Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MADALENA CALDEIRA | ||
Descritores: | CRIME TRIBUTÁRIO RESPONSABILIDADE CIVIL RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/26/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Sumário: | I–A prática de crime tributário gera obrigação de indemnizar perdas e danos dela resultantes, indemnização que é regulada pela lei civil substantiva, mais concretamente pelas normas que disciplinam a responsabilidade civil por atos ilícitos (artigos 483º e seguintes do CC), por aplicação do disposto nos artigos 129º, do CP, e 3º, n.º 3, al. c), do RGIT. II–Os contornos legais da responsabilidade civil emergente do crime tributário e da responsabilidade meramente tributária são substancialmente distintos entre si, nomeadamente no seu enquadramento jurídico, nas causas de onde emergem, nas modalidades de responsabilidade, nos prazos de vencimento, nos próprios montantes apurados (que podem ser distintos, embora não obrigatoriamente), nos títulos de cobrança e até nas causas de extinção. III–Consequentemente, não existe impedimento legal à condenação dos demandados civis no pedido de indemnização civil deduzido no processo penal pela Segurança Social, ao abrigo do princípio da adesão, pelos prejuízos decorrentes da prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, mesmo quando tais prejuízos se cinjam às contribuições não pagas à Segurança Social, relativamente às quais o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS) e os devedores tributários realizaram, no âmbito da responsabilidade meramente tributária, um acordo de pagamento fracionado, garantido por hipoteca e que está a ser cumprido. IV–Também nada obsta à pendência em simultâneo de duas ações de cobrança coerciva das mesmas quantias apuradas nas duas diversas fontes de responsabilidade (civil emergente da prática de crime e meramente tributária). V–Não obstante, impõe-se, quer no momento da apreciação e decisão do pedido cível decorrente da prática de crime tributário, quer no momento da cobrança coerciva dessa indemnização, levar em linha de conta a quantia indemnizatória que eventualmente haja sido liquidada em cumprimento do referido plano de pagamento. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordaram, em conferência, os Juízes Desembargadores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I.–RELATÓRIO Por sentença datada de 12.06.2022 foi decidido, na parte civil: - Condenar os demandados A, B e C, a pagarem ao demandante “Instituto da Segurança Social”, solidariamente, a quantia de € 21.605,03 (vinte e um mil seiscentos e cinco euros e três cêntimos), acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal e conforme peticionado pelo demandante. Cada um dos arguidos foi ainda condenado pela prática, em coautoria material, na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, em penas de multa. * RECURSO DA DECISÃO Inconformados, os três demandados cíveis interpuseram o presente recurso da decisão condenatória, restrito à parte cível, tendo extraído da sua motivação as seguintes conclusões (que transcrevemos): CONCLUSÕES 1.–Tendo os Arguidos acordado e celebrado com o IGFSS um plano de pagamento prestacional da sua dívida, para o qual constituíram a favor do IGFSS uma garantia, na forma de hipoteca voluntária sobre a habitação dos Arguidos pessoas singulares, onde habitam com os seus 3 filhos, 2.–Não podia a Mma. Juíza a quo condenar os Arguidos no pagamento da quantia de 21.605,03 € a título de indemnização a pagar ao IGFSS, quando essa mesma quantia corresponde exactamente ao montante da dívida que faz parte integrante do plano de pagamento que foi acordado. 3.–O fundamento de que a hipoteca voluntária constitui uma garantia de pagamento e não um modo/meio de pagamento imediato, em que se ancorou a decisão, é claramente violador do valor jurídico da hipoteca voluntária enquanto um direito real de garantia. 4.–Quando, enquanto garantia especial que é, o credor pode sempre pagar o seu crédito. 5.