Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JORGE ALMEIDA ESTEVES | ||
Descritores: | MEIO DE PROVA OFICIOSO DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE PODER DISCRICIONÁRIO PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/02/2025 | ||
Votação: | DECISÃO INDIVIDUAL | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECLAMAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
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Sumário: | I- A decisão que, após apreciar da ineficácia da desistência da instância, determina o prosseguimento dos autos, não tem qualquer efeito, não significando, nomeadamente, que as questões suscitadas pelos requeridos e suscetíveis de obstarem ao conhecimento do mérito da causa, são improcedentes. II- Poderia, eventualmente, estar-se perante uma nulidade por omissão de pronúncia caso se estivesse perante uma decisão que, devendo apreciar de tais exceções, não o tivesse feito; não é, todavia, esse o caso. III- A atuação das partes no processo tem dois pilares fundamentais: um é a alegação dos factos e outro é a respetiva prova. IV- A alegação dos factos faz-se por via dos articulados, que a lei regula quanto à respetiva admissibilidade, nomeadamente quanto ao número, aos prazos e ao conteúdo; também as provas são reguladas por lei, em especial quanto ao momento em que podem ser indicadas e produzidas. V- É por estas formas que se delimita a atividade do tribunal no sentido de dirimir o litígio que lhe foi apresentado, sem prejuízo da atividade oficiosa que pode levar a cabo. VI- Dada a importância das provas no que respeita ao mérito da causa, nunca se poderia considerar que uma decisão que determina a produção de um meio de prova, mesmo que tenha sido tomada oficiosamente pelo tribunal, é um despacho de mero expediente, e o princípio do inquisitório não é um poder discricionário, sendo antes um poder-dever sujeito a regras e, como tal, sindicável por via de recurso. VII- Apesar do teor literal do art.º 644º/2, al. d), do CPC, se referir aos despachos em que o juiz aprecia um requerimento probatório da parte, cabe no espírito do preceito a decisão oficiosa, até porque não há diferença material entre uma decisão que defere a produção de um meio de prova requerido pela parte e uma decisão que determina oficiosamente essa produção. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | DECISÃO SUMÁRIA Vilanorte Construções, Lda., AA e BB, requeridos [juntamente com CC, DD e a sociedade comercial AVTS - SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES LDA], nos autos de habilitação de cessionário em que é requerente Novo Banco, SA, vieram, por apenso, nos termos do art.º 643º do CPC, apresentar reclamação contra o despacho que não admitiu o recurso por eles interposto de decisão proferida nos autos. * RELATÓRIO Nos autos de execução comum em que é exequente Novo Banco, SA, veio este deduzir incidente de habilitação de cessionário contra os requeridos acima referidos, pretendendo com o incidente o seguinte: que seja reconhecida a legitimidade passiva da sociedade “AVTS - Sociedade de Construções Lda.”, CC e DD, para contra elas prosseguir a execução das quotas nos valores nominais, respetivamente de €44.000,000 e de €5.000,00, da então titularidade de BB e AA. Vilanorte, Construções, Lda., BB e AA deduziram oposição ao incidente. Após o Novo Banco apresentou requerimento, o qual terminou dizendo o seguinte: “Em face da tramitação percorrida nos apensos G e I, vem o Requerente desistir do presente incidente de habilitação do adquirente ou cessionário, requerendo, nessa sequência, que os autos principais prossigam, então, com as diligências tendentes á apreensão do produto da amortização das quotas penhoradas. NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, Deverá ser homologada a desistência da presente instância, ordenando-se o prosseguimento dos autos principais, nos termos que vêm requeridos”. Em sede de contraditório, os requeridos que deduziram oposição vieram apresentar o seguinte requerimento: “1. O Requerente Novo Banco pretende desistir do incidente, após, oposição/contestação pelos aqui requeridos e despacho liminar de indeferimento do incidente transitado em julgado (v. ponto 8). 2. É legalmente inadmissível, a desistência depois da decisão do incidente transitada em julgado, mesmo que assim não sucedesse, a desistência teria de obter a concordância dos Requeridos contestantes, o que não ocorre. 3. O pedido de prosseguimento dos autos executivos derivado desta desistência é inepto por incompreensível. 