Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | HIGINA CASTELO | ||
Descritores: | CONTRATO DE MÚTUO LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Sumário: | I. Nem todos os contratos de mútuo de dinheiro são reais sob o ponto de vista da sua constituição, como o descrito na noção do Código Civil. Também se celebram (e até existem previsões legais de) contratos de mútuo consensuais quanto à constituição, nos quais a entrega do dinheiro constitui uma prestação contratual a que o mutuante se obrigou, e não um elemento formativo do contrato. II. Independentemente de a entrega do dinheiro num determinado contrato de mútuo ser um ato da formação do contrato ou uma prestação contratual, sempre tem de haver um acordo entre as partes sobre esse ato e o seu significado; ou seja, o contrato de mútuo real quoad constitutionem também não prescinde do consenso. III. A condenação de uma parte como litigante de má-fé exige um grau de probabilidade muito forte sobre a ocorrência dos factos subsumíveis aos pressupostos contidos no n.º 2 do artigo 542.º do CPC. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os abaixo assinados juízes do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório AA, S.A., autora na ação que move a BB, LDA, notificada da sentença absolutória, proferida em 23 de janeiro de 2024, e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso. Os autos tiveram origem em requerimento de injunção no qual a autora, alegando ter mutuado à ré a quantia de €14.514,00, pede a sua restituição (sem juros). A ré deduziu oposição, o que determinou a remessa dos autos a tribunal. O processo seguiu os regulares termos e, após audiência final, foi proferida a aludida sentença, pela qual a ré foi absolvida do pedido e a autora foi condenada como litigante de má-fé. A autora não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma: «A) Resulta dos factos dados como provados que a Recorrente transferiu “No dia 19 de junho de 2019, foi transferido o montante de €14.514,00 para a conta bancária da Requerida”, vide ponto 1) dos factos provados. B) O legal representante da Recorrida veio alegar em sede de audiência de discussão e julgamento que “foi nessa altura, antes de procedermos à divisão que recebi uma indicação do Sr. «DD» de que me tinha depositado os catorze mil euros e eu inquiriu porquê ao que ele disse era o dinheiro que tinha aqui ficas já com dinheiro na conta para poder pedir os cartões. Não foi nada que eu lhe pedi, mas pensei, quando este processo finalizar também lhe devolvo o dinheiro, não é por aí. Sinceramente nunca pensei que fosse uma questão, uma vez que me estava a meter o dinheiro na conta.” conforme se pode verificar pela consulta da gravação da inquirição do legal representante da Recorrente, minuto 13:145 a 14:33, da Diligencia_54600-22.2YIPRT_2023-11-08_09-51-29. C) Em 9 de Agosto de 2019 o legal representante da Recorrida – «EE» – assinou o contrato de adesão para atribuição do cartão de crédito, conforme documento junto aos Autos em requerimento datado de 4 de dezembro de 2023. D) O cartão de crédito com penhor foi aprovado em 22 de agosto de 2019, conforme documento junto aos Autos em requerimento datado de 4 de dezembro de 2023. E) Quer isto dizer que, foi pelo legal representante da Recorrida reconhecido em juízo que: e) A Recorrente lhe havia transferido o montante de €14.514,00; f) Estava obrigado a devolver à Recorrente o montante de €14.514,00; g) Sabia que o montante de €14.514,00 dizia respeito à necessidade de obter cartões de crédito junto de instituições bancárias; h) Foi devido a esse facto que assinou os contratos de adesão para a obtenção de cartões de créditos. F) Posto isto dúvidas não existem que a Recorrida reconhece que lhe foi emprestado o montante de €14.514,00, ficando esta com a obrigação de restituir aquele valor à Recorrente. G) Tanto que assim é que que o legal representante da Recorrida reconhece em juízo que “(…) quando este processo finalizar também lhe devolvo o dinheiro, não é por aí. (…)”, vide artigo 9 do presente Recurso de fls… H) Tanto que a Recorrida reconhece