Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CARLOS CASTELO BRANCO (VICE-PRESIDENTE) | ||
Descritores: | CONFLITO DE COMPETÊNCIA INCOMPETÊNCIA MATERIAL LIQUIDAÇÃO JUDICIAL DE SOCIEDADE ACÇÃO JUDICIAL ENCERRAMENTO DA LIQUIDAÇÃO PROCESSO ADMINISTRATIVO JUÍZO DE COMÉRCIO JUÍZO LOCAL CÍVEL | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/31/2024 | ||
Votação: | DECISÃO INDIVIDUAL | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | CONFLITO DE COMPETÊNCIA | ||
Decisão: | RESOLVIDO | ||
Sumário: | Para a liquidação do património social de sociedade extinta (promovida ulteriormente ao encerramento da liquidação operada em prévio processo de dissolução e liquidação administrativa), poderá o credor social instaurar processo judicial para liquidação do ativo/passivo superveniente, enquadrando-se a pretensão correspondente ainda no âmbito da matéria atinente à liquidação societária que, sendo exercida judicialmente, radicará na atribuição de competência para a preparação e julgamento dessa correspondente ação judicial aos juízos de comércio, em conformidade com o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | ** I. * 1. Por petição inicial apresentada em juízo em 09-12-2022, Caixa Económica Montepio Geral – Caixa Económica Bancária, S.A., instaurou a presente ação para liquidação judicial societária, sob a forma de processo comum, contra, Gourmet Happenings, Lda. – Acontecimentos e Catering, Lda. (extinta por dissolução administrativa, representada pelo Liquidatário “A”) e “A”, pedindo a liquidação judicial da sociedade extinta e a subsequente partilha do património societário. Para tanto alegou, em síntese, que: - A sociedade Gourmet Happenings - Acontecimentos e Catering, Lda. deve à autora uma quantia no valor total de €13.634,90. - A sociedade Gourmet Happenings - Acontecimentos e Catering, Lda. foi declarada insolvente no dia 20-12-2013, no âmbito do processo n.º 932/13.6TYLSB do Juízo de Comércio de Lisboa - Juiz (…), encerrado, por decisão de 16-02-2016, por insuficiência da massa insolvente; - No dia 24-03-2016, em sede de procedimento administrativo (cfr. artigo 15.º, n.º 5, alínea i) do Regime Jurídico da Dissolução e da Liquidação de Entidades Comerciais e artigo 234.º, n.º 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), foi liquidada e cancelada a matrícula da Gourmet Happenings - Acontecimentos e Catering, Lda.; e - A sociedade Gourmet Happenings - Acontecimentos e Catering, Lda. tem ainda ativo e também passivo, resultante de relações jurídicas anteriores à data da extinção e por dívidas vencidas após a extinção, mantendo na autora conta de depósito a prazo, com saldo no valor de € 41.463,59. * 2. A ação foi instaurada no Juízo de Comércio de Lisboa, tendo sido distribuída ao Juiz “X”. * 3. Por decisão de 14-11-2023, o Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz “X” declarou-se incompetente, em razão da matéria, para conhecer da causa e absolveu os réus da instância, aí se expendendo, nomeadamente, o seguinte: “(…) Nos termos do artigo 128.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, “1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais; d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As ações de liquidação judicial de sociedades; f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial; i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras. 2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais. 3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”. Isto posto, será este Tribunal competente para conhecer do pedido em apreço? Julgamos que a resposta não pode deixar de ser negativa, porquanto o pedido formulado na presente ação não se reconduz, de facto, a nenhuma das tipologias de ações enunciadas nos n.ºs 1 e 2 do citado preceito. Com efeito, é por demais evidente que o aqui peticionado não se reconduz a um processo de insolvência, processo especial de revitalização, nem tampouco a uma ação de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade, ação relativa ao exercício de direitos sociais, ação de suspensão e de anulação de deliberações sociais, ação de dissolução de sociedade anónima europeia, ação de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais, ação referida no Código do Registo Comercial ou ação de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras. De igual forma a ação em causa não visa impugnar despachos dos conservadores do registo comercial ou as decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais. Tratar-se-á, então, da ação a que alude a alínea e) do supracitado preceito? Salvo melhor entendimento, não. A dissolução e liquidação das sociedades comerciais encontra-se prevista nos artigos 141.º e seguintes do Código das Sociedades Comerciais. A dissolução pode processar-se por deliberação dos sócios (artigo 141.º, n.º 2 e 142.º, n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais), por justificação notarial ou procedimento simplificado de justificação (artigo 141.º, n.º 2 do mesmo diploma) ou mediante procedimento administrativo (artigo 142.º, n.º 1, 143.º e 144.