4. Ora, uma vez que os Requeridos nunca aceitariam a desistência, deve o Requerente ser condenado nas custas deste novo incidente. Segundo, 5. Quaisquer fundamentos das decisões finais de indeferimento dos apensos, G, I e J, em que foi Requerente Novo Banco, não têm eficácia autónoma da parte decisória do despacho/sentença, nos termos das regras do caso julgado, para poderem ser aqui aplicados. 6. Deve o requerimento de Novo Banco ser desentranhado por constituir um incidente anómalo, inútil e, consequentemente nulo, uma vez que se repetem as pretensões e alegações da p.i. do apenso. 7. Todas essas pretensões ineptas já foram contestadas e objecto de despacho judicial de indeferimento, transitado em julgado, está, pois, esgotado o poder jurisdicional de as conhecer. 8. Assim, impugnam-se todos os factos e efeitos jurídicos pretendidos, nos mesmos termos que já se havia contestado e alega-se a ineptidão, do pedido de prosseguimento da execução e do pedido de apreensão duma verba que se desconhece a quem é o imputado titular, mais, porquanto se considera, absurdamente, que cessão de quotas e amortização de quotas são sinónimos. (v. ponto 6, parte final.) 9. Deve dar-se por reproduzido aqui, para todos os efeitos legais a oposição/contestação do presente incidente. Por Fim, 10. O Requerente Novo Banco não figura no título executivo – uma livrança de 2001 a favor do Banco Internacional de Crédito, S.A, como já se havia dito na oposição/contestação do incidente de “habilitação”, não podendo buscar nestes expedientes a criação de título executivo, Nestes termos, deve o Requerimento anómalo ser indeferido e desentranhado, por total falta de sustentação legal e factual”. Foi proferido despacho a convidar o requerente Novo Banco a esclarecer se pretende desistir do pedido ou da instância incidental, tendo aquele esclarecido que “pretende desistir da instância incidental”. Em resposta a esse esclarecimento, os requeridos contestantes Vilanorte, Construções, Lda., AA e BB, vieram dizer que “notificados do requerimento de 31.5.2024, (ref.ª citius 49079953), contestantes, no incidente deste apenso, vêm recusar a pretensão de Novo Banco, no que se refere à desistência da instância (art.º 286º, 1, do CPC)”. * Foi então proferido o seguinte despacho: “Uma vez que a desistência da instância foi apresentada depois da contestação, a mesma não será julgada válida, porque os requeridos a isso se opuseram (art.º 286º, nº 1, do Cód. Proc. Civil). Por conseguinte, os autos irão seguir os seus termos. Notifique, sendo a requerida para, no prazo de 10 (dez) dias, juntar aos autos cópia do contrato de constituição da sociedade, bem como a cópia da acta que contenha a deliberação que decidiu amortizar as quotas dos sócios executados”. Deste despacho os requeridos contestantes apresentaram recurso de apelação, que terminaram com as seguintes conclusões: “a) As excepções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa (art.º 576, n.º 2 do CPC). b) Dentre as excepções dilatórias consta a nulidade de todo o processo que decorre da ineptidão da petição inicial (art.ºs, 577 al. b) e 186º, 1, do CPC) c) A incompetência absoluta em razão da matéria constitui igualmente uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento de todo o processo. (art.sº 65º e 96º, 1, do CPC) d) A inexistência de título executivo é uma condição de prosseguimento da acção executiva, de modo que não existindo nos autos, não se poderiam aditar à acção executiva, os 3 requeridos que não executados. (art.º 45º, do CPC). e) Relativamente, ao pedido obscuro de executar 3 outros requeridos que não eram executados, porque existiu amortização das quotas de 2 executados singulares, não se consegue conexionar, em termos lógicos e compreensíveis, com a causa de pedir – situação expressamente invocada pelos Requeridos no ponto 55 da contestação. f) Ora, não sendo possível, aos Requeridos, atribuir um sentido claro e inequívoco ao pedido e ligação à causa de pedir, terminados os articulados do incidente, havia que decretar a ineptidão da petição (art.ºs, 590º, 2, 186º,1, 2, 3 – a contrario, do CPC). g) O legislador estatuiu a ineptidão para os casos em que à partida se demonstre não ser possível um julgamento coerente por parte do tribunal, e/ou um total conhecimento dos fundamentos e pretensões do requerente, pelo requerido ao contestar. h) O Requerente interessado em obter tutela numa pretensão tem de formular um pedido claro e inteligível, pelo juiz e pelos Requeridos, o mesmo se exige da factualidade que integra a causa de pedir e de onde emanarão os efeitos jurídicos pretendidos (art.º 5º, 1, do CPC). i) A ineptidão por falta, contradição, ou inteligibilidade da causa de pedir/pedido enferma de nulidade todo o processo, não sendo passível de aperfeiçoamento (art.