a existência do mútuo que vem alegar que na verdade cumpriu a obrigação de devolver os montantes mutuados, tendo para o efeito transferido aqueles valores para uma pessoa jurídica diferente da Recorrente, conforme resulta do ponto 2) dos factos provados. I) Dúvidas não existem que prova foi feita da existência do mútuo, bem como, do reconhecimento do mútuo por parte da Recorrida, reconhecendo ainda a Recorrida que não transferiu aqueles montantes para a Recorrente. J) Assim sendo, dúvidas não existem que estamos perante um clamoroso erro de julgamento, devendo este douto Tribunal ad quem julgar válido o contrato de mútuo, bem como, reconhecer que a Recorrida é devedora Recorrente do montante de €14.514,00, devendo para tanto ser condenada no seu pagamento. K) Acrescenta-se que, se a Recorrida entende que liquidou valores indevidos a sociedades terceiras, isso é um problema da Recorrida que deve demandar as sociedades terceiras. L) Mas no que diz respeito à Recorrente está a Recorrida obrigada a liquidar o montante de €14.514,00. M) Assim sendo, dúvidas não existem que estamos perante um clamoroso erro de julgamento, devendo este douto Tribunal ad quem julgar válido o contrato de mútuo, bem como, reconhecer que a Recorrida é devedora Recorrente do montante de €14.514,00, devendo para tanto ser condenada no seu pagamento. N) No que diz respeito ao ponto a) dos factos dados como não provados, dúvidas não existem que deve ser dado como provado que a Recorrida necessitava do montante de €14.514,00. O) Tanto que assim é que: g) À data da realização do mútuo do montante de €14.514,00 a Recorrida não tinha qualquer valor depositado; h) À data da realização do mútuo nem o capital social havia sido subscrito; i) O legal representante da Recorrida reconhece que – vide artigo 9 do Recurso de fls … - era necessário aquele montante, daí que o tenha aceite e que tenha alegado que posteriormente iria devolver aquele montante. j) Se o montante de €14.514,00 não fosse necessário para a atividade da Recorrida, certamente que o legal representante da Recorrida teria devolvido imediatamente aquele montante. O que não aconteceu. k) O legal representante da Recorrida reconheceu a necessidade da Recorrida ser financiada do montante de €14.514,00, até porque, era necessário requerer a emissão de cartões de crédito e a Recorrida não tinha qualquer valor depositado, nem sequer o capital social. l) O legal representante sabia da necessidade de requerer cartões de crédito daí que tenha assinado o pedido de adesão dos cartões de crédito, bem como, da necessidade de realizar um penhor do montante de €10.000,00, acontece que, não tinha a Recorrida qualquer valor depositado, sendo o montante de €14.514,00 necessário para financiar a Recorrida e iniciar o desenvolvimento a sua atividade. P) Assim sendo, dúvidas não existem – pelos documentos juntos aos Autos e pelas declarações de parte do representante da Recorrida – que à data que o valor do financiamento da Recorrida, a mesma necessitava de financiamento. Motivo pelo qual deve o ponto a) dos factos não provados ser dado como provado. Q) No que diz respeito ao ponto b) dos factos não provados o mesmo é irrelevante para a decisão da causa, uma vez que, o mesmo apenas diz respeito aos acionistas da Recorrente que não colocaram em causa aquele financiamento. R) Reconhecendo a Recorrida que estava obrigada a liquidar os valores mutuados à Recorrente, deve ser dado como provado que “A Recorrida estava obrigada a liquidar o montante de €14.514,00, o que nunca aconteceu.” S) Tendo em conta a litigância de má-fé, cumpre referir que, segundo o douto Tribunal a quo a Recorrente deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, uma vez que, invocou a celebração de um contrato de mútuo com a Recorrida, o que não ficou demonstrado, porquanto a Recorrente não carreou para os autos elementos probatórios que o permitissem demonstrar e, em sede de declarações, o seu legal representante apresentou uma versão inverosímil para sustentar a sua pretensão. T) Ora, tais alegações são manifestamente descabidas e demonstram uma