º do citado Código), regulado no Regime Jurídico dos Procedimentos Administrativos de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais (Anexo III do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, diploma a que pertencem todas as disposições doravante citadas sem outra indicação sob o acrónimo RJPADLEC). Nos termos do artigo 146.º, n.º1, do Código das Sociedades Comerciais, a sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação. Na fase da liquidação procede-se ao apuramento da situação patrimonial da sociedade, à liquidação do passivo social e à partilha entre os sócios dos bens remanescentes. A liquidação pode ser efetuada extrajudicialmente ou por via administrativa (artigo 146.º, n.º 4 e 6 e 150.º, n.º 3 do Código das Sociedades Comerciais). Com o registo do encerramento da liquidação, a sociedade extingue-se. Por regra a dissolução e a liquidação são fases sequenciais. No entanto, nos casos em que não haja operações de liquidação a realizar, o registo da dissolução e o encerramento da liquidação podem ser simultâneos (artigos 11.º, n.º 4, e 27.º a 30 do RJPADLEC). No caso vertente, a matrícula da sociedade Gourmet Happenings - Acontecimentos e Catering, Lda. foi cancelada na sequência da decisão de encerramento da liquidação proferida no âmbito de procedimento administrativo de liquidação de entidades comerciais subsequente ao encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente. No entanto, a sociedade, à data, seria titular de conta bancária com saldo no valor de €41.463,59. É certo, o RJPADLEC não regula as situações em que após a extinção da sociedade se verifica a existência de ativo ou de passivo, ou, como é alegadamente o caso dos autos, de ambos. É, igualmente, correta a afirmação de que o Supremo Tribunal de Justiça já admitiu o recurso a uma liquidação judicial dos bens (imóveis) de uma sociedade extinta administrativamente. No caso, não se discute o meio processual elegido - a presente ação - mas, meramente, a competência do Tribunal para dirimir o litígio. Como deixámos sobredito, a Lei de Organização do Sistema Judiciário (doravante LOSJ) confere competência aos juízos de comércio para preparar e julgar as ações de liquidação judicial de sociedades. Ora, no caso, não estamos perante uma situação de liquidação judicial de sociedades, na medida em que tal facto já ocorreu. Com efeito, da matéria de facto alegada, que aliás se mostra provada documentalmente nos autos, resulta que no procedimento administrativo de liquidação de entidades comerciais, que correu termos na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa, foi declarado o encerramento da liquidação da sociedade Gourmet Happenings - Acontecimentos e Catering, Lda., ato administrativo esse que foi objeto de registo, tendo subsequentemente sido averbado o cancelamento da matrícula da sociedade. Como é consabido, nos termos do artigo 160.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, a sociedade considera-se extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo do disposto nos artigos 162.º a 164.º, pelo registo do encerramento da liquidação. Mostrando-se extinta a sociedade parece-nos claro e evidente que o Juízo de Comércio de Lisboa não é competente para preparar e julgar a ação em apreço, porquanto, de facto et de jure, não existe sociedade comercial a liquidar judicialmente. Nunca é demais realçar que tal liquidação já ocorreu (bem ou mal!) de forma administrativa, com respeito pelos regulares trâmites, não sendo, por isso, possível do ponto de vista técnico-jurídico liquidar judicialmente uma sociedade comercial que já não existe legalmente. Na verdade, aliás, analisada a causa de pedir, que sustenta o pedido, o que pretende o autor não é a liquidação da sociedade proprio sensu, cuja extinção reconhece ab initio na sua petição inicial, mas do património restante desta, que não foi objeto de partilha prévia entre os sócios, nem de liquidação para pagamento de dívidas. Ante o exposto, estando a reserva legal de competência deste Juízo de Comércio confinada à liquidação judicial de sociedades comerciais - é este o teor expresso da norma legal atribuidora de competência - e não de eventuais patrimónios (autónomos) restantes de sociedades juridicamente extintas, nada mais resta do que declarar este Juízo de Comércio de Lisboa incompetente, em razão da matéria, e consequentemente julgar competente, para o efeito, os Juízos Locais Cíveis desta comarca (…)”. * 4. Os autos foram remetidos, nos termos do artigo 99.º, n.º 2, do CPC, aos Juízos Locais Cíveis de Lisboa. * 5. Distribuídos os autos ao Juízo Local Cível de Lisboa – Juiz “Y”, aí foi proferido despacho, datado de 19-01-2024, declarando o referido juízo incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção, e absolvendo os réus da instância. Na referida decisão escreveu-se, nomeadamente, o seguinte: “(…) O Autor pretende a liquidação judicial da sociedade extinta, Gourmet Happenings, Lda., e a subsequente partilha do activo societário, mediante a aplicação analógica do artigo 165.º do Código das Sociedades Comerciais. No plano interno, a competência divide-se pelos diversos tribunais em função da matéria, da hierarquia, do valor, da forma do processo e do território - artigo 60.º, n.º 2 do Código de Processo Civil e artigo 37.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário. Nos termos do artigo 128.