Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5916/24.6T8LSB.L1-6
Relator: ADEODATO BROTAS
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
GARANTIA BANCÁRIA
CLÁUSULA ON FIRST DEMAND
ABUSO DE DIREITO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1- A litigância de má-fé as que se referem os tipos das alíneas a), b), c) e d) do no 2 do art.º 542º do CPC, pressupõe a pendência de uma lide processual e diz respeito aos limites do exercício das situações jurídicas processuais, maxime aos limites do direito de acção e da defesa, não dizendo respeito à actuação extraprocessual e comportamento contratual das partes nem ao modo como são substantivamente exercidos os direitos subjectivos.
2- A automaticidade é uma característica eventual do contrato autónomo de garantia bancária dependendo da aposição, nesse contrato, de uma cláusula à primeira solicitação (on first demand), a qual leva a que a entrega da soma objecto da garantia dependa, apenas, da solicitação do beneficiário e não já da verificação do fundamento material da solicitação.
3- Vem sendo entendido pela doutrina e jurisprudência largamente maioritárias que embora seja admitida a invocação do abuso de direito no âmbito das garantias bancárias autónomas, essa invocação tem limites impostos pela própria função da cláusula on first demand.
4- Afirma-se, nesse entendimento, no essencial, que o abuso do direito de crédito deve ser manifesto, inequívoco e que o carácter não fundado da solicitação deve ser claro e não contestável, fazendo-se depender a possibilidade de invocação do abuso de direito da apresentação de prova pronta e líquida da falta de fundamento material da solicitação.
5- Entende-se por prova pronta a prova pré-constituída, a que dispensa a produção de quaisquer outras provas suplementares e, por prova líquida ou inequívoca aquela que permite a percepção imediata do abuso.
6- A não apresentação, com o requerimento inicial, de tal prova pronta e líquida, implica o indeferimento liminar do procedimento cautelar em que vem pedido: (i) seja o beneficiário da garantia impedido de solicitar o respectivo pagamento; e, (ii) seja impedido o banco garante de entregar ao beneficiário o montante da garantia.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
1- P Construções, Lda, instaurou procedimento cautelar comum contra RNL, SA e, Banco X, SA, pedindo:
- Seja impedida a 1ª requerida de beneficiar do valor constante da garantia bancária nº …, no valor de 96.545,50€ e, caso tenha beneficiado desse valor, restituí-lo, de imediato, ao 2º requerido;
- Seja impedido o 2º requerido a entregar à 1ª requerida o valor constante da garantia bancária nº … no valor de 96.545,50€.
Alegou, em síntese, ter celebrado com a 1ª requerida, contrato de empreitada de construção de edifício que foi posteriormente objecto de dois aditamentos relativos a trabalhos a mais. Os trabalhos foram executados sem reclamações e, em 22/10/2021, foi emitido Auto de Recepção Provisória. O contrato de empreitada previa a retenção de valores bem como previa, em substituição das retenções de valores, a emissão de garantias bancárias à primeira solicitação até à recepção definitiva da obra, prevendo ainda o contrato que após o decurso do prazo de dois anos e meio a contar da data do Auto de Recepção Provisória, o valor da garantia bancária seria reduzido a metade; nessa medida, foram entregues garantias bancárias, entre elas a garantia bancária nº …, emitida pelo Banco, em 17/09/2021, pelo montante de 96 545,50€, com validade até 16/08/2026 e, com data de redução a 50% a 16/02/2024. Apesar de serem garantias bancárias à primeira solicitação, o respectivo acionamento pressupõe a verificação de facto justificativo e de o mesmo configurar um fundamento legal, sob pena de se traduzir num abuso de direito. A requerente, enquanto empreiteira, jamais deixou de satisfazer todos os pedidos de vistoria e de eliminação dos defeitos desde a recepção provisória até à presente data, pelo que o acionamento da garantia bancária em causa não tem fundamento porque todos os defeitos foram reparados. No Auto de Recepção Provisória elaborado a 22/10/2021 foi consignado que a obra se encontrava de acordo com o Caderno de Encargos com excepção:
- Ensaios de equipamentos que aguardam energia definitiva: Monta Cargas, AVAC, UPS, Central de Incêndio;
- Reposição do pavimento no Chafariz da Rua do S…;
- Reparações nos apartamentos e zonas comuns identificadas nas listas de anomalias enviadas pela fiscalização (vistorias efectuadas a 01/10/2021) e nas listas enviadas pelos clientes finais dos apartamentos, que as partes conhecem e dispensam que sejam anexadas ao presente auto.
A ligação da energia definitiva era da responsabilidade de uma terceira empresa. Aquando da elaboração do Auto de Recção Provisória as obras já haviam sido recebidas pela 1ª requerida e entregues aos adquirentes finais dos apartamentos.
A 1ª requerida enviou ao 2º requerido, a 13/02/2024, pedido de acionamento da garantia bancária mencionada, nº 433/2021-S, invocando reiterado e contínuo incumprimento das obrigações contratualmente assumidas, o que é falso. Com esse comportamento a 1ª requerida pretendia obstar à redução automática de 50% do valor da garantia que ocorreria a 16/02/2024 e, isto, apesar de ter na sua posse outras duas garantias bancárias nos valores já reduzidas, respectivamente, de 100.000€ e de 150.000€.
Nos termos da cláusula 24ª nº 3 do contrato de empreitada, o acionamento das garantias bancárias depende do seguinte procedimento prévio:

facto, como modo de suster a execução da(s) Garantia(s) Bancária(s);