total incapacidade de análise dos factos, documentos e alegações que foram dados a conhecer ao Tribunal. U) Como já referido, é o próprio Tribunal a quo que dá como provado que “No dia 19 de junho de 2019, foi transferido o montante de €14.514,00 para a conta bancária da Requerida.” V) O legal representante da Recorrida veio alegar em sede de audiência de discussão e julgamento que “foi nessa altura, antes de procedermos à divisão que recebi uma indicação do Sr. «DD» de que me tinha depositado os catorze mil euros e eu inquiriu porquê ao que ele disse era o dinheiro que tinha aqui ficas já com dinheiro na conta para poder pedir os cartões. Não foi nada que eu lhe pedi, mas pensei, quando este processo finalizar também lhe devolvo o dinheiro, não é por aí. Sinceramente nunca pensei que fosse uma questão, uma vez que me estava a meter o dinheiro na conta.” conforme se pode verificar pela consulta da gravação da inquirição do legal representante da Recorrente, minuto 13:145 a 14:33, da Diligencia_54600-22.2YIPRT_2023-11-08_09-51-29. W) Acrescenta-se que, o legal representante da Recorrida vem alegar que pensou que estava a devolver o montante de €14.514,00 aquando da transferência do montante de €14.514,00 para uma sociedade terceira que não a Recorrente, por forma a liquidar uma fatura de prestação de serviços. X) Mesmo reconhecendo que o legal representante da Recorrida que “quando este processo finalizar também lhe devolvo o dinheiro, não é por aí.”, ainda assim reconhece que nunca transferiu o montante de €14.514,00 à Recorrente. Y) Assim sendo questiona-se: Em que momento é que a Recorrente deduziu pretensão cuja falta de fundamento não deveria ignorar? Z) Em momento algum. AA) Repita-se, é o próprio representante da Recorrida que reconhece que a Recorrida recebeu o montante de €14.514,00 e que a Recorrida nunca liquidou à Recorrente aquele montante. BB) Em face do exposto, dúvidas não existem que é claro que a Recorrente não deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, devendo a Recorrente ser totalmente absolvida da condenação como litigante de má-fé, devendo assim a doutra Sentença de fls… ser revogada. Assim, nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. reverendíssimas douta e sapientemente suprirão, deverá o presente recurso ser admitido e declarado procedente e, consequentemente ser revogada a presente sentença colocada em crise, com as legais consequências daí advenientes, fazendo-se assim, a tão costumeira JUSTIÇA!» A recorrida (ré) contra-alegou, com as seguintes conclusões: «a) Peticiona a Autora seja “o presente recurso ser admitido e declarado procedente e, consequentemente ser revogada a presente sentença colocada em crise, com as legais consequências daí advenientes.” b) Isto porque, no entendimento da Recorrente, “Para além de resultar dos factos dados como provados que a Recorrente transferiu o montante de €14.514,00 para a Recorrida e que esta não lhe devolveu tais montantes, foi ainda aceite que tais valores foram mutuados pela Recorrente à Recorrida e que a Recorrida pretendeu celebrar o contrato de mútuo”. c) Contudo, tal jamais poderá proceder, pois a decisão proferida pelo tribunal está correta, devidamente fundamentada, apreciou devidamente toda a prova carreada para os autos e qualificou-a devidamente, sendo a mesma a única decisão possível e justa nos presentes autos. d) Todo o segmento recursivo apresentado pela Recorrente subsume-se ao alegado erro de julgamento – Ponto 54 das alegações de recurso – para além de peticionar que os pontos dados pelo douto tribunal a quo como “não provados” – note-se o ponto a) e b) - sejam afinal dados considerados provados, e) Apenas e com base num excerto bastante específico e descontextualizado do depoimento de parte prestado pelo legal representante da Recorrida. f) Onde o mesmo, refere que efetivamente tomou conhecimento da transferência para a conta da Ré, que apesar de ter indagado o legal representante da Recorrente este não esclareceu prontamente para que se destinava, e perante este facto já concretizado, que o mesmo equacionou devolver após