º 186º, 1, do CPC). j) Foi ainda arguida, no ponto 59 da contestação, a incompetência em razão da matéria – excepção de conhecimento oficioso pelo tribunal (art.º 97º,1 do CPC), que determina a extinção da instância (art.º 99º1, 105º,1, do CPC). k) A incompetência absoluta, em razão da matéria constitui igualmente uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento de todo o processo. (art.sº 65º e 96º, 1, do CPC) e que impede o conhecimento. l) No ponto 52 da contestação, foi ainda suscitada a excepção de falta de título executivo que constitui inexistência de condição de procedibilidade para demandar os 3 requeridos que não são executados (art.º 10º, 5 e art.ºs. 703º a 709º do CPC). m) Desse modo, também pela ausência de título, não pode o incidente prosseguir para julgamento. n) Neste contexto, em que o interessado não alegou factos essenciais e consequentemente também não juntou provas de factos essenciais, não pode o tribunal substituir-se ao Requerente, ordenando a junção de prova documental como ocorre no despacho recorrido, para aí pesquisar em juízo, factualidade não alegada pelo Recorrente antes da contestação dos Requeridos. o) O Tribunal ultrapassou os limites do princípio do dispositivo (art.ºs 5º, 1 e 2, do CPC), ao requer prova documental num processo em que a factualidade essencial relativa ao pedido não foi individualizada. p) Com efeito, além da delimitação do objecto do processo, incumbe ao interessado apresentar e indicar as provas necessárias a convencer o tribunal dos factos alegados (art.º 552º, 2, do CPC). Deste modo a decisão recorrida não se poderá manter devendo ser revogada e substituída por outra que, - decrete a ineptidão da petição inicial, declarando-se nulo todo o incidente; - ou, subsidiariamente, caso assim não se entenda, declare a incompetência absoluta em razão da matéria, - ou se, por hipótese académica, não procederem as excepções supra indicadas, se considere que verifica-se a falta duma condição de procedibilidade contra os 3 Requeridos que não são executados – o título executivo; - e, em todos os casos, o tribunal se abstenha de requerer a junção de documentos que incumbiam ser juntos pelo Requerente, se tivesse alegado factos conexos com os mesmos. * Em face de tal recurso, foi proferido o seguinte despacho “Diz-nos o n.º 1, do art.º 630.º, do C. P. Civil, que não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário. Por seu turno, explica o art.º 152.º, n.º 4, do mesmo Código, que os despachos de mero expediente destinam-se a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes e que se consideram proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador. Ensina José Lebre de Freitas (in Código de Processo Civil anotado, 1999, vol. 1º, pág. 277) que os despachos de mero expediente compreendem: - Os despachos internos, proferidos no âmbito das relações hierárquicas estabelecidas com a secretaria, de que são exemplo as ordens que o juiz a esta dirija; - Os despachos que digam respeito à mera tramitação do processo, não tocando em direitos das partes ou de terceiros, de que são exemplo os que se limitem a fixar datas para a prática de actos processuais. Refere, por sua vez, o Il. Professor Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil anotado, Volume V, pgs. 259, que os despachos de mero expediente, “são os que o juiz profere para assegurar o andamento regular do processo”, não sendo susceptíveis de ofender os direitos processuais das partes ou de terceiros. E em nota 2 ao então anterior art.º 679º do mesmo Código, a dado passo, é referido que: “...se trata de despachos banais, que não põem em causa os interesses das partes, dignos de protecção...” – A. dos Reis in C.P.C. anotado, V, pg. 249. Também in Manual dos Recursos em Processo Civil de Fernando Amâncio Ferreira – Cons.º Jubilado – 3.ª edição – 2002 – pg. 111, refere-se o seguinte: “... Advirta-se, contudo, que estes despachos só são irrecorríveis se forem proferidos de acordo com a lei; se o não forem, por admitirem, em determinado processo, actos ou termos que a lei não prevê para ele, ou sendo previstos, se forem praticados com um condicionalismo diferente do legalmente previsto, já esses despachos admitirão recurso.”. Tais despachos não importam decisão, julgamento, aceitação ou reconhecimento do direito requerido. Pelo facto de os emitir, o juiz não vê esgotado o seu poder jurisdicional, podendo, logo a seguir, proferir outro despacho em sentido oposto. Não fica necessariamente vinculado ao despacho que proferiu; o despacho não dá lugar à formação de caso julgado, tal como o afirma o Prof. A. dos Reis, in Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, 1984, pg. 218 e 248 a 250. Por sua vez, diz-se no citado preceito, 2.