Não tendo sido aceita a prorrogação do prazo da garantia pelo seu valor total, a requerida acionou-a com vista a obter esse valor total em vez da redução a 50%. De resto, a 1ª requerida notificou a requerente, a 13/02/2024, para proceder a reparações no apartamento 4 e, nesse mesmo dia acionou a garantia bancária junto do 2º requerido sem aguardar que a requerente procedesse à reparação ou deixasse esgotar o prazo para o efeito sem a realizar, sendo certo que, logo no dia 15/02/2024 (data em que recebeu a notificação da 1ª requerida), a requerente informou que necessitava de realizar a vistoria ao apartamento nº 4, tendo para o efeito ficado acordado entre as partes, o dia 23/02/2024 e, por isso, a 1ª requerida solicitou a execução da garantia bancária com má fé e em abuso de direito.
O acionamento da garantia bancária condiciona o acesso ao crédito por banda da requerente e atenta contra a sua credibilidade e prestígio, colocando a requerente numa posição difícil junto da banca especialmente junto do 2º requerido.
Requereu a dispensa de prévia audição dos requeridos e a inversão do contencioso.
Juntou diversos documentos, arrolou testemunhas e requereu declarações de parte do seu legal representante.
2- Por despacho de 12/03/2024, foi decidido:
 “Decisão
Em consequência do anteriormente exposto e nos termos do art.º 226, nº 4, al. b) e 590, nº 1 do C. P. Civil, decide-se:
A) Indeferir liminarmente, por manifesta improcedência, o presente procedimento cautelar.
B) Custas pela requerente, a atender na acção principal de que este procedimento será dependência – art.º 539, nºs 1 e 2 do C. P. Civil.
3- Inconformada veio a requerente interpor o presente recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1. Vem o presente recorrer da sentença, proferida pelo Tribunal a quo que indeferiu liminarmente, por manifesta improcedência, a providência cautelar, porquanto considerou que a garantia bancária foi legitimamente accionada pela 1ª Requerida, não se vislumbrando que a mesma tenha agido de forma contrária à boa fé ou em fraude, concluindo no sentido da manifesta improcedência, até por força da apresentação de prova não meramente documental.
2. Ora, o Tribunal a quo, na sentença ora em crise, proferiu decisão sem atentar em todos os factos que lhe foram apresentados, incorrendo, assim, em erro de julgamento e em erro de aplicação do direito, dado que viola o disposto nos arts. 293º, 362º e seguintes do CPC, bem como o disposto no art.º 20º da CRP, com as legais consequências.
3. A Recorrente requereu, através do presente procedimento cautelar não especificado, que a 1ª Requerida se abstenha de prosseguir com o pedido de pagamento do montante da garantia bancária nº 433/2021-S e que o 2º Requerida se abstenha de pagar aquela o valor da mesma garantia.
4. A Recorrente, na sua petição, alegou que celebrou com a 1ª Requerida, em 24.10.2018, um contrato de empreitada com vista à realização, pela Recorrente, na qualidade de empreiteira, de uma obra de construção de um edifício destinado a habitação e a comércio, relativamente ao qual foram efectuados dois aditamentos, sendo o preço total superior a 6.000.000,00 de Euros, obra essa na Rua do …, 2..5, em Lisboa.
5. Por força desse contrato de empreitada, e como garantia de boa execução do contrato, foi solicitado à 2º Requerida a emissão, além do mais, de três garantias bancárias a favor da 1ª Requerida:


6. Como se pode verificar deste quadro, após o decurso do prazo de 2 anos e meio, a contar da data do auto de recepção provisória, o valor da garantia bancária seria reduzido, cfr. nº 3 da Cláusula 14º.
7. Tais garantias acautelariam apenas e tão só quaisquer defeitos ou patologias derivadas da execução dos trabalhos pela Recorrente durante o período da vigência da garantia dos 5 (cinco) anos a que está legalmente obrigada.
8. O potencial acionamento desta garantia, ainda que a sua natureza seja de à primeira solicitação, pressupõe a verificação de facto justificativo e de o mesmo configurar um fundamento legal, sob pena de tal acionamento traduzir-se num abuso de direito.
9. A Recorrente nunca deixou de satisfazer todos os pedidos de vistoria e de eliminação de defeitos desde a receção da empreitada até à presente data.
10. No dia 13/2/2024, a 1ª Requerida envia à ora Recorrente carta registada, recebida a 15/2/2024, na qual interpela para a correção de irregularidades no apartamento 4,
11. Tendo a Recorrente, nesse mesmo dia 15 de Fevereiro de 2024, agendado o dia 23 de fevereiro de 2024, a fim de se deslocar ao edifício, de modo a apurar os eventuais danos no apartamento 4 (fracção D) indicados pela 1ª Requerida.
12. Sendo que, nesse mesmo dia 13/2/2024, a 1ª Requerida enviou ao 2º Requerido um pedido de accionamento da garantia bancária, não por se verificar um incumprimento por parte da Recorrente, mas, apenas e tão só, para não se efectivar a redução do valor da dita garantia.
13. Ora, tal comportamento consubstancia-se, de facto e de direito, num comportamento de má-fé e de abuso do direito.
14. Tendo a Recorrente apresentado prova cabal para a demonstração dos factos, nomeadamente documentos, bem como requereu produção de prova testemunhal.
15. No entanto, o Tribunal a quo decidiu considerar o presente procedimento cautelar como manifestamente infundado, porquanto entendeu a prova da má-fé, dolo ou abuso de direito apenas pode ser demonstrada por prova documental.
16. Salvo o devido respeito, não se pode aceitar este entendimento.
17. E, contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, essa limitação de prova constitui, de facto e de direito, uma verdadeira denegação de justiça.
18. Para além do facto dessa limitação de meios de prova não se encontrar estabelecida e/ou definida nos arts. 362º e seguintes do CPC.
19. E, nesse sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 8/1/2024, publicado in www.dgsi.pt, que, no seu sumário, estabelece que “(…)VIII - Tal prova pode ser a documental (carecida de tradução, se em língua estrangeira), a testemunhal, as declarações de parte e outra, sendo todas elas admissíveis, por lícitas e pertinentes, e de admitir, sob pena de ilícita e desproporcionada restrição dos instrumentos de prova, com
compressão do direito à prova e afetação do direito à tutela jurisdicional efetiva, sendo que a convicção do julgador sobre os factos, também os que integram a má fé e o abuso, se forma da análise conjunta e conjugada de todos os meios de prova e não apenas da documental ou outra pré- constituída.” (sublinhado nosso)
20. Na sua fundamentação, este Acórdão refere “(…)Na medida em que a paralisação do acionamento de garantia bancária não constitui um procedimento cautelar específico, com regras próprias, está sujeito ao regime geral, não se justificando que a peculiaridade, adveniente da natureza autónoma da garantia, imponha uma derrogação daquele regime no que respeita aos meios de prova. Nem se vislumbra que os factos integrantes do comportamento abusivo, da má fé, da fraude, não possam ser sujeitos a instrução, mormente mediante prova testemunhal, sujeita à livre apreciação pelo juiz. (…)”
21. No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 23/2/2012, publicado in www.dgsi.pt.
22. Pelo que, e contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, o presente procedimento cautelar não deveria ter sido indeferido liminarmente, por manifesta improcedência, dado que, deveria ter sido admitida e produzida a prova oferecida, e, mediante a selecção dos factos, ajuizar da viabilidade ou não do decretamento do presente procedimento.
23. Pelo que o Tribunal a quo, com a sua decisão de indeferimento liminar, violou quer o disposto no art.º 293º do CPC, quer os arts. 362º e seguintes do mesmo diploma, bem como o disposto no art.º 20º da CRP,
24. Devendo, consequentemente, a sua decisão ser revogada, e, em substituição, ser admitido o presente procedimento, com o consequente prosseguimento dos autos, com as legais consequências.
25. Além do supra exposto, entendeu, ainda o Tribunal a quo que a Recorrente olvida que se encontra a decorrer o prazo de garantia da obra e que novos defeitos poderão sobrevir, concluindo que o pedido de accionamento foi legitimamente efectuado pela 1ª Requerida.
26. Contudo, e com todo o respeito, o Tribunal a quo olvida que a 1ª Requerida tem na sua posse 3 garantias bancárias,
27. Sendo que essas 3 garantias bancárias têm por finalidade a boa execução do contrato de empreitada.
28. Não podendo deixar de referir que a autonomia do contrato de garantia bancária é simplesmente instrumental, dado que está ao serviço da causa do contrato base, ou seja, neste caso, do contrato de empreitada, uma vez que a sua função é garantir a relação jurídica principal.
29. Tendo sido alegado e demonstrado, nos presentes autos, que a relação jurídica principal não se encontra incumprida por parte da Recorrente.
30. Além disso, o Tribunal a quo faz tábua rasa do facto alegado: que, no mesmo dia que interpela a Recorrente para a correção de problemas no apartamento 4, acciona a garantia bancária 433/2021-S, apenas, com o objectivo de não permitir a redução do seu valor.
31. Quando, mais uma vez se refere, tem na sua posse mais 2 garantias bancárias e a Recorrente tem atendido e solucionado todos os pedidos de correção por parte da 1ª Requerida.
32. Além disso, o procedimento para accionamento das garantias encontra-se definido pelas partes no nº 3 da Cláusula 24ª do contrato de empreitada.
33. No caso em apreço, e tendo a 1ª Requerida interpelado a Recorrente em 13/2/2024 para a correção de trabalhos, nos termos contratuais, só após o decurso do prazo de 30 dias sem que a Recorrente executasse os trabalhos, poderia a 1ª Requerida executar a garantia.
34. Como demonstrado, no mesmo dia em que interpela a Recorrente para a correção de trabalhos, apresenta o pedido de accionamento da garantia junto do 2º Requerido.
35. O que demonstra, por um lado, o incumprimento do contrato por parte da 1ª Requerida, e, por outro lado, o seu comportamento de má-fé e de abuso do direito.
36. Pelo que, e contrariamente ao decidido pelo Tribunal a quo, só em caso de incumprimento da Recorrente, pode a 1ª Requerida accionar a garantia.
37. Não fazendo, assim, sentido o constante na decisão ora em crise que, também, nesta parte deve ser revogada, com as legais consequências.
Termos em que, e de acordo com o supra exposto, a sentença, ora em crise, deve ser revogada, dado que viola o disposto nos arts. 293º, 362º e seguintes do CPC, bem como o disposto no art.º 20º da CRP, incorrendo em erro de julgamento e de aplicação do direito, e ser substituída por decisão que admita o presente procedimento cautelar.

