Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ CAPACETE | ||
Descritores: | UNIÃO DE FACTO ACÇÃO JUDICIAL DE RECONHECIMENTO TRIBUNAL COMPETENTE JUÍZOS DE FAMÍLIA E MENORES | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/30/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Sumário: | 1. Conforme claramente resulta do art. 590.º, n.º 1, do C.P.C., a prolação de despacho de indeferimento liminar apenas é possível naquelas situações em que, por determinação legal ou do próprio juiz, a petição inicial ou o requerimento inicial é apresentado a despacho liminar, ou seja, antes da citação do demandado; nunca depois de o réu ter sido citado e apresentado contestação. 2. Projetando o juiz conhecer da exceção dilatória consistente na incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria, julgando-a procedente, restam-lhe duas vias, de modo a observar e fazer cumprir, quanto aos autores, o princípio do contraditório: - ou convoca uma audiência prévia (arts. 3.º, n.º 4, 591.º, n.º 1, als. b) e d), e 593.º, n.º 1), enquanto espaço privilegiado para a garantia das partes, aí garantindo aos autores o direito de resposta à exceção dilatória arguida pelas partes, decidindo-a em seguida; - ou dispensa aquela diligência, nos termos do art. 592.º, n.º 1, al. b), caso em que, previamente, se lhe impõe a prolação de um despacho prévio notificando as partes da sua intenção de por termo ao processo pela procedência da exceção dilatória e concedendo aos autores prazo para responderem. 3. O conceito de família não é estanque, antes se mostrando recetivo a fenómenos que pela sua evidência social mereçam o seu abrigo. 4. A união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não pode já ser posta em causa, sobretudo a partir do momento em que, nos termos do n.º 1 do art. 36.º da CRP, passou a beneficiar de proteção constitucional, devendo, por isso, ser considerada uma relação familiar, apesar de não constar do elenco das fontes jurídico-familiares do art. 1576.º, do Código Civil. 5. Por conseguinte, os Juízos de Família e Menores são os materialmente competentes para a preparação e julgamento de uma ação em que é pedido o reconhecimento da união de facto. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I - RELATÓRIO: M e MS, intentaram no Tribunal Judicial da Comarca de ____ - Juízo de Família e Menores de ____, tendo sido distribuída pelo Juiz _, a presente ação declarativa de reconhecimento de união de facto, sob a forma de processo comum, contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, nos termos do artigo 24.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1], pugnando pelo reconhecimento da união de facto alegadamente existente entre ambos por período superior a três anos, nos termos e para os efeitos do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade. Devidamente citado para o efeito, o réu Estado Português deduziu contestação, começando por arguir a exceção dilatória consistente na incompetência do tribunal, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente ação. No mais, impugna a factualidade alegada pelos autores na petição inicial. O réu conclui assim o seu articulado de contestação: « Nestes termos e nos demais de direito, deverá ser julgada procedente a exceção dilatória invocada e julgada esta 4.ª Secção de Família e Menores de Lisboa materialmente incompetente para conhecer da presente acção e, em consequência, ser determinado a remessa dos autos ao tribunal materialmente competente - tribunal cível ou, caso assim se não entenda, deverá a presente acção ser julgada de harmonia com a prova a produzir em audiência de julgamento. » Os autores foram notificados da contestação apresentada pelo Ministério Público e, logo a seguir, o senhor juiz a quo, «apreciando liminarmente», não sem antes ter considerado que «por via da ref.ª 391812498[2], entende-se assegurado o contraditório, mormente à matéria da excepção deduzida na contestação formulada pelo Ministério Público», proferiu a seguinte decisão: «(...) Apreciando liminarmente. Nos presentes autos, vieram M, (...) e MS, (...), propor acção declarativa de reconhecimento de união de facto, sob a forma de processo comum, contra o ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público, nos termos do artigo 24.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, pugnando pelo reconhecimento da união de facto alegadamente existente entre si por período superior a 3 (três) anos, nos termos e para os efeitos do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade. Apresentaram prova documental, testemunhal e por declarações de parte * Regularmente citado, o Réu ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público apresentou contestação, em síntese, invocando excepção dilatória de incompetência material, e, subsidiariamente, deduzindo defesa por impugnação. * Da excepção de incompetência material do Tribunal de Família e Menores de ____. Como é consabido, a competência dos tribunais, na ordem jurídica interna, reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território, e fixa-se no momento em que a acção se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei ( cfr. artºs 37º e 38º, ambos da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO – e artº 60º, do Cód. de Processo Civil ). Por outro lado, é em face do pedido formulado pelo autor e pelos fundamentos (causa petendi) em que o mesmo se apoia, e tal como a relação jurídica é pelo autor delineada na petição inicial (quid disputatum ou quid dedidendum), que cabe determinar/aferir da competência do tribunal para de determinada acção poder/dever conhecer, sendo para tanto irrelevante o juízo de prognose que, hipoteticamente, se pretendesse fazer relativamente à viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão. Depois, nos termos do artigo 40.