a boa conclusão do processo, processo esse cujo fim está aqui plasmado. g) Sem prejuízo disso, este pequeno excerto transcrito demonstra de forma OSTENSIVA que a Recorrida NUNCA PEDIU VALORES EMPRESTADOS À RECORRENTE, h) Tendo resultado de toda a prova carreada para os autos que também nunca necessitou de tais montantes, i) Tanto não precisou que o Sr. «DD», pouco tempo depois ordenou a transferência do mesmo valor para outra empresa com nome muito similar, criando a convicção no legal representante da Recorrida que a devolução até já tinha sido feita. j) Não resulta daqui, nem de nenhuma outra prova que a Recorrida acordou a devolução de tais valores até 30/09/2019, nem se percebe onde se poderia alicerçar tal prova. k) O que resulta provado é que o legal representante da Autora acedeu às contas bancárias da Ré e ordenou uma transferência do mesmo valor para outra empresa por si titulada, que realmente não se chamava «AA», mas sim «CC AA» pasme-se. l) O presente recurso é claramente apenas mais um exercício dilatório, despiciente e totalmente desprovido de conteúdo. m) Como é consabido, versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: as normas jurídicas violadas; o sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; e invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada – NADA DISTO CONSTA DO RECURSO APRESENTADO. n) Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas – tendo o recorrente limitado a transcrever um excerto e dizer que todos os factos dados por não provados, deveriam dar-se por provados, sem mais. o) Ora, nas conclusões apresentadas, a Recorrente, quanto à matéria de facto dada como não provada, pede que seja dado por provado o ponto a) e b), o que mesmo por hipótese académica se concebesse, resultaria na manutenção da decisão proferida. p) Mais acresce que todo o segmento recursivo são considerações absolutamente desconformes à prova produzida, perguntas, repetições. q) Pelo que o recurso, ainda que venha a ser admitido na primeira instância, deve o relator declarar a sua inadmissibilidade e julgá-lo findo, porque a falta referida obsta ao seu conhecimento. r) No contrato de mútuo é ao autor a quem compete a prova não só da entrega do dinheiro ou da coisa, como também da respetiva obrigação de restituição (art.º 342.º, n.º 1, do CC); s) Ficou efetivamente provado que no dia 19 de junho foi transferido o montante de €14.514,00 (catorze mil quinhentos e catorze euros) para a conta da Recorrida. t) Transferência feita sem qualquer justificação ou mesmo aviso à Recorrida, u) Mas não ficou provada a existência de um mútuo, aliás tal não tem qualquer correspondência ou arrimo na factualidade provada. v) De facto, se o autor se propõe valer declarar e valer um direito à restituição de uma quantia pecuniária resultante de um contrato de mútuo, e se o demandado lhe opõe que a qualquer outro título, a aplicação daquele princípio resolve-se nestas regras: ao primeiro impõe-se o ónus de provar os elementos estruturais – constitutivos – do seu direito à prestação – a celebração do contrato entre as partes e a inclusão da prestação exigida entre os efeitos do contrato a cargo do devedor; o segundo está apenas adstrito a um simples ónus da contraprova, de tornar incerto o facto alegado pelo autor. w) Em tal caso, o Réu não tem de criar no espírito do juiz uma convicção positiva, de persuadir o juiz de que o facto em causa – o contrato de mútuo – não é verdadeiro: é suficiente deixar no ânimo do juiz um estado de dúvida ou incerteza, uma convicção negativa sobre a realidade daquele facto (artº 346 do Código Civil). x) Entre a Autora e a Ré não foi concluído um contrato de mútuo e, portanto, a eventual vinculação da apelante à obrigação de restituir as quantias que recebeu do autor não pode fundamentar-se apenas na prova que efetivamente houve uma transferência do valor para a conta da Ré, que este nunca contestou. y) Como será natural, improcedendo, nos termos expostos, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, logo resulta que é indiscutível o acerto da decisão recorrida quanto à decretada