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4- Recebidos os autos nesta Relação, por despacho do ora relator, proferido a 22/04/2024, foi determinado que a 1ª instância analisasse e decidisse se deveria ser cumprido o art.º 541º nº 1, 1ª parte do CPC.

5- Por despacho de 07/05/2024, a 1ª instância decidiu não dispensar a prévia audição das requeridas e, ordenou a respectiva citação para os termos do procedimento e do recurso.

6- Em 11/06/2024, a 1ª requerida apresentou requerimento pedindo a condenação da requerente e do 2º requerido, como litigantes de má-fé, no pagamento de multa e em indemnização para pagamento de honorários de advogados que se estima venham a ser de 20.000€.
Alegou, em síntese, que previamente a ter sido citada para os termos do procedimento e do recurso já sabia da sua pendência, embora desconhecendo o número de processo e o tribunal por onde pendia porque a 2ª requerida a informou que se recusava a satisfazer a solicitação de acionamento da garantia bancária por pender procedimento cautelar visando o impedimento desse acionamento. Apesar de ter solicitado ao banco, 2º requerido, que informasse o número do processo e o tribunal por onde pende o procedimento, advertindo-o de que não se verificavam os pressupostos do decretamento da providência sem a prévia audição dos requeridos. A requerente e o 2º requerido conluiaram-se visando a não satisfação da garantia bancária, bem sabendo não existir fundamento para a não execução dessa garantia. A requerente e o 2º requerido litigaram de má-fé, nos termos do art.º 542º nº 2, als. a), b) e c), deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não podiam ignorar, alterando a verdade dos factos relevantes para a decisão da causa e, praticando omissão grave do dever de cooperação.

7- A 1ª requerida, citada, contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, sem formular Conclusões, invocando, em síntese, que a requerente, empreiteira, tem vindo a incumprir, reiteradamente, as suas obrigações enquanto empreiteira e, concordando com a decisão de indeferimento liminar da providência, defende que não existe a mínima evidência de manifesto abuso de direito do acionamento da garantia bancária.

8- A requerente/apelante pronunciou-se pela improcedência da peticionada condenação como litigantes de má-fé.

9- Igualmente, a 2ª requerida, Banco, pronunciou-se contra a pretendida condenação, dela e da requerente, como litigantes de má-fé.

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II- FUNDAMENTAÇÃO.

1- Objecto do Recurso.

1- É sabido que o objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (art.º 635º nº 2 do CPC) pelas conclusões (artºs 635º nº 4, 639º nº 1 e 640º do CPC) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e, ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente e pela questão, autónoma, da invocada litigância de má-fé, peticionada pela 1ª requerida/apelada, são as seguintes as questões que importa analisar e decidir:
a)- A Pretendida condenação da requerente e do 2º requerido como litigantes de má-fé.
b)- A solicitada revogação da decisão de indeferimento liminar do procedimento cautelar.

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2- Matéria de Facto.

Com relevo para a apreciação e decisão do recurso, importa ter em consideração a seguinte factualidade:

1º- O 2º requerido, EuroBic, emitiu a, 17/09/2021, garantia bancária nº 433/2021-S, em nome e a pedido da requerente, P - Construções, enquanto adjudicatária da empreitada de reabilitação do edifício sito na Rua … nºs…, declarando o Banco que “…presta, pelo presente documento uma garantia bancária autónoma, irrevogável, incondicional e à primeira solicitação a favor de RNL, S.A, com sede na Av. …Lisboa, NIPC 51…, no montante de €96.545,50 (noventa e seis mil, quinhentos e quarenta e cinco euros e cinquenta cêntimos). destinada a assegurar o bom e integral cumprimento das obrigações que a P, IDA., assumiu no contrato de empreitada que celebrou com RNL, S.A.
A presente garantia bancária manter-se-á em vigor pelos seguintes montantes, durante o seu prazo de validade:
Até 016/02/2024 pelo valor de €96.545,50 (noventa e seis mil, quinhentos e quarenta e
cinco euros e cinquenta cêntimos).
De 17-02-2024 até 16-08-2026 pelo valor de €48.272,75 (quarenta e oito mil, duzentos e setenta e dois euros e setenta e cinco cêntimos). -
Desta forma, o BANCO X, S.A., obriga-se a pagar, como principal pagador e com expressa renúncia ao benefício de excussão, dentro do citado valor, ao primeiro pedido e sem necessidade de qualquer consideração, quaisquer importâncias que se tornem devidas caso a afiançada, faltando ao cumprimento das obrigações assumidas no contrato de empreitada, com elas não entrar em devido tempo, não podendo o BANCO X, S.A., alegar qualquer fundamento para recusar ou retardar o pagamento que lhe for exigido.

