Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | INÊS MOURA | ||
Descritores: | LOCAÇÃO INDEMNIZAÇÃO PELA OCUPAÇÃO FIADOR ABUSO DE DIREITO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 10/13/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Sumário: | 1. O fiador enquanto garante da dívida do arrendatário que outorga no contrato de arrendamento nessa qualidade, assume no contrato a posição de devedor, ficando pessoalmente obrigado perante o credor senhorio, nos termos do art.º 627.º n.º 1 do C.Civil, sendo à luz do que for expressamente estabelecido no contrato de arrendamento que pode delimitar-se o âmbito da dívida que por ele é assumida e que tem apenas como limite a dívida principal que não pode exceder, podendo no entanto ser contraída por quantidade menor ou em condições menos onerosas do que aquela, conforme previsto no art.º 631.º n.º 1 do C.Civil. 2. A responsabilidade do fiador perante o senhorio pela indemnização da responsabilidade do inquilino correspondente ao valor da renda em dobro por cada mês de atraso na entrega do locado, integra-se no âmbito do art.º 634.º do C.Civil, podendo no entanto ser afastada pelas partes. 3. Tendo os senhorios intentado ação executiva com vista à entrega do locado, poucos meses depois da data em que o locado devia ter sido entregue e da resolução do contrato, em execução movida também contra o R. fiador, que nela foi citado, pelo que menos a partir da citação ficou o mesmo a ter conhecimento da extinção do contrato de arrendamento e do incumprimento por parte dos locatários em procederem à entrega do imóvel arrendado. 4. Não pode falar-se em abuso de direito dos senhorios nem em violação do princípio da boa fé ao reclamarem a indemnização do fiador, quando à data da resolução do contrato não existiam ainda os n.º 5 e 6 do art.º 1041.º do C.Civil, introduzidos pela Lei 13/2019 de 12 fevereiro, que agora determinam que caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora, o senhorio deve notificar o fiador da mora e das quantias em dívida nos 90 dias seguintes, apenas podendo exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efetuar tal notificação. 5. A renda em dobro a que alude o art.º 1045.º n.º 2 do C.Civil a título de indemnização pela mora é devida até à restituição do locado e enquanto esta não ocorre não existe qualquer fundamento para o senhorio cumular esta indemnização com quaisquer juros de mora, sob pena de se estar a duplicar indemnizações por um mesmo prejuízo, na medida em que até entrega do bem o senhorio pediu o ressarcimento do seu prejuízo daquela forma. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa: I. Relatório Vêm AC e mulher MC, intentar a presente ação com a forma de processo comum contra AP, AMP, MCP, TMP, MMP e AMP, pedindo a condenação de todos os RR. no pagamento de €150.750,00 acrescido de juros de mora contados até 18.02.2017, no montante de €5.4104,80. Alegam, em síntese, que são proprietários de um prédio que identificam, tendo celebrado a 23 de março de 1995 um contrato de arrendamento com o 1º R. e sua mulher para o 1º andar do referido prédio, tendo a esposa do 1.º R. falecido, a 14.11.2011. Os 1.º a 5.º RR. são herdeiros da falecida, sendo que o 6.º R. outorgou no contrato de arrendamento na qualidade de fiador. Os locatários não pagaram as rendas referentes aos meses de outubro a novembro de 2007, todo o ano de 2008; janeiro e fevereiro de 2009, nas datas do respetivo vencimento, nem posteriormente, estando em dívida o montante total de €16.550,00 de rendas. Os AA. requereram uma notificação judicial avulsa em que declararam resolvido o contrato de arrendamento, pelo que a fração devia ter sido entregue em 16 de junho de 2009, o que os RR. não fizeram, só a tendo vindo a abandonar em finais de março de 2015. Entretanto as rendas em atraso são parte da renda do mês de março (€750,00) e os meses de abril a dezembro de 2008, na quantia de €9.750,00 e as rendas de janeiro a março de 2009. Acresce ainda que as rendas devidas de abril a setembro de 2009 período de diferimento da entrega do locado, determinado pelo tribunal no âmbito do processo de execução de quantia certa, no valor de €1000,00, por mês o que totaliza €6000,00. Sucede que os RR. continuaram a ocupar o locado durante os anos de 2010 até março de 2015. Como os RR. não entregaram a casa após a resolução a indemnização é elevada ao dobro da renda, pelo que devem os RR. a quantia de €150.750,00, quantia que nunca pagaram, a que acrescem juros de mora desde a data de vencimento de cada uma das rendas e indemnização, no valor de €54.104,80. Citados os 1º a 5º RR. vieram contestar pugnando pela improcedência da ação. Invocaram a exceção de ilegitimidade passiva dos 2.