–Apesar desta certeza, entendeu-se a quo que o que estava em causa era o pagamento imediato, quando nem mesmo os Arguidos como o IGFSS negociaram ou acordaram qualquer pagamento imediato. O que dos autos resulta e dos factos provados fazem parte, o pagamento seria de forma prestacional, o que vem sendo cumprido (facto provado 15.). Foi esta forma de pagamento que as partes quiseram e não outra. 6.–Por isso, não podia a Mma. Juíza condenar os Arguidos no pagamento da quantia de 21.605,03 €, para indemnizar o IGFSS, porque a garantia prestada não representava o pagamento imediato da dívida. 7.– Indemnização, que nada mais é que a própria dívida que os Arguidos vêm pagando dentro do plano acordado. 8.–Por isso, a reparação que pretende a decisão a quo acautelar já foi acautelada pelas partes no acordo de pagamento e que foi robustecida com a hipoteca voluntária constituída sobre a habitação dos Arguidos pessoas singulares. 9.–Como tal, condenando-se os Arguidos, nos termos que o foram, visa-se unicamente enriquecer ilicitamente o IGFSS sob o pretexto de reparação de um dano que mesmo antes da prolação da sentença já estava devidamente acautelado. 10.–Razão pela qual, que a condenação é ilegítima por ausência do bem que se visa reparar. Termos em que com o douto suprimento de V. Exas. deve ser julgado procedente o presente recurso e, consequentemente, serem os Arguidos absolvidos no pagamento da indemnização cível ao IGFSS na quantia de 21.605,03 €, Fazendo-se, assim, a costumada JUSTIÇA. * O Ministério Público manifestou não ter legitimidade para se pronunciar sobre o recurso, por ser restrito à condenação em matéria cível. * O Instituto de Segurança Social não respondeu ao recurso. * O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo. * Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto reiterou o aduzido pelo Ministério Público na primeira instância. * Cumprido o disposto no art.º 417º, n.º 2, do CPP, não foi apresentada resposta. * Após exame preliminar e colhidos os Vistos, realizou-se a conferência, cumprindo agora apreciar e decidir, nos termos resultantes do labor da conferência. * II.–FUNDAMENTAÇÃO A DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, sendo essas que balizam os limites do poder cognitivo do tribunal superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como ocorre por exemplo com os vícios previstos nos artigos 410º, n.º 2, ou 379º, n.º 1, ambos do CPP (cfr. art.ºs 412º, n.º 1, e 417º, n.º 3, ambos do CPP). Posto isto, passamos a delimitar o thema decidendum, que o mesmo é dizer a elencar as questões colocadas à apreciação deste tribunal, e que no caso é uma só: SABER SE NÃO PODE SER IMPUTADA AOS DEMANDADOS CIVIS RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DA PRÁTICA DO CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL, EM VIRTUDE DE AQUELES TEREM ACORDADO COM O IGFSS, NO ÂMBITO DA RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA, UM PLANO DE PAGAMENTO FRACIONADO DA DÍVIDA FISCAL (QUE ESTÁ A SER CUMPRIDO), COM CONSTITUIÇÃO DE HIPOTECA VOLUNTÁRIA SOBRE UM IMÓVEL, PROPRIEDADE DOS DEMANDADOS PESSOAS SINGULARES * A DECISÃO RECORRIDA: A decisão recorrida tem o seguinte teor (que se transcreve parcialmente, apenas nas partes mais relevantes para a questão em apreço nos autos): (…) Pelo Instituto da Segurança Social foi deduzido pedido de indemnização civil contra os arguidos e demandados, peticionando a condenação destes no pagamento da quantia de € 25.486,42, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados de acordo com a legislação especial e que beneficia a Segurança Social, patente no DL 73/99 de 16-03 e no seu art.º 3º, nº1, até efectivo pagamento. (…) II-Fundamentação: A)-Factos Provados Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a decisão da mesma: 1.-A sociedade C. é uma sociedade por quotas que se dedica ao fabrico, importação, exportação, comercialização e representação de artigos em pele, brindes publicitários, produção e revenda de artigos de papelaria e acessórios de moda. 2.-A arguida B era, à data da prática dos factos a seguir descritos a sócio-gerente, em actividade, da primeira arguida, agindo em seu nome e no seu interesse, função que partilha e que exerce um conjunto com o arguido A. 3.