jurídico atendível no exame dos documentos cuja apresentação pela requerida aqui requer;
- Tanto mais que é evidente que a requerida incorreu em diversas violações de normas de diligência que sobre si impendiam, com culpa, a saber: não cuidou – como se lhe impunha – de se abster de concretizar o depósito na já identificada conta bancária da «II», junto daquela instituição bancária, no montante de €2.600.000,00; nem tão pouco a requerida se absteve de concretizar a ordem de transferência que recebeu do mesmo montante de €2.600.000,00 para uma outra conta bancária, no próprio dia em que esse valor havia entrado na conta bancária titulada pela «II», junto dela, sendo certo que eta situação corresponde a um dos exemplos-escola a que as entidades bancárias devem estar especialmente atentas e alertas, em face da sinalização de um elevado risco de branqueamento de capitais, como, aliás, há muito vinha referenciado nos Princípios Anti-Branqueamento de Capitais do Grupo Wolfsberg para a Banca Privada (2012); encontram-se expressamente sinalizadas como situações de risco potencialmente mais elevado pelo Banco de Portugal as de transações de passagem (pass-through) e de entrada e saída (in-an-out), “clientes que sejam pessoas coletivas recém-criadas e sem um perfil de negócio conhecido ou adequado à atividade declarada”, bem como “operações pontuais de elevado valor, tendo em conta o que é expectável para o produto, serviço, operação ou canal de distribuição utilizado”;
- A requerida está na posse de todos os documentos cuja obtenção a requerente visa com a presente ação;
- A requerente interpelou a requerida em várias ocasiões, inclusive por interpelação judicial avulsa, sem que a requerida tenha sequer invocado qualquer motivo para a recusa na apresentação dos documentos, designadamente o segredo bancário;
- Caso se entenda que os documentos cuja apresentação é pedida pela requerente se encontram ao abrigo do segredo bancário, estão reunidos os requisitos para que o respetivo incidente de levantamento do sigilo profissional seja promovido e deferido.

Citado, o banco réu contestou invocando, entre o mais e para o que releva neste recurso:
i. erro na forma do processo por, na sua leitura do artigo 575.º do CC, «o “exame” do documento ter[á] de ser necessário para apurar a existência ou conteúdo do direito (pessoal ou real) da Requerente sobre o próprio documento, não se destinando o “exame” a apurar outra coisa que não essa»;
ii. sujeição dos documentos a segredo bancário.

Findos os articulados, o tribunal a quo proferiu despacho no qual, aderindo à interpretação do artigo 575.º do CC feita na contestação, julgou procedente a exceção de erro na forma de processo e declarou a nulidade de todo o processo, absolvendo, em consequência, o Banco requerido da instância.