º a 4.º RR. , a ineptidão da PI, a inexistência de bens da herança da falecida MTP, a prescrição das rendas vencidas até Fevereiro de 2009 e impugnaram a matéria alegada, referindo que a data da entrega contou-se a partir de janeiro de 2010, tendo em conta os seis meses, pelo que o valor em dívida a título de rendas é de €147.750,00 e o valor dos juros é de €29.988,11 e não €54.108,80. O 6.º R. também veio apresentar contestação concluindo pela improcedência da ação quanto a si. Invocou a prescrição das rendas vencidas entre 2007 e dezembro de 2011 por ter decorrido o prazo de cinco anos, pedindo a absolvição do pedido no valor de €78.750,00 e bem assim dos juros moratórios; invoca a extinção da fiança, alegando que o fiador não é responsável pelas quantias devidas na sequência da resolução do contrato de arrendamento e invoca o abuso de direito dos AA. uma vez que o contrato foi resolvido em março de 2009, momento a partir do qual dizem serem devidas as rendas e indemnizações, mas nunca reclamaram do fiador qualquer quantia, esperando 10 anos para o vir fazer, tendo a dívida passado de €12.750,00, desde a data da resolução para os valores ora peticionados, excedendo manifestamente os limites do seu direito de receber as rendas. O A. veio responder, pugnando pela improcedência das exceções deduzidas por todos os RR. Foi realizada audiência prévia, tendo o A junto documentos e requerido a retificação da quantia de juros de mora peticionados para €30.864,71 o que foi deferido. Foi elaborado despacho saneador que conheceu as exceções da ilegitimidade dos RR. e da ineptidão da petição inicial no sentido da sua improcedência, foi fixado o objeto do litígio, elencados os factos já assentes e enunciados os temas da prova. Realizou-se audiência de discussão e julgamento, com respeito pelo formalismo legal. Foi proferida sentença que a final decidiu da seguinte forma: “Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, julga-se parcialmente procedente, por provada a presenta acção e, em consequência, condena-se solidariamente: a) - o 1º, por si só, a pagar às Aas a quantia de €150.750,00 (cento e cinquenta mil setecentos e cinquenta euros), quantia à qual acrescem juros de mora vencidos, desde o vencimento de cada umas das rendas e indemnização que contabilizados até 18-02-2017 ascendem a €30.864,71, a que acrescem os vencidos e vincendos desde 19-02-2017 até efectivo e integral pagamento. b) e os 1º a 5RRs., na qualidade de herdeiros da falecida MTP, a reconhecerem a existência da dívida para com os Aas, no valor de €150.750,00 (cento e cinquenta mil setecentos e cinquenta euros), quantia à qual acrescem juros de mora vencidos, desde o vencimento de cada uma das rendas e indemnização que contabilizados até 18-02-2017 ascendem a €30.864,71, a que acrescem os vencidos e vincendos desde 19-02-2017 até efectivo e integral pagamento e a reconhecerem vê-la satisfeita pelos bens da herança da falecida. c) o 6 Rº a pagar aos Aas a quantia de €82000,00, a título de indemnização devida pela ocupação do locado contabilizada desde Abril de 2012 a Março de 2015, quantia à qual acresce juros de mora contabilizados, desde o vencimento de cada uma dessas indemnizações até efectivo e integral pagamento.” É com esta decisão que o 6.º R. AMP não se conforma e dela vem interpor recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por decisão que o absolva do pedido que contra ele é formulado, apresentando para o efeito as seguintes conclusões que se reproduzem: I. A questão central nestes autos é a de saber se o fiador é responsável pelas indemnizações a que os Autores têm direito até à entrega do locado (como entende a sentença recorrida) ou se é apenas responsável pelas rendas vencidas e não pagas durante a vigência do contrato. II. Desde logo, o Recorrente quando declarou que “(…) assume solidariamente com os inquilinos a obrigação fiel do cumprimento de todas as cláusulas desde contrato (…)”, fê-lo perante as responsabilidades que advém do incumprimento do contrato. III. Pelo que, a responsabilidade proveniente da não restituição do locado, não poderá ser imputada ao Recorrente na qualidade de fiador, porquanto a mesma nasce com