º, nºs 1 e 2, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, mister é outrossim não olvidar que a competência dos tribunais da ordem judicial é residual, ou seja,“ Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, e ,“A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada“. Logo, também no âmbito dos tribunais comuns ou judiciais ( os quais compreendem os tribunais de competência territorial alargada e os tribunais de comarca, cfr. artº 33º, da LOSJ ), competindo aos juízos locais cíveis e de competência genérica a tramitação e decisão das causas que não sejam atribuídas a outros juízos especializados ou a tribunal de competência territorial alargada ( cfr. artigo 130º da LOSJ ), é outrossim a competência dos juízos cíveis e de competência genérica definida por via residual [cabendo-lhes a competência material caso a acção não seja da competência dos juízos especializados ]. De resto, pacífico e consensual é que a competência material é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual, e , segundo o critério referido em segundo lugar, serão da competência dos juízos cíveis e de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado. Em suma, e no essencial, mostra-se assim a Lei N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO em perfeita consonância [ como se exige ] com a Constituição da República Portuguesa, rezando designadamente o respectivo artº 211º, no seu nº 2, que “ Na primeira instância pode haver tribunais com competência específica e tribunais especializados para o julgamento de matérias determinada”, e , bem assim, com o Código de Processo Civil, cujo art.º 65.º reza que “ As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”. Isto dito, é consabido que os juízos de família e menores de juízos de competência especializada - dos tribunais de comarca - se tratam, conforme o disposto nos artºs 40º, nº 2 e 81º, nºs 1 e 3, alínea g), ambos da LEI DA ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO , dispondo v.g. o artº 122º, do mesmo diploma legal, e sob a epígrafe de “Competência relativa ao estado civil das pessoas e família“, que : 1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar: a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges; b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum; c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio; d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil; e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de Novembro de 1966; f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges; g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família. 2 - Os juízos de família e menores exercem ainda as competências que a lei confere aos tribunais nos processos de inventário instaurados em consequência de separação de pessoas e bens, divórcio, declaração de inexistência ou anulação de casamento civil, bem como nos casos especiais de separação de bens a que se aplica o regime desses processos”. Para o que ao caso espécie releva, face ao desenho da lide e conexo pedido formulados na petição inicial, cumpre convir que a Lei da Nacionalidade (Lei n.º 37/81, de 03 de Outubro, na sua derradeira redacção conferida pela Lei Orgânica n.º 2/2018, de 05 de Julho) aliás, não deixada de invocar expressamente pelos Autores, atribui, expressamente, a competência para conhecer da presente acção destinada a reconhecer que os autores, um português e uma angolana, ambos residentes em Angola, vivem em união de facto, com vista a autora mulher requerer, com base nessa sentença, a atribuição de nacionalidade portuguesa, aos tribunais cíveis. A incompetência em função da matéria decorre da propositura num tribunal de uma acção que, de acordo com o princípio da especialização, está reservada a uma espécie ou categoria diferente de Tribunal. Por conseguinte, será o tribunal cível de Lisboa competente para julgar a presente acção, sendo, enquanto tal, o Tribunal de Familia e Menores de Lisboa incompetente em razão da matéria para conhecer da mesma. De acordo com o artigo 96.º, alínea a), do Código de Processo Civil, a infracção das regras de competência fundadas na matéria, determina a incompetência absoluta do tribunal. A incompetência absoluta deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado, tendo, contudo, no caso sido arguida pelo Réu - n.º 1, do artigo 97.º, do Código de Processo Civil. Assim, este tribunal é materialmente incompetente para os seus ulteriores termos, devendo o processo correr no Tribunal com competência cível. A incompetência material constitui uma excepção dilatória que determina a incompetência absoluta do tribunal nos termos dos artigos 96.