Com este despacho não se conformou a requerente, que recorre, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«I - A sentença recorrida começa por absolver o Recorrido da instância com fundamento na exceção de erro na forma de processo por este invocada em sede de contestação, que o Tribunal a quo julgou procedente, com fundamento na ideia de que da alegação da Recorrente se retira que esta pretende apenas obter informações e documentos como meios de prova para a ação de responsabilidade que pretende instaurar contra o Recorrido, porquanto, no seu entender, não é esse o objetivo visado pela ação especial para apresentação de documentos.
II - A sentença recorrida fundamenta aquela conclusão em dois argumentos, a saber: (i) um primeiro, que colidiria apenas com alguns dos documentos cuja apresentação é requerida pelo Recorrente e que, quando muito, levaria à verificação da exceção de erro na forma de processo apenas quanto a parte do pedido (alíneas i., iv. e vi. do art.º 2.º da petição inicial), consubstanciado na circunstância de a Recorrente alegadamente pretender a prestação de informações, e não de documentos, sendo que a ação especial prevista nos art.ºs 1045.º e seguintes do CPC, visa apenas a apresentação de coisa e de documentos, e já não de informações; e (ii) um segundo, que afetaria a totalidade do pedido formulado pela Recorrente na presente ação, relacionado com o facto de a Recorrente alegadamente não necessitar dos documentos cuja apresentação requer para se esclarecer acerca do conteúdo do direito indemnizatório que invoca ter sobre o Recorrido.
III - Em primeiro lugar, não é verdade que o objetivo da Recorrente com a presente ação seja obter informações e documentos como meios de prova para uma futura ação a intentar contra o Recorrente.
IV - Em segundo lugar, ainda que fosse esse o objetivo, não é verdade que à Recorrente estivesse vedado lançar mão da ação especial para apresentação de documentos por não ser este um dos fins daquela ação.
V - Em terceiro lugar, os pedidos formulados pela Recorrente sob as alíneas i., iv., vi. não visam a prestação de informações, mas também a apresentação de documentos.
VI - Em quarto lugar, com exceção da alegada circunstância de a Recorrente pretender, quanto às alíneas i., iv., vi., a prestação de informação e não de documentos – que, a ser verdade (que não é), efetivamente poderia levar à verificação da exceção de erro na forma de processo limitada àqueles pedidos –, os restantes fundamentos em que a sentença recorrida baseia a decisão recorrida nunca poderiam sustentar uma decisão de procedência da exceção de erro na forma de processo, na medida em que os argumentos em que o Tribunal a quo baseou a decisão de procedência da exceção de erro na forma de processo prendem-se com a verificação dos requisitos legais de que depende a instauração da ação especial para apresentação de documentos, e não com a forma de processo escolhida.
VII - A ação especial para apresentação de documentos visa, como resulta do próprio art.º 1045.º do CPC, a apresentação de coisas ou documentos que o possuidor ou detentor lhe não queira facultar e requerer a citação deste para os apresentar no dia, hora e local que o juiz designar.
VIII - Conforme tem vindo a ser maioritariamente entendido pelos nossos Tribunais Superiores – e que consubstancia, a nosso ver, o juízo mais abalizado –, mas também pela doutrina, a adequação da forma de processo escolhida pelo autor afere-se, em primeiro lugar, por referência ao pedido por ele efetivamente aduzido, e não por referência à pretensão que eventualmente se entenda que aquele devia ter formulado.
IX - Em segundo lugar, mas na mesma esteira do que acima se referiu, a doutrina e a jurisprudência têm entendido que, para aferir da adequação da forma de processo à pretensão deduzida pelo autor, não há que atender à causa de pedir por ele invocada, mas apenas ao pedido formulado.
X - O que importa é, por isso, determinar se a pretensão formulada se ajusta ao objeto de algum dos processos especiais previstos na lei, pois, nesse caso, caber-lhe-á a forma de processo cuja finalidade seja precisamente a pretensão que foi deduzida pelo autor.
XI - A forma de processo é adequada quando o processo é usado para a finalidade prevista na lei e a finalidade para a qual se usa o processo colhe-se da petição inicial porque é aqui que o autor formula o pedido, sendo que é o pedido formulado pelo autor que designa o fim para o qual este usou o processo.
XII - Ora, no caso dos autos, a Recorrente peticionou que o Recorrido fosse condenado a apresentar os documentos que elencou no art.º 2.º da petição inicial em local, dia e hora a determinar pelo Tribunal para exame e a permitir que a Recorrente faça a reprodução desses documentos, através de fotografia, fotocópia ou outro meio adequado.
XIII - A finalidade da Recorrente com a presente ação especial é aquela que resulta do pedido formulado na petição inicial e que indubitavelmente corresponde ao objeto fixado pelo legislador no art.º 1045.º do CPC para a ação especial para apresentação de documentos: a apresentação, para exame, no caso, de documentos que estão na posse da parte contrária e que esta se recusa a facultar ao autor.
XIV - Mais se diga que nunca poderia o Tribunal a quo justificar a decisão de procedência da exceção de erro na forma de processo com fundamento na alegada circunstância de resultar da análise da alegação da Recorrente que esta apenas pretende obter documentos e informações como meios de prova e que, para esse efeito, existe o mecanismo do art.º 429.º e seguintes do CPC.
XV - Isto porque é inequívoco que a Recorrente não pretende, com a presente ação, efetivar qualquer responsabilidade civil do Recorrido e, nesse âmbito, requerer meios de prova ao abrigo do disposto nos art.ºs 429.º e seguintes do CPC, pelo que, salvo o devido respeito, é manifestamente descabido o invocado erro na forma de processo!
XVI - A Recorrente, com a presente ação, não pretendeu alcançar o objetivo visado pelos art.ºs 429.º e seguintes do CPC, nem o requereu.
XVII - Aquelas disposições legais, nomeadamente o art.º 429.º do CPC, visam a produção de prova no âmbito do processo em que a sua junção é requerida, destinando-se à prova de factos que nessa ação hajam sido alegados e com vista à condenação da parte contrária nos pedidos que ali hajam sido formulados ou à contraprova dos factos alegados pelo autor.
XVIII - Visam, em suma, não o seu exame pela parte que os requereu, mas convencer o tribunal da veracidade dos factos por si alegados na ação, com vista à procedência dos pedidos que aí haja formulado ou à improcedência das pretensões da parte contrária.
XIX - Pelo contrário, na presente ação, a Recorrente apenas pretende e requer que a Recorrida seja condenada a apresentar à primeira os documentos que se recusa a apresentar-lhe, para seu exame, o que se insere no objeto da ação especial para apresentação de documentos, e já não nas finalidades dos art.ºs 429.º e seguintes do CPC, daí que se impunha ao Tribunal recorrido que tivesse julgado improcedente a exceção de erro na forma de processo invocada pelo Recorrido.
XX - E a conclusão (errada) que o Tribunal a quo extraiu acerca da necessidade ou não da Recorrente analisar os documentos cuja apresentação requereu é algo que importa aferir, não no contexto do erro na forma de processo – que manifestamente não existe –, mas na análise do preenchimento dos pressupostos legais substantivos para intentar uma tal ação, ou seja a respeito da sua eventual procedência, pelo que nunca poderiam os fundamentos adiantados na sentença recorrida sustentar a decisão proferida no sentido de julgar verificada a exceção de erro na forma de processo.
XXI - Mais importa referir que, se é indubitável que a decisão do Tribunal a quo se encontra desprovida de fundamento legal relativamente ao pedido de apresentação dos documentos elencados nas alíneas ii., iii., v., vii. e viii. do art.º 2.º da petição inicial – e, por conseguinte, a procedência da exceção de erro no processo nunca poderia ser total, abrangendo a totalidade dos pedidos - também se nos afigura evidente que idêntica conclusão é necessário extrair para as alíneas i., iv. e vi. do art.º 2.º da petição inicial.
XXII - Não se compreende a conclusão do Tribunal a quo no sentido de que o que a Recorrente pretende são informações, e não documentos, relativamente à alínea i. do art.º 2.º, na medida em que o que ali se pede – e se escreve e, por isso, se nos afigura absolutamente claro!! – são os documentos que instruíram o processo de abertura de conta, designadamente as fichas de assinaturas, os documentos de identificação do requerente da abertura de conta e eventual instrumento de representação dos titulares da conta.
XXIII - A existir alguma dúvida minimamente fundada sobre se o pedido da Recorrente corresponderia a um documento ou informação seria relativamente à indicação do balcão onde a conta foi aberta, contudo, como se nos afigura evidente, o que a Recorrente pretende é a apresentação dos documentos de onde conste essa indicação.
XXIV - Já no que respeita às alíneas iv. e vi. do art.º 2.º da petição inicial, também nos parece que decorre da petição inicial e dos pedidos ali formulados que o que a Recorrente visa obter são os documentos em que esteja vertida a informação ali indicada.
XXV - A obtenção de informação documentada insere-se no âmbito do art.º 575.º do CC.
XXVI - Tratando-se de documentos internos do banco, cuja nomenclatura a Recorrente desconhece, procurou descrever, por referência à informação deles constantes, os documentos cuja apresentação pretende, tendo em vista não pecar por imprecisão no elenco dos documentos.
XXVII - Acresce que, estando em causa um processo de jurisdição voluntária, o Tribunal a quo não está sujeito a critérios de legalidade estrita e sempre poderia conformar a decisão a proferir com os interesses em causa, nos termos do art.º 987.º do CPC, não estando limitando de forma estrita ao pedido formulado na petição inicial.
XXVIII - Isto significa que, ao invés de julgar verificada a exceção de erro na forma de processo relativamente às alíneas i., iv. e vi. do art.º 2.º da petição inicial, o Tribunal a quo deveria ter ordenado o Recorrido a apresentar os documentos que contivessem as informações descritas pela Recorrente, conformando a decisão ao que considerou serem os interesses prosseguidos pela ora Recorrente.
XXIX - A sentença recorrida violou o disposto nos art.ºs 193.º, 429.º e seguintes, 552.º, n.º 1, alínea c), e 1045.º e seguintes, todos do CPC, razão pela qual deve ser revogada e substituída por outra que julgue totalmente improcedente a exceção de erro na forma de processo e ordene o prosseguimento dos autos.
XXX - Isto posto, o Tribunal a quo sustentou ainda a decisão de erro na forma de processo em argumentos que se prendem, na realidade, com a aferição do preenchimento dos pressupostos legais da ação especial para apresentação de documentos, entre os quais o interesse legítimo atendível do requerente no exame dos documentos cuja apresentação requer.
XXXI - Importa, em primeiro lugar, sublinhar que, ao contrário do que a sentença recorrida sugere, o interesse legítimo exigido pelo art.º 575.º do CC não se baseia num direito real ou pessoal do requerente relativamente ao documento cuja apresentação requer.