absolvição da Ré no pedido contra si formulado. z) Tal como a condenação em litigância de má-fé, que agora deverá ser agravada, atenta a conduta altamente repreensível da Autora, Recorrente. aa) Por força da interposição da presente lide cuja falta de fundamento a Autora bem conhecia, a Ré Recorrida, na pessoa do seu legal representante sofreu incómodo e desgaste. bb) Viu-se a Ré, testemunhas, legal representante obrigados a deslocar-se por diversas ocasiões a tribunal, o que acarretou despesas. cc) E mesmo após a decisão proferido, e já condenada em litigância de má-fé, recorreu a Autora, o que demonstra uma conduta claramente contraria ao direito e à justiça, devendo, pois, ser agravada a multa aplicada, mas também arbitrada uma indemnização a favor da Ré, Recorrida. dd) A Ré, ora recorrida constituiu mandatária, ao qual terá de liquidar despesas e honorários, em quantia global não inferior a €6.000,00, atenta a duração e trabalho desenvolvido, o que poderá provar em sede de liquidação de sentença. ee) A Autora e Recorrente faz um pedido a que conscientemente sabe não ter direito - usa de dolo ou má-fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça. ff) Em tais casos, a má-fé representa uma modalidade do dolo processual que consiste na utilização maliciosa e abusiva do processo. gg) A Autora litigou de má-fé, na sua modalidade mais grave (com dolo substancial), agravado ainda pelo facto de ainda assim recorrer da decisão proferida. hh) Tendo em conta a factualidade apurada, e sem prejuízo de o tribunal poder complementar informação sobre a situação económica da Recorrente, entendemos que a multa a fixar pela manifesta litigância de má-fé nunca poderá ser inferior a 8 UCS. ii) Do mesmo modo, deve a Recorrente ser condenada no pagamento de todos os honorários liquidados pela Recorrida com a presente lide processual, sem prejuízo do valor pago a este título nas custas de parte - vide artº 542º, nº1, do CPC. Nestes termos e nos melhores de direito que V/as Exas. mui doutamente suprirão, deverá o Venerando Desembargador Relator declarar a inadmissibilidade do recurso interposto e julgá-lo findo, porque violação do disposto no artigo 639.º CPC; Ainda que o mesmo seja admitido, deverá a Douta Decisão proferida manter-se, sendo negado provimento ao recurso e, consequentemente, confirmada a decisão recorrida, bem como determinada a condenação da Recorrente, pela clamorosa litigância de má-fé impressa nos autos, numa multa de valor não inferior a 8 UCs bem como no pagamento de uma indemnização à Recorrida, em montante a fixar em sede de liquidação de sentença, mas nunca inferior a €6.000,00, assim se fazendo a costumada e esperada JUSTIÇA!» Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito. Objeto do recurso Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões: a) A matéria de facto foi mal apreciada e deve ser alterada? b) Tal terá como consequência a procedência do recurso e da ação? c) A condenação da autora como litigante de má-fé deve ser revogada? II. Fundamentação de facto A 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos: 1) No dia 19 de junho de 2019, foi transferido o montante de €14.514,00 para a conta bancária da Requerida. 2) No dia 30 de agosto de 2019, foi transferido o montante de €14.514,00 da conta bancária da Requerida para o IBAN PT50 …141. 3) As transferências identificadas em 1) e 2) foram realizadas pelo administrador da Requerente, «DD». 4) As transferências identificadas em 1) e 2) foram efetuadas via netbanking, tendo «DD» solicitado ao gerente da Requerida, «EE», a indicação do código necessário para concluir as operações, uma vez que o código era enviado para o número de telemóvel deste. 5) No dia 30.8.2019, «DD» enviou mensagens a «EE», tendo referido, designadamente, “Depois dou-te as faturas e explico-te os custos todos”. 6) A Requerida foi constituída em 21.05.2019. 7) A Requerida foi constituída com a finalidade de adquirir um ramo de negócios na área de segurança cibernética, desenvolvido sob a marca “ANUBISNETWORKS” (software e sistemas de segurança), o que se concretizou. 