-Cabendo-lhes, em consequência, exercer as funções inerentes àquele cargo, decidindo o que pagar e/ou não pagar, estabelecer prioridades de produção e de pagamento de impostos ao Estado Português, prioridades de pagamentos aos fornecedores pelos serviços prestados à arguida sociedade, assim como ao pagamento dos salários dos trabalhadores e dos seus colaboradores. 4.-Por via dessas funções, os arguidos estavam obrigados a entregar mensalmente, na Segurança Social as folhas e remunerações pagas e devidas no mês anterior aos gerentes e trabalhadores da sociedade, por conta de outrem, e a proceder ao desconto prévio dos valores das contribuições devidas à Segurança Social. 5.-Todavia, apesar de os arguidos efectivamente terem pago aos empregados e à gerente as remunerações respeitantes aos meses compreendidos entre Novembro de 2015 a Agosto de 2016, Novembro de 2016 a Fevereiro de 2017, Julho de 2017, Agosto de 2017, Julho de 2018 a Setembro de 2018, Novembro de 2018, Dezembro de 2018, Março de 2019 e Abril de 2019, inclusive, e de terem deduzido às mesmas o montante correspondente às respectivas contribuições para a Segurança Social, no montante global de €25.486,42 (vinte e cinco mil quatrocentos e oitenta e seis euros e quarenta e dois cêntimos) não procederam à entrega nos cofres da Segurança Social de tais montantes relativos aos referidos descontos. 6.-Retendo no total a quantia de €25.486,42 (vinte e cinco mil quatrocentos e oitenta e seis euros e quarenta e dois cêntimos), que infra se discrimina: 7.-Apesar de terem deduzido às remunerações pagas – aos trabalhadores por conta de outrem e gerentes da sociedade C - as quantias devidas à Segurança Social supra referidas, os arguidos não procederam à sua entrega na Segurança Social nos prazos legalmente estipulados, isto é, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam, nem nos 90 dias seguintes ao terminus deste prazo, nem mesmo depois de notificados no dia 3-07-2020 para, no prazo de 30 dias, proceder ao pagamento das cotizações retidas e juros de mora. 8.-Os arguidos após não terem entregado no mês de Novembro de 2015 os montantes destinados à Segurança Social que haviam deduzido nas referidas remunerações, praticaram o mesmo tipo de conduta ao longo dos restantes meses de 2015 até Agosto de 2016, Novembro de 2016 a Fevereiro de 2017, Julho de 2017 e Agosto de 2017, inclusive, em virtude de não terem sido sujeitos a inspecção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, convencendo-se que a actuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração ao longo do período de tempo referido. 9.-Do mesmo modo, após não terem entregado no mês de Julho de 2018 os montantes destinados à Segurança Social que haviam deduzido nas referidas remunerações, praticaram o mesmo tipo de conduta nos meses de Agosto de 2018, Setembro de 2018, Novembro de 2018, Dezembro de 2018, Março de 2019 e Abril de 2019, inclusive, em virtude de não terem sido sujeitos a inspecção regular por parte dos competentes serviços de fiscalização, convencendo-se que a actuação que vinham levando a cabo estava a ser bem sucedida, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração ao longo do período de tempo referido. 10.-Sabiam os arguidos que estavam, por lei, obrigados a entregar tais quantias nos cofres da Segurança Social. 11.-Com a conduta supra descrita, causaram à Segurança Social um prejuízo de montante igual ao das quantias referidas. 12.-Agiu sempre os arguidos, mediante plano previamente elaborado, em comunhão de esforços e intentos, de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito concretizado de deduzir as quantias acima referidas e de as não entregar à Segurança Social, tendo feito reverter e despendido em benefício da sociedade, sua representada, as quantias deduzidas e, indirectamente, em seu proveito próprio, quantias essas que bem sabia não lhes pertencer e estar obrigado a entregá-las nos cofres da Segurança Social. 13.-Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Mais se provou, 14.-A quantia acima aludida no ponto 6 encontra-se ainda para liquidação, sendo nesta data no valor global de €26.502,12 com os acréscimos legais e de €21.605,03 a título de capital em dívida. Provou-se também, 15.-Os arguidos celebraram plano de pagamento em prestações da quantia em dívida nestes autos e de outros valores em falta junto do ISS, no valor global de €115.938,23, que estão em cumprimento. 16.- Por conta do aludido no ponto anterior, e como garantia do bom pagamento, os arguidos constituíram a favor do ISS hipoteca voluntária unilateral da fracção autónoma sita em Caneças, correspondente à casa de habitação dos arguidos pessoas singulares. 17.- Ocorreu reversão da dívida para a arguida B. 18.-Em 22-02-2022 os arguidos apresentavam a situação contributiva em regularização junto do ISS. Provou-se ainda, 19.-Os arguidos confessaram os factos. 20.-A situação supra descrita foi motivada por dificuldades de natureza económico-financeira, visando a manutenção da actividade e sendo tais quantias investidas na sociedade. 21.-A sociedade arguida chegou a ter cerca de 14 funcionários ao seu serviço. 22.-Encontra-se encerrada, mas aguarda nova reabertura. 23.-Os balanços da sociedade foram em regra positivos, ainda que baixos. 24.-Os arguidos B e A são casados entre si e vivem conjuntamente. 25.-Têm três filhos menores. 26.-Habitam em casa própria da arguida B. 27.-O arguido A trabalha como vendedor, auferindo cerca de €360 mensais, sendo que actualmente está sem actividade. 28.-Auxilia ainda os pais e o sogro. 29.-Tem o 12º ano de escolaridade. 30.-A arguida B está sem actividade, vivendo com a ajuda dos pais. 31.-Não recebia salário da empresa, devido a dificuldades de tesouraria. 32.-Tem 12º ano de escolaridade e frequência de curso superior de gestão. 33.-Tem problemas de saúde. 34.-Os arguidos não apresentam antecedentes criminais registados. (…) F)–Do pedido de indemnização civil Pelo Instituto da Segurança Social foi deduzido pedido de indemnização civil contra os arguidos e demandados, peticionando-se a condenação destes no pagamento da quantia de € 25.486,42, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados de acordo com a legislação especial e que beneficia a Segurança Social, patente no DL 73/99 de 16-03 e no seu art.º 3º, nº1, até efectivo pagamento. A indemnização por perdas e danos, de qualquer natureza, emergentes de ilícito criminal é regulada, no caso sub judice, quantitativamente e nos seus pressupostos, pela lei civil (cfr. Art.º 483.º, do Código Civil ex vi Art.º 129.º do Código Penal) - valem aqui os pressupostos que condicionam a obrigação de indemnizar imposta ao lesante e decorrente da responsabilidade civil aquiliana de harmonia com o preceituado nos Arts.º. 483.º, 562.º, 563.º, 564.º e 566.º, todos do Código Civil. À luz das citadas disposições legais resulta para os arguidos a obrigação de indemnizar a Segurança Social pelo valor das prestações em falta e acima assinaladas, em relação aos respectivos períodos de tempo em que exerceram a gerência, como resulta dos factos provados e acima elencados, acrescida de juros de mora desde a notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento à taxa de juro de acordo com o Art.º 3.º, do Decreto-Lei n.º 73/99 de 12-4. Nos termos do Art.º 129.º, do Código Penal conjugado com os Arts.º 71.º e seguintes do Código de Processo Penal, a indemnização arbitrada no âmbito do processo penal tem a natureza de indemnização civil de perdas e danos, sendo a sua determinação regulada nos termos da lei civil. Como se sabe, em Direito Civil vigora o princípio de que os danos são suportados pela esfera jurídica onde ocorrem: a solução de transferir ou repercutir um dano, que se verifique numa esfera jurídica, em esfera diversa da inicial pressupõe, assim, a existência de uma obrigação de indemnizar, ou seja, de uma situação de responsabilidade civil - cfr. Menezes Cordeiro, in Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, 2ª Ed., Lisboa, 1987/88, pp. 416 a 418 e Fernando Pessoa Jorge, in Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Coimbra, 1995, p. 33. De entre os títulos de imputação existe aquele que se efectiva através da responsabilidade por facto ilícito, nos termos do Art.