Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
161/21.5T8MFR.L1-2
Relator: RUTE SOBRAL
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
INDÚSTRIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I – Não tendo os recorrentes cumprido o ónus “primário” de delimitação da impugnação da matéria de facto que deduziram, previsto no artigo 640º, nº 1, alíneas a), b) e c), CPC, identificando os concretos pontos da matéria de facto que consideram incorretamente julgados, os meios probatórios que impunham decisão diversa, e a decisão que deveria ter sido proferida, deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto.
II – A discordância quanto às regras de repartição do ónus da prova, constitui matéria que se inscreve do domínio da fundamentação jurídica da decisão e não no âmbito da impugnação da matéria de facto.
III – A falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da ação de despejo, como fundamento de despejo imediato, deve ser deduzida em incidente próprio, regulado nos artigos 14ºnºs 4 e 5, NRAU.
IV – O fabrico pelo arrendatário de pizzas no locado e a sua distribuição a vários clientes, enquadra-se no âmbito de “indústria doméstica” previsto no artigo 1093º CC e, consequentemente no uso residencial da fração locada.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO

1.1. A e B, identificados nos autos, instauraram a presente ação declarativa comum, em 10-03-2021, contra o réu C, igualmente identificado nos autos, solicitando:
- A declaração de resolução do contrato de arrendamento para habitação, celebrado entre autores e réu, com o seu imediato despejo, tendo por fundamento a utilização do locado para fim diverso daquele a que se destina e a falta de pagamento das rendas referentes aos meses de janeiro a março de 2021;
- A condenação do réu no pagamento da quantia de €1.200,00 (mil e duzentos euros), relativo às rendas vencidas de janeiro a março de 2021, e ainda das rendas vincendas até entrega do locado.

1.2 - O réu, regular e pessoalmente citado, apresentou contestação, na qual excecionou o integral pagamento das rendas vencidas, defendendo-se ainda por impugnação.

1.3 – Os autores, exercendo contraditório relativamente à exceção de pagamento arguida, reiteraram encontrarem-se em dívida os montantes das rendas mencionadas na petição inicial.

2 – Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual se afirmou a regularidade da instância, e foram enunciados o objeto do litígio e os temas de prova (despacho de 12-10-2021 – referência 133167724).

3 – Realizada audiência de julgamento, com produção de prova, foi proferida sentença, em 14-02-2024, que julgou a ação improcedente, constando do seu dispositivo o seguinte:
Pelo exposto, julgo a presente [ação] integralmente improcedente, e, consequentemente, absolvo o R. do peticionado.
Custas da responsabilidade dos AA. – cfr. artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc. Civil.”

4 - Não se conformando com a decisão proferida, os autores da mesma interpuseram recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que ordene o despejo da fração em causa, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1.º - Os Autores deram de arrendamento ao Réu o primeiro andar para habitação e garagem do prédio sito na Estrada Nacional 116, n.º… e Rua de …, n.º …, lugar dos …, concelho de Mafra.
2.º - A renda mensal acordada era de €400,00, sendo paga antecipadamente no dia cada um de cada mês na casa dos senhorios.
3.º - O Réu não cumpriu a sua obrigação e não pagou as rendas iniciais nem as rendas vincendas na pendência da ação.
4.º- O Réu não fez prova alguma de ter pago as rendas devidas nem as rendas vincendas durante a pendência da ação.
5.º- O Réu não fez prova alguma de que pagou as rendas e não as depositou.
6.º- O ónus da prova não cabe aos Autores, mas sim ao Réu pagando as rendas ou depositando-as.
7.º - O tribunal não se pronunciou sobre o pedido de despejo imediato formulados pelos Autores, violando o disposto no art.º 14.º do NRAU.
8.º - Decorre do n.º 7, do art.º 15.º do NRAU que manteve a obrigação do Réu do pagamento ou depósito das rendas que vencerem na pendência da ação.
9.º- O Tribunal deu como provado o uso de local arrendado para uso diferente do contrato para habitação.
10.º O julgar improcedente a ação de despejo, o tribunal violou o n.º 7 do artigo 15.º NRAU, 1038 a 1042 do C.C.