2º- No contrato de empreitada celebrado entre a requerente a 1ª requerida consta, além do mais,
- Na cláusula 14ª, que:


 - Na cláusula 23ª:


efectuar a correção por terceiros e obter o reembolso do custo respectivo através da execução da Garantia Bancária, sem prejuízo do disposto no nº 3 da Cláusula seguinte.

- Cláusula 24ª nº 3:
A execução, pela Dona da Obra das Garantias Bancárias depende do seguinte procedimento prévio:



3º- Com data de 22/10/2021 foi elaborado Auto de Recepção Provisória da obra, do qual consta, além do mais:
Do exame de todos os trabalhos desta obra, verificou-se que a mesma se encontra conforme Caderno de Encargos com exceção dos seguintes pontos para os quais a P- Construções, Lda. se compromete a terminar no prazo máximo de 30 dias:
- Ensaios dos equipamentos que aguardam energia definitiva Monta cargas, AVAC, UPS, Central de Incêndio;
- Reposição do pavimento na zona do Chafariz da Rua …;
- Reparações nos apartamentos e zonas comuns identificadas nas listas das anomalias enviadas pela fiscalização (vistorias efetuadas dia 01-10-2021) e nas listas enviadas pelos clientes finais dos apartamentos. As partes admitem conhecer as listas em questão, dispensando que sejam anexas ao presente Auto.
Após a finalização de todos os trabalhos, a P Construções, Lda. deverá convocar o Dono de Obra para uma vistoria final, começando a contar a partir dessa data os prazos das garantias legais.

4º- Com data de 13/02/2023 a 1ª requerida enviou carta registada à requerente discriminando 11 defeitos no apartamento 4 e, dando um prazo de 30 dias para reparação.

5º- Com data de 16/02/2024, a 1ª requerida comunicou, por email à requerente:
No seguimento da vossa carta datada de 15/02/2024, informamos que o proprietário do apartamento 4, Sr. FK, está disponível para dar acesso no dia 23/02/2024, pelas 15h00, conforme solicitado.”

6º- Com data de 13/02/2024 a 1ª requerida enviou carta registada com aviso de recepção, ao 2º requerido, fazendo referência à Garantia Bancária nº 433/2021-S, emitida em 17/07/2021, reclamando a quantia de 96 545,50€ “…que nos é devida pelo ordenante, em virtude de reiterado e contínuo incumprimento das obrigações contratualmente assumidas no Contrato de Empreitada e que nos deverá ser liquidada nos termos do disposto na Garantia, por transferência bancária para a conta…” (…) “Em face do exposto e não assistindo ao Banco X, SA qualquer direito de excussão ou oposição, deverá o referido montante de 96.545,50€ ser imediatamente pago à ora signatária…

7º- Com data de 31/07/2023, a 1ª requerida remeteu carta à requerente notificando-a para proceder à extensão do prazo das garantias bancárias até 21/02/2027 e, a redução para 50% do respectivo montante apenas em 22/08/2024. E advertia que “…caso os originais dos aditamentos não nos sejam entregues no prazo de 20 dias a contar da recepção da presente notificação. Seremos forçados a proceder à execução das garantias bancárias nos termos contratuais.”

8º- Em 22/08/2023 a 1ª requerida reitera a solicitação de renovação dos prazos das garantias bancárias.

9º- Por carta de 30/08/2023, a requerente respondeu, dizendo, em síntese, que esclareça quais os pontos em que a empreiteira se encontra a falhar que justifiquem o acionamento das garantias bancárias.

10º- Por carta de 16/01/2024, a 1ª requerida insiste com a requerente para, em síntese, proceder ao aditamento da garantia bancária nº 433/2021-S, prevendo a redução de 50% do respectivo montante apenas em 28/02/2024 e prorrogando o seu prazo de validade até 21/02/2027, no prazo de 15 dias, sob pena de proceder à execução da referida garantia bancária.

11º- A requerente respondeu, por carta de 29/01/2024, invocando, em síntese, não existir fundamento para emitir outras garantias bancárias.

           
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3- As Questões Enunciadas.

3.1- A Pretendida condenação da requerente e do 2º requerido como litigantes de má-fé.

Como se referiu acima, a 1ª requerida, citada para os termos da acção e do procedimento cautelar veio, de imediato e antes de apresentar as contra-alegações, requerer a condenação da requerente (empreiteira) e do 2º requerido (Banco) como litigantes de má-fé, alegando, em síntese, que foi informada pelo 2º requerido (Banco) que não satisfaria a entrega da quantia da garantia bancária autónoma por a requerente (empreiteira) ter instaurado providência cautelar destinado a evitar a entrega da quantia da garantia bancária; e, solicitada informação sobre o processo e tribunal por onde penderia a providência, não lhe foi dada essa informação. Avança ainda que requerente (empreiteira) e 2º requerido (Banco) se conluiaram para que a 1ª requerida (dona da obra) não obtivesse a entrega da quantia da garantia bancária.
A questão que se coloca é, desde logo, saber se é admissível a condenação de partes dum processo, como litigantes de má-fé, por comportamentos, acções ou omissões, que tiveram lugar fora desse (ou doutro) processo.
Antecipando a resposta diremos que não.
Na verdade, decorre desde logo do nº 1 do art.º 542º do CPC que a sanção pecuniária de multa e a indemnização, referidas no preceito, pressupõem que os tipos de ilícito processuais previstos no nº 2, tenham ocorrido na pendência de um litígio judicial, ou seja, no âmbito de um processo judicial (no caso, cível).
Com efeito, a litigância de má-fé está relacionada com a lide processual e tem por fito a necessidade de moralizar a lide. Diz respeito aos limites do exercício das situações jurídicas processuais, maxime aos limites do direito de acção e da defesa. Não diz, assim, respeito à actuação e comportamento contratual das partes, às situações de cumprimento ou incumprimento dos contratos nem ao modo como são substantivamente exercidos os direitos subjectivos. Assim, qualquer actuação em abuso de direito pode determinar a ilicitude do exercício de um direito subjectivo, mas não uma lide maliciosa ou dolosa.
 Não se confunda exercício abusivo de um direito com abuso de direito de acção.
E este pressuposto da pendência de um processo judicial sai reforçado pela análise dos diversos tipos de ilícitos de litigância de má-fé mencionados nas alíneas a), b), c) e d) do nº 2 do mesmo preceito.
Com efeito, o tipo de ilícito processual da al. a) exige a dedução (v.g. instauração, interposição, acionamento) de pretensão ou, a apresentação de oposição cuja falta de fundamento não poderia ser ignorada; o mesmo é dizer que pressupõe que um sujeito processual deduz, num processo judicial, pretensão ou apresenta oposição infundadas.
No tipo da al. b) prevê-se as situações em que na pendência de um processo judicial se altera a verdade dos factos ou se omitem factos relevantes para a decisão do pleito; portanto, pressupondo, igualmente, a existência de um litígio no tribunal.
Do mesmo modo, na al. c), depreende-se a necessidade de pendência de processo, visto que se sanciona a parte que tiver praticado omissão grave do dever de cooperação, remetendo-se, assim, para o que é estabelecido nos art.ºs 7º e 8º do CPC relativos ao princípio da cooperação das partes entre e si com o tribunal e para o dever de actuação conforme à boa-fé processual.
Igualmente, o tipo da al. d) do nº 2 do art.º 542º: sanciona o uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais.
Assim, pode dizer-se que a litigância de má-fé traduz-se na "…utilização maliciosa e abusiva do processo" (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 356), relevando do “…interesse público de respeito pelo processo e pela própria justiça” (Pedro Albuquerque, Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, 2006, pág. 55) e da necessidade de “moralizar a lide” (Ac. Do STJ 10/05/2005-Pinto Monteiro), com vista a assegurar “…eficácia processual, porquanto com ela se reforça a soberania dos Tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça” (Pedro Albuquerque, Responsabilidade…cit.,  pág. 56).
Ora, no caso dos autos, as actuações que a 1ª requerida (dona da obra) imputa à requerente (empreiteira) e ao 2º requerido (Banco), não tiveram lugar no processo pendente. A terem-se concretizado, ocorreram extraprocesso e, assim sendo, fica a faltar aquele pressuposto essencial que vimos referido: a litigância de má-fé pressupõe a pendência de uma lide processual e a prática ou a omissão de actos ou violação de deveres de conduta processual por qualquer uma das partes.
A esta luz resta concluir que não há fundamento para condenar a requerente (empreiteira) e o 2º requerido (Banco) como litigantes de má-fé no âmbito deste procedimento cautelar.