º, n.º 1, al. e) da Lei de Organização do Sistema Judiciário, compete aos Juízos de Comércio preparar e julgar as acções de liquidação judicial de sociedades. São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artigos 64.º do Código de Processo Civil, 130.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário; vd., ainda, o artigo 209.º e seguintes da Constituição da República Portuguesa). A circunstância de o regime aplicável o ser por analogia, por não existir uma norma especifica quanto a situações com a ora em apreço, não afasta a aplicação do artigo 128.º, n.º 1, al. e) da Lei de Organização do Sistema Judiciário nem a competência do Tribunal de Comércio. Não faz sentido atribuir a Juízos de natureza diversa a competência material para preparar e julgar acções com o mesmo conteúdo, o que é desconforme à coerência interna do próprio sistema. Entendemos, assim, não ser este o Tribunal materialmente competente para a presente acção, mas sim o Tribunal de Comércio. Nos termos do artigo 96.º do Código de Processo Civil, a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, que pode ser suscitada oficiosamente (artigo 97.º do Código de Processo Civil). A incompetência absoluta do Tribunal é uma excepção dilatória insuprível e constitui fundamento, conforme o caso, para indeferimento liminar da acção ou absolvição do Réu, nos termos conjugados dos artigos 96.º, al. a), 97.º, 99.º, 576.º, n.º 1 e 2, 577.º, al. a), 578.º e 590.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil (…)”. * 6. Foi suscitada a resolução do conflito de competência. * 7. Foram notificadas as partes e o Ministério Público, tendo este último, por promoção de 15-05-2024, se pronunciado no sentido de ser deferida a competência ao Juízo de Comércio. ** II. Nos termos do n.º 2 do artigo 109.º do CPC, há conflito, positivo ou negativo, de competência quando dois ou mais tribunais da mesma ordem jurisdicional se consideram competentes ou incompetentes para conhecer da mesma questão. Não há conflito enquanto forem suscetíveis de recurso as decisões proferidas sobre a competência (cfr. artigo 109.º, n.º 3, do CPC). Quando o tribunal se aperceba do conflito, deve suscitar oficiosamente a sua resolução junto do presidente do tribunal competente para decidir (cfr. artigo 111.º, n.º 1, do CPC). Entendem ambos os tribunais não serem competentes para dirimir o processo. ** III. A aferição do pressuposto processual da competência é determinada à luz da estrutura do objeto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulado na petição inicial, no momento em que a mesma é intentada (vd., entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20-02-2019, Pº 9086/18.0T8LSB-A.L1.S1, rel. RIBEIRO CARDOSO, de 07-03-2019, Pº 13688/16.1TBPRT.P1.S1, rel. FERNANDO SAMÕES e do TRL de 01-07-1993, in C.J., t. 3, p. 144, de 26-05-1999, Pº 0023414, rel. PEREIRA RODRIGUES e de 10-04-2024, Pº 31189/22.7T8LSB-A.L1-4, rel. SÉRGIO ALMEIDA). Conforme salienta Mariana França Gouveia (A Causa de Pedir na Acção Declarativa, Almedina, 2004, pp. 507-508): “Para efeitos de competência, a causa de pedir deve ser identificada com os factos jurídicos alegados pelo autor que, analisados na lógica jurídica da petição inicial, permitam a aplicação de uma norma de competência. Isto significa que a estrutura de causalidade entre causa de pedir e pedido que o autor estabelece na petição inicial, ou no conjunto dos seus articulados, é suficiente, é o contexto, o enquadramento da relação jurídica alegada e, em consequência, da aplicação das normas de competência”. A competência material do tribunal traduz a medida da jurisdição interna atribuída a cada tribunal atendendo à matéria da causa que lhe é submetida. Conforme salientam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1985, p. 207), “[n]a base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram”. A competência em razão da matéria afere-se em função da relação material controvertida configurada pelo autor, “tendo presente que o sistema judicial não é unitário, mas constituído por várias categorias de tribunais, separados entre si, com estrutura e regime próprios” (assim, o Acórdão do STJ de 09-11-2017, Pº 8214/13.7TBVNG-A.P1.S1, rel. ANTÓNIO PIÇARRA). Nos termos do disposto no artigo 98.º, al. a) do CPC, a infração das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal. No caso, o dissídio ocorre relativamente à competência material repartida entre os juízos locais cíveis e os juízos de comércio. Na configuração do sistema judiciário português atualmente em vigor (cujo regime se mostra instituído, nomeadamente, pela Lei de Organização do Sistema Judiciário, abreviadamente, LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto e pelo D.L. n.º 49/2014, de 27 de março, diploma que procedeu à regulamentação daquela lei estabelecendo o regime aplicável à organização e funcionamento dos tribunais judiciais, abreviadamente ROFTJ), cabe, no que se refere aos tribunais Judiciais de primeira instância, aos tribunais de comarca a competência para preparar e julgar todos os processos relativos a causas não abrangidas na competência de outros tribunais (cfr. artigos 33.º, 37.º, 40.º e 79.