a resolução do contrato. O dever de restituir o bem locado nasceu no momento de fim do contrato de arrendamento, tendo a fiança ficado extinta nesse mesmo momento. Não se confundindo a obrigação secundária que se traduz numa prestação de facto com a obrigação principal de pagamento das rendas. IV. Sendo que o Tribunal, não apurando qual a vontade real das partes, deveria, salvo o devido respeito, ter atendido às circunstâncias do caso concreto para atender ao sentido normal da declaração que consta do contrato de arrendamento. V. Ora, nada leva a crer que o Recorrente / fiador se quisesse obrigar a quaisquer obrigações pós-resolução do contrato, nomeadamente decorrentes da não entrega atempada do locado, por razões que só podem ser imputáveis aos restantes Réus, sendo apenas arrendatário o 1º Réu, sendo os (2º a 5º Réus) terceiros estranhos à extinta relação de arrendamento e à fiança nele prestada. VI. Ou seja, a fiança não abrange a indemnização prevista no artigo 1045.º do Código Civil, na medida em que a entrega do locado é da responsabilidade do arrendatário, nos termos do disposto no artigo 1038.º alínea i), do Código Civil. VII. Na verdade, representa uma enorme violência, absolutamente desproporcionada, obrigar o fiador a responder pela indemnização decorrente da não entrega do locado, ainda para mais numa situação, como a dos autos, em que o Recorrente desconhecia o incumprimento por parte dos arrendatários, nunca foi notificado para o efeito pelos Autores e não tinha forma de obrigar os restantes 1º a 5º Réus, o 1º R na qualidade de arrendatário e os 2º a 5º Réus como filhos e meros herdeiros da primitiva inquilina, a entregar o locado VIII. Sem conceder, sempre se diga que ainda que se entenda (o que apenas se aceita, à cautela, por mera defesa do patrocínio) que deve o Recorrente ser condenado no pagamento da renda que as partes tenham estipulado a título de indemnização e até à efetiva data de restituição do locado, não deve o mesmo ser condenado numa indemnização elevada ao dobro. Na verdade, tal indemnização corresponde a uma forma de penalização que deve apenas ser imputável ao arrendatário, nos termos do artigo 1045.º do Código Civil. IX. Uma outra situação que merece especial atenção nestes autos refere-se ao facto de não ter ficado provado que os Autores tenham dado conhecimento ao Recorrente do incumprimento contratual por parte dos Réus arrendatários e da consequente resolução do contrato. X. Apesar de os Recorridos alegarem no âmbito desta ação que o Recorrente é responsável pelo pagamento da dívida, nunca reclamaram junto do fiador os valores em dívida, inclusive não tendo sequer informado o Recorrente da resolução do contrato em março de 2009. XI. Em boa verdade, do eventual incumprimento do contrato de arrendamento, da alegada resolução, bem como da suposta obrigação de entrega do locado, não foi, em momento algum, dado conhecimento ao fiador, aqui Recorrente. XII. Ademais, tal facto foi dado como não provado na sentença ora recorrida: “3.3. Factos Não Provados: (…) - Não se provou que os AA, antes de 30-08-2010, deram conhecimento ao 6º R., por qualquer meio, quer do não pagamento das rendas por parte dos inquilinos, solicitando o pagamento, quer lhe deram a conhecer da resolução do contrato de arrendamento do qual era fiador.” XIII. Obrigação esta de informar que sempre deverá ser considerada ónus do credor, como bem defende diversa jurisprudência. XIV. Fruto desta falta de interpelação, o Recorrente apenas veio a tomar conhecimento do incumprimento da obrigação de pagamento da renda por parte dos arrendatários muito mais tarde, já em sede de citação destes autos, quando os valores em dívida eram já exorbitantes. XV. Não existe, desta forma, qualquer mora por parte do Recorrente / fiador, nem poderá este ser condenado, salvo melhor opinião, no pagamento solidário das quantias determinadas pelo Tribunal recorrido, a título de indemnização. XVI. Acresce que a intenção dos Recorridos ao atuarem como o fizeram durante todos estes anos após a resolução do contrato, silenciando e nada comunicando ao Recorrente, bem sabendo que o cumprimento da sua alegada obrigação sempre dependeria da interpelação por parte dos Recorrentes, excederam manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e também pelo fim social e económico do seu direito de receber as rendas e ou indemnização que lhes seriam devidas. XVII. Neste contexto é forçoso concluir que a