***

3.2- A solicitada revogação da decisão de indeferimento liminar do procedimento cautelar.

A requerente pretende seja revogada a decisão de indeferimento liminar, argumentando essencialmente, em síntese:
- Que o acionamento da garantia bancária, ainda que á primeira solicitação pressupõe a verificação de facto justificativo sob pena de se traduzir em abuso de direito (conclusão 8);
- A requerente nunca deixou de satisfazer todos os pedidos de vistorias e de eliminação dos defeitos, o mesmo se passando com a carta da 1ª requerida, de 13/02/2024, para eliminar defeitos do apartamento 4, prontamente respondida, sendo que no mesmo dia a 1ª requerida acionou a garantia bancária;
- Que a requerente apresentou prova cabal dos factos e requereu a produção de prova testemunhal sendo admissível a produção de prova testemunhal para demonstrar o abuso de direito da 1ª requerida no acionamento da garantia bancária, havendo jurisprudência nesse sentido.          
                                   
Vejamos então se a apelante tem razão.
Segundo a requerente/apelante, o acionamento da garantia bancária, ainda que há 1ª solicitação, pressupõe a verificação do facto justificativo de acionamento sob pena de se traduzir em abuso de direito.
Será assim?
A garantia bancária autónoma não está expressamente prevista na lei portuguesa. O seu fundamento encontra-se no princípio da liberdade contratual contemplado no art.º 405º do CC. É comum ser utilizada no quadro de operações comerciais e funciona como garantia de satisfação de créditos, em sentido lato.  O carácter acessório e subsidiário de uma fiança não oferece a segurança ambicionada e não livra de “incómodos” relacionados com a defesa do fiador: é que mesmo que o fiador renuncie ao benefício da execução, ele pode opor ao credor os meios de defesa próprios e, além destes, os meios de defesa que competem ao devedor principal.  Assim, os credores procuram afastar o ónus de terem de provar o carácter certo, líquido, exigível da obrigação principal antes de agirem contra o garante. Deste modo, a garantia bancária autónoma “…permite responder ás necessidades de segurança dos credores, atendendo à sua independência relativamente á obrigação principal. Desligada da obrigação garantida, beneficia, de certo modo, da neutralidade e abstracção da moeda. É uma garantia independente do princípio da acessoriedade. A sua caracterização como autónoma faz com que a sua exigibilidade não dependa da exigibilidade da obrigação principal do devedor, mas seja directamente determinada no âmbito das relações credor/garante (José Maria Pires, Elucidário de Direito Bancário, 2002, pág. 699 – sublinhado nosso). Este autor dá a seguinte noção de garantia bancária autónomacontrato pelo qual um banco, por ordem do seu cliente, se obriga a pagar certa importância á outra parte (beneficiário) a qual fica com o direito potestativo de exigir a execução dessa garantia, sem que lhe possam ser opostos quaisquer meios de defesa baseados nas relações entre o banco e o ordenador ou entre o beneficiário” (A. e ob. cit. pág. 699).
 “A função da garantia autónoma não é, pois, a de assegurar o cumprimento dum determinado contrato. Ela visa, antes, assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da própria garantia, uma determinada quantia em dinheiro” (António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2ª edição, Almedina, 2001, p. 657).
O garante, perante o credor, responsabiliza-se pelo pagamento de uma obrigação própria e não pelo cumprimento de uma dívida alheia (do garantido); não se trata tanto de garantir o cumprimento da obrigação do devedor, mas antes de assegurar o interesse económico do credor beneficiário da garantia; (...) a garantia não pressupõe a existência de uma assunção de dívida, em que o banco (assuntor) assume a obrigação de pagar a dívida de outrem (antigo devedor), nos termos previstos nos artigos 595º e seguintes do Código Civil, pois o garante constitui-se devedor de uma obrigação própria, ainda que relacionada com a dívida do garantido.” (Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 5ª edição, Livraria Almedina, 2006, pág. 125).
Por outro lado, a autonomia, tem natureza causal. Com efeito, e “ao contrário do inicialmente foi sustentado por certa doutrina, não se trata de um negócio abstracto, mas de um negócio causal (…) tem, em si, uma função própria: assegurar uma obrigação emergente de um outro contrato, o contrato-base. A sua causa (no sentido de causa-função) é, pois, de garantia” (Pestana de Vasconcelos, Direito das Garantias, Almedina, 2015, 2ª edição, p. 131).