º e ss. da LOSJ). Os tribunais de comarca, por sua vez, são constituídos por juízos de competência genérica ou especializada (ou de proximidade), cujas competências estão definidas em função da matéria e do valor (cfr. artigo 81.º da LOSJ). Os juízos locais cíveis são juízos de competência especializada (artigo 81.º, n.º 3, da LOSJ) com competência residual, cabendo-lhes a preparação e julgamento das ações que não sejam atribuídas a outros juízos da mesma comarca ou a um Tribunal de competência territorial alargada: Dispõe o n.º 1 do artigo 130.º da LOSJ, que os juízos locais cíveis “possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada”. Por seu turno, a competência material dos juízos especializados de comércio encontra-se prevista no artigo 128.º da LOSJ. Estabelece este preceito que: “1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização; b) As acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade; c) As acções relativas ao exercício de direitos sociais; d) As acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais; e) As acções de liquidação judicial de sociedades; f) As acções de dissolução de sociedade anónima europeia; g) As acções de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais; h) As acções a que se refere o Código do Registo Comercial; i) As acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras. 2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais. 3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respectivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões”. ** IV. Ponderando o pedido e a causa de pedir formulados pela autora, verifica-se que não estamos em face de processo especial de revitalização, nem perante pedido de declaração de insolvência, de declaração de inexistência, nulidade ou anulação do contrato de sociedade, de suspensão ou anulação de deliberações sociais, de dissolução de sociedade anónima europeia, nem perante a dissolução de sociedades gestoras de participações sociais, não se tratando de ação referida no Código do Registo Comercial, nem de uma ação de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras. O dissídio entre os tribunais reporta-se à integração, ou não, da pretensão da autora na previsão da alínea e) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ, ou seja, se estamos perante ação relativa a “liquidação judicial de sociedades”. A lei não define o que se deve entender por “liquidação judicial de sociedades”, embora utilize tal conceito, na linha do que fazia, em idênticos termos, nos precedentes artigos 89.º, n.º 1, al. e) da LOFTJ (aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro) e 121.º, n.º 1, al. e) da Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto. O legislador emprega a designação “liquidação da sociedade” no Capítulo XIII do Título I (Parte Geral) do Código das Sociedades Comerciais (abreviadamente, CSC) em vigor – artigos 146.º e ss. do CSC), depois de regular, no precedente capítulo a matéria da dissolução da sociedade (artigo 141.º e ss. do CSC). A dissolução constitui o efeito jurídico de determinados factos ou causas de dissolução e opera a modificação da situação ou do estatuto da sociedade dotada de personalidade jurídica (cfr. Ricardo Costa; Código das Sociedade Comerciais em Comentário, II, 3ª edição, Almedina, 2021, anotação ao artigo 143º, pp. 693-696 e 727-733). A dissolução de uma sociedade constitui uma modificação da situação jurídica que se caracteriza pela sua entrada em liquidação, mas a dissolução não é o ato responsável pela extinção da personalidade social, constituindo apenas a primeira fase do processo complexo, que conduz a essa extinção e, desse modo, à cessação do conjunto de direitos e deveres imputáveis à esfera jurídica da sociedade. A dissolução desencadeia a entrada da sociedade em liquidação (segunda fase do processo de extinção da sociedade), cujas finalidades são, “pelo que respeita aos sócios, evitar que as relações sociais, quer activas, quer passivas, passem a constituir relações pessoais de cada um dos sócios, ou em contitularidade com outros ou individualmente; definir e extinguir as relações mútuas dos sócios. No que toca aos credores, pretende-se (…) a satisfação dos seus créditos enquanto permanece o ente que juridicamente é devedor (ou o património deste).” (cfr. Raul Ventura, Dissolução e liquidação de sociedades, pág. 216). Neste sentido, a personalidade jurídica da sociedade conserva-se até ao registo do encerramento da liquidação. A sociedade dissolve-se nos casos previstos no contrato de sociedade e, bem assim: “a) Pelo decurso do prazo fixado no contrato; b) Por deliberação dos sócios; c) Pela realização completa do objecto contratual; d) Pela ilicitude superveniente do objecto contratual; e) Pela declaração de insolvência da sociedade.” (cfr. artigo 141.º do CSC). Para além disso, a dissolução pode ter lugar por decisão administrativa ou por deliberação dos sócios (cfr. artigo 142.º do CSC). Estabelece o artigo 142.