º, alínea a), 97.º, 98.º, 99.º, 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea a), todos do Código de Processo Civil. Por conseguinte, queda prejudicado o conhecimento do mérito subjacente, a qual não terá lugar por via da viabilidade da excepção invocada pelo Réu ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo Ministério Público. * Decidindo liminarmente. Nos termos e pelos fundamentos expostos, julgo verificada a excepção de incompetência absoluta deste Tribunal em razão da matéria, determinando, consequentemente, o indeferimento liminar da petição inicial.» * Inconformados com o assim decidido, os autores interpuseram o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações: A. O presente recurso é interposto do despacho saneador-sentença proferido pelo Tribunal a quo que julgou verificada a excepção de incompetência absoluta do Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de ____ em razão da matéria e, em consequência, indeferiu liminarmente a petição inicial apresentada pelos Autores aqui Apelantes B. Entendeu o Tribunal a quo que a excepção de incompetência material do tribunal em razão da matéria, invocada pelo Ministério Público na respectiva contestação, se verificava em função do disposto no artigo 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade, determinando, consequentemente, o indeferimento liminar da petição inicial. C. Ora, não se podem os Apelantes conformar com o entendimento do Tribunal a quo, por considerarem competente para conhecer o mérito da causa em apreço o Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de ____, pelos motivos que adiante se demonstrarão. D. Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 60.º, n.º 1 e 65.º do CPC, são as leis de organização judiciária que determinam as causas que, em razão da matéria, são atribuídas a cada juízo de competência especializada, conforme também disposto no artigo 40.º, n.º 2 da LOSJ. E. Pelo que é na LOSJ que deveria o tribunal a quo ter procurado, em primeiro lugar, apurar o tribunal competente para apreciar a acção de reconhecimento de união de facto intentada pelos Autores, ora Apelantes. F. Para o conhecimento de acções de reconhecimento de união de facto não é competente qualquer tribunal de competência territorial alargada, nos termos dos artigos 111.º a 116.º da LOSJ. G. Estando, por sua vez, essa matéria abrangida na competência dos Juízos de Família e Menores, conforme disposto no artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da LOSJ e entendimento maioritário da doutrina e jurisprudência. H. Com efeito, têm os tribunais entendido que, ao utilizar a expressão «estado civil das pessoas e família», o legislador fê-lo na sua acepção restrita, abrangendo situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente não só ao casamento, mas também à união de facto. I. É também pacífico na jurisprudência que em acções relativas às situações de união de facto se aplicam normas de Direito da Família, pelo que são os juízos de família e menores competentes para conhecer do mérito de causas, como a em apreço, em que se visa o reconhecimento das referidas situações. J. Não podendo esta conclusão ser afastada pela referência a qualquer concreto preceito legal ou por um qualquer enquadramento jurídico dos factos alegados pelos Autores, uma vez: (i) Por um lado, é claro que o legislador tem vindo a procurar, ao longo das últimas reformas legislativas em matéria de organização judiciária, criar secções nos tribunais que sejam especialmente vocacionadas para o conhecimento de determinadas matérias específicas, de forma a permitir um melhor e mais célere julgamento dessas causas, evitando a sua dispersão por tribunais que tenham experiência e conhecimento mais parcos dessas matérias; (ii) Por outro lado, a determinação do tribunal competente não deve depender de qualquer referência ou enquadramento legal feito pelas partes, às quais apenas é exigida a alegação dos factos essenciais que constituem a causa de pedir (artigo 5.º, n.º 1 do CPC), não estando o tribunal vinculado às alegações relativamente à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 3.º, n.º 3 do CPC). K. Pelo que resulta da lei – i.e., do artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da LOSJ – e, nomeadamente, do seu espírito e teleologia que são os Juízos de Família e Menores competentes para o conhecimento de acções que visem o reconhecimento de situações de união de facto, independentemente do fim a que esse reconhecimento se destine. L. Não se podendo aceitar que tenha sido intenção do legislador definir a competência dos tribunais para o conhecimento das referidas causas em função das finalidades pretendidas e alegadas pelas partes, mas antes de repartir a competência em função da matéria subjacente. M. Não resulta também do artigo 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade, de forma clara e expressa, que a acção de reconhecimento de união de facto para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa seja da competência dos Juízos Cíveis, ao contrário do defendido pelo Tribunal a quo. N. Com efeito, a expressão «tribunal