pretensão dos Recorridos constitui um claro abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil, num autêntico ato de venire contra factum proprium. XVIII. Não tendo sido dada qualquer oportunidade ao fiador, aqui Recorrente, de evitar o prolongar da ocupação ilegítima do locado por parte dos arrendatários. XIX. Aliás, o fiador, e como vimos acima, não pode ser responsabilizado por atos que fogem por completo ao seu controle como é a disposição e intenção dos arrendatários em se manterem, sem título, no locado, numa situação que não só era do seu desconhecimento mas ainda que fosse do seu conhecimento, não dependia em nada de si. XX. Está o Recorrente / fiador a ser penalizado, por um lado, pela inércia do senhorio em desocupar o espaço e, por outro lado, pelo capricho do arrendatário (1º Ré) e de terceiros (2º a 5º Réus) em desocuparem o espaço quando bem entenderam (tudo com o desconhecimento daquele, como vimos). XXI. Por isso mesmo, veio o legislador, através da Lei n.º 13/2019, prever expressamente essa obrigação no artigo 1041.º, n.º 5, do CC: “Caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora nos termos do n.º 2, o senhorio deve, nos 90 dias seguintes, notificar o fiador da mora e das quantias em dívida.” XXII. Na mesma linha de entendimento, não poderão os juros moratórios ser imputados ao Recorrente, não tendo este sido interpelado para pagar em momento prévio à interposição desta ação, pelo que não há constituição em mora do Recorrente, nos termos do artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil. Assim, qualquer eventual condenação em juros moratórios (o que não se concede e só se invoca à cautela) só poderá considerar o momento da citação do Recorrente para esta ação e não qualquer momento prévio. XXIII. Por último, sempre será de referir que o montante de 82.000,00€ (oitenta e dois mil euros), indicado na sentença como a quantia devida pela ocupação do locado contabilizada desde abril de 2012 a março de 2015, está incorreto XXIV. O período de abril de 2012 a março de 2015 contém 36 meses, que multiplicado pelo valor da indemnização de 2.000,00€, sempre totalizaria o montante de 72.000,00€ (setenta e dois mil euros) e não o valor de 82.000,00€. XXV. A sentença recorrida violou, nomeadamente, os artigos 627.º e seguintes, 1045º, 334º e 805.º, todos do Código Civil. As AA. vieram responder ao recurso pugnando pela sua improcedência e manutenção da decisão proferida. II. Questões a decidir São as seguintes as questões a decidir, tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC - salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine: - da fiança não abranger a indemnização pela mora na entrega do locado; - do abuso de direito na reclamação da indemnização ao fiador; - dos juros de mora em dívida; - da retificação da sentença quanto ao montante que o fiador foi condenado a pagar. III. Fundamentos de Facto Por não ter sido impugnada a decisão da matéria de facto e não haver qualquer alteração a fazer à mesma, remete-se para a decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância que decidiu esta matéria, nos termos do disposto no art.º 663.º n.º 6 do CPC, que deu como provados os seguintes factos que se reproduzem: A. Por certidão de teor matricial n.º …, encontra-se inscrito a favor dos Aas o prédio sito na R …, n.º … a …, Lisboa, freguesia de Alcântara, concelho de Lisboa. B. No dia 23 de março de 2005, os ora Aas deram de arrendamento ao ora 1º Réu e a sua mulher MTP, para habitação, o 1º andar do referido prédio, o que fizeram por contrato de arrendamento de duração limitada datado daquela data. C. O contrato de arrendamento entrou em vigor no dia 1 de abril de 2005 com termo previsto para 31 de março de 2010, sendo as suas prorrogações legais de 3 anos. D. A renda mensal acordada foi de €1000,00 que se vencia no primeiro dia útil do mesmo anterior aquele a que disser respeito. E. A inquilina MTP faleceu em 14 de outubro de 2011, conforme assento de óbito n.º 8631 do ano de 2011 da conservatória de registo civil de Lisboa. F. Nos termos da cláusula 10 do contrato de arrendamento referido em A. “o fiador ou terceiro outorgante, abaixo assinado, assume solidariamente com os inquilinos a obrigação fiel do cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, seus aditamentos e suas renovações até à efectiva restituição do locado arrendado, livre, devoluto e nas condições estipuladas e, bem assim, declara que a fiança que