ª parte, que se consideram proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador. Quanto a este tipo de despachos proferidos no uso legal de um poder discricionário, esclarece igualmente José Lebre de Freitas (ob. cit., pág. 278) que são aqueles que o juiz livremente profere ao abrigo de uma norma que, perante determinado circunstancialismo, lhe confere “uma ou mais alternativas de opção entre as quais o juiz deve escolher no seu prudente arbítrio e em atenção aos fins do processo civil”. São aqueles que se caracterizam por estarem dependentes da ponderação da necessidade que sobre a oportunidade da sua prolação o Juiz faça e, ainda, por não contenderem com qualquer juízo sobre a questão jurídica da causa, a prescrição que deles emana em nada afecta o posicionamento das partes na lide, dos interesses em debate na acção se distanciando - livre determinação quer dizer determinação que não está sujeita a limitações ou qualquer condicionalismo (Prof. Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado; Volume V; pág. 252). O Juiz executa um despacho discricionário quando é livre de o fazer ou não e quando o seu conteúdo se não imiscui na apreciação jurisdicional de eventuais interesses postos em litígio pelos litigantes no pleito - poder discricionário quer dizer poder absolutamente livre, subtraído a quaisquer limitações objectivas ou subjectivas (Revista de Legislação; 79.º; pág. 107) -neste sentido o Ac. da RG de 16/09/2021, cuja relatora foi a Dr.ª Maria dos Anjos Melo Nogueira. Posto isto, verifica-se que a recorrente se opôs à desistência da instância apresentada pelo requerente. Como esta desistência foi apresentada após a contestação da requerida/recorrente, nada mais restava ao Tribunal decidir no sentido de não homologar a desistência, e, em consequência determinar que o incidente seguisse os seus termos. Com está bem de ver, será na sentença que se irão apreciar as questões suscitadas por ambas as partes. Ora, tal despacho é de mero expediente, e, como tal, não admite recurso – art.º 630º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Civil. Por outro lado, o despacho que determina a uma sociedade comercial que junte aos autos determinados documentos, que na visão do tribunal são úteis à descoberta da verdade e boa decisão da causa, é um despacho proferido no uso de um poder discricionário, que cabe no dever de gestão processual plasmado no art.º 6º, nº 1, do CPC, sendo certo que essa sociedade está obrigada a praticar os actos que lhe foram determinados (art.º 417º, n.º 1, do CPC ). Acresce que, nesta parte, tal sociedade não tem mandatário constituído nestes autos, pelo que ninguém, até ao momento, se encontra mandatado para dispor de direitos e expectativas alheias. Pelo exposto, resta-nos concluir que a presente decisão não admite recurso, pelo que, de harmonia com as disposições legais acima citadas, não se admite o recurso interposto pela executada/requerida. Custas do incidente a suportar pela executada – art.º 527º do CPC. Notifique, sendo de novo a requerida AVTS – sociedade de Construção, Lda. para, no prazo de 10 (dez) dias, dar cumprimento ao segundo parágrafo do despacho proferido no dia 30/09/2024, o que se determina ao abrigo e com as cominações previstas nos arts. 417º, n.ºs 1 e 2, do CPC e 27º, nº 1 do RCP”. * Os recorrentes apresentaram reclamação, que concluíram da seguinte forma: “Conforme exposto, considerando o enquadramento processual do despacho recorrido e respectivo conteúdo não se pode deixar de concluir que a discricionariedade judicial à face da lei era nula. Por outro lado, não só o não conhecimento imediato da ineptidão, como a decisão de prosseguir com o incidente, com inexistência de títulos, executivos, e/ou de habilitação, torna a defesa dos Requeridos mais difícil. Por fim, também o requerimento oficioso, no despacho, de cópias particulares de documentos depositados na Conservatória, a um Requerido, aditando matéria factual não alegada, já depois da contestação de alguns Requeridos, num cenário de ineptidão, inverte o ónus de prova, e dificulta a [nada mais foi dito] O referido despacho não é processualmente inócuo para os direitos dos Requeridos, dificultando o contraditório, realizando aquisição factual de nova matéria ilegal e obrigando o Requerido a juntar provas para esse efeito, o que inverte o ónus da prova”. * O Novo Banco respondeu à reclamação, pugnando pelo indeferimento da mesma. * Apreciando e decidindo da reclamação Os factos: A matéria factual que importa para apreciar da reclamação é a que consta do relatório supra. O Direito