cível» deve ser entendida como atributiva de competência para o julgamento das causas em apreço aos tribunais em matéria cível, uma vez que poderá suceder – à luz da organização e desdobramento dos tribunais judiciais – que não existam in casu Juízos de Família e Menores no tribunal competente em razão do território, caso em que serão competentes os Juízos Cíveis. O. Não fosse essa a intenção do legislador e teria sido utilizada, em alternativa, a expressão «secções cíveis» ou «juízos cíveis». Interpretação contrária seria admitir que o legislador pretendeu expressamente criar uma situação de incerteza, insegurança e injustiça jurídica, contrariando os princípios que têm presidido às reformas em matéria de organização judiciária. Isto porque essa interpretação, no entender dos Apelantes errada, levaria a que: (i) O conhecimento de uma acção de reconhecimento de união de facto sem qualquer finalidade específica seria atribuído aos Juízos de Família e Menores; (ii) A apreciação da mesma matéria seria, no entanto, da competência dos Juízos Cíveis caso os autores alegassem, ao fundamentar a sua causa de pedir, que o reconhecimento da união de facto se lhes revela necessário para fins de obtenção da nacionalidade portuguesa, nos termos do artigo 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade; (iii) Sendo que, onde fosse essa a única e exclusiva finalidade dos autores mas a mesma não fosse expressamente referida nos articulados – ou, ainda que o fosse, não tivessem aqueles feito remissão para a referida norma da Lei da Nacionalidade – voltariam os Juízos de Família e Menores a ter de arrogar-se competentes. P. Como pretendemos acima demonstrar, a interpretação defendida tem correspondência com a letra da lei, uma vez que os juízos de família e menores são, para todos os efeitos, tribunais cíveis, uma vez que são competentes para conhecer e julgar causas que versem sobre o Direito da Família, ramo do direito civil. Q. Caso assim não se entenda, isto é, que a expressão «tribunais cíveis» não possa ser interpretada como abrangendo os juízos cíveis e os juízos de família e menores, conforme seja determinado in casu pelas leis de organização judiciária, sempre teríamos um conflito de normas (i.e., entre o artigo 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade e o artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da LOSJ). R. Nesse caso, atendendo às disposições do artigo 7.º do Código Civil, sempre teria de entender-se a parte final do artigo 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade como tacitamente revogada pelo artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da LOSJ. S. Em função de tudo o exposto, é mister concluir que os Juízos de Família e Menores são competentes, a nível abstracto, para julgar o reconhecimento de uniões de facto, como, no caso sub judice, há um Juízo de Família e Menores que o é concretamente: o Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de ____, inexistindo assim qualquer fundamento para afastar a sua competência para julgar o caso em apreço. Nestes termos e nos demais de direito aplicável, deve o presente recurso ser considerado procedente. Em consequência, deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo ser revogada, julgando-se o Tribunal recorrido como o competente para, em razão da matéria, prosseguindo os autos. * O réu contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida. *** II - ÂMBITO DO RECURSO: Nos termos dos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso. No caso concreto, a única questão a decidir consiste em saber qual o tribunal materialmente competente para preparar e julgar a presente ação: se o Juízo de Família e Menores de ____, como defendem os recorrentes, se o Juízo Local Cível de ____, conforme entendem, quer o recorrido, quer o tribunal a quo. *** III - FUNDAMENTOS: 3.1 - Fundamentação de facto: A factualidade relevante para a decisão do recurso é a que consta do relatório supra. * 3.2 - Do mérito do recurso: 3.2.1 - Notas prévias: Da decisão liminar: Considerando a tramitação que os autos seguiram até à prolação da decisão recorrida, é elementarmente evidente que não poderia o senhor juiz a quo ter proferido despacho de indeferimento liminar da petição inicial. É que, manifestamente, não estamos perante uma situação de indeferimento liminar da petição inicial. Dispõe o art. 590.º, n.º 1, que «nos casos em que, por determinação legal ou do juiz, seja apresentada a despacho liminar, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente ou ocorram, de forma evidente, exceções dilatórias insupríveis e de que o juiz deva conhecer oficiosamente, aplicando-se o disposto no artigo 560.º.». Conforme claramente resulta da citada disposição legal, a prolação de despacho de indeferimento liminar apenas é possível naquelas situações em que, por determinação legal ou do próprio juiz, a petição inicial ou o requerimento inicial é apresentado a despacho liminar, ou seja, antes da citação do demandado. No caso concreto, tendo o réu, Estado Português, sido citado para os termos da ação e, inclusivamente, devidamente representado pelo Ministério Público, apresentado contestação, jamais a decisão subsequente poderia ser de indeferimento liminar da petição inicial. No entanto, foi precisamente isso que o senhor juiz a quo fez. Do contraditório: Na decisão recorrida começa o senhor juiz a quo por afirmar, como já se viu, que «por via da ref.