XXXII - É por isso que o art.º 575.º do CC não só manda aplicar o regime previsto no artigo antecedente (art.º 574.º), com as necessárias adaptações, como ali o legislador teve o cuidado de especificar qual o pressuposto legal de que depende o direito de o requerente requerer a apresentação de documentos por outrem em derrogação do regime previsto para a apresentação de coisas: que o requerente tenha um interesse jurídico atendível no exame deles.
XXXIII - Ou seja, o regime previsto no art.º 575.º do CC, não tem por objeto o documento na sua qualidade de coisa, mas enquanto instrumento que contém informação, sendo esta informação o objeto do interesse atendível do requerente.
XXXIV - Aí reside, precisamente, a distinção entre o regime previsto no art.º 574.º do CC, e o estabelecido no art.º 575.º do mesmo código: no primeiro, o requerente invoca um direito sobre uma coisa, ao passo que no segundo, o requerente invoca um interesse atendível no exame do documento com vista à aferição da existência ou conteúdo de um direito.
XXXV - Ora, no caso, a Recorrente arroga-se titular de um direito (indemnizatório) sobre o Recorrido cujo conteúdo ou extensão depende do exame dos documentos cuja apresentação aqui requer.
XXXVI - Por outro lado, não obstante não ser verdade, nem, ao contrário do que o Tribunal a quo afirma, decorrer do alegado pela Recorrente, que o que esta pretende é, através da presente ação, obter meios de prova para uma futura ação que pretende instaurar contra o Recorrido, também não é verdade, muito menos é consensual na doutrina e na jurisprudência, o entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo de que a ação especial para apresentação de documentos não tem, nem pode ter, essa finalidade de obtenção de meios de prova ou, inclusivamente, que não possa ser utilizada como um meio alternativo aos mecanismos dos art.ºs 429.º e seguintes do CPC.
XXXVII - Com efeito, a doutrina admite que o interesse jurídico atendível no exame dos documentos, a que se refere o art.º 575.º do CC, verifica-se quando o requerente pretenda tirar daí a prova de uma circunstância que diga respeito a uma relação jurídica que o afete e admite que a ação especial aqui em causa possa ser utilizada para aferir da pertinência de uma outra ação ou mesmo para obter elementos probatórios que não tenha sido possível obter em ação pendente (se essa já tiver existido e aí se tiverem esgotado os mecanismos processualmente existentes com vista à obtenção dos documentos ou da coisa)
XXXVIII - Também a jurisprudência afirma que o direito à exibição serve para que o titular de um direito se esclareça acerca da existência ou do conteúdo do seu direito, ou se habilite a exercê-lo ou a conservá-lo.
XXXIX - A pertinência de uma futura ação pode depender do conteúdo de determinados documentos pelo facto de serem necessários para o requerente se esclarecer acerca do seu direito e também porque esses documentos podem ser necessários para o requerente se habilitar a exercer o seu direito ou provar o seu direito numa futura ação.
XL - Assim, a obtenção de meios de prova através de uma prévia ação especial como a presente não sai fora do objeto e das finalidades deste tipo de processo.
XLI - Sem prescindir, não foi com esse propósito que a Recorrente instaurou a presente ação, nem isso decorre do que foi por esta alegado na petição inicial; pelo contrário, como alegou e justificou no seu requerimento inicial, a Recorrente necessita do exame dos documentos cuja apresentação pelo Recorrido requer para conformar o conteúdo e a extensão do direito indemnizatório de que a Recorrente entende ser titular sobre o Recorrido.
XLII - A sentença recorrida conclui que a Recorrente não precisa da apresentação dos documentos cuja apresentação requer porque sabe que detém sobre o Banco Requerido um direito indemnizatório, contudo, o interesse juridicamente atendível no exame dos documentos a que se refere o art.º 575.º do CC existe, como a doutrina e a jurisprudência têm vindo unanimemente a entender, sempre que ele se mostre necessário para apurar, não só a existência, como também o conteúdo ou a extensão do direito que o requerente já sabe que detém.
XLIII - A sentença recorrida refere que, nos art.ºs 73.º a 75.º da petição inicial, a Recorrente sustenta o seu direito indemnizatório na violação de determinadas diligências e deveres aos quais o Recorrido se encontra adstrito, donde o Tribunal retira a conclusão de que, por esse motivo, é manifesto que o Recorrente não precisa da apresentação de documentos para se esclarecer acerca do conteúdo do seu direito indemnizatório, raciocínio que se mostra manifestamente errado e contrário à própria alegação da Recorrente.
XLIV - Com efeito, no art.º 61.º da petição inicial, a Recorrente expressamente referiu que necessitava dos documentos objeto da presente ação para determinar o conteúdo do seu direito indemnizatório; no art.º 62.º da petição inicial, justificou o motivo – determinar todos os deveres violados pelo Recorrido –; e nos art.ºs 63.º a 71.º da petição inicial, a Recorrente concretizou, exemplificativa mas detalhadamente, para que é que necessitava dos documentos cuja apresentação requereu, identificando o que precisava de apurar através dos documentos solicitados para poder concluir se o Recorrido havia ou não violado os deveres a que estava adstrito, nomeadamente aqueles que a Recorrente havia anteriormente descrito, independentemente das obrigações que já eram do seu conhecimento que o Recorrido havia incumprido.
XLV - Note-se que os artºs. 73.º a 75.º da petição inicial, em que a sentença recorrida sustenta a sua decisão, devem ser conjugados com os art.ºs 76.º a 91.º, de onde facilmente se retira que a Recorrente alega que o Recorrido se devia ter abstido de concretizar o depósito de €2.600.000,00 na conta bancária da entidade beneficiária da transferência [a «II»] e de concretizar a transferência desse mesmo montante dessa conta para uma outra, no mesmo dia, com base nos factos que já são do seu conhecimento, mas que existem outras circunstâncias, que a Recorrente identificou nos art.ºs 76.º a 91.º da petição inicial, que fazem com que a Recorrente suspeite que o Recorrido tenha incorrido na violação de outros deveres.
XLVI - Ou seja, como resulta à evidência da petição inicial, em face daquilo que são os deveres do Recorrido e os factos já conhecidos da Recorrente, esta tem fundadas dúvidas sobre o conteúdo e a extensão do seu direito contra o Recorrido, o que só a análise dos documentos solicitados poderá esclarecer, de forma a que lhe permita determinar todas as concretas violações pelo Recorrido das obrigações a que se encontra adstrito, independentemente daquelas que sejam já do seu conhecimento terem sido violadas por aquele, o que a Recorrente expressamente referiu nos art.ºs 92.º a 94.º da petição inicial.
XLVII - Para tanto, é essencial que a Recorrente aceda aos documentos cuja apresentação requer nesta ação, de forma a alegar todos os factos que permitam concluir pelo preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil relativamente a todos os ilícitos imputáveis ao Recorrido.
XLVIII - Os documentos cuja apresentação se requer nestes autos não visam a prova pela Recorrente de factos numa ação de responsabilidade civil a instaurar contra o Recorrido – para o que a Recorrida teria efetivamente (e de forma mais fácil e célere) ao seu dispor o mecanismo previsto no art.º 429.º do CPC, como a sentença recorrida refere –, mas sim a definição do seu direito para que a Recorrente possa, como lhe compete, alegar todos os factos essenciais integradores da causa de pedir daquela ação de responsabilidade civil.
XLIX - É que, como é consabido, entre nós vigora o princípio do dispositivo, impondo às Partes o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (art.º 5.º do CPC) e vedando ao juiz o poder de conhecer outros factos além daqueles, salvo as exceções previstas no n.º 2 da citada disposição legal.
L - E é por isso que a lei prevê mecanismos como aqueles que vêm regulados nos art.ºs 573.º e ss do CC, ao dispor do titular do direito, permitindo-lhe o exame de documentos que sejam necessários para esclarecer-se sobre a existência e o conteúdo do seu Direito.
LI - Daí que a jurisprudência considere integrar o objeto e a finalidade da ação especial para apresentação de documentos aquelas situações em que o seu exame é necessário para fundamentar a causa de pedir de uma outra ação.
LII - Em face do que ficou exposto, é evidente que a Recorrente tem um interesse legítimo atendível no exame dos documentos objeto da presente ação, porquanto esse exame é necessário para a Recorrente se esclarecer acerca do conteúdo e extensão do seu direito indemnizatório contra o Recorrido.
LIII - Acresce que, o Tribunal a quo entendeu que o Recorrido tem motivos fundados para recusar a apresentação dos documentos por estar sujeito ao sigilo bancário e fez ainda um juízo de valor sobre se os documentos cuja apresentação é requerida pela Recorrente estão ou não sujeitos ao sigilo bancário, tendo concluído que, na sua maioria, e em concreto, os documentos identificados nas alíneas i., iii. v., vii. e viii. do art.º 2.º da petição inicial), estão sujeitos ao sigilo bancário por conterem dados e bancários de clientes do Recorrido.
LIV - Ora, em primeiro lugar, afigura-se à Recorrente que os documentos indicados nas alíneas iii., iv. e vi. do art.º 2.º da petição inicial não contêm ou, pelo menos, poderão não conter dados pessoais e bancários do cliente do Recorrido.
LV - Em segundo lugar, o segredo bancário encontra-se regulado no art.º 78.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), sendo que desta norma não resulta um dever absoluto de segredo bancário, o qual, desde logo, comporta as exceções previstas no art.º 79.º da mesma disposição legal, e muito menos resulta a impossibilidade legal de prestação da informação requerida e a improcedência da presente ação.
LVI - Haverá, desde logo, que ter em atenção que constitui exceção ao dever de segredo bancário, nos termos da alínea h) do n.º 2 do art.º 79.º do RGICSF, a circunstância de existir outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
LVII - Ora, o art.º 88.º, n.º 3, da Diretiva (UE) 2015/2366 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2015, relativa aos serviços de pagamento no mercado interno, expressamente consigna o dever do prestador de serviços do beneficiário colaborar nos esforços razoáveis para recuperação dos fundos que impendem sobre o prestador de serviços de pagamento do ordenante, comunicando-lhe todas as informações relevantes para a cobrança dos fundos e, caso essa recuperação não seja possível, o prestador de serviços do ordenante está obrigado a fornecer ao ordenante todas as informações de que disponha que sejam relevantes para o ordenante para que este possa intentar uma ação judicial para recuperar os fundos – regime que se encontra transposto para o direito interno nos n.ºs 3 e 4 do art.º 129.º do Decreto-Lei n.º 91/2018, de 12 de novembro.