5. O réu apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido, considerando que não deve ser admitido o recurso, tendo apresentado a seguintes conclusões que se transcrevem:
“I – O recurso apresentado pelos Recorrentes não deve ser admitido.
II – Os Recorrentes não cumpriram com o ónus de alegação.
III - Recorrendo os Recorrentes também da matéria de facto, os mesmos não cumpriram com o disposto nos artigos 639º e 640º do Código de Processo Civil.
IV – Não cumpriram os Recorrentes com o disposto no artigo 639º, nº 1 do Código de Processo Civil.
V – Não cumpriram também os Recorrentes 640º do Código de Processo Civil, uma vez que não foram indicados concretos pontos de facto que determinavam decisão contrária e os meios de prova que impunham decisão contrária.
VI – Conforme refere o professor Alberto dos Reis in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, pág. 359: “No contexto da alegação o recorrente procura demonstrar esta tese: Que o despacho ou sentença deve ser revogado, no todo ou em parte. É claro que a demonstração desta tese implica a produção de razões ou fundamentos. Pois bem: essas razões ou fundamentos são primeiro expostos, explicados e desenvolvidos no curso da alegação: hão-de ser, depois, enunciados e resumidos, sob pena de conclusões, no final da minuta.
VII – O recurso apresentado pelos Recorrentes deve ser rejeitado devido à falta de alegações, devido à falta de impugnação da decisão da matéria de facto (artigo 635º, nº 4 e 641º, nº 2, alínea b); falta de especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (artigo 640º, nº 1, alínea a), falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda e a falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada impugnação que entendia levar a cabo.
VIII – Salvo melhor opinião, e com o máximo respeito e consideração que opinião diversa sempre merece, julga o Recorrido que é manifesta a falta de causa de pedir.”

6.  Foi admitido o recurso, como apelação, com subida imediata e nos próprios autos e efeito suspensivo.

7.  Remetidos os autos a este Tribunal em 15-05-2024, inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo agora apreciar e decidir.

II – QUESTÃO PRÉVIA – REJEIÇÃO DO RECURSO

Pugnando pela rejeição do recurso, invoca o réu/recorrido que da leitura das alegações apresentadas pelos autores não se consegue alcançar quais os seus fundamentos. Acresce que, no que se reporta à impugnação da matéria de facto, os recorrentes não indicaram os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, assim como não indicaram os meios de prova que justificariam diversa decisão. Concluiu o réu que, por violação do disposto nos artigos 639º e 640º, CPC, o recurso deverá ser rejeitado.
Da leitura das alegações apresentadas extrai-se que:
-  Os recorrentes reagiram ao facto de a sentença recorrida ter considerado que lhes incumbia o ónus da prova do pagamento das rendas;
- Consideraram que o réu não demonstrou, como lhe incumbia, o pagamento das rendas em falta;
 - Alegaram que o réu não comprovou o pagamento das rendas que se foram vencendo na pendência da ação, pelo que deveria ter sido ordenado o despejo imediato do locado, além de que o tribunal não se pronunciou sobre o pedido de condenação nas rendas vincendas;
- Reagiram ao facto de o tribunal recorrido ter considerado apurado que o réu no locado confeciona pizzas que vende em distribuição a vários clientes e não tenha considerado que tal utilização corresponde à atribuição de uso diverso à fração;
- Concluíram que a sentença proferida, julgando improcedente a ação, violou o disposto no artigo 15º, nº 7 NRAU e 1038º a 1042º do Código Civil.
Em face do exposto, deve concluir-se que os autores/recorrentes, nas respetivas alegações, apresentam conclusões, nas quais indicam as normas jurídicas que consideram ter sido violadas, reagindo ao sentido da decisão, ao não decretar o despejo com base na falta de pagamento da rendas e da utilização do locado para fim diverso, tendo cumprido, pelo menos de forma suficiente, o ónus previsto no artigo 639º do CPC. Consequentemente, afigura-se inexistir fundamento para a rejeição integral do recurso.
Porém, no que se reporta à impugnação da matéria de facto, desde já se adianta assistir razão ao recorrido, dado que, efetivamente, os recorrentes não cumpriram os ónus a seu cargo.
Relativamente ao regime da impugnação da matéria de facto, sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto” estabelece o nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”
Já do nº 2 daquela norma resulta que:
“2- A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Por outro lado, a reapreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso implica que o recorrente, nas alegações em que impugna a decisão relativa à matéria de facto, cumpra os ónus que o legislador estabeleceu a seu cargo, enunciados no artigo 640º CPC, com a seguinte redação:
“1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Por forma a cumprir os ónus legalmente estabelecidos a seu cargo para a impugnação da matéria de facto, incumbe ao recorrente, no essencial, identificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados  (640º, nº 1, alínea a), CPC), os concretos meios probatórios que impunham, na sua perspetiva, decisão diversa (640º, nº 1, alínea b), CPC) indicando a decisão que deve ser proferida quanto aos factos impugnados (640º, nº 1, alínea c), CPC).
Expostas que estão as coordenadas relativas à impugnação da matéria de facto, forçosa é a conclusão de que os recorrentes não indicaram os concretos pontos de facto que consideram incorretamente julgados, nem os concretos meios probatórios que justificariam decisão diversa, assim como não especificaram a decisão que deveria ser proferida relativamente aos concretos pontos da impugnação da matéria de facto. Efetivamente, reagindo quer à posição assumida na sentença recorrida quanto à repartição do ónus da prova, quer ao apuramento do pagamento das rendas pelo réu, os autores/recorrentes limitaram-se a alegar, genericamente “O réu não fez prova alguma de ter pago as rendas devidas”, omitindo as indicações exigidas para a impugnação da matéria de facto nos números 1 e 2 do artigo 640º, CPC.
A este propósito, tem vindo a salientar-se que os ónus a cargo do recorrente que impugne a matéria de facto se inscrevem num patamar muito exigente relativamente aos que estão previstos no nº 1 do artigo 640º CPC (indicação dos concretos factos impugnados, indicação dos meios de prova que impunham diversa decisão, e qual a decisão a proferir), mas mais atenuado quanto aos previstos no nº 2 daquela norma. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/10/2015[1]: “Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto e de fundamentação concludente de impugnação – que tem subsistido sem alterações relevantes e consta atualmente do nº 1 do artigo 640º; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e da várias reformas (…) Este ónus da indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando – apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exata e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo tribunal dos enxertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento (…)”.
Ora, os ónus estabelecidos a cargo do recorrente que impugne a matéria de facto constituem “(…) uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” - António Abrantes Geraldes[2]. Mostrando-se incumprido, nos termos expostos, um “ónus primário de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação” da matéria de facto, impõe-se, nesta parte, a rejeição do recurso – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2019[3].
Em face do exposto, relativamente à impugnação da matéria de facto, que in casu se prende com a temática do apuramento ou não do pagamento das rendas, impõe-se a rejeição do recurso.
Pelo exposto, rejeita-se o recurso apenas quanto à impugnação da matéria de facto.