ª 391812498, entende-se assegurado o contraditório, mormente à matéria da excepção deduzida na contestação formulada pelo Ministério Público». Em reforço do que se afirmou na nota anterior, uma tal afirmação, só por si, deveria ter bastado para que, em devida reflexão, o senhor juiz a quo tivesse seriamente ponderado a incongruência da prolação de um subsequente despacho de indeferimento liminar da petição inicial. Nunca poderia o senhor juiz a quo ter proferido um despacho de indeferimento liminar da petição inicial uma vez citado o réu, apresentada contestação e depois de ter, ele próprio, considerado assegurado o direito dos autores ao contraditório relativamente à matéria de exceção arguida pelo réu. Sucede, porém, que «por via da ref.ª 391812498» não poderia o senhor juiz a quo ter considerado « assegurado o contraditório, mormente à matéria da excepção deduzida na contestação formulada pelo Ministério Público .» Parece flagrantemente evidente, também aqui, que perante um tal quadro, não poderia o senhor juiz a quo ter considerado «assegurado o contraditório, mormente à matéria da excepção deduzida na contestação formulada pelo Ministério Público.» Não é assim, como se afigura óbvio, e salvo o devido respeito, que num Estado de Direito Democrático, um juiz de direito deve considerar garantido o direito ao contraditório de uma das partes num litígio pendente num tribunal. Bastar-lhe-ia ter atentado devidamente na lei processual civil que nos rege para logo concluir que não assegurou, que não observou nem fez cumprir, quanto aos autores, o direito dos autores ao contraditório relativamente à exceção dilatória consistente na incompetência absoluta do tribunal a quo, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente ação. Os autores foram notificados da apresentação da contestação em 13 de novembro de 2019, através do ofício com a referência 391812498, constante de fls. 59, endereçado à sua mandatária judicial, com o seguinte teor: «Fica V. Exa. notificada, relativamente ao processo supra identificado[3], da junção da Contestação aos presentes autos, cujo duplicado se remete.» É elementarmente óbvio, reitera-se, que com tal procedimento não foi assegurado o direito dos autores ao contraditório relativamente à supra referida exceção dilatória. É que, perante uma tal notificação, os autores nada mais tinham a fazer do que ficar quietos. Dispõe o n.º 3 do art. 3.º que « o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem», acrescentando o n.º 4, que «às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final.» Não havendo, no caso concreto, lugar a réplica[4], a contestação tratou-se do último articulado admissível nos presentes autos. Por isso, parente a sobredita notificação, os autores nada mais tinham a fazer que não fosse aguardar que o senhor juiz a quo observasse e fizesse cumprir, quanto a eles, como lhe era (e é) legalmente imposto, o princípio do contraditório relativamente à exceção dilatória consistente na incompetência material do Juízo de Família e Menores de ____ para preparar e julgar a presente ação[5], invocada pelo réu na contestação. Projetando o senhor juiz a quo conhecer de tal exceção em sede de despacho saneador (e nunca, pelas razões acima expostas, por via da prolação de um despacho de indeferimento liminar da petição inicial), julgando-a procedente (ainda que indevidamente, como já a seguir se constatará), então restavam-lhe duas vias, de modo a observar e fazer cumprir, quanto aos autores, o sagrado princípio do contraditório, pedra basilar do ordenamento jurídico um Estado de Direito Democrático, apresentavam-se-lhe duas vias: - ou convocava uma audiência prévia (arts. 3.º, n.º 4, 591.º, n.º 1, als. b) e d), e 593.º, n.º 1), enquanto espaço privilegiado para a garantia das partes, aí garantindo aos autores o direito de resposta à exceção dilatória arguida pelas partes, decidindo-a em seguida; - ou dispensava aquela diligência, nos termos do art. 592.º, n.º 1, al. b), caso em que, previamente, se lhe impunha a prolação de um despacho prévio notificando as partes da sua intenção de por termo ao processo pela procedência da exceção dilatória e concedendo aos autores prazo para responderem, rectius, para exercerem o respetivo direito ao contraditório relativamente à mesma. Não foi, no entanto, como se tem enfatizado, nenhum destes procedimentos o adotado pelo senhor juiz a quo, o qual, após a apresentação da contestação e da sua notificação aos autores nos termos que acima se deixaram descritos, proferiu despacho de indeferimento liminar da petição inicial com fundamento na verificação da exceção dilatória consistente na incompetência absoluta do tribunal a quo, em razão da matéria, para preparar e julgar a presente ação. É um tipo de procedimento, há que afirmá-lo de forma clara e inequívoca, que se deseja arredado da prática judiciária portuguesa. 