LVIII - O regime jurídico supra exposto limita expressamente o dever de sigilo bancário dos bancos ordenante e beneficiário no âmbito de transferências que se vieram a revelar feitas para um IBAN diferente do pretendido pelo ordenante da operação, na medida em que faz recai sobre aquelas entidades bancárias envolvidas um verdadeiro dever de informar o ordenante da transferência sobre todos os elementos que se revelem relevantes para o ordenante tentar recuperar judicialmente os fundos.
LIX - Em virtude do exposto, e ao contrário do que na sentença recorrida se afirma, os documentos cuja apresentação requereu não se encontram abrangidos pelo dever de sigilo bancário, antes constituindo uma das exceções a esse dever.
LX - Mas, caso assim não se entenda e se considere que os documentos cuja apresentação é requerida nos presentes autos se encontram sujeitos a sigilo bancário, nem assim deveria o Tribunal a quo julgar, sem mais, não se mostrar preenchido um dos requisitos legais da ação especial para apresentação de documentos com fundamento na existência de motivo legítimo para o Recorrido recusar a apresentação dos documentos.
LXI - O Tribunal a quo baseia a referida conclusão de que não se mostra preenchido aquele pressuposto legal na alegada circunstância de, no âmbito desta ação especial, não ser admissível suscitar o incidente de levantamento do sigilo bancário porque, no seu entender, atenta a natureza e a especificidade da ação especial para apresentação de documentos, não se mostra viável proceder a uma ponderação adequada dos direitos em conflito por se desconhecer se a Recorrente dispõe de outros meios de prova ou que outros meios de prova estão ao seu alcance.
LXII - Ora, um tal entendimento perfilhado pelo Tribunal a quo não encontra qualquer sustentação na lei e mostra-se totalmente contrário àquele que tem sido o entendimento perfilhado pela generalidade dos nossos Tribunais, que recorrentemente têm (e bem) suscitado e apreciado o incidente de levantamento do sigilo bancário no âmbito de ações especiais.
LXIII - Com efeito, não existe na lei, designadamente nas normas que disciplinam a ação especial para apresentação de documentos, qualquer obstáculo à apreciação do incidente de levantamento do sigilo bancário, nem a natureza ou a especificidade deste processo o impedem ou dificultam, ao contrário do que a sentença recorrida refere.
LXIV - Desde logo, não colhe o argumento avançado pela sentença recorrida de que o Tribunal se mostraria impedido de apreciar a pertinência, relevância ou a essencialidade dos documentos em causa, na exata medida em que a Recorrente, na petição inicial, concretizou devidamente a necessidade dos documentos para a definição do conteúdo ou extensão do seu direito, e, por outro lado, a essencialidade dos documentos decorre da própria natureza das violações que a Recorrente pretende aferir se foram cometidas pelo Recorrido, na medida em que, por se relacionarem com a atividade e os procedimentos internos do banco, como é óbvio, não estão, de outra forma, ao alcance da Recorrente.
LXV - Acresce que a doutrina aponta como um dos fundamentos-tipo da contestação do requerido neste tipo de ações precisamente a invocação de uma causa legítima para oposição ao pedido e sublinha que, nesse caso, haverá que fazer uma ponderação dos interesses em jogo de forma a determinar se deverá prevalecer o direito à apresentação da coisa ou documento ou as razões que determinaram a invocação do sigilo ou outro fundamento sério.
LXVI - De onde resulta, inevitavelmente, não ser como o Tribunal a quo faz crer, isto é, que perante a existência de um motivo legítimo para a recusa há que concluir pelo não preenchimento de um dos pressupostos da ação especial para apresentação de documentos, mas precisamente o contrário do afirmado na sentença recorrida, ou seja, que perante a invocação de um motivo legítimo para a recusa há que apurar se o interesse na apresentação dos documentos se sobrepõe ao motivo da recusa e, apenas se a resposta for negativa, é que haverá que concluir pela improcedência da ação por não verificação de todos os pressupostos legais de que depende este processo especial.
LXVII - Tanto assim é que, na ação especial para apresentação de documentos, que corre atualmente termos no Juiz 20 do Juízo Local Cível de Lisboa, sob o n.º …/22.4T8LSB, instaurada pela sociedade “REAL INVESTMENT GROUP, S.L.” – sociedade de que é sócio «AA», que é legal representante da sociedade «HH» GROUP, AS, acionista única da aqui Recorrente –, contra o “BANCO SANTANDER TOTTA, S.A.”, em tudo idêntica à presente ação (quer no que diz respeito à situação que está na base do interesse juridicamente atendível dos requerentes, quer no que concerne aos documentos cuja apresentação foi solicitada), foram proferidas decisões, já transitadas em julgado, pelo Tribunal de Primeira Instância e pelo Tribunal da Relação de Lisboa, nas quais se perfilhou precisamente entendimento totalmente oposto ao defendido na sentença recorrida quanto à admissibilidade do incidente de levantamento do sigilo bancário, conforme documentos que se juntam nos termos do disposto no art.º 651.º, n.º 1, do CPC (Doc.ºs n.ºs 1 a 3).
LXVIII - Ou seja, em ação especial para apresentação de documentos em que está em causa situação perfeitamente idêntica à destes autos, o tribunal decidiu que, sendo invocado o sigilo bancário pelo requerido, pode e deve ser promovido o incidente de levantamento do sigilo bancário para aferir se, no caso concreto, se deve determinar a apresentação dos documentos com quebra do sigilo e, nessa sequência, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, por acórdão de 2023.11.09, que, considerando a necessidade do requerente de aceder aos documentos solicitados para saber se foram violadas pelo requerido as obrigações a que se encontrava adstrito – caso em que o requerido incorre em responsabilidade extracontratual para com a requerente –, ou seja, para a requerente aferir do seu direito indemnizatório contra o banco, se mostra justificado o levantamento do sigilo bancário, o que determinou.
LXIX - Isto posto, no caso dos autos, importa referir que a Recorrente, na petição inicial, requereu desde logo que fosse promovido o incidente de levantamento do sigilo profissional, com a intervenção do Tribunal da Relação, no sentido de ser decidida a prestação da informação com quebra de segredo profissional para o caso de se entender que os documentos cuja apresentação é pedida pela Requerente se encontram ao abrigo do segredo bancário, pedido esse que reiterou na resposta que apresentou às exceções deduzidas pelo Recorrido.
LXX - Com efeito, como a Recorrente alegou, a jurisprudência tem vindo a resolver a questão de saber se e quando deve o princípio geral de sigilo bancário ceder enquadrando a questão no conflito de direitos – o direito à privacidade tutelado pelo sigilo, por um lado, e o direito que se visa acautelar com a realização da justiça ou o dever de cooperação com a justiça, por outro – sendo maioritária a corrente jurisprudencial que entende que o dever de sigilo bancário deve ceder sobre aquele dever de cooperação, desde que a obtenção da informação se mostre justificada.
LXXI - Como exceção ao dever de segredo bancário, dispõe a alínea h) do n.º 2 do art.º 79.º do RGICSF que os elementos cobertos pelo dever do sigilo podem ser revelados quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo, sendo que o art.º 417.º, n.º 4, do CPC, tem vindo a ser entendido pelos nossos Tribunais, e bem, como uma limitação ao dever de segredo bancário.
LXXII - A alínea c) do n.º 3 do art.º 417.º do CPC exceciona da recusa legítima em colaborar na descoberta da verdade as situações que se enquadrem no n.º 4 da mesma disposição legal, o qual manda aplicar, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
LXXIII - Significa isto que o segredo bancário, mesmo quanto exista, pode ser levantado sempre que se mostre justificado, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nos termos do disposto no art.º 135.º do Código de Processo Penal (doravante, CPP), aplicável com as necessárias adaptações.
LXXIV - No presente caso, um dos direitos conflituantes com o direito à privacidade tutelado pelo sigilo é o da realização da justiça, mas também o interesse da descoberta da verdade, na exata medida em que a Recorrente necessita do exame dos documentos para apurar o conteúdo do seu direito, bem como o direito de efetivo acesso à justiça, na expressão concreta do direito à prova e a um processo equitativo, valores igualmente protegidos por via dos art.ºs 20.º, n.ºs 1 e 4, e 202.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, os quais deverão prevalecer sobre o direito à privacidade protegido pelo sigilo bancário.
LXXV - Acresce que os documentos que se visam obter são essenciais para o correto apuramento do conteúdo e da extensão do direito da Recorrente sobre o Recorrido e, subsequentemente, para a decisão a proferir na ação de responsabilidade civil a instaurar pelo Recorrente contra o Recorrido, sendo que os documentos em causa apenas podem ser obtidos através da informação bancária.
LXXVI - Assim, ainda que se entenda que, no presente caso, não se verifica nenhuma das situações que constituem exceção ao dever de segredo bancário, sendo antes de o afirmar, por força do princípio da prevalência dos interesses e direitos da Recorrente sobre o segredo bancário, este sempre teria de soçobrar, através do levantamento do segredo bancário pelo Tribunal, inexistindo, a final, motivo fundado para a recusa da prestação da informação.
LXXVII - A sentença recorrida, ao determinar que não se verifica um dos pressupostos legais da ação especial para apresentação de documentos por existir motivo fundado para o requerido se opor à apresentação violou o disposto nos art.ºs 417.º, n.º 1, n.º 3, alínea c), e n.º 4, e 1045.º do CPC, 139.º do CPP e 79.º, n.º 2, alínea h), do RGICSF.
LXXVIII - Afigura-se à Recorrente que este Tribunal da Relação está em condições de decidir sobre as questões que, apesar de não poderem fundamentar uma decisão de procedência da exceção de erro na forma de processo, foram, ainda assim, apreciadas pelo Tribunal a quo, designadamente no que concerne à legitimidade da recusa invocada pelo Recorrido e ao incidente de levantamento do sigilo bancário requerida pela Recorrente.
LXXIX - Neste contexto, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, além de julgar improcedente a exceção de erro na forma de processo invocada pelo Recorrido, julgue ilegítima a recusa deste em apresentar os documentos requeridos pela Recorrente e, em consequência, julgue procedente a ação e condene o Recorrido nos termos peticionados na petição inicial.
LXXX - Caso assim não se entenda, e se venha a julgar legítima a recusa do Recorrente em apresentar os documentos solicitados pela Recorrente por estarem cobertos pelo sigilo bancário, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que, além de julgar improcedente a exceção de erro na forma de processo invocada pelo Recorrido, ordene a abertura e promoção do incidente de levantamento do sigilo profissional, com a intervenção do Tribunal da Relação.»
Com as alegações de recurso, a recorrente juntou peças processuais de caso análogo, incluindo acórdão desta Relação, tendo juntado, dias depois, certidão das mesmas peças.