8) Em data não concretamente apurada, mas certamente antes de 21.5.2019, o gerente da Requerida foi apresentado a «DD» e «FF» e, nessa ocasião, foi acordada uma colaboração de contornos não concretamente apurados. 9) Por sugestão de «DD», o gerente da Requerida abriu uma conta bancária junto do Banco BPI, tendo aquele ficado com acesso ao netbanking da conta bancária da Requerida. Foram considerados não provados os seguintes: a) A Requerida necessitava de financiamentos, por forma a iniciar a sua atividade económica, tendo, para o efeito, peticionado que a Requerente lhe entregasse o montante de €14.514,00. b) Os acionistas da Requerente deliberaram favoravelmente que esta entregasse à Requerida o montante de €14.514,00, a título de empréstimo. c) Foi acordado entre as partes que a Requerida restituiria o montante de €14.514,00 até ao dia 30 de setembro de 2019, data em que era expectável que a mesma já estivesse a faturar os serviços por si prestados. III. Apreciação do mérito do recurso 1. Da alteração da matéria de facto A recorrente não põe em crise qualquer dos factos provados, limitando-se a esse respeito, nas alíneas A) a M) das conclusões, a repetir alguns dos factos provados e a retirar deles conclusões jurídicas não concordantes com a retiradas pelo tribunal a quo. Nas alíneas N) a P) das suas conclusões de recurso, a recorrente reclama do facto não provado a), pedindo que o mesmo passe a provado. Tal facto tem a seguinte redação: «A Requerida necessitava de financiamentos, por forma a iniciar a sua atividade económica, tendo, para o efeito, peticionado que a Requerente lhe entregasse o montante de €14.514,00». Ouvidos todos os depoimentos prestados em audiência, das partes e das testemunhas, convencidos ficámos, não apenas da não prova deste facto, mas do seu contrário: a ré não pediu à autora que depositasse na sua conta aquela quantia, nem dela tinha qualquer necessidade. A primeira parte também evidenciada pelo extrato bancário junto aos autos referente ao mês em questão. Mantém-se, pois, o facto como não provado. Na alínea R) das suas conclusões de recurso, a recorrente afirma «Reconhecendo a Recorrida que estava obrigada a liquidar os valores mutuados à Recorrente, deve ser dado como provado que “A Recorrida estava obrigada a liquidar o montante de €14.514,00, o que nunca aconteceu.”». Sucede que esta afirmação que pretende ver acrescentada ao universo dos factos é contraditória com os factos assentes (v. n.ºs 2 a 5 e 9) e não impugnados nos termos impostos na lei. Em todo o caso, diga-se que ficámos convencidos, em particular pelos depoimentos das partes, que os €14.514,00 foram depositados pelo legal representante da autora na conta da ré sem qualquer pedido ou real fundamento (tendo o depositante dito na altura à ré que o havia feito para poder pedir uns cartões) e que o legal representante da autora transferiu ulteriormente esse valor da conta da ré para uma conta de uma outra sociedade por si (legal representante da autora) representada, quando entendeu e sem para isso dar justificação, nem a ré lhe a pediu, pois sabia que aquele valor não lhe pertencia. Nada a alterar, portanto, ao elenco dos factos. 2. Do mérito da ação Mantendo-se a matéria de facto, bem julgada foi a ação improcedente, como passamos a justificar. Os factos assentes não são suficientes para qualificar com segurança a relação estabelecida entre as partes, nem para a subsumir a um modelo contratual previsto na lei, nem sequer para identificar as concretas prestações a que cada uma se teria comprometido para com a outra, se é que houve algum compromisso com força de obrigação. Sabemos apenas que, num período não concretamente especificado, mas que abrange as datas de 19 de junho a 30 de agosto de 2019, o legal representante da autora tinha acesso à conta bancária da ré e nela depositou, na primeira referida data, o montante de €14.514,00, e que, na segunda data, movimentou a débito o mesmo valor para uma conta de uma sociedade por si representada. Ambos os legais representantes das partes, nas suas declarações em tribunal, concordam nisto, assim como concordam em que, aquando da segunda transferência, o legal representante da autora pediu telefonicamente ao legal representante da ré que lhe fornecesse o código que tinha recebido no seu telemóvel para completar a transferência, o que o segundo fez. Subsumem-se estes factos a um contrato de mútuo? O contrato de mútuo tal como previsto no artigo 1142.