º 483.º, n.º1. do Código Civil. A obrigação de indemnizar imposta ao lesante, neste caso, depende da verificação dos seguintes pressupostos: é necessário que haja um facto voluntário do agente; que o facto seja ilícito; que haja um nexo de imputação do facto ao agente; que ocorra um dano e finalmente que exista um nexo de causalidade entre o facto e o dano - vide Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 9ª Ed., Coimbra, 1996, p. 544 e Mário Júlio de Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 7ª Ed., Coimbra, 1998, p. 483. Assim, para que os demandados sejam condenados no pedido formulado pelo lesado é necessário que se verifiquem os requisitos da responsabilidade extracontratual. Ora, dispõe o Art.º 483.º, n.º 1, do Código Civil que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.” Da análise deste preceito conclui-se que esta responsabilidade se alicerça nos seguintes pressupostos, que têm que existir cumulativamente no caso concreto: Facto voluntário - isto é, um facto dominável ou controlável pela vontade, que se revela no acidente, enquanto ocorrência resultante da acção humana voluntária. Que o facto seja ilícito, isto é, lesivo de bens jurídicos pessoais e (ou) patrimoniais, tutelados pelo direito. Nexo de imputação subjectiva, ou seja a imputação do facto ao lesante, reportando-se à especifica ligação psicológica do agente com a produção do acidente e ao respectivo grau de censurabilidade que a conduta merece. É necessário pois, que o lesante seja susceptível de um juízo de censura ou reprovação, isto é, que tenha agido com culpa. Dano - é necessário ainda que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém. O dano traduz o desvalor infligido por acção do facto ilícito aos bens jurídicos alheios atingidos. Nexo de causalidade entre o facto e o dano, que é a imputação objectiva do dano ao facto de que emerge. Apenas são incluídos na responsabilidade do agente os danos resultantes do facto ou causados por ele. Conforme resultou da factualidade provada, e do que ficou materialmente descrito no conteúdo da responsabilidade criminal verifica-se estarem preenchidos os referidos pressupostos quanto à pessoa colectiva e aos demais arguidos e gerentes, uma vez que o ilícito do facto em matéria penal envolve necessariamente a ilicitude civil, e os arguidos agiram dolosamente, e causando prejuízos, prejuízos estes resultantes dos factos praticados, pelo que se constituíram na obrigação de indemnizar, em relação aos períodos temporais em causa e peticionados no pedido de indemnização cível, a cujo valor máximo o julgador se encontra vinculado e que se provaram restar ainda e por liquidar. Como é sabido a obrigação de indemnizar compreende os danos patrimoniais e não patrimoniais. No caso, os danos cujo ressarcimento se peticiona são de natureza patrimonial, dizendo respeito ao montante das contribuições retidas e não entregues, constantes dos factos provados. E, o cálculo do dano emergente obedece, em princípio, a uma pura operação matemática, como se afere pela ressarcibilidade pecuniária do valor comercial despendido. Efectivamente, quanto ao pedido de indemnização civil enxertado, importa ter em consideração que, por força das disposições conjugadas dos Arts.º 71.º e 377.º, n.º1 do Código de Processo Penal, ele só poderá ser apreciado com base nas regras da responsabilidade por facto ilícito, conforme entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência (cfr. além do mais Acórdão para Uniformização de Jurisprudência n.º 7/99, de 17/6/99, in D.R., I Série-A, de 03.08.99). Considerando a prova efectuada e apresentada pelo próprio demandante, apenas se apurou em dívida nesta data e a título de capital € 21.605,03, não se apurando em dívida o valor total peticionado e por força dos pagamentos parciais entretanto realizados e atestados pelo demandante, cumprindo apenas e em parte o ónus probatório. Pelo exposto e considerando a factualidade provada e o direito acima aludido, deferindo parcialmente o peticionado, ficam os arguidos obrigadas a indemnizar (v. Art.