Em termos da estrutura das relações jurídicas que envolve, a garantia bancária autónoma é uma figura triangular, que se caracteriza por três ordens de relações:
-i) uma, entre o garantido (dador de ordem) e o beneficiário;
- ii) outra, entre o garantido e o garante (banco);
- iii) outra, entre o garante e o beneficiário.
Deste modo, essa estrutura jurídica triangular, tem inerente, três actos jurídicos distintos: um primeiro, o chamado contrato base, que constitui a relação principal, causal ou subjacente, no qual são partes o dador de ordem e o beneficiário; em segundo lugar, um contrato de mandato, ao abrigo do qual o banco (garante) se obriga para com o dador de ordem, mediante certa retribuição, a prestar-lhe o serviço que se traduz no fornecimento da garantia visada; e em terceiro lugar, um contrato de garantia, (entre o garante e o beneficiário), pelo qual o garante, emitindo o competente título, se obrigou a pagar o montante convencionado.
Porém, diferentemente da fiança, que se caracteriza pela acessoriedade, a garantia bancária autónoma não é acessória da obrigação garantida, mas sim autónoma da dívida que garante.
Essa característica da autonomia significa que o garante não pode invocar, em sua defesa, quaisquer meios relacionados com o contrato base.
O garante assume, por isso, uma obrigação própria, independente (desligada) do contrato base. (Cf. Almeida Costa e Pinto Monteiro, Garantias Bancárias - O Contrato de Garantia à Primeira Solicitação, CJ, Ano IX, 1986, Tomo 5, p. 16-34).
Mas a mencionada autonomia não vai, obviamente, obstar a que o garante recuse o cumprimento com base em elementos constantes do próprio contrato de garantia. Deste modo, com a autonomia pretende-se que não possam ser apostas excepções relacionadas com a obrigação garantida, ou seja, óbices exteriores ao contrato de garantia, mas podem propor-se excepções próprias deste negócio jurídico, como sejam o erro na celebração do contrato de garantia ou o prazo de pagamento nele acordado” (Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, op. cit., pág. 123).
Além da característica da autonomia, nos termos expostos, a garantia bancária pode ainda ser automática ou à primeira interpelação.
A automaticidade é uma característica eventual do contrato autónomo de garantia dependendo da aposição nesse contrato de uma cláusula on first demamd, a qual leva a que a entrega da soma objecto da garantia dependa apenas da solicitação do beneficiário e não já da verificação do fundamento material da solicitação (Cláudia Trindade Limites da Autonomia e da Automaticidade da Garantia Bancária Autónoma: em Especial a Prova da Falta de Fundamento Material da Solicitação, Estudos de Homenagem ao Prof. Lebre de Freitas, Vol. II, págs. 45 e segs, mormente 63).

No que toca à interpretação da garantia autónoma, a jurisprudência vem enfatizando a necessidade de se analisar, caso a caso, o texto da própria garantia, interpretando-o e fixando-lhe o respectivo alcance, juridicamente relevante (Ac. do STJ, de 23.03.1997, CJ, 1995, Tomo I, p. 137; Ac. do STJ, de 26.09.2000, BMJ nº 499, p. 344; e Ac. do STJ, de 28.09.2006, Revista 2412/06-6A, in www.dgsi.pt).

Pois bem, no caso dos autos, verifica-se que a garantia bancária em discussão foi emitida pelo Banco, a favor da 1ª requerida, com vista a assegurar o pagamento da quantia de 96 545,50€, no âmbito do contrato de empreitada. De acordo com o texto da própria garantia, o Banco (2º requerido) “obriga-se a pagar…dentro do citado valor, ao primeiro pedido e sem necessidade de qualquer consideração, quaisquer importâncias que se tornem devidas…não podendo o Banco alegar qualquer fundamento para recursar ou retardar o pagamento que lhe for exigido.
Do texto da garantia resulta tratar-se de uma garantia bancária autónoma, à primeira solicitação, portanto, com característica de automaticidade.
Saliente-se que na garantia bancária autónoma, o garante não pode invocar meios de defesa que extravasem a garantia, v.g. a excepção de falta de cumprimento da parte contrária, ou a excepção de compensação de créditos porque se reportam às relações entre o beneficiário da garantia e o dador de ordem, prendendo-se com o contrato base estabelecido entre ambos, a que o garante é alheio.

Por outro lado, importa reiterar o que acima se mencionou: na garantia à primeira solicitação existem duas obrigações: a do dador da ordem e a do banco garante. Ambas são obrigações principais, uma, a do garante, porque o banco não se obriga a pagar a dívida do dador da ordem, antes assume um compromisso autónomo ou independente, na medida em que assegura que o dador de ordem pagará e promete que, frustrando-se esse resultado, segundo o dizer do beneficiário, entregará ele, banco, como indemnização, uma importância igual. Isto porque, como vimos, o banco não se pode prevalecer de excepções ou objecções relacionadas com o contrato base, não lhe é legítimo servir-se dos meios de defesa facultados ao dador de ordem. (Cf. Galvão Telles, Garantia Bancária Autónoma, Edições Cosmos, 1991, pág. 55; no mesmo sentido, Calvão da Silva, Direito Bancário, 2001, p. 386;).
Sendo frequentemente comparada ou equivalente a uma quantia monetária à ordem, existem, contudo, certas regras e limites, destinados a prevenir abusos no accionar das garantias bancárias autónomas, simples ou à primeira solicitação.
Assim, defende-se que poderá obstar à acionabilidade da garantia bancária autónoma, ainda que com cláusula à primeira solicitação, estar a ser exigida para além do respectivo prazo de vigência; sem apresentação de determinados documentos, previamente estabelecidos como necessários, nomeadamente no caso do valor reclamado não estar devidamente certificado por eles; ou existindo prova concludente (sem qualquer necessidade de produção adicional) de ter o devedor garantido realizado a sua prestação de modo adequado (sem qualquer dúvida quanto ao seu cumprimento perfeito e pontual), ou que deixou de ser lícito ao garantido exigir-lhe o cumprimento; ou quando o negócio garantido seja contrário à lei, à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes.
A razão da recusa de pagamento em caso de fraude manifesta ou abuso evidente de direito radica na circunstância de existirem princípios em todo e qualquer ordenamento jurídico que devem ser respeitados, não podendo as garantias autónomas violar grosseiramente os referidos princípios: os da boa fé e os do abuso do direito (Cf. Ferrer Correia, “Notas para o Estudo da Garantia Bancária”, Temas de Direito Comercial e Direito Internacional Privado, Coimbra, 1989, pág. 22).
Existirá fraude, abuso ou má fé do beneficiário quando a sua interpelação foi contrária ao equilíbrio da relação jurídica principal que a obrigação do garante visa garantir (Cf. Francisco Cortez, ROA ano 52º, II, Julho, 1992, pág. 599; Ac. da Rel. do Porto, de 12/12/00, in www.dgsi.pt).