º do CC é aquele pelo qual uma das partes empresta à outra, dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade. Tal como descrito no CC, trata-se de um contrato real quanto à sua constituição, na medida em que a entrega física do dinheiro é constitutiva do contrato e não uma obrigação gerada pelo contrato. É sabido que hoje em dia, muitos, senão a maior parte, dos contratos de mútuo que se celebram no comércio jurídico são consensuais quanto à constituição, ou seja, por força do contrato, o mutuante fica obrigado a fazer a entrega, sendo esta uma prestação contratual a que o mutuante se obriga, e não um elemento formativo do contrato. Definindo o mútuo bancário, José Engrácia Antunes (Direito dos contratos comerciais, Almedina, 2009, pp. 497-8) escreve que é o «contrato pelo qual o banco (mutuante) entrega ou se obriga a entregar uma determinada quantia em dinheiro ao cliente (mutuário), ficando este obrigado a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade (“tantundem”), acrescido dos correspondentes juros». Esta definição abrange mútuos reais e mútuos consensuais, quanto à sua constituição. No que respeita aos contratos de crédito ao consumo, Jorge Morais Carvalho (Os contratos de consumo, Almedina, 2012, p. 343) e Fernando de Gravato Morais (Contratos de crédito ao consumo, Almedina, 2007, p. 50) afirmam o cariz consensual dos mesmos contratos, não sendo de os considerar reais quoad constitutionem (ou quanto à constituição). Independentemente de a entrega do dinheiro num determinado contrato de mútuo ser um ato da formação do contrato ou uma prestação contratual, sempre tem de haver um acordo entre as partes sobre esse ato e o seu significado. Queremos com isto significar que mesmo o contrato de mútuo real quoad constitutionem não prescinde do consenso. Como afirma João Redinha («Contrato de mútuo», in António Menezes Cordeiro coord., Direito das Obrigações, III, Contratos em especial, 2.ª ed., Lisboa: AAFDL, 1991, pp. 185-262, maxime 194-212), em regra, «[o] acordo de vontades, elemento basilar da noção de contrato, é suficiente para, como resultado do consenso, dar vida ao contrato». Exceciona com os contratos reais quanto à constituição, quoad constitutionem ou ad essentiam, nos quais o acordo de vontades, sendo necessário, não é suficiente para o surgimento do contrato. Além deste, a lei exige um elemento, em regra ulterior – a entrega ou datio rei – que constitui objeto do consenso, surgindo como elemento indispensável ao aperfeiçoamento do negócio. No contrato real quanto à sua constituição, a entrega da coisa (res) não é um ato de execução do contrato, mas um seu elemento integrante ou constitutivo. Mas o consenso sobre a entrega e o seu significado, esse tem sempre de existir para a ocorrência do contrato. Este consenso não é claro na situação dos autos; ou seja, aparentemente, a ré não pediu o dinheiro, nem dele necessitava, nem sabemos com que intenção a autora o depositou. De acordo com as declarações do legal representante da autora, o depósito teria sido feito para que a ré tivesse acesso as uns cartões de crédito que apenas seriam atribuídos se a conta estivesse provisionada. De acordo com as declarações do legal representante de ré, esta desconhece a razão pela qual a autora fez tal depósito. Teria o dinheiro sido mutuado ou apenas depositado? A resposta não será muito relevante, considerando que em ambos existe a obrigação de restituição e que ao depósito irregular (o que tem por objeto coisas fungíveis – artigo 1205.º do CC) são aplicáveis as normas relativas ao contrato de mútuo (artigo 1206.º do mesmo Código). A ser mútuo, não teria respeitado a forma prescrita no artigo 1143.º do CC – documento assinado pelo mutuário, considerando o valor superior a €2.500 –, mas a invalidade geraria a obrigação de restituir (artigo 289.