º 483.º e 497.º, 512.º e 513.º e ss. do Código Civil), o Instituto da Segurança Social no apurado valor de € 21.605,03 (vinte e um mil seiscentos e cinco euros e três cêntimos), acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal peticionada (calculados de acordo com a legislação especial e que beneficia a Segurança Social, patente no DL 73/99 de 16-03 e no seu art.º 3º, nº1), e até integral cumprimento – v. Ac. STJ de 6-12-2012, Ac.TRC de 22-07-2017 e ac. TRL, todos in www.dgsi.pt., procedendo por isso parcialmente o pedido formulado. Na verdade, a hipoteca voluntária constituiu uma garantia de pagamento e não um modo/meio de pagamento imediato e, sua realização não conduz ao pagamento imediato da dívida. Tal obrigação de pagamento pelos demandados é solidária - v. Art.º 497º e 512º e ss. do C. Civil. Custas pelos demandados, tendo em consideração o valor do pedido. III - Dispositivo Pelo exposto, julgo parcialmente procedente, por provada, acusação deduzida nos presentes autos, e, consequentemente decido: I - Parte Criminal a) Absolver todos os arguidos, A, B e C da práctica de um (1) crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, ilícito previsto e punível pelos Arts.º 6.º, 7º 105.º, nºs 1, 4 e 7 e 107.º, nºs 1 e 2 do R.G.I.T. e Art.º 26º e 30º nº2 do C. Penal; b) Condenar o arguido, A, pela prática em co-autoria material consumada, de um (1) crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, ilícito previsto e punível pelos Arts.º 6.º, 105.º, nºs 1, 4 e 7 e 107.º, nºs 1 e 2 do R.G.I.T. Art.º 26º e 30º nº2 do C. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no valor global de € 500,00 (quinhentos euros), convertível em até 66 (sessenta e seis) dias de prisão subsidiária, em caso de incumprimento voluntário ou coercivo (caso não seja requerido o seu cumprimento em prestações ou a sus substituição por trabalho e de modo justificado); c) Condenar a arguida, B, pela prática em co-autoria material consumada, de um (1) crime de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, ilícito previsto e punível pelos Arts.º 6.º, 105.º, nºs 1, 4 e 7 e 107.º, nºs 1 e 2 do R.G.I.T. Art.º 26º e 30º nº2 do C. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), no valor global de € 500,00 (quinhentos euros), convertível em até 66 (sessenta e seis) dias de prisão subsidiária, em caso de incumprimento voluntário ou coercivo (caso não seja requerido o seu cumprimento em prestações ou a sus substituição por trabalho e de modo justificado); d) Condenar a pessoa colectiva, C, pela prática de um crime (1) de abuso de confiança contra a Segurança Social na forma continuada, ilícito previsto e punível pelos Arts.º 7.º, 105.º, nº s 1, 4 e 7 e 107.º, nºs 1 e 2 do R.G.I.T. e Art.º 11º e 30º nº2 do C. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros), no valor global de € 1.000,00 (mil euros); e) Condenar ainda os arguidos no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 U.C. e reduzida a metade por força da confissão (cfr. Arts. 344º, nº2, al. c), 513.º, 514.º, todos do Código de Processo Penal e Art.º 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais), sem prejuízo de eventuais isenções de que beneficiem; II - Parte Civil f) Julgar parcialmente procedente por provado, o pedido de indemnização cível deduzido nos autos pelo demandante civil “Instituto da Segurança Social” e consequentemente, decido condenar os arguidos e demandados, a pagarem à demandante e solidariamente, a quantia de € 21.605,03 (vinte e um mil seiscentos e cinco euros e três cêntimos), acrescidos de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal e conforme peticionado pelo demandante; g) Custas cíveis pelos demandante e demandados, tendo em consideração o valor do pedido formulado e na proporção do respectivo decaimento que se fixa em ¼ para o demandante e o remanescente para os demandados, fixando-se o mesmo pelo valor peticionado (cfr. Art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil e 523.