3.2 - Do enquadramento jurídico: Vejamos agora se o tribunal recorrido é, efetivamente, incompetente em razão da matéria para preparar e julgar a presente ação, como defende o réu, entendimento que é sufragado pelo senhor juiz a quo, ou, se pelo contrário, é ele mesmo o materialmente competente para o efeito, como propugnam os autores. As normas de enquadramento e organização do sistema judiciário português encontra-se estabelecidas na Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto)[6]. Dispõe o art. 37.º da LOSJ, sob a epígrafe “Extensão e limites da competência”: 1 - Na ordem jurídica interna, a competência reparte-se pelos tribunais judiciais segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território. 2 - A lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais. Em sintonia, estabelece o n.º 2 do art. 60.º do C.P.C., que «na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território», estatuindo o n.º 1 que «a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código.» No tocante à competência em razão da matéria, o regime regra está consagrado no art. 40.º da LOSJ: 1 - Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional. 2 - A presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada. Trata-se de um regime que se mostra reiterado nos arts. 64.º e 65.º do C.P.C.[7]. A decisão recorrida considera, como se viu, que a competência para dirimir a questão do reconhecimento judicial da união de facto dos autores, aqui apelantes, pertence ao Juízo Local Cível de ___, enquanto estes, à luz do disposto no art. 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ, pertence ao Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de ____. Nos termos do art. 130.º, n.º 1, da LOSJ, «os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada.» Por isso, a questão de saber se o Juízo de Família e Menores do Tribunal Judicial da Comarca de ____ é, ou não, detentor de competência para preparar e julgar a presente ação, reconduz-se à questão de saber se este tipo de ação está legalmente atribuído a qualquer juízo ou tribunal de competência territorial alargada e, mais concretamente, aos juízos de família e menores. O art. 122.º da LOSJ, transcrito, aliás, na decisão recorrida, regula a competência dos juízos de família e menores relativamente ao estado civil das pessoas e família. Considerando todas as situações previstas no referido preceito, e abreviando caminho, para a decisão do presente recurso apenas nos interessa aquela a que se reporta a al. g) do seu n.º 1: «compete aos juízos de família e menores preparar e julgar (...) outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família.» Importa-nos também o disposto no art. 14.º, n.ºs 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, aprovado pelo Dec. Lei n.º 237-A/2006, de 14.12. Dispõe o n.º 2 que «o estrangeiro que coabite com nacional português em condições análogas às dos cônjuges há mais de três anos, se quiser adquirir a nacionalidade deve igualmente declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto», acrescentando o n.º 4 que «no caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do nacional português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto.» Por sua vez, estatui o art. 3.º da Lei da Nacionalidade, aprovada pela Lei n.º 37/81, de 03.10, com as alterações introduzidas que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 25/94, de 19.08 e pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17.04: «1 - O estrangeiro casado há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa mediante declaração feita na constância do matrimónio. 2 - A declaração de nulidade ou anulação do casamento não prejudica a nacionalidade adquirida pelo cônjuge que o contraiu de boa-fé. 3 - O estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.» O conceito de «estado civil» costuma ser utilizado, tanto em sentido restrito, como em sentido lato. Para Ana Prata «estado civil» é «uma situação integrada pelo conjunto das qualidades definidoras do estado pessoal que constam obrigatoriamente de registo civil, sendo o estado pessoal a situação jurídica da pessoa, no que toca, entre outras, à idade (menoridade, maioridade, emancipação), relações familiares (casado, solteiro, divorciado, viúvo), relações com o Estado ( nacional, estrangeiro, naturalizado, etc.), à situação jurídica (interdito, inabilitado).» Para Pedro Pais de Vasconcelos[8], define esse mesmo conceito como a expressão da condição jurídica da pessoa, enquanto maior ou menor, capaz ou incapaz. Para Neves Ribeiro[9], as ações sobre o estado das pessoas pressupõem um facto registado, que tem subjacente uma declaração de vontade capaz de ter eficácia modificativa, extintiva ou constitutiva de estado civil. O Assento nº 1/92 entende as ações sobre o estado das pessoas como aquelas cuja procedência se projeta sobre o estado civil de alguém – divórcio, separação de pessoas e bens, investigação de paternidade, impugnação de legitimidade, interdição, impugnação de impedimentos para o casamento, autorização para o casamento (…)[10]. Por sua vez, João de Castro Mendes[11], refere-se ao conceito de estado pessoal ou civil, num sentido global que abrange o conjunto de qualidades das pessoas que revistam as características que se inscrevem no registo