Antes de entramos na análise específica do caso concreto, importa ainda considerar que no que respeita ao incumprimento das relações contratuais que se geram com vista à emissão de garantia bancária – o contrato base, o contrato de mandato e o contrato de garantia, como vimos supra – podem ser: (i) não cumprimento, pelo garante, em relação ao credor beneficiário da garantia; (ii) incumprimento, por parte do garante, em relação ao devedor garantido em violação das regras do acordo de garantia; (iii) falta de cumprimento, por parte do credor beneficiário, que exige indevidamente o cumprimento da garantia, o que determina a responsabilidade deste perante o devedor: (iv) não cumprimento do devedor da obrigação assumida em relação ao garante que pagou ao credor e exige a devolução do valor pago e comissões. (Pedro Martinez/Fuzeta da Ponte, Garantias…cit., pág. 143).

Entre os princípios e exigências valorativas que podem limitar o exercício dos direitos encontra-se a boa fé, os bons costumes e o fim económico-social do direito. Assim, quando um direito seja exercido em contrariedade com um (ou mais) destes valores, esse exercício constitui abuso de direito, à luz do art.º 334º do CC. Significa isso que o exercício do direito ao pagamento da soma objecto da garantia, não é ilimitado, estando balizado pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim económico-social do direito (Cf. Cláudia Trindade, Limites da Autonomia…cit., pág. 52 e seg.).
A consequência jurídica do exercício ilegítimo de um direito pode ser a ineficácia, a invalidade ou a ilicitude, conforme o direito que esteja em causa e o tipo de contrariedade ao sistema que advenha do seu exercício.
O exercício abusivo do direito ao pagamento é proibido, pelo que se for accionado é paralisado e, em consequência, o beneficiário não recebe ou não deve receber a soma objecto da garantia.
Verdadeiros casos de abuso do direito de crédito do beneficiário são aqueles em que a obrigação de garantia existe e o caso material da garantia se verifica – tendo o beneficiário, à primeira vista, direito ao pagamento da soma objecto da garantia – mas a solicitação se traduz num exercício inadmissível do direito do beneficiário à execução da garantia, por o pressuposto da norma permissiva se verificar de modo formal, mas o exercício do direito não merecer a tutela da ordem jurídica. (Cf. Cláudia Trindade, Limites da Autonomia…cit., pág. 61.).

Dito isto voltemos ao caso dos autos.
A 1ª instância indeferiu liminarmente o requerimento inicial do procedimento cautelar, louvando-se em doutrina e jurisprudência que cita, defendendo “…a possibilidade de o seu acionamento ser impedido pelo seu ordenante em caso de má fé, dolo ou abuso de direito, desde que flagrante, clamoroso e violador das regras da boa fé que constitui princípio básico do direito, possibilidade essa que a doutrina e a jurisprudência entende apenas ser passível de ser demonstrada por meio de prova documental e não com base numa prova testemunhal ou por declarações de parte, meios de prova esses que não garantem, da mesma forma, a certeza dos factos sobre que incidam…”.
A apelante fundamenta o seu recurso lançando mão de jurisprudência, que invoca, concretamente, Ac. TRP, de 08/01/2024 (Eugénia Cunha) e de 23/12/2012 (Maria Eiró), defendendo ser admissível a produção de prova testemunhal para demonstrar a actuação em abuso de direito da 1ª requerida porque a requerente sempre respondeu às solicitações de eliminação dos defeitos da obra e às vistorias e inspecções à obra.

Pois bem, a questão assim colocada não é pacífica na jurisprudência e na doutrina.

De um lado, o entendimento, defendido pela requerente/apelante, que advoga, em síntese, “Em sede de procedimento cautelar, é admissível o recurso à prova testemunhal com o objectivo de demonstrar a falta de fundamento material da solicitação de pagamento, feita pelo beneficiário, da garantia autónoma à 1ª solicitação”.
Com este entendimento, na jurisprudência, podemos encontrar dois acórdãos da Relação do Porto, acima referidos e ainda o acórdão do TRL, de 06/05/2021, Teresa Sandiães. E, na doutrina, o interessantíssimo estudo de Cláudia Trindade, acima mencionado (Limites da Autonomia e da Automaticidade da Garantia Autónoma: E, Especial a Prova da Falta de Fundamento Material da Solicitação, Estudos em Homenagem ao Prof. José Lebre de Freitas, Vol. II, pág. 45 e segs), que conclui, nesse estudo “…a exigência de prova pronta e líquida não só não é admissível à luz do direito probatório português, como também é inapta para preservar a automaticidade da garantia autónoma on first demand…”.