º do CSC que: “1 - Pode ser requerida a dissolução administrativa da sociedade com fundamento em facto previsto na lei ou no contrato e quando: a) Por período superior a um ano, o número de sócios for inferior ao mínimo exigido por lei, excepto se um dos sócios for uma pessoa colectiva pública ou entidade a ela equiparada por lei para esse efeito; b) A actividade que constitui o objecto contratual se torne de facto impossível; c) A sociedade não tenha exercido qualquer actividade durante dois anos consecutivos; d) A sociedade exerça de facto uma actividade não compreendida no objecto contratual. 2 - Se a lei nada disser sobre o efeito de um caso previsto como fundamento de dissolução ou for duvidoso o sentido do contrato, entende-se que a dissolução não é imediata. 3 - Nos casos previstos no n.º 1 podem os sócios, por maioria absoluta dos votos expressos na assembleia, dissolver a sociedade, com fundamento no facto ocorrido. 4 - A sociedade considera-se dissolvida a partir da data da deliberação prevista no número anterior, mas, se a deliberação for judicialmente impugnada, a dissolução ocorre na data do trânsito em julgado da sentença”. E, o artigo 143.º do CSC estabelece, sob a epígrafe “Causas de dissolução oficiosa” que, o serviço de registo competente deve instaurar oficiosamente o procedimento administrativo de dissolução, caso não tenha sido ainda iniciado pelos interessados, quando: a) Durante dois anos consecutivos, a sociedade não tenha procedido ao depósito dos documentos de prestação de contas e a administração tributária tenha comunicado ao serviço de registo competente a omissão de entrega da declaração fiscal de rendimentos pelo mesmo período; b) A administração tributária tenha comunicado ao serviço de registo competente a ausência de actividade efectiva da sociedade, verificada nos termos previstos na legislação tributária; c) A administração tributária tenha comunicado ao serviço de registo competente a declaração oficiosa da cessação de actividade da sociedade, nos termos previstos na legislação tributária. O regime do procedimento administrativo de dissolução é regulado em diploma próprio (cfr. artigo 144.º do CSC), o qual consta do anexo III ao D.L. n.º 76-A/2006, de 29 de março, que tendo criado o Regime Jurídico do Procedimento Administrativo de Dissolução e de Liquidação de Entidades Comerciais (abreviadamente, RJPADLEC). A sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, mas mantém a personalidade jurídica, devendo ser aditada à firma a menção “sociedade em liquidação” ou “em liquidação” (artigo 146.º, n.ºs 1, 2 e 3, do CSC). Conforme refere António Pereira de Almeida (Sociedades Comerciais, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2003, p. 525), a “liquidação é a situação em que se encontra a sociedade em consequência da dissolução e tem por finalidade a partilha do activo remanescente após liquidação do passivo”. A liquidação é uma fase económico-contabilística que permite a concretização da dissolução (enquanto facto extintivo que lhe é prévio) (assim, Paula Costa e Silva e Rui Pinto; anotação ao “Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais”, em Código das Sociedades Comerciais Anotado; coord. de A. Menezes Cordeiro, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 1395). Nas palavras de Raul Ventura (Dissolução e Liquidação de Sociedades, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, 1993, p. 296-305), “dissolvida a sociedade, não se altera radicalmente a sua organização, mas produzem-se algumas modificações na sua estrutura orgânica e bem assim na competência de alguns órgãos subsistentes”. Explicitando a diferença substancial entre dissolução e liquidação societária, expressou-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 18-01-2018 (Pº 181/16.1T8PRG.G1, rel. JORGE TEIXEIRA) as seguintes considerações, que nos merecem total adesão: “A dissolução da sociedade é a modificação da relação jurídica constituída pelo contrato de sociedade consistente em ela entrar na fase da liquidação do respectivo património, dando-se a cessação gradativa da sua existência. Trata-se, assim, de uma modificação e não da sua extinção, já que, não obstante a sua dissolução, a sociedade conserva a sua personalidade jurídica até ao registo do encerramento da liquidação, continuando, durante a fase da liquidação, temporariamente, a exercer a actividade social, passando, porém, os administradores a ser os liquidatários. Só concluída a liquidação e feito o registo de encerramento da liquidação, cessa a personalidade jurídica da sociedade, só então se podendo considerar extinta, não podendo, então, a sociedade, regressar à actividade”. Relativamente à liquidação e salvo nos casos em que o contrato de sociedade contenha cláusula diversa ou nos casos em que os sócios deliberem de outra forma, os administradores da sociedade assumem a posição de liquidatários (artigo 151.º, n.º 1, do CSC), detendo, em geral, os deveres, os poderes e a responsabilidade dos membros do órgão de administração da sociedade. A liquidação “tem por finalidade última realizar um interesse dos sócios, mas que deve ser conseguida sem postergação dos interesses dos credores sociais” (assim, Carolina Cunha; “Liquidação de sociedades” in Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume II, coord. Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Almedina, 2015, p. 689). Estes interesses são potencialmente contraditórios. Por um lado, aos sócios interessa, não só recuperar o valor das suas entradas, como também receber os lucros produzidos e não periodicamente distribuídos (os lucros finais ou de liquidação, portanto). Por outro lado, aos credores sociais importa a satisfação dos seus créditos através do património da sociedade. “Em termos práticos a liquidação implica o levantamento de todas as situações jurídicas relativas á sociedade em liquidação, a resolução de todos os problemas pendentes que a possam envolver, a realização pecuniária (se for o caso) dos seus bens, o pagamento de todas as dívidas e o apuramento do saldo final, a distribuir pelos sócios” (cfr. António Menezes Cordeiro, in Direito das Sociedades, I, 5ª edição, p. 1035). Todavia, há situações em que não se verifica a fase de liquidação, como sucede nos casos previstos nos artigos 11.º, n.º 4 e 27.º do Regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais. Concluído o processo de liquidação, os liquidatários submetem a deliberação dos sócios as contas finais, acompanhadas por um relatório completo da liquidação e por um projeto de partilha do ativo restante, devendo ser declarado, naquele, que estão satisfeitos ou acautelados os direitos dos credores (artigo 157.º do CSC). A sociedade considera-se extinta pelo registo do encerramento da liquidação (cfr. artigo 160.º, n.º 2, do CSC). Aprovadas que sejam as contas finais pelos sócios, em conformidade com o disposto no artigo 160.º do CSC, incumbe aos liquidatários requerer o registo do encerramento da liquidação, com o qual “(…), finalmente, a sociedade exala o último suspiro, isto é, se considera extinta, mesmo entre os sócios e sem prejuízo das acções pendentes ou do passivo ou activo superveniente” (assim, o Acórdão do STJ de 26-06-2008, in CJSTJ, Tomo II, p. 138). A extinção da pessoa coletiva fá-la perder a personalidade jurídica, mas, nem por isso, cessam as relações jurídicas de que era sujeito ativo ou passivo. Aliás, no que ao pagamento de responsabilidades respeita, a norma geral constante do artigo 1020.º do CC – de natureza geral e aplicável a qualquer contrato de sociedade – determina que “encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios continuam responsáveis perante terceiros pelo pagamento dos débitos que não tenham sido saldados, como se não tivesse havido liquidação”, situação que, assim, imporá a continuação das funções de liquidação. O CSC distingue os casos em que existam ações pendentes, daqueles em que tais ações não existam ainda quando a sociedade é objeto de liquidação. Dispõe o artigo 162.º do CSC – com a epígrafe “Acções pendentes” – o seguinte: “1 - As acções em que a sociedade seja parte continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários, nos termos dos artigos 163.º, n.ºs 2, 4 e 5, e 164.º, n.ºs 2 e 5. 2 - A instância não se suspende nem é necessária habilitação”. Por seu turno, dispõe o artigo 163.º do CSC – com a epígrafe “Passivo superveniente” – o seguinte: “1 - Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha, sem prejuízo do disposto quanto a sócios de responsabilidade ilimitada. 2 - As acções necessárias para os fins referidos no número anterior podem ser propostas contra a generalidade dos sócios, na pessoa dos liquidatários, que são considerados representantes legais daqueles para este efeito, incluindo a citação; qualquer dos sócios pode intervir como assistente; sem prejuízo das excepções previstas no artigo 341.º do Código de Processo Civil, a sentença proferida relativamente à generalidade dos sócios constitui caso julgado em relação a cada um deles. 3 - O antigo sócio que satisfizer alguma dívida, por força do disposto no n.º 1, tem direito de regresso contra os outros, de maneira a ser respeitada a proporção de cada um nos lucros e nas perdas. 4 - Os liquidatários darão conhecimento da acção a todos os antigos sócios, pela forma mais rápida que lhes for possível, e podem exigir destes adequada provisão para encargos judiciais. 5 - Os liquidatários não podem escusar-se a funções atribuídas neste artigo, sendo essas funções exercidas, quando tenham falecido, pelos últimos gerentes ou administradores ou, no caso de falecimento destes, pelos sócios, por ordem decrescente da sua participação no capital da sociedade”. O artigo 164.º do CSC trata, por seu turno, do ativo superveniente da sociedade extinta. Da conjugação dos referidos normativos resulta que, havendo ações pendentes, as mesmas continuam o seu curso, só que com a substituição da sociedade por todos os sócios, que passam a ser representados pelos liquidatários (cfr. artigo 162.º do CSC). Já se houver passivo social não satisfeito ou acautelado, é dos sócios a respetiva responsabilidade, até ao montante do que receberam na partilha, sendo as ações necessárias para tanto, propostas contra eles, mas na pessoa dos liquidatários, considerados, para o efeito, como seus representantes legais (artigo 163.º do CSC). O ativo não partilhado que eventualmente possa existir é levado a partilha adicional pelos liquidatários, que podem propor as ações que se revelarem necessárias para a cobrança de créditos, caso em que serão considerados representantes legais dos sócios, sem embargo de cada qual destes poder propor ação limitada ao seu interesse (artigo 164.