civil ou que a doutrina repute de relevância jurídica igual à dessas. O referido conceito pode ainda ser usado numa aceção mais particularizada em que se chama estado a cada uma dessas qualidades (estado de filho legítimo, estado de maior, etc.), ou seja, abrangendo apenas as qualidades que resultam da posição face ao matrimónio. Este Autor refere como exemplo de um estado civil, o de interdito, porque consta obrigatoriamente do registo civil. Temos, assim, que na sua aceção mais restrita o conceito de estado civil abrange a posição da pessoa face ao matrimónio (solteiro, casado, divorciado, separado, viúvo) e está usado nomeadamente nos arts. 7º, nºs 1 e 2; 69º, al. n), 220º-A, 126º, nº 1 als. a) e b), 132º, nº 2, e 136º, nº 2 al. a), todos do Código de Registo Civil. Já o seu conceito mais amplo abrange os factos sujeitos a registo, e está usado no art. 211.º do mesmo Cód. de Registo Civil[12]. Sem embargo do que acaba de expor-se, constata-se que nos diplomas que têm regulado a competência especializada dos Tribunais de Família, nomeadamente a Lei n.º 52/2008, de 28/02, e a atual LOSJ, sempre se previu como requisito da competência dos mesmos, o conhecimento de ações que versassem sobre o Direito da Família enquanto ramo do Direito Civil[13]. Tal como afirmado no Ac. da R.C. de 24.04.2016, citado nos acórdãos referidos na nota anterior, ao aludir, na al. g) do nº 1 do art. 122º da LOSJ, a propósito das ações relativas ao estado civil das pessoas, o legislador utilizou tal conceito na sua aceção mais restrita, considerando o seu significado na linguagem corrente e apenas para se reportar a situações em que esteja em causa o posicionamento das pessoas relativamente ao casamento, união de facto ou economia comum, introduzindo a citada alínea, de carácter mais genérico e abrangente, no sentido de abranger toda e qualquer ação que se relacione com essas situações e cuja inclusão nas demais alíneas pudesse, eventualmente, suscitar algum tipo de dúvida. Mais significativo ainda é o entendimento do S.T.J., no citado Ac. de 13.11.2012, ao constatar que os Tribunais de Família, desde o momento inicial da sua criação, pela Lei n.º 4/70, de 29.04[14], sempre se mostraram pensados ou vocacionados para o conhecimento de ações que versem o ramo do Direito Civil do Direito da Família. Ou seja, a longa tradição, que de há muito se mostra sedimentada, é a de atribuir àqueles tribunais, de competência especializada, a competência para a preparação de julgamento em que há lugar à aplicação de normas de direito da família. Ora, a realidade jurídica portuguesa revela que, presentemente, a união de facto integra o Direito da Família. A este propósito refere Jorge Duarte Pinheiro que «falar de turbulência para exprimir o estado actual do Direito da Família é capaz de ser, afinal, um eufemismo. Já não é correcta a ideia de que se está perante um ramo que regula a instituição “família”, entendida como o grupo de pessoas unidas por relações jurídicas familiares. O objecto do Direito da Família alargou-se de forma a englobar as relações familiares nominadas, ditas parafamiliares, v.g., a união de facto.»[15]. Mais categórica é ainda Rossana Martingo Cruz, ao afirmar que o conceito de família «não é estanque daí que esteja sempre recetivo a fenómenos que pela sua evidência social mereçam o seu abrigo. (...) A união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não parece posta em causa. Já a aceitação jurídica ainda não logrou, na nossa ótica, o ponto ótimo de equilíbrio que poderia atingir. Contudo, não deixa de se salientar alguma inclinação do legislador ordinário para considerar a união de facto como família quando, no disposto no n.º 2 do art. 46.º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, exara que para efeitos de acolhimento familiar, “(...) considera-se que constituem uma família duas pessoas casadas entre si ou que vivam uma com a outra há mais de dois anos em união de facto (...)”. Ou seja, para a integração de uma criança numa família, a união de facto cumpre o modelo exigido. Pois, para o seu saudável e harmonioso desenvolvimento uma família é indiferente se esta é unida pelo casamento ou se é uma vivência em condições análogas a este. A sua essência é a mesma e, como tal, está igualmente apta a favorecer a realização pessoal de quem a integra[16]. Na maioria das vezes, a realização do cidadão ocorre (também) no seio da família, por isso a vida familiar deve ser enaltecida e protegida. Nesta senda o art. 16.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem estabelece que “A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do Estado.”. Cabe ao Estado fomentar diferentes formas de vivência em família, sem a fazer depender unicamente de conceitos jurídicos espartilhados que a realidade vai ultrapassando.»[17]. Ainda segundo a mesma Autora, «(...) em Portugal a qualificação da união de facto como relação familiar era questão controvertida. Não se ignora que a taxividade do art. 1.576.º [do Código Civil] cria alguns embaraços, uma vez que esta convivência não consta do elenco das relações jurídico-familiares. (...) Entendemos que a união de facto é uma relação familiar mesmo não constando do elenco das fontes jurídico-familiares do art. 1.576.