III – QUESTÕES A DECIDIR

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.

Interessa clarificar que a discordância manifestada pelos autores/recorrentes relativamente ao consignado na decisão recorrida quanto à repartição do ónus da prova não integra questão que importe decidir no âmbito do presente recurso.
Efetivamente, embora os recorrentes tenham manifestado expressamente discordar da posição do tribunal recorrido ao considerar que lhes cabia o ónus da prova do não pagamento da renda pelo réu (por se tratar de facto constitutivo do direito de resolução que exercem nestes autos), haverá que ter presente que o tribunal recorrido considerou apurado o facto positivo contrário, ou seja, o pagamento das rendas nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2021.
Ora, visando a prova a demonstração da realidade dos factos (cfr. artigo 341º, CC), o certo é que as regras da repartição do ónus da prova operam, não ao nível da decisão da matéria de facto, mas sim no domínio jurídico, definindo contra qual dos litigantes deve ser imputada a falta de prova dos factos com relevância jurídica.
Consequentemente, desde logo por se tratar de fundamento que se situa ao nível da fundamentação jurídica da causa, não se mostra, in casu, afetado pela rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto.
Por outro lado, e regressando ao caso em análise, verifica-se que na motivação da decisão de facto, após considerações acerca da repartição do ónus da prova quanto a tal específica matéria (pagamento ou não das rendas de janeiro, fevereiro e março de 2021), exarou-se na decisão recorrida o seguinte:
Mas mais: ficou demonstrado que efetivamente o R. procedeu ao pagamento das rendas no momento que informou tê-lo feito.
Passando a explicar, não pode deixar este Tribunal de valorar a circunstância, não questionada pelos AA., de terem estes emitidos seis recibos de renda, cinco deles com data de emissão na da celebração de contrato e um a 08.01.2021, tendo os três últimos sido posteriormente anulados pelos próprios AA.
Ora, os demandantes não só não impugnaram a emissão e cancelamento dos referidos recibos, como não adiantaram qualquer razão que pudesse sustentar semelhante comportamento.
Por outro lado, na sequência da análise dos documentos e do afirmado pelo R. e sua mulher, determinou este Tribunal, com recursos aos seus poderes instrutórios oficiosos, que juntasse aquele cópia do extrato da sua conta bancária de modo a aferir se efetivamente teria sido levantada a quantia correspondente à que argui ter entregue em pecúnio ao A.
Semelhante extrato foi junto e encontra-se a fls. 44 dos autos, não tendo merecido qualquer pronúncia pelos AA., razão pela qual se tem por retratando os movimentos bancários realizados pelo R. em conta de depósitos da sua titularidade.
Ora, da sua análise resulta não só que 1.200,00€ foram efetivamente transferidos para o A. no dia 02.12.2020 – o que de resto, este admitiu a fls. 21 verso7 -, mas por demonstrar ficou que parte dessa quantia se destinasse a servir de caução, nos termos e para os efeitos dos artigos 623.º e seguintes do Cód. Civil. É que não se pode olvidar que a matéria em apreço, a ser demonstrada, determinaria a consideração de que as quantias entregues não o teriam sido para pagamento de rendas mas para garantir essa mesma obrigação, Logo, o ónus da sua demonstração inscrevia-se na esfera jurídico processual dos AA
Contudo, não se encontra no escrito que titula as vontades negociais concordantes o pagamento de qualquer caução, razão pela qual apenas por confissão ou início de prova escrita devidamente corroborada por prova testemunhal, poderia ser demonstrada a respetiva estipulação, tal como resulta do vertido nos artigos 221.º, 393.º e 394.º e 1069.º, n.º 1 todos do Cód. Civil.
Semelhante início de prova escrita da estipulação em causa inexiste, já que evidente é que não valem como tal os recibos emitidos pelos AA.. Por outro lado, o R. não confessou a sua existência, motivo pelo qual, ainda que tal tivesse resultado demonstrado da prova testemunhal – o que não aconteceu pelas razões acima já expostas, particularmente em relação ao depoimento de Andreia Dias Batalha, filha dos impetrantes -, não poderia este Tribunal valorar essa prova, sob pena de violação das regras de direito probatório material acima identificadas.
Donde, demonstrado ficou indubitavelmente que, a 02.12.2020, o R. entregou ao A. quantia correspondente a três meses de renda, antecipando assim o cumprimento da renda do mês de fevereiro de 2021 – cfr. artigos 1075.º, n.º 2 e 1076.º, ambos do Cód. Civil. [sublinhado nosso]
Mas mais: da conjugação da emissão dos recibos a que acima já se aludiu com a circunstância de se encontrar instrumentalmente adquirido que o R. procedeu ao levantamento da sua conta de depósitos de 1.400,00€ em numerário no dia 03.12.2020, dia seguinte ao da celebração do contrato dos autos, resulta que esse levantamento se destinou à entrega aos AA. da quantia correspondente a outros três meses de renda – ainda que em violação do disposto no artigo 1076.º, n.º 1 do Cód. Civil.
Na verdade, não se afigura comum que alguém proceda à retirada da sua conta bancária em pecúnio de quantia expressiva como a em causa, a não ser que tenha em vista a realização de algum pagamento ou transação – como, no caso, a entrega de montantes a título de antecipação de rendas. O que resulta corroborado pela emissão dos recibos acima referidos pois, à míngua de outra explicação que justificasse semelhante emissão, apenas se pode concluir que estes corresponderam a quantias efetivamente recebidas pelos AA.
Acresce, por fim, que a entrega desta quantia foi confirmada pela mulher do R. em sede de audiência final, o que acrescentou credibilidade ao que já resultava demonstrado por via do que acima se consignou.
Assim, ter-se-ão de considerar pagas as rendas relativas aos meses de Março, Abril e Maio de 2021, atendendo ao que dispõe o artigo 1075.º, n.º 2 do Cód. Civil, cujo teor se encontra reproduzido no escrito dos autos.
Donde, não só não ficou provada a falta de pagamento das rendas alegadas, como provado ficou que o mesmo teve lugar – o que sustentaria igual julgamento caso alinhasse este Tribunal com doutrina que entende que o ónus da demonstração do pagamento se inscreve na esfera processual do devedor nas ações de resolução contratual. [sublinhado nosso]
Ou seja, embora na decisão recorrida se tenha defendido incumbir aos autores a demonstração da falta de pagamento das rendas, por constituir fundamento do direito de resolução do contrato de arrendamento que pretenderam exercer no âmbito dos presentes autos, o certo é que a matéria em questão não foi resolvida com base nas regras de repartição do ónus da prova. Ao invés, o tribunal recorrido considerou que a prova produzida demonstrou a efetivação de tal pagamento. Consequentemente, a mera discordância dos recorrentes quanto à repartição do ónus da prova, por não produzir no caso qualquer efeito, não constitui questão a decidir no âmbito do presente recurso.