No caso em apreço temos que o recurso interposto pelos reclamantes visava o despacho que, em face da posição dos requeridos perante a pretensão de desistência da instância incidental deduzida pela requerente, determinou o prosseguimento dos autos e determinou também que a requerida AVTS juntasse aos autos cópia do contrato de constituição da sociedade, bem como a cópia da ata que contenha a deliberação que decidiu amortizar as quotas dos sócios executados. O despacho recorrido tem, portanto, duas decisões diferentes. A primeira relativa à não admissão da desistência da instância, determinando em consequência o prosseguimento dos autos. E a segunda respeita à determinação oficiosa de junção de documentos. Os reclamantes recorreram de ambas as decisões e o Tribunal a quo não admitiu o recurso considerando, quanto à primeira decisão, que se trata de despacho de mero expediente e, quanto à segunda, que se trata de despacho proferido no âmbito de um poder discricionário. Quanto à primeira decisão concordamos na íntegra com o despacho reclamado na parte em que refere que “como esta desistência foi apresentada após a contestação da requerida/recorrente, nada mais restava ao Tribunal decidir no sentido de não homologar a desistência, e, em consequência determinar que o incidente seguisse os seus termos. Com está bem de ver, será na sentença que se irão apreciar as questões suscitadas por ambas as partes”. Efetivamente, assim é. Consideramos que o recurso, nessa parte, atentos os fundamentos invocados nas conclusões, se baseia num equívoco que é o de os recorrente considerarem que o facto de o Tribunal a quo ter referido que “os autos irão seguir os seus termos” significa que as questões por eles suscitadas na oposição ao incidente não procedem. Obviamente que aquela expressão não tem, nem podia ter, esse significado. A decisão não apreciou, de forma alguma, os fundamentos da oposição ao incidente. E aquele despacho visava decidir, exclusivamente, a questão da desistência da instância e nada mais. Essa era a parte que, naquele momento, interessava decidir e da qual os reclamantes não recorrem. O dizer-se que os autos irão seguir os seus termos nem sequer constitui um despacho de mero expediente. Trata-se de algo absolutamente inócuo, pois, mesmo que tal expressão fosse omitida, e podia perfeitamente tê-lo sido, os autos seguiriam de qualquer forma os seus termos de acordo com a lei de processo. Os reclamantes dizem que não havia discricionariedade judicial, impondo-se o “conhecimento imediato da ineptidão”. Efetivamente os reclamantes terminam o recurso pedindo que seja proferida decisão que aprecie dos fundamentos da oposição. Acontece, porém, que não há recurso de “não decisões”. Poderia, eventualmente, estar-se perante uma nulidade por omissão de pronúncia caso se estivesse perante uma decisão que, devendo apreciar de tais exceções, não o tivesse feito. Ora, acontece que não estamos perante essa situação, pois naquele momento o que havia a decidir era apenas a questão da desistência da instância e foi sobre isso que foi proferida decisão. Assim, não só não há nulidade – que em todo o caso não foi invocada no recurso – como não foi proferida, nem tinha de ser, qualquer decisão que apreciasse dos fundamentos da oposição. Nessa parte o recurso é inadmissível, tal como decidido pelo Tribunal a quo. Quanto à questão dos documentos cuja junção foi determinada oficiosamente, há que fazer uns considerandos prévios e genéricos acerca do processo civil. Este visa a resolução institucionalizada dos conflitos de interesse de natureza cível, o que decorre da proibição de autotutela dos direitos, deferindo-se a decisão do conflito a uma terceira entidade isenta e independente que é o tribunal. Como refere J. P. Remédio Marques1, “trata-se de uma disciplina jurídica que regula o conjunto de actos e formalidades destinadas a tutelar situações jurídicas subjectivas, dando expressão à posição das partes (maxime, do alegado titular do direito subjetivo e do sujeito do dever jurídico ou da sujeição, isto nos direitos potestativos), com vista à obtenção de uma decisão por parte de um tribunal, quer essa decisão seja imodificável, quer ela mostre susceptível de alteração à luz da cláusula rebus sic stantibus (v. g., nos processos de jurisdição voluntária: alteração do montante de uma pensão de alimentos; alteração da regulação do exercício das responsabilidades parentais)”. A atuação das partes no processo tem dois pilares fundamentais: um é a alegação dos factos e outro é a respetiva prova. A alegação dos factos decorre do princípio do dispositivo, consagrado no art.