º do Código de Processo Penal), sem prejuízo de eventuais isenções de que beneficiem. * DA ANÁLISE DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO: SABER SE NÃO PODE SER IMPUTADA AOS DEMANDADOS CIVIS RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DA PRÁTICA DO CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL, EM VIRTUDE DE AQUELES TEREM ACORDADO COM O IGFSS, NO ÂMBITO DA RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA, UM PLANO DE PAGAMENTO FRACIONADO DA DÍVIDA FISCAL (QUE ESTÁ A SER CUMPRIDO), COM CONSTITUIÇÃO DE HIPOTECA VOLUNTÁRIA SOBRE UM IMÓVEL, PROPRIEDADE DOS DEMANDADOS PESSOAS SINGULARES . Consideram os Recorrentes não poderem ser condenados no pedido de indemnização cível nos termos decididos na sentença recorrida, por a quantia em que foram condenados a pagar corresponder ao montante da dívida fiscal que faz parte de um plano de pagamento acordado com o credor/demandante, por via do qual os demandados singulares estão também comprometidos, desde logo por terem dado de garantia de pagamento uma hipoteca de um imóvel sua propriedade, não existindo, consequentemente, dano a reparar. Adiantamos desde já que o recurso é de improcedência manifesta, considerando que a responsabilidade civil emergente da prática de crime não se confunde com o dever de indemnizar os danos decorrentes de responsabilidade tributária. Os valores que se vierem a apurar na responsabilidade civil emergente da prática de crime podem até ser os mesmos dos apurados na responsabilidade tributária (embora não seja necessariamente assim), porém as causas da responsabilidade são distintas, assim como o regime legal que disciplina cada qual. Sem prejuízo, tal não significa que o responsável em simultâneo cível, decorrente da prática de crime, e tributário tenha de pagar duas vezes os prejuízos por si provocados, pois que o pagamento parcial no âmbito de uma das responsabilidades terá de ser tido em conta no montante devido no âmbito da outra responsabilidade. Detalhando: A prática de crime tributário gera obrigação de indemnizar as perdas e danos dela decorrentes. Nos termos do estatuído no art.º 129º, do Código Penal (CP), tal indemnização é regulada pela lei civil substantiva, mais concretamente pelas normas que disciplinam a responsabilidade civil por atos ilícitos, também dita delitual ou aquiliana (já não por factos lícitos e/ou contratual), prevista nos artigos 483º e seguintes, do Código Civil, posto que os danos emergem, todos eles, da prática de crime, seja doloso ou negligente (apesar de a lei processual permitir o conhecimento e procedência do pedido cível enxertado na ação criminal mesmo que o demandante cível seja absolvido da prática do crime - art.º 377º, do CPP-). O mesmo decorre, no que aos crimes tributários especificamente respeita, do art.º 3º, n.º 3, al. c), do RGIT, onde se dispõe serem aplicáveis subsidiariamente as disposições do Código Civil e da legislação complementar em matéria de responsabilidade civil. Pelos danos resultantes da prática do crime tributário respondem os agentes do crime (que podem até não ser devedores tributários, pelo menos a título principal), nos termos da lei civil, sendo essa responsabilidade solidária, de acordo com o estabelecido no art.º 497º, do CC. Os prazos de liquidação da indemnização fixada resultam da lei civil. Por força do art.º 71º, do CPP, o pedido de indemnização civil fundado na prática de crime terá de ser deduzido no processo penal respetivo, princípio de adesão que visa, além do mais, responder a uma necessidade de celeridade e economia de meios, comportando esta regra, não obstante, as exceções previstas nos artigos 72º e 82º, do CPP. Já a responsabilidade tributária, resultante da responsabilidade do não pagamento do imposto, a que se aplica tão só a legislação tributária, nomeadamente a Lei Geral Tributária (veja-se o art.