º, n.º 1, do CC). Independentemente da qualificação adequada à situação, nenhuma das partes discute a obrigação de restituir aquele valor. Foi efetuada uma transferência por iniciativa do legal representante da autora, da conta da ré para uma conta de sociedade por si (legal representante da autora) detida e representada, no exato valor ora em questão; na falta de elementos indiciadores de outra justificação para essa segunda transferência, temos de presumir que se tratou da devolução ou restituição do mesmo valor que também o legal representante da autora tinha transferido da conta da autora para conta da ré. Improcede, pois, o recurso referente ao mérito da causa. 3. Da litigância de má-fé Nas conclusões S) e seguintes, a recorrente impugna a condenação como litigante de má-fé. Nos termos do disposto na al. a) do n.º 2 do artigo 542.º do Código de Processo Civil, diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave tiver deduzido pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar. Foi nesta disposição que o tribunal a quo fundamentou a condenação da autora como litigante de má-fé. Fê-lo, essencialmente, no seguinte parágrafo: «Ora, tendo presente toda a lide processual, verificamos que a autora deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar. Invocou a celebração de um contrato de mútuo com a ré, o que não ficou demonstrado, porquanto a autora não carreou para os autos elementos probatórios que o permitissem demonstrar e, em sede de declarações, o seu legal representante apresentou uma versão inverosímil para sustentar a sua pretensão. Na verdade, apurou-se que o alegado “mútuo” teve por base transferências bancárias efetuadas pelo próprio legal representante da autora, sem qualquer justificação plausível». Pensamos que esta fundamentação e, sobretudo, os factos assentes são curtos para concluirmos que a autora deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar. Que a autora não provou a ocorrência de um contrato de mútuo, é certo. Igualmente certo, que igual valor transitou como e quando a autora entendeu, por obra do seu legal representante para uma sociedade representada por este. No que respeita à não qualificação da transferência da autora para a ré como um contrato de mútuo, trata-se de apreciação jurídica cuja falha pela autora não gera litigância de má-fé. Por outro lado, não ficou excluído que a segunda transferência do mesmo valor (a debitada na conta da ré e creditada na conta de sociedade representada pelo legal representante da autora) não tivesse outro fundamento que não a devolução da mesma quantia anteriormente depositada pela autora em conta da ré. Na apreciação do mérito da causa, deduzimos que a transferência do facto 2 serviu para restituir a quantia do facto 1 (não tendo a autora logrado provar outra justificação para a segunda transferência). Esta presunção judicial é legítima e suficiente para a improcedência da ação, mas não para uma condenação como litigante de má-fé. Para esta, o standard de prova tem de ser mais exigente, teria o facto de estar expressamente consignado no elenco dos factos provados. Lembramos, ainda, que a autora não negou os factos que se provaram. Pelo contrário, o legal representante da mesma admitiu, nomeadamente, os factos 1 a 4. Provou-se outrossim que, em data não exatamente determinada, mas anterior a 21/05/2019, foi acordada entre as partes uma colaboração de contornos não concretamente apurados, que perdurou, pelo menos, até ao fim de agosto de 2019. Pelo exposto, revoga-se a decisão de condenação da autora como litigante de má-fé e de igual forma se julga improcedente a condenação da mesma autora no mesmo sentido, pedida pela ré/recorrida em sede de resposta às alegações de recurso. IV. Decisão Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando a decisão de condenação da autora como litigante de má-fé e confirmando, no mais, a sentença objeto de recurso. Custas a cargo da recorrente em ¾ e a cargo da recorrida em ¼. Lisboa, 04/07/2024 Higina Castelo Vaz Gomes Laurinda Gemas |