Pelo exposto, nos presentes autos, constitui questão a decidir:
- Fundamentos do direito de resolução invocados pelos autores;
           
IV – Fundamentação
Factos provados
Em face da rejeição da impugnação da matéria de facto, os factos a ponderar são os seguintes (exarados na decisão recorrida):
“1. A fls. 5 e seguintes consta documento denominado Contrato de Arrendamento Urbano para Habitação de Duração Limitada, subscrito a 02.12.2020, pelos AA, na qualidade de senhorios, e pelo R. na qualidade de inquilino, aqueles declararam dar de arrendamento para habitação, pelo prazo de um anos ao R., que declarou tomá-lo de arrendamento, o imóvel sito na Estrada Nacional 116, n.º… Rua de …, n.º …, …, Mafra, mediante o pagamento do valor mensal de 400,00€;
2. O R. colocou no imóvel acima referido dois frigoríficos e um forno, nele confecionando pizzas que vende, em distribuição, a vários clientes;
3. Os AA. não deram autorização ao R. para usar o imóvel em causa para fim diverso da habitação;
4. O R. procedeu ao pagamento das rendas vencidas em janeiro, fevereiro e março de 2021”.
Factos não provados
5. O R. entregou, a 02.12.2020, ao A, quantia de 800,00€ a título de caução das obrigações emergentes do escrito referido em 1.;
6. O R. usa o imóvel descrito em A. como pizzaria.