º 22º, referente à mesma), deriva dos atos tributários de liquidação de impostos e/ou outros tributos não pagos pelo devedor tributário. A dívida tributária é autónoma ou independente da indemnização decorrente de perdas e danos emergentes da prática de crime. Pelos danos resultantes da responsabilidade tributária respondem os agentes tributários nos termos da lei tributária, muitas vezes em termos meramente subsidiários, com resulta do mencionado art.º 22º, da LGT. Os prazos de liquidação dos montantes apurados decorrentes da responsabilidade tributária são os que constam da legislação tributária e dos eventuais acordos celebrados com vista ao seu pagamento fracionado. Daqui resulta que os contornos da responsabilidade emergente da prática de crime e da responsabilidade tributária são substancialmente distintos entre si, seja no enquadramento jurídico e respetivas causas de onde emergem, e consequentemente nos títulos de cobrança, seja nas modalidades de responsabilidade, seja nos prazos de vencimento, seja nos próprios montantes apurados, que podem ser distintos, embora não obrigatoriamente, seja nas causas de extinção, etc... Podem mesmo coexistir ações judiciais distintas para cobrança dos montantes apurados por conta das duas distintas responsabilidades -emergente da prática de crime e tributária-, posto que as causas de pedir e os títulos de cobrança são distintos entre si, não existindo, por isso, repetição de causas. Na verdade, no pedido de indemnização civil deduzido num processo penal tributário em que é pedida a condenação nos prejuízos patrimoniais causados pela prática de crime tributário, correspondentes ao valor dos impostos e contribuições em débito, o montante indemnizatório que os leve em conta representa a efetivação da reparação da vítima (que no caso em concreto é a administração da Segurança Social) decorrente da prática do crime contra si cometido. Regressando ao caso em apreço, conforme resulta da sentença recorrida, a responsabilidade civil em que os demandados/ora Recorrentes foram condenados solidariamente resulta dos prejuízos por si provocados e decorrentes da prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social em que foram condenados, cujo montante indemnizatório foi apurado por aplicação do regime estabelecido nos artigos 483º e seguintes do CC, ex vi dos art.ºs 129º, do CP, e 3º, n.º 3, al. c), do RGIT, e não da dívida tributária que os demandados, todos ou apenas alguns deles, como devedores principais e/ou subsidiários, possam ter perante, neste caso, a Segurança Social. Dito de outro modo, o montante indemnizatório fixado pelo tribunal recorrido não tem como causa a violação do direito de crédito da Segurança Social sobre as contribuições devidas pelas entidades patronais relativas aos vencimentos pagos aos seus trabalhadores, mas antes o crime de abuso de confiança fiscal contra a Segurança Social praticado. E não releva o facto de haver um acordo de pagamento prestacional da responsabilidade tributária, principal e/ou subsidiária, dos aqui arguidos/demandados civis, garantido por hipoteca, porquanto tal forma de pagamento e garantia real associada apenas operam quanto ao vencimento da dívida resultante da responsabilidade tributária apurada, que se rege pela lei tributária, nenhum impacto tendo na responsabilidade civil dos arguidos/demandados emergente da prática de crime, a não ser o facto de, no momento da cobrança, haver necessidade de levar em linha de conta a quantia indemnizatória que eventualmente haja sido liquidada, a qual terá de ser abatida ao quantitativo indemnizatório estabelecido na sentença recorrida (neste sentido veja- -se a título de exemplo o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 28.10.2007, processo número 214/07-2, disponível em dgsi.pt). Termos em que improcede o recurso interposto. III–Dispositivo Pelo exposto, acordam os juízes da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso dos demandados civis A, B e C. Custas pelos Recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC´s (art.º 523º, do CPP e tabela Ib anexa ao RCP). Notifique e D.N. Lisboa, 26-01-2023 Madalena Augusta Parreiral Caldeira António Bráulio Alves Martins Maria Carlos Duarte do Vale Calheiros |