º do CSC). Por outro lado, conforme se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-07-2019 (Pº 9148/10.2YIPRT-C.L1-2, rel. ARLINDO CRUA), “o mecanismo legal inscrito no transcrito nº. 2, do art.º 162º, visa facilitar a actuação dos credores sociais, sem prejudicar os sócios. Com efeito, depois de extinta a sociedade, os credores sociais ver-se-iam confrontados com “uma pluralidade de devedores, desprovidos, em princípio, de uma representação unitária e embora os pudessem demandar conjuntamente, nos termos do art.º 30º, nº. 1, CPC, estariam sujeitos a incómodas contingências para a identificação dos actuais réus (por exemplo, dificuldades de determinação dos sucessores, no caso de falecimento de algum antigo sócio; desconhecimento dos antigos titulares de acções não registadas) e a complicações processuais, como as citações de numerosos réus e a eventual separação das defesas destes” (sublinhado nosso). Desta forma, a consagrada solução alternativa, “consiste em «despersonalizar» os sócios, para efeitos processuais, admitindo a propositura das acções contra a «generalidade» deles e ao mesmo tempo atribuir aos liquidatários (ou outras pessoas, na falta deles) a representação processual dessa «generalidade»”. Pelo que bastará, aquando da propositura da acção pelo reclamado credor social, identificar na petição inicial os representantes, ou seja, os liquidatários da extinta sociedade, “o que o credor não tem dificuldade em fazer, bastando-lhe consultar o registo comercial” (…). [A] enunciada “generalidade dos (antigos) sócios” tem personalidade judiciária, actuando os liquidatários “judicialmente como representantes da generalidade dos sócios; recebem da lei o encargo de defender interesses alheios, em continuação de uma função que, relativamente à sociedade, aceitaram exercer”.”. ** V. Importa considerar que, no caso em apreço, a matrícula da sociedade Gourmet Happenings - Acontecimentos e Catering, Lda. foi cancelada na sequência da decisão de encerramento da liquidação proferida no âmbito de procedimento administrativo de liquidação de entidades comerciais subsequente ao encerramento do processo de insolvência por insuficiência da massa insolvente (em conformidade com o prescrito na alínea i) do n.º 5 do artigo 15.º do RJPADLEC). A presente ação insere-se na liquidação de ativo e passivo superveniente, de acordo com o invocado pela autora. Todavia, entende o Juízo de Comércio que “não estamos perante uma situação de liquidação judicial de sociedades, na medida em que tal facto já ocorreu” e, nessa medida, conclui que, encontrando-se “extinta a sociedade parece-nos claro e evidente que o Juízo de Comércio de Lisboa não é competente para preparar e julgar a ação em apreço, porquanto, de facto et de jure, não existe sociedade comercial a liquidar judicialmente (…) analisada a causa de pedir, que sustenta o pedido, o que pretende o autor não é a liquidação da sociedade proprio sensu, cuja extinção reconhece ab initio na sua petição inicial, mas do património restante desta, que não foi objeto de partilha prévia entre os sócios, nem de liquidação para pagamento de dívidas”. Ora, compreende-se que, de facto a matrícula da sociedade em questão foi objeto de cancelamento na sequência da decisão de encerramento da liquidação proferida no procedimento administrativo de liquidação que correu termos relativamente a tal ente societário. Contudo, tem-se admitido que, nesta circunstância, o credor social possa, judicialmente obter a liquidação de património social ulteriormente ao encerramento da precedente fase de liquidação administrativa. Conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-01-2018 (Pº 2153/13.9TYLSB.L1.S2, rel. MARIA OLINDA GARCIA): “I - Concluindo-se que a via administrativa para a dissolução de sociedades (o RJPADLEC) não permite acautelar cabalmente legítimos interesses dos credores da sociedade dissolvida, não pode o aplicador do direito resignar-se à conclusão de que o sistema não confere expressamente legitimidade aos credores para promoverem a partilha por via judicial. II - A existência de imóveis (que têm como proprietária uma sociedade dissolvida administrativamente), que não foram objeto de liquidação nem de partilha (porque esta fase não existiu), mas que continuam a gerar passivo (dívidas ao condomínio) não se encontra expressamente prevista nos arts. 163.º e 164.º do CSC. III - Não sendo os ex-sócios diretamente demandáveis pelo pagamento das dívidas ao condomínio, (porque nada receberam da sociedade), há que apurar como pode o património da extinta sociedade responder por aquelas dívidas. IV - Do ponto de vista da correta ordenação da titularidade dos bens, não é admissível que imóveis urbanos, concretamente frações autónomas, não tenham um dono que possa ser responsabilizado pelas dívidas inerentes ao seu específico estatuto imobiliário. Pelo facto de se encontrarem em propriedade horizontal, os imóveis (propriedade da dissolvida sociedade) continuarão, necessariamente, a gerar as dívidas correspondentes às despesas do condomínio. V - Constatando-se a abertura do sistema à via judicial, feita pelo n.º 2 do art. 165.º do CSC, deverá concluir-se que essa via se manterá igualmente aberta quando esteja em causa a reclamada tutela de interesses materialmente idênticos. As hipóteses previstas no art. 165.