º[18]. (...) A partir do momento em que a Constituição passa a proteger a união de facto, no n.º 1 do art. 36.º, dever-se-á considerar igualmente familiar.»[19]. À luz do que antecede, não parece que subsistam grandes dúvidas no sentido de que o tribunal a quo, o Juízo de Família e Menores de ____ é o materialmente competente para preparar e julgar a presente ação. É o Juízo de Família e Menores de ____, enquanto tribunal de competência especializada, o materialmente competente para preparar e julgar ações em que há lugar à aplicação de normas de Direito da Família[20]. Conforme vertido no Ac. da R.P. de 05.02.2015, Proc. n.º 13857/14.9T8PRT.P1 (Joaquim Correia Gomes), in www.dgsi.pt, por certo o legislador pretendeu abranger o «carácter fluído e flexível que hoje caracteriza a vida familiar, uma vez que esta não se restringe ao laços decorrentes do casamento, como sucede quando os progenitores não estão casados entre si, podendo essa relação ser ou não estável (…)», sabendo-se que se está «perante uma diversidade constitutiva da família e de distintos níveis de relacionamento da vida em família, que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) tem vindo a reconhecer a partir do artigo 8.º da CEDH», razão porque «a leitura mais consistente do segmento normativo em causa ao referir-se a “outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família” se reporta às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (…) de modo a individualizar ou a concretizar a situação jurídica pessoal familiar, tendo em atenção a natureza complexa e multinível que actualmente tem a família.» Reiterando, não subsistem, pois, quaisquer dúvidas no sentido de que a situação sub judice se enquadra na previsão da al. g) do n.º 1 do art. 122.º da LOSJ, razão pela qual, a decisão recorrida terá de ser revogada, devendo o processo prosseguir seus regulares termos. *** IV - DECISÃO: Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação procedente, em consequência do que, revogam a decisão recorrida, julgando materialmente competente para preparar e julgar a presente ação o Juízo de Família e Menores de ____ - Juiz 4, onde o processo deverá prosseguir seus regulares termos. Sem custas. Lisboa, 30 de junho de 2020 José Capacete Carlos Oliveira Diogo Ravara _______________________________________________________ [1] Pertencem ao C.P.C./13 todas as disposições legais que vierem a ser mencionadas sem indicação da respetiva fonte. [2] O senhor juiz a quo refere-se ao ofício de notificação dos autores da contestação apresentada pelo réu. [3] Trata-se, obviamente, do Proc. n.º 23445/19.8T8LSB. [4] Nos termos do art. 584.º, n.º 1, «só é admissível réplica para o autor deduzir toda a defesa quanto à matéria da reconvenção (...).» [5] Cujo valor é de € 30.000,01. [6] Doravante identificada apenas por LOSJ. [7] art. 64.º: «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.» art. 65.º: «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.» [8] Teoria Geral do Direito Civil, 5.ª Edição, p. 94. [9] O Estado nos Tribunais, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1994, p. 205. [10] Publicado no DR, nº 134, de 11/06/1996, p. 2794. [11] Direito Civil-Teoria Geral, Vol. I, Edição da AAFDL,1978, pp. 203-214. [12] Neste sentido, cfr. o Ac. do S.T.J. de 13.11.2012, Proc. nº 13466/11.4T2SNT.L1.S1 (João Camilo), in www.dgsi.pt. [13] Cfr. neste sentido os Acs. da R.L. de 11.12.2018, Proc. n.º 590/18.1T8CSC.L1-6 (António Santos), e da R.C. de 08.10.2019, Proc. n.º 2998/19.6T8CSC.C1 (Luís Cravo), ambos acessíveis em www.dgsi.pt, e que temos vindo a acompanhar. [14] A sua regulamentação ocorreu pela primeira vez com a publicação do Dec. Lei n.º 8/72 de 07/01. [15] O Direito da Família Contemporâneo, 5.ª Edição, Almedina, 2017, p. 17. [16] A título de curiosidade, salienta a Autora que «o art. 67.º-A do Código de Processo Penal considera, na alínea c) do n.º 1, “Familiares”, o cônjuge da vítima ou a pessoa que convivesse com a vítima em condições análogas às dos cônjuges, os seus parentes em linha reta, os irmãos e as pessoas economicamente dependentes da vítima”. Ou seja, tem uma consideração ampla de família, incluindo para o efeito de saber quem considera como familiares da vítima, não só o unido de facto como aqueles que dependem economicamente da vítima.» [17] União de Facto Verus Casamento, Gestlegal, 2019, pp. 57-58 e nota 187. [18] Outro não parece ser o entendimento do S.T.J., ao admitir no seu Ac. de 22.05.213, Proc. n.º 1185/09.6TVLSB.L1.S1 (Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt, ao admitir que a união de facto pode ser fonte de relações familiares: «Não sendo a união de facto equiparável ao casamento, mas admitindo-se que possa ser fonte de relações familiares, o legislador tem vindo a conferir-lhe, acompanhando a realidade histórica e sociológica, cada vez mais sólida e efectiva protecção.» [19] União de Facto cit., pp. 59-60. [20] Vejam-se, além das já anteriormente referidas, as normas previstas nos arts. 1793.º (ex vi do art. 4.º, da Lei n.º 7/2001, de 11.05) e 2020.º, ambos do Cód. Civil, à luz do conceito alargado de família a que se vem aludindo. |