V- Reapreciação da decisão de mérito
Os recorrentes reagiram à decisão que julgou a ação improcedente, considerando (esta decisão) não se verificarem os fundamentos de resolução do contrato de arrendamento que invocaram (falta de pagamento das rendas e afetação do locado a fim diverso).
Reportando-se o contrato de arrendamento a vínculo oneroso, bilateral e sinalagmático, importa ter presente que a principal obrigação que gera para o senhorio é a de conceder o gozo efetivo do prédio, assumindo, em contrapartida, o inquilino a obrigação de pagar a renda acordada – cfr. artigos 1031º e 1038º, alínea a), CC.
No que se reporta à falta de pagamento das rendas, em face do facto enunciado sob o nº 4 da decisão recorrida “O réu procedeu ao pagamento das rendas vencidas em janeiro, fevereiro e março de 2021”, é inequívoco não operar tal fundamento de resolução, consagrado nos artigos 1083º, nº 3, e 1048º, nº 4, CC.
Apurado o pagamento e inviabilizada, nos termos expostos, a impugnação da matéria de facto deduzida, não pode ser decretada a resolução do contrato de arrendamento com base na falta de pagamento das rendas vencidas à data da interposição da ação.
Por outro lado, é inequívoco que na pendência da ação de despejo subsiste a obrigação do pagamento das rendas que se forem vencendo ou do seu depósito, nos termos previstos no artigo 14º nº 3 do NRAU. Efetivamente, estipula-se naquela norma: “3 - Na pendência da ação de despejo, as rendas que se forem vencendo devem ser pagas ou depositadas, nos termos gerais”.
Porém, a factualidade apurada não permite concluir que tal obrigação (pagamento das rendas vencidas na pendência da causa) não tenha sido cumprida pelo réu. Acresce que, caso se verificasse a falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da ação, por período igual ou superior a dois meses, incumbia aos autores, caso pretendessem obter o despejo imediato com base nesse fundamento, lançarem mão do incidente previsto no artigo 14º, nºs 4 e 5, NRAU. Efetivamente, ali se estipula:
4 - Se as rendas, encargos ou despesas, vencidos por um período igual ou superior a dois meses, não forem pagos ou depositados, o arrendatário é notificado para, em 10 dias, proceder ao seu pagamento ou depósito e ainda da importância da indemnização devida, juntando prova aos autos, sendo, no entanto, condenado nas custas do incidente e nas despesas de levantamento do depósito, que são contadas a final.
5 - Em caso de incumprimento pelo arrendatário do disposto no número anterior, o senhorio pode requerer o despejo imediato, devendo, em caso de deferimento do requerimento, o juiz pronunciar-se sobre a autorização de entrada no domicílio, independentemente de ter sido requerida, aplicando-se com as necessárias adaptações os artigos 15.º-J, 15.º-K e 15.º-M.”
Nessa hipótese, incumbiria ao arrendatário, para evitar o despejo imediato, provar o pagamento ou depósito de rendas vencidas, ou alegar e provar que as rendas não são exigíveis, pelo que não estava obrigado a pagá-las ou depositá-las. Tal alegação da inexigibilidade das rendas como forma de obviar ao despejo imediato foi expressamente afirmada no acórdão do Tribunal Constitucional nº 673/2005, publicado no Diário da República n.º 25/2006, Série II, de 2006-02-03 que julgou “inconstitucional, por violação do princípio da proibição da indefesa, ínsito no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 58.º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de outubro, na interpretação segundo a qual, mesmo que na ação de despejo persista controvérsia quer quanto à identidade do arrendatário quer quanto à existência de acordo, diverso do arrendamento, que legitimaria a ocupação do local pela interveniente processual, se for requerido pelo autor o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da ação, o único meio de defesa do detentor do local é a apresentação de prova, até ao termo do prazo para a sua resposta, de que procedeu ao pagamento ou depósito das rendas em mora e da importância da indemnização devida”. Mais recentemente o Tribunal Constitucional, no acórdão nº 327/2018, publicado no DR  Série II de 2018-09-24, “interpreta o artigo 14.º, n.º 4, da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, alterado pela Lei n.º 31/2012, de 14 de agosto, em consonância com o n.º 5 do mesmo artigo, em conformidade com princípio da proibição da indefesa, consagrado no artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da Constituição, no sentido de que o despejo imediato com fundamento em falta de pagamento de rendas vencidas na pendência da ação nele previsto não é automático, sendo o seu requerimento livremente apreciado pelo juiz, pelo que, nos casos em que na ação de despejo persista controvérsia quanto à existência ou exigibilidade do próprio dever de pagamento de renda, o réu não deve ser impedido de exercer o contraditório mediante a utilização dos correspondentes meios de defesa”.