O requerido contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.
Opôs-se, ainda, à junção dos elementos juntos com as alegações, pugnando pelo seu desentranhamento.

Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito do recurso.

Questão prévia
Com as alegações de recurso, a recorrente juntou peças de uma ação análoga, na qual foi levantado o segredo bancário. Pouco depois, juntou a respetiva certidão.
A recorrida opôs-se à junção.
Os elementos em causa são constituídos por: petição inicial em caso análogo; decisão da primeira instância que determinou a extração de certidão e abertura de apenso de incidente de levantamento de sigilo e consequente subida dos autos ao TRL; e, acórdão do TRL, proferido em 09/11/2023, que decretou o levantamento do sigilo bancário.
Tem-se por documento qualquer objeto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto, e que se destina à demonstração da realidade dos factos relevantes num dado ambiente (cf. artigos 341.º e 362.º do CC). A noção no Código Penal é talvez restrita, entendendo-se aí por documento a declaração compreendida num escrito (ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico), inteligível para a generalidade ou um certo círculo de pessoas que, permitindo reconhecer o seu emitente, é idónea a provar um facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente (artigo 229.º do CP).
Em termos processuais, no âmbito de um determinado processo, o documento está intrinsecamente ligado à prova dos fundamentos da ação ou da defesa (v. artigo 423.º do CPC), não sendo documento, ou admissível como tal, num dado processo, um objeto que não é suscetível de ter por função a prova de um fundamento da ação.
O acórdão proferido num processo sobre factos diversos, ainda que análogos, não pode ter por função a prova de factos do presente processo. Tal instrumento destina-se apenas a fornecer indicações ou pistas sobre soluções jurídicas a dar ao caso. Tem uma função análoga a um parecer. Os pareceres podem ser juntos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão (artigo 651.º, n.º 2, do CPC).
Nesta medida, mantém-se nos autos a certidão junta (cujos elementos já anteriormente, com as alegações de recurso, tinham sido juntos aos autos).

Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, coloca-se a questão de saber se a ação foi intentada com a forma de processo adequado ao pedido formulado.

II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório deste acórdão.

III. Apreciação do mérito do recurso
Entendeu o tribunal a quo que havia erro na forma do processo, com a seguinte argumentação:
«Para o exercício do direito de apresentação de documentos, o requerente deve ter um interesse legítimo baseado num direito real ou pessoal relativo a esse documento, como ensina Vaz Serra (in Exibição de coisas ou documentos, n.º 2; Bol., n.º 77). Neste sentido pode ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 30.04.2008, no qual é defendido que “o processo especial para apresentação de coisas ou documentos, previsto nos arts. 1476.º a 1478.º do CPC, exige um interesse legítimo do demandante, baseado num direito pessoal ou real relativo à coisa ou documento cuja apresentação se reclama, tratando-se de um instrumento adjetivo que não está pensado para fins probatórios, com vista à instauração de determinada ação judicial”
(…)
Em primeiro lugar, podemos desde já adiantar que se extrai da alegação da Requerente que a mesma pretende tão somente obter informações e documentos como meios de prova para a ação que pretende instaurar contra o Banco Requerido, não sendo esse o objetivo visado pela presente ação especial. Note-se que a Requerente não se limita a requerer a apresentação de documentos, requerendo inclusivamente a prestação de informações, cfr. alíneas i., iv., vi., sendo manifesto que, neste segmento, existe erro na forma de processo, pois esta ação especial só visa a apresentação de coisas e de documentos e não a prestação de informações (artigo 573.º Código Civil).
Na verdade, a Requerente alega que pretende aferir o conteúdo e a extensão do direito indemnizatório que sabe que detém sobre o Banco Requerido (cfr. artigo 16.º da petição inicial). Ademais, nos artigos 73.º a 75.º da petição inicial, a Requerente sustenta o seu direito indemnizatório na violação de determinadas diligências e deveres aos quais o Banco Requerido se encontra adstrito. Torna-se, pois, manifesto que a Requerente não precisa da apresentação de documentos para “se esclarecer sobre o conteúdo do seu direito indemnizatório contra o Banco Requerido, uma vez que a mesma, na própria petição desta ação, já demonstrou ter conhecimento da existência do seu direito indemnizatório e do respetivo conteúdo, tanto é assim, que até já concretizou os deveres alegadamente violados pelo Banco Requerido.
O recurso a este processo especial não é um meio alternativo aos mecanismos processuais previstos e regulados nos artigos 429.º e ss. do Código de Processo Civil, os quais se encontram poderão ser utilizados pela Requerente na ação que irá instaurar contra o Banco Requerido. Neste sentido, podemos ler Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ª edição, Almedina.
Por último, sempre se dirá que relativamente à maioria dos documentos cuja apresentação é requerida (alíneas i., iii. v., vii. e viii.), é inquestionável que o Banco Requerido se encontra sujeito ao sigilo bancário, na medida em que se trata de documentos que que contêm dados pessoais e bancários de clientes seus, sigilo bancário que o Banco Requerido invocou na contestação apresentada para fundamentar a sua recusa na apresentação desses documentos. Assim, no que concerne a estes documentos é manifesto que a recusa da apresentação para exame da Requerente, por parte do Banco Requerido, se sustenta em motivo legítimo.
Em face do exposto, é imperioso concluir que não se mostra preenchido um dos pressupostos legais deste processo especial – a inexistência de fundados para o detentor ou possuidor dos documentos se opor à sua apresentação.
Ora, sendo este um dos pressupostos legais desta ação especial, fica desde logo afastada a admissibilidade, nesta sede, de se suscitar o incidente de levantamento do sigilo bancário.
Ademais, nunca poderia ser no âmbito desta ação, atenta a sua natureza e especificidade, que se poderia apreciar tal incidente, por se mostrar inviabilizada uma ponderação adequada dos direitos em conflito, desde logo, porque desconhece o Tribunal que outros meios de prova dispõe a Requerente ou que se encontram ao seu alcance, ficando impedido de apreciar da pertinência, relevância ou a essencialidade dos documentos em causa, juízo que se impõe na ponderação a realizar.
Como tal, por todo o exposto, verifica-se um erro na forma de processo, o qual consubstancia uma nulidade, prevista no artigo 193.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Excecionalmente o erro na forma de processo consubstancia-se numa exceção dilatória insanável, mormente nos casos em que a petição é inaproveitável dentro do critério fixado na lei, tal como, manifestamente, ocorre na presente situação