Outra corrente, largamente maioritária, porém, defende o entendimento vertido no despacho de indeferimento liminar.
Com efeito, vem sendo entendido que embora seja admitida a invocação do abuso de direito no âmbito das garantias bancárias autónomas essa invocação tem limites impostos pela própria função da cláusula on first demand. Afirma-se nesse entendimento, no essencial, que o abuso do direito de crédito deve ser manifesto, inequívoco, como vem referido no Ac. do STJ, de 21/04/2010 (Maria dos Prazeres Beleza) que fundamenta “…São no fundo as mesmas razões que justificam que a interpretação do texto de uma garantia autónoma à primeira solicitação seja fundamentalmente literal que levam a que só em casos de “prova líquida” de má fé ou abuso de direito seja atendível a excepção correspondente, sendo tal “prova líquida (…) sobretudo, associada à prova documental”, admitindo-se ainda “a invocabilidade de prova resultante de uma decisão judicial transitada em julgado ou de uma decisão arbitral” (Fátima Gomes, op. cit., págs. 180-181). Galvão Telles exige que a “má fé” seja “patente, não oferecendo a menor dúvida, por decorrer com absoluta segurança de prova documental (…)” (op. cit., pág.s 289-290); Almeida Costa e Pinto Monteiro, op. cit., pág. 21, salientam que “não basta a suspeita de fraude ou de abuso para impedir a entrega da garantia, logo que solicitada (…). Só é legítima a recusa de pagamento do Banco se – no momento em que o pagamento da garantia lhe for solicitado – o banco possuir prova inequívoca do abuso ou da fraude manifestas do beneficiário”; Calvão da Silva, op. cit., págs. 342-343 observa que “todas as cautelas são poucas, e por isso se exige ao dador da ordem uma prova líquida, uma prova qualificada, segura e inequívoca da conduta fraudulenta ou abusiva do credor, que a doutrina maioritária requer documental”; Mónica Jardim, op. cit, pág. 293 refere “prova documental de segura e imediata interpretação, pois esta prova satisfaz plenamente a exigência de prova pronta (preconstituída) e líquida (inequívoca)”.
Veja-se ainda o Acórdão do STJ, de 12/09/2006 (Sebastião Póvoas) que sumariou “5) Sob pena de se frustrar o escopo das garantias à primeira solicitação que só viriam a ser pagas após longa controvérsia, quando existem, precisamente, para evitar dilações, deve ser-se muito restritivo e exigente na demonstração da quebra pelo beneficiário, dos deveres acessórios de conduta como a boa fé.”.
E que o carácter não fundado da solicitação deve ser claro e não contestável (Mónica Jardim, A Garantia Bancária, A Garantia Autónoma, 2002, pág. 291), fazendo-se depender a possibilidade de invocação do abuso de direito da apresentação de prova pronta e líquida de falta de fundamento material da solicitação (Mónica Jardim, Garantia…cit., pág. 291.
Na jurisprudência do STJ vejam-se ainda Ac. de 30/10/2002 (Joaquim Matos) e de 23/03/1995 (Miranda Gusmão) in www.dgsi.pt; e, de 14/10/2004, Araújo Barros (CJSTJ, XII, tomo III, pág. 55 e segs. Onde no sumário se lê “…nas relações entre o ordenador da garantia e o beneficiário é admissível que aquele proponha providências cautelares ou acções com o fim de impedir a entrega pelo garante da quantia convencionada ao beneficiário ou a sua recepção por este, desde que apresente prova inequívoca de fraude manifesta ou de abuso evidente do beneficiário.”.
Bem como o Ac. do STJ, de 30/03/2023 (Sousa Pinto), de que se salientam os seguintes pontos do respectivo sumário:
II. O cumprimento de garantia bancária on first demand não pode ser recusado mediante a mera invocação de circunstâncias que ponham em causa o contrato-base, designadamente a caducidade da garantia, exigindo-se a apresentação de prova segura e irrefutável, reveladora de tal circunstância.
III. Caberá à devedora/embargante, em processo distinto, se considerar que o pagamento era indevido, accionar a credora, para com ela discutir as questões inerentes ao incumprimento do contrato-base e, sendo caso disso, ver-se ressarcida.
Na Relação de Lisboa, vejam-se, entre outros, o Ac. de 19/04/2018 e de 12/07/2018, ambos relatados por Ondina do Carmo Alves de que salienta o seguinte ponto do sumário:
“6. A não apresentação com a petição inicial de tal prova, pronta e líquida, implica o indeferimento liminar do pretendido procedimento cautelar, o que se não traduz numa restrição desproporcionada ou irrazoável dos instrumentos de prova, nem comporta uma significativa afectação do direito à tutela jurisdicional efectiva.”
Vejam-se ainda os Acs. da Relação de Lisboa, de 21/01/2010 (Roque Nogueira) e de 23/02/2010 (Abrantes Geraldes) in CJ XXXV, 2010, tomo I, respectivamente, págs. 80 e segs e, págs. 118 e segs)
Entende-se por prova pronta a prova pré-constituída que dispensa a produção de quaisquer outras provas suplementares e, a prova líquida ou inequívoca aquela que permite a percepção imediata do abuso (Mónica Jardim, A Garantia…, cit., pág. 292; Francisco Cortez, A Garantia Bancária Autónoma, Alguns Problemas, ROA (52) 1992, pág. 600; Galvão Telles, Garantia Bancária Autónoma, ROA, III-IV (120); Jorge Duarte Pinheiro, ROA II (52)Julho 1992, pág. 443 e segs, Maria do Rosário Epifânio, Garantia Bancária Autónoma, Breves Reflexões, Juris et de Juris, 20 anos da Faculdade de Direito da UCP – Porto, pág. 354).
Pois bem, concordamos com esta posição claramente maioritária. De resto, o ora relator foi 1º adjunto no acórdão desta Relação, de 11/05/2023 (Proc. 24542/22, relatora Gabriela de Fátima Marques).
Na verdade, importa desde logo ter presente a distinção entre garantia autónoma à primeira solicitação com ou sem justificação documental. Se a garantia autónoma, à primeira solicitação, é estabelecida com justificação documental, não basta que o credor formule ao garante a exigência da garantia, sendo necessário que essa exigência seja comprovada documentalmente com a demonstração de que ocorreu o facto que determina a exigência do pagamento da garantia. Se, pelo contrário, a garantia autónoma é estabelecida sem justificação documental, basta o credor formular, pura e simplesmente a exigência da garantia.
A providência cautelar só poderá, porém, ser decretada se existir uma prova clara e indubitável da existência da fraude ou for evidente o abuso manifesto não bastando um mero juízo de probabilidade resultante de uma prova sumária. (Cf. Menezes Leitão, Garantias das Obrigações, 4ª edição, pág. 130).
A exigência de prova pronta e líquida surgiu, pois, para evitar que o abuso de direito de crédito do beneficiário fosse invocado, perante a solicitação da soma objecto da garantia, em tantos casos que tornasse generalizada a recusa na entrega, comprometendo os objectivos de celeridade e liquidez da cláusula on first demand.

Voltando ao caso dos autos.
A garantia bancária em causa, já o dissemos, tem natureza de ser autónoma e automática, à primeira solicitação, sem necessidade de qualquer justificação do fundamento de pagamento.
A ser assim, o Banco garante, 2º requerido, perante o pedido do beneficiário, a 1ª requerida, não podia deixar de satisfazer, de imediato, o pagamento da quantia a que se obrigou.
E, para que se pudesse considerar haver fundamento de recusa de pagamento, por abuso de direito, a requerente tinha de apresentar prova pronta, directa, imediata e inequívoca da ocorrência de abuso de direito no pedido de satisfação da quantia titulada pela garantia.
Porém, tal como na 1ª instância, entendemos que não o fez.
Desde logo, não é demonstrado, pronta, directa e inequivocamente, que  requerente sempre tenha respondido a todas as solicitações para proceder às intervenções necessárias e da sua responsabilidade no imóvel (ponto 17 do requerimento inicial); que tenha cumprido integralmente o Caderno de Encargos  e, que os trabalhos realizados foram aprovados pela equipa de fiscalização e emitido o Auto de Recepção Provisória (36, 39 e 40).
Na verdade, o que decorre dos documentos juntos é que têm sido apresentadas sucessivas reclamações pela dona da obra, ao longo dos tempos, desde 2021, o que indicia a execução da obra com defeitos, como se extrai, entre outros, dos documentos 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20, 21 e 22. Além disso, há documentação que demonstra que a dona da obra pretende a prorrogação do prazo da garantia em causa, o que indicia litígio quanto ao integral cumprimento e eliminação dos defeitos da obra, como decorre da correspondência que foi mencionada, acima, nos pontos 7, 8, 9, 10 e 11 dos factos considerados indiciariamente provados.
Ou seja, não resulta da prova documental apresentada que, inequivocamente, a 1ª requerida tenha actuado em abuso de direito ao accionar a garantia bancária em causa.
A esta vista, somos a entender que não há fundamento para revogar a decisão da 1ª instância que indeferiu liminarmente o procedimento cautelar.

Em suma: o recurso improcede.

***

III-DECISÃO

Em face do exposto, acordam neste colectivo da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, julgar o recurso improcedente e, por consequência, mantém a decisão sob impugnação.

Custas na fase do recurso, pela requerente/apelante.

Lisboa, 12/09/2024
Adeodato Brotas
Jorge Almeida Esteves
Anabela Calafate