º 5º/1 do CPC, segundo o qual cabe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas. E à alegação segue-se a prova dos factos, existindo uma panóplia de regras relativas a esse aspeto, nomeadamente a do ónus da prova. E esses aspetos são de tal forma importantes que algumas pretensões ou exceções improcedem por falta de alegação oportuna dos factos que as fundamentam ou por não se provarem os factos que foram alegados para as fundamentar. Portanto, a alegação dos factos, por um lado, e a respetiva prova, por outro lado, são absolutamente essenciais para a parte fazer prevalecer a sua posição perante o tribunal que vai decidir o litígio. A alegação dos factos faz-se por via dos articulados, que a lei regula quanto à respetiva admissibilidade, nomeadamente quanto ao número, aos prazos e ao conteúdo. Também as provas são reguladas por lei, em especial quanto ao momento em que podem ser indicadas e produzidas. É por estas formas que se delimita a atividade do tribunal no sentido de dirimir o litígio que lhe foi apresentado, sem prejuízo da atividade oficiosa que pode levar a cabo. Os articulados e os meios de provas são, portanto, os instrumentos fundamentais para a definição do mérito da causa, estando a respetiva apresentação sujeita a regras. A admissão ou rejeição de um articulado é, deste modo, algo suscetível de influir na decisão de mérito, tal como a admissão ou rejeição de um meio de prova. Daí que a regularidade formal tenha de estar acautelada para que, nos trâmites subsequentes do processo, haja certeza quanto à possibilidade de atender ao que consta do articulado ou quanto à possibilidade de produção do meio de prova. Ora, é exatamente por essas razões que o CPC prevê a apelação autónoma, portanto com subida imediata, do despacho que admite ou rejeita algum articulado ou meio de prova (cfr. art.º 644º/2, al. d) do CPC). A previsão da apelação autónoma nestes casos visa garantir a tal regularidade formal, tendo o legislador optado por essa forma de impugnação ao invés de remeter a possibilidade de recurso para a decisão final. Assim, dada a importância das provas no que respeita ao mérito da causa, nunca se poderia considerar que uma decisão que determina a produção de um meio de prova, mesmo que tenha sido tomada oficiosamente pelo tribunal, é um despacho de mero expediente. E o princípio do inquisitório não é um poder discricionário. É um poder-dever sujeito a regras e, como tal, sindicável por via de recurso, sendo, aliás, isso que resulta do referido art.º 644º/2, al. d). Apesar do teor literal do preceito se referir aos despachos em que o juiz aprecia um requerimento probatório da parte, cabe no espírito do preceito a decisão oficiosa, até porque não há diferença material entre uma decisão que defere a produção de um meio de prova requerido pela parte e uma decisão que oficiosamente determina essa produção. Em ambas as situações o critério é o mesmo, que é o da relevância do meio probatório em apreço para a decisão da causa. Neste mesmo sentido já decidiu a Relação do Porto, no acórdão de 23.04.20202, que foi assim sumariado: “I - Um despacho que ordena a notificação das partes para juntarem documentos supostamente relevantes para a apreciação do mérito da causa não pode ser qualificado como um despacho de mero expediente. II - Ao proferir tal decisão, o juiz, no exercício de um poder-dever, está vinculado a critérios de legalidade, designadamente previstos no art.º 411º do Código de Processo Civil, não sendo, por isso, proferido no uso de um poder discricionário, de simples escolha prudencial. III - A ratio legis da norma do art.º 644º, nº 2, al. d), do Código de Processo Civil, estende-se também aos despachos que, oficiosamente, determinem a produção de um meio de prova (não indicado pelas partes)”. Deste modo, a reclamação procede na parte relativa à decisão que determinou a apresentação dos documentos, devendo, nessa parte, o recurso ser admitido. * DECISÃO Face ao exposto, julga-se a reclamação parcialmente procedente, determinando-se, nos termos do art.º 643º/4 e 6, do CPC, a subida do recurso, para a respetiva apreciação na parte respeitante à decisão que determinou a apresentação de documentos. Custas do incidente de reclamação por ambas as partes, reclamantes e reclamado (que respondeu à reclamação no sentido da improcedência total), na proporção de metade para cada, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs (art.º 7º/4 do RCP e tabela II anexa). Notifique. TRLx, 02jun2025 Jorge Almeida Esteves _______________________________________________________ 1. In A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 3ª ed., pág. 26. 2. Proferido no procº nº 6775/19.6T8PRT-A.P1, in dgsi.pt. |