Diga-se desde, já que o erro na forma do processo constitui uma irregularidade processual oficiosamente corrigível. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 193.º, n.ºs 1 e 2, do CPC (artigo 199.º CPC 1961), o erro na forma do processo ou no meio processual importa unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei; não devendo, porém, aproveitar-se os atos já praticados, se do facto resultar uma diminuição de garantias do réu.
Com o CPC de 2013 foi introduzida norma expressa no sentido de o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte ser corrigido oficiosamente pelo juiz, determinando que se sigam os termos processuais adequados (n.º 3 do artigo 193.º).

Posto isto, verifica-se o julgado erro na forma do processo?
No CPC existe um processo especialíssimo de jurisdição voluntária, intitulado «apresentação de coisas ou documentos» e do qual a requerente lançou mão.
De acordo com o disposto no artigo 1045.º do CPC, aquele que, nos termos e para os efeitos dos artigos 574.º e 575.º do Código Civil, pretenda a apresentação de coisas ou documentos que o possuidor ou detentor lhe não queira facultar justifica a necessidade da diligência e requer a citação do recusante para os apresentar no dia, hora e local que o juiz designar.
Os artigos subsequentes tratam dos ulteriores trâmites: o citado pode contestar no prazo de 15 dias, a contar da citação; na falta de contestação, ou no caso de ela ser considerada improcedente, o juiz designa dia, hora e local para a apresentação na sua presença; se os requeridos, devidamente notificados, não cumprirem a decisão, pode o requerente solicitar a apreensão das coisas ou documentos para lhe serem facultados, aplicando-se o disposto quanto à efetivação da penhora, com as necessárias adaptações.
Os artigos do CC, para os quais o 1045.º do CPC remete estabelecem que ao que invoca um direito, pessoal ou real, ainda que condicional ou a prazo, relativo a certa coisa, móvel ou imóvel, é lícito exigir do possuidor ou detentor a apresentação da coisa, desde que o exame seja necessário para apurar a existência ou o conteúdo do direito e o demandado não tenha motivos para fundadamente se opor a diligência; e que a predita disposição é extensiva, com as necessárias adaptações, aos documentos, desde que o requerente tenha um interesse jurídico atendível no exame deles.

Bem andou a autora ao intentar a presente ação especial, pois é a adequada ao pedido por si formulado. Se o requerente nada mais pretende nesta ação que a exibição dos documentos (que lhe permita, claro está, deles obter reprodução, ainda que por fotografia ou digitalização no momento da exibição, cf. artigo 576.º do CC), este é o processo próprio para o fazer. Para tanto, tem o requerente de justificar a necessidade da diligência, alegando a recusa da contraparte na apresentação e o seu (do requerente) interesse na exibição.
Escreve Lebre de Freitas: «Exige-se que quem pretenda a apresentação tenha um interesse jurídico atendível no seu exame. Tal como o possuidor ou o detentor da coisa, o detentor do documento pode opor-se invocando uma razão séria de recusa, nomeadamente um dever ou direito de sigilo, a violação da integridade moral, a intromissão na vida privada ou familiar, na correspondência ou nas telecomunicações (v. art.º 417.º, n.º 3, do CPC)» (Código Civil Anotado, I, Coord. de Ana Prata, Almedina, 2017, anotação ao artigo 575.º, p. 736).
Conforme Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1987, em anotação ao mesmo artigo 575.º do CC, p. 592, «Havendo processo pendente, são aplicáveis as disposições dos artigos 528.º e seguintes do Código de Processo Civil [leia-se 429.º e ss., no CPC-2013], que preveem os casos de o documento se encontrar em poder da parte contrária ou em poder de terceiro». Não havendo processo pendente e nenhum outro pedido se cumulando, este processo de jurisdição voluntária para apresentação de coisas ou documentos é o adequado à pretensão.
Mais esclarecem os mesmos autores, na anotação ao mesmo artigo 575.º do CC, que «[a] apresentação dos documentos, de que tratam este artigo e os artigos 1476.º e 1477.º do Código de Processo Civil [leia-se artigos 1045.º e 1046.º do CPC-2013], é matéria distinta da que toca à propriedade ou à posse dos documentos, como coisas que estes são. Quanto às ações de domínio ou de possa sobre o documento, regem os princípios gerais relativos a esses institutos». Em suma, se se trata, como in casu, de solicitar a exibição de documento alheio, por nessa consulta se ter interesse atendível, é este processo previsto e regulado nos artigos 1045.º a 1047.º do CPC o aplicável.

Aqui chegados, impõe-se aferir se a requerente tem «interesse jurídico atendível» no exame dos documentos em questão.
Segundo Vaz Serra, «Obrigações-ideias preliminares, fontes (em especial, contrato e negócio unilateral), fixação de prazo», BMJ 77 (1958) pp. 225 e ss., o interesse jurídico na exibição de documentos implicará justamente que o seu requerente pretenda «tirar daí a prova de uma circunstância que diga respeito a uma relação jurídica que o afete» (p. 235).
Na jurisprudência, e no mesmo sentido, v.g., o Ac. STJ de 19/05/2016, proc. 352/11.7TVPRT.P1.S1 (Orlando Afonso): «Segundo o art. 574.º do CC, a favor do direito de exigir a apresentação de coisas ou documentos existem várias razões: o interesse da descoberta da verdade e da defesa dos direitos dependentes da exibição da coisa ou documento e, eventualmente, o interesse da administração da justiça». Ou o Ac. TRL de 15/12/2020, proc. 11451/19.7T8LSB.L1-7 (Cristina Coelho): «O fundamento da ação de apresentação de documento é a defesa de direitos do requerente dependente da exibição do documento, servindo para o titular do direito se esclarecer acerca da existência ou do conteúdo do seu direito, ou se habilitar a exercê-lo ou a conservá-lo».