º do CSC (respeitantes ao destino dos bens das sociedades inválidas) e a hipótese do caso sub judice (insuficiência normativa do procedimento administrativo de dissolução) respeitam a problemas valorativamente equiparáveis, pelo que se justifica a convocação da solução jurídica que conduza aos mesmos efeitos práticos”. Verifica-se, pois, que para a liquidação do património social de sociedade extinta (promovida ulteriormente ao encerramento da liquidação operada em prévio processo de dissolução e liquidação administrativa), poderá o credor social instaurar processo judicial para liquidação do ativo/passivo superveniente, enquadrando-se a pretensão correspondente ainda no âmbito da matéria atinente à liquidação societária que, sendo exercida judicialmente, radicará a atribuição de competência para a preparação e julgamento dessa correspondente ação judicial, aos juízos de comércio, em conformidade com o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ. Conforme refere a decisão proferida pelo juízo local cível, não tem sentido, na situação vertente, “atribuir a Juízos de natureza diversa a competência material para preparar e julgar acções com o mesmo conteúdo [material], o que é desconforme à coerência interna do próprio sistema”. O reconhecimento da competência dos juízos de comércio para a tramitação e julgamento destas ações – para liquidação de ativo/passivo superveniente – foi expressamente reconhecido no referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18-01-2018 (Pº 2153/13.9TYLSB.L1.S2, rel. MARIA OLINDA GARCIA), onde se escreveu, a este propósito, o seguinte: “(…) Admitindo-se, deste modo, o acesso dos credores à via judicial para promoverem a liquidação da extinta sociedade, algumas questões processuais, complementarmente, se levantam: saber qual o processo próprio; e se a ação pode correr no juízo de comércio. O vigente Código de Processo Civil (aprovado pela Lei n.41/2013) não contém previsão legal equivalente ao anterior art.1122º (do CPC de 1995). Todavia, o facto de ter desaparecido o processo especial de liquidação judicial de sociedades não significa que, face ao peticionado pela Autora, a liquidação não possa continuar a ocorrer por via judicial, aplicando-se o processo comum (art.546º, n.2 do CPC) e observando-se a pertinente adequação formal, como resulta do art.547º do CPC. Quanto à competência do juízo de comércio para conhecer desta ação, ela é expressamente prevista pelo art.128º da Lei n.62/2013 (Lei da Organização do Sistema Judiciário), o qual estabelece, no seu n.1. Compete aos juízos de comércio preparar e julgar: e) As ações de liquidação judicial de sociedades (…)”. Esta doutrina foi acolhida, ulteriormente, pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-02-2024 (Pº 694/19.3T8VCT.G1, rel. JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE), onde se decidiu que: “Tendo sido instaurado oficiosamente procedimento administrativo de dissolução de uma sociedade e, apesar de haver activo e passivo, não tendo o processo administrativo sido informado da existência dos mesmos; tendo o Sr. Conservador proferido decisão de dissolução e encerramento da liquidação da sociedade comercial, nos termos do n.º 4 do art.º 11º do RJPADLEC, não tendo essa decisão sido impugnada e tendo, em função disso, sido inscrita a dissolução e encerramento da liquidação da sociedade, por aplicação analógica do n.º 2 do art.º 165º do CSC, havendo activo e passivo, os credores poderão intentar acção comum contra os sócios da extinta sociedade, no Juízo de Comércio competente, pedindo a liquidação, sem necessidade de que seja considerada sem efeito, a decisão de encerramento da liquidação sociedade e ordenada a reabertura do procedimento para efeitos de liquidação do património da sociedade extinta”. Não vemos razões para divergir desta orientação, afigurando-se-nos que a posição do juízo de comércio conduz à consideração de uma especiosa distinção na matéria da liquidação societária, que, de facto não se encontra salvaguarda na lei, nem satisfaz adequada tutela aos diversos interesses sociais (dos sócios, credores, etc.) a que subjaz o processo de liquidação do património social. Considerando o pedido e a causa de pedir formulados pela autora, encontramo-nos, ainda, no âmbito da matéria atinente à liquidação judicial de património societário, sendo viável o prosseguimento da liquidação, de harmonia com o regime do n.º 2 do artigo 165.º do CSC, cuja aplicação – mesmo que por analogia – sempre seria de considerar. Assim, competente, em razão da matéria, para a preparação e julgamento da presente ação, será o juízo de comércio, de acordo com o disposto no artigo 128.º, n.º 1, al. e) da LOSJ. ** VI. Pelo exposto, sem necessidade de mais considerações, decido este conflito, declarando competente para a tramitação da presente ação, o Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz “X”. Sem custas. Notifique (cfr. artigo 113.º, n.º 3, do CPC). Baixem os autos. Lisboa, 31-05-2024, Carlos Castelo Branco. (Vice-Presidente, com poderes delegados – cfr. Despacho n.º 2577/2024, publicado no DR., 2.ª série, n.º 51, de 12-03-2024). |