Ou seja, não sendo automático o despejo imediato com base na falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da ação, o certo é que tal pretensão deveria ter sido expressamente deduzida nos autos, o que não sucedeu. Efetivamente, na petição inicial é pedido o “despejo imediato”, mas como decorrência do não pagamento das rendas nos meses de janeiro, fevereiro e março de 2021 (ou seja, em momento prévio ao da instauração da ação). E, compulsado todo o processado, verifica-se que os autores nunca vieram invocar que as rendas que se estavam a vencer na pendência da ação não estavam a ser pagas, nunca tendo deduzido o incidente previsto nos nºs 4 e 5 do artigo 14º NRAU, precisamente para as hipóteses em que, na pendência da ação de despejo, o arrendatário não cumpre a obrigação de pagamento das rendas, por período igual ou superior a dois meses Tal incidente, enxertado na ação de despejo, implica o cumprimento quer de obrigações tributárias (designadamente do pagamento de taxa de justiça, nos termos do disposto nos artigos 1º, nºs 1 e 2, 6º e 14º do RCP), quer de uma específica tramitação, que envolve a notificação do arrendatário para proceder, em 10 dias, ao pagamento ou ao depósito das rendas em dívida e da indemnização devida. Só após tal notificação, persistindo o incumprimento do arrendatário, poderá ser determinado o despejo imediato do locado, tendo por fundamento a falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da causa – cfr. artigo 14º nºs 4 e 5, NRAU.
Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 05-12-2019[4]: “A pendência da causa (ação de despejo/procedimento especial de despejo) constitui condição para a instauração do incidente de despejo imediato (…)”.
E o certo é que o requerimento apresentado pelos autores em 11-10-2023 não corresponde à dedução de tal incidente. Efetivamente, na sequência da notificação dirigida ao mandatário e ao patrono com indicação da data da audiência de julgamento, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 151º, CPC, o ilustre mandatário dos autores apresentou requerimento com o seguinte conteúdo:
A e outro, Autores nos autos, notificados da data de audiência de Julgamento, vem informar V.Ex.ª de que um dos pedidos na Acão é falta de pagamento das rendas desde o inicio desde que Réu ocupou o andar arrendado até à presente data, uma vez que o Réu não depositou as rendas nem as pagou, pelo que o tribunal deve decretar a resolução do contrato de arrendamento. E a entrega do locado aos Autores. A inercia e as manobras dilatórias que o Réu utiliza estão a causar sérios prejuízos aos Autor”.
Ora, tal requerimento, como resulta dos seus próprios termos, não configura a dedução de incidente de despejo imediato por falta de pagamento das rendas na pendência da ação. Assim, como se refere na decisão recorrida, em nota de rodapé: “11. Sendo certo que não foi suscitado incidente de despejo imediato ao abrigo dos artigos 14.º, n.º 3 a 5 da Lei n.º 6/2006 de 27.02, nem sequer oferecido articulado superveniente nos termos do artigo 588.º e seguintes do Cód. Proc. Civil”.
Verifica-se, pois, que a falta de pagamento das rendas vencidas na pendência da ação não foi suscitada autonomamente e que, de acordo com o princípio da autorresponsabilidade das partes, teria que ser deduzido para ser obtido o despejo imediato. A inobservância da dedução de tal pretensão origina a preclusão da decisão de despejo imediato tendo por base o não pagamento das rendas vencidas na pendência da causa – Acórdão da Relação do Porto de 04-05-2022[5].
Conclui-se, pois, que não poderá deixar de ser reiterada a decisão recorrida, no segmento em que considerou não ser de declarar resolvido o contrato de arrendamento com o fundamento na falta de pagamento de rendas.

Os autores/recorrentes consideraram ainda que o réu instalou uma pizzaria no locado, que foi arrendado tendo por fim a sua habitação, pugnando, consequentemente, pelo funcionamento do fundamento de resolução do contrato de arrendamento previsto na alínea c) do nº 1, do artigo 1083º, CC. Tal fundamento de resolução conexiona-se com a obrigação imposta ao locatário de não aplicar o locado a fim diverso daquele a que se destina – cfr. artigo 1038º alínea c), CC.
Nos termos daquela norma constitui fundamento de resolução do contrato de arrendamento:
O uso do prédio para fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior desgaste ou desvalorização para o prédio”.
Como referem Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge[6]: “a lei prevê um conceito genérico e indeterminado de incumprimento como fundamento da resolução do contrato tanto pelo arrendatário como pelo senhorio, fazendo a enumeração meramente exemplificativa, nos nºs 2 e 3, dos fundamentos de resolução pelo senhorio e a indicação, também a título exemplificativo, no nº 4, de uma específica situação fundamento de resolução pelo arrendatário (…) Caberá, portanto, aos Tribunais, com o contributo da jurisprudência e doutrina, determinar perante cada caso, não apenas se ocorre a situação de incumprimento contratual invocada, mas também se esta, pela sua gravidade ou consequências, torna inexigível à outra parte a manutenção do arrendamento”. Assim, “As situações assinaladas nas alíneas do n.º 2 do artigo 1083.º CC devem ser complementados com o conceito indeterminado de inexigibilidade constante do proémio do seu proémio” - Acórdão da Relação de Lisboa de 12/05/2011[7].
A este propósito, julgamos ser de reproduzir a fundamentação da sentença recorrida, dado que a alteração do fim a que o locado se destina é suscetível de configurar uma infração grave das obrigações do arrendatário, atribuindo ao senhorio o direito a resolver o contrato. Tal direito constitui-se na esfera jurídica do senhorio independentemente de a alteração não implicar maior desgaste ou desvalorização para o prédio arrendado, uma vez que o que está em causa é a violação dos termos do contrato, e não a lesão causada ao imóvel[8].
Acresce que: “Embora a expressão formal da lei (“uso… para fim diverso”) possa sugerir a ideia de substituição, não é essencial que esta se configure, verificando-se o fundamento de resolução igualmente, quando ao fim se aditar outro, diverso dele (…) o desenvolvimento da destinação estabelecida no contrato a ramos de negócio ou fins conexos (…), excede-a, alterando o equilíbrio da regulamentação de interesses que se convencionou, constituindo efetiva infração contratual (…)”[9].
Compulsados os factos provados, verifica-se que se apurou que o réu colocou na fração em causa dois frigoríficos e um forno, nele confecionando pizzas que vende em distribuição a vários clientes. Dado que o contrato de arrendamento celebrado entre autores e réu teve por fim a habitação, poderia questionar-se se o fabrico de pizzas no locado configura um uso do locado para fim diverso e, consequentemente, se se reconduz ao fundamento de resolução previsto na alínea c) do nº 1, do artigo 1083º, CC.
Porém, sob a epígrafe “Indústrias domésticas” dispõe o artigo 1092º CC:
1 - No uso residencial do prédio arrendado inclui-se, salvo cláusula em contrário, o exercício de qualquer indústria doméstica, ainda que tributada.
2 - É havida como doméstica a indústria explorada na residência do arrendatário que não ocupe mais de três auxiliares assalariados”.
Deve ser considerada industrial “toda a atividade que transforma matérias primas ou produtos, noutros produtos ou objetos, que se tornam mais valiosos por via dessa transformação” – Pais de Sousa[10]. A este propósito, Pinto Furtado[11] refere que: “Não é, com efeito, por uma dada atividade produzir riqueza (…) que se casará melhor com o uso habitacional do arrendatário, mas por poder incluir-se entre aquelas ocupações laborais que costumam ser levadas a cabo em casa, visto as suas caraterísticas a isso se adaptarem sem desvio relevante do fim contratado”, propondo este autor uma aceção ampla para a atividade industrial prevista no preceito em análise como “(…) toda a atividade laboral que não deva ser entendida como comércio – a atuação menos domesticável de todas”.
Da expressão “salvo cláusula em contrário” constante do preceito citado resulta que a inclusão no uso residencial do prédio de indústria doméstica assume uma natureza supletiva, podendo os contraentes proceder ao seu afastamento, mediante convenção nesse sentido.
Ora, o fabrico de pizzas pelo réu e a sua distribuição a vários clientes enquadra-se no âmbito de indústria doméstica e, consequentemente, está incluída no uso residencial do prédio. Consequentemente, na ausência de uma cláusula em contrário, o apuramento de que “O réu colocou no imóvel (…) dois frigoríficos e um forno, nele confecionando pizzas que vende, em distribuição, a vários clientes” não configura a atribuição ao locado de fim diverso, mantendo, nos termos da norma citada, a funcionalidade principal de residência. E sempre deverá ter-se presente que resultou não apurado que o réu tenha instalado no locado uma pizzaria, apurando-se realidade diversa, relativa ao fabrico de pizzas e sua distribuição a vários clientes.
Nenhuma censura merece, pois, a decisão recorrida, dado que não se verificam os fundamentos de resolução invocados.
Improcede, pois, o recurso deduzido pelos autores.

Por terem ficado vencidos, os autores/recorrentes são responsáveis pelo pagamento das custas processuais do recurso – cfr. artigo 527º e 529º, CPC.

*
III – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta 2ª secção cível:
- Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos autores A e B, mantendo a decisão recorrida.

Custas do recurso pelos autores/recorrentes – cfr. artigos 527º, CPC.
           
D.N.

Lisboa, 4 de julho de 2024
Rute Sobral
José Manuel Monteiro Correia
Paulo Fernandes da Silva
_______________________________________________________
[1] Proferido no processo 233/09, disponível em www.dgsi.pt
[2] Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág, 201 e 202
[3] Proferido no processo nº 3683/16.6T8CBR.C1.S2. disponível em www.dgsi.pt
[4] Proferido no processo nº 2732/15.0YLPRT.L2-8, disponível em www.dgsi.pt
[5] Proferido no processo nº 2225/21.6T8MTSW-A.P1, disponível em www.dgsi.pt
[6] Arrendamento Urbano, Novo Regime Anotado e Legislação Complementar, Laurinda Gemas, Albertina Pedroso e João Caldeira Jorge, pág. 367.
[7] Proferido no processo nº2741/08.5YXLSB.L1-6, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Menezes Leitão in Arrendamento Urbano, 5.ª Edição, pág. 143
[9] Pinto Furtado in Manual de Arrendamento Urbano, Volume II, páginas 1057 e 1058.
[10] Anotações ao Regime do Arrendamento Urbano, 5ª edição, pág. 63
[11] Manual do Arrendamento Urbano, 2ª edição pág. 240.