Perante os factos alegados pela requerente, o seu interesse nos documentos é manifesto, pois será através deles que reunirá elementos para poder organizar uma ação de responsabilidade civil contra a entidade bancária de forma consistente e bem fundamentada, sendo certo que, por tudo quanto alega e que em grande parte documenta, há indícios de violação de deveres regulatórios e legais destinados a impedir a utilização do sistema bancário para fins criminosos (designadamente no que se refere à obrigatoriedade de adoção de medidas destinadas ao combate dos fenómenos de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo, como aquelas que se encontram reguladas na Lei n.º 83/2017, de 18 de agosto), assim como há indícios do prejuízo da autora em elevadíssimo montante, e do nexo causal entre a omissão de deveres impostos à entidade bancária e a ocorrência danosa. Afinal, de acordo com o alegado e em parte documentado, a requerida permitiu a uma entidade desconhecida (uma sociedade constituída havia menos de 6 meses), sem ativos ou negócio consistente (com um capital social de €250,00, em início de atividade), recebesse e efetuasse transferências €2.600.000,00, no mesmo dia, e por homebanking.
Impõe-se a revogação do despacho recorrido, considerando-se adequada a forma do processo e válido o processado, pelo que os autos baixarão à primeira instância para seguirem os ulteriores termos.

Diga-se a latere que, tendo o requerido contestado (cf. artigo 1046.º do CPC), invocando o segredo bancário, o ordenamento fornece as normas aplicáveis à situação.
Com efeito, nos termos do disposto no artigo 78.º do Regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras (RGICSF – DL 298/92, de 31 de dezembro, com várias alterações), os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar factos ou elementos respeitantes às relações da instituição com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, estando, designadamente, sujeitas a segredo as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
Pode considerar-se unânime o entendimento segundo o qual os valores protegidos pelo sigilo bancário são, por um lado, o regular funcionamento da atividade bancária, baseado na confiança e segurança das relações entre os bancos e os seus clientes e, por outro, o direito à reserva da vida privada desses clientes. Leia-se a propósito, exemplificativamente, o Ac. do TC n.º 278/95, de 31/05/1995, o Ac. TRL de 09/02/2017, proc. 19498/16.9T8LSB-A.L1-2, e Maria Eduarda Azevedo, «O segredo bancário e a fiscalidade na ordem jurídica portuguesa», Lusíada - Direito, Lisboa, n.º 10 (2012) pp. 213-236, disponível no Repositório da Universidade Lusíada, em http://hdl.handle.net/11067/978.
Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente (artigo 79.º, n.º 1, do RGICSF). Sem tal autorização, no âmbito de um processo cível, a instituição de crédito só poderá ser compelida a revelar o conteúdo de conta bancária do cliente após levantamento do segredo a efetuar no processo especial para esse fim destinado.
Com efeito, o n.º 2 do artigo 79.º do RGICSF afirma que, fora do caso previsto no número anterior (autorização do cliente), os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados nas seguintes situações:
a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;
b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;
c) À Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, no âmbito das suas atribuições;
d) Ao Fundo de Garantia de Depósitos, ao Sistema de Indemnização aos Investidores e ao Fundo de Resolução, no âmbito das respetivas atribuições;
e) Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal;
f) Às comissões parlamentares de inquérito da Assembleia da República, no estritamente necessário ao cumprimento do respetivo objeto, o qual inclua especificamente a investigação ou exame das ações das autoridades responsáveis pela supervisão das instituições de crédito ou pela legislação relativa a essa supervisão;
g) À administração tributária, no âmbito das suas atribuições;
h) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.
A revelação ao tribunal no âmbito de um processo cível (ou de um processo de qualquer outra natureza, além da penal e da tributária) não se reconduz a qualquer dos casos listados. Apenas por via da cláusula aberta constante da al. h), que remete para outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo, se poderá alcançar esse desiderato.
Para tanto, há que olhar para o artigo 417.º do CPC, mais precisamente para o seu n.º 3, al. c), e para o n.º 4, para o qual aquela alínea remete. Nos termos da al. c) do n.º 3, a recusa é legítima se a obediência importar a violação do sigilo profissional, sem prejuízo do disposto no n.º 4. Este n.º 4 estabelece que, deduzida escusa com fundamento na alínea c) do número anterior, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado.
Nos termos do artigo 182.º do Código de Processo Penal, os membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo apresentam à autoridade judiciária, quando esta o ordenar, os documentos ou quaisquer objetos que tiverem na sua posse e devam ser apreendidos, salvo se invocarem, por escrito, segredo profissional. Fazendo-o, é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 135.º do mesmo CPP sobre a escusa de depoimento.
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 135.º do CPP, havendo dúvidas fundadas sobre a legitimidade da escusa, a autoridade judiciária perante a qual o incidente se tiver suscitado procede às averiguações necessárias. Se, após estas, concluir pela ilegitimidade da escusa, ordena, ou requer ao tribunal que ordene, a prestação do depoimento. Continua o n.º 3, determinando que o tribunal superior àquele onde o incidente tiver sido suscitado pode decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de proteção de bens jurídicos; a intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
Neste sentido está uniformizada jurisprudência pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 2/2008, de 13/02/2008 (Diário da República, 1.ª série, de 31 de março de 2008), no qual o Pleno das Secções Criminais fixou jurisprudência com o seguinte teor:
«1) Requisitada a instituição bancária, no âmbito de inquérito criminal, informação referente a conta de depósito, a instituição interpelada só poderá legitimamente escusar-se a prestá-la com fundamento em segredo bancário;
«2) Sendo ilegítima a escusa, por a informação não estar abrangida pelo segredo, ou por existir consentimento do titular da conta, o próprio tribunal em que a escusa for invocada, depois de ultrapassadas eventuais dúvidas sobre a ilegitimidade da escusa, ordena a prestação da informação, nos termos do n.º 2 do artigo 135.º do Código de Processo Penal;
«3) Caso a escusa seja legítima, cabe ao tribunal imediatamente superior àquele em que o incidente se tiver suscitado ou, no caso de o incidente se suscitar perante o Supremo Tribunal de Justiça, ao pleno das secções criminais, decidir sobre a quebra do segredo, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.»
Em suma, este será o procedimento a seguir, se, solicitando o tribunal a quo os documentos, os mesmos forem recusados com fundamento em segredo bancário.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando o despacho recorrido, e julgando regular a forma do processo e válido o processado, que deverá seguir os ulteriores termos.

Custas pelo requerido.

Lisboa, 04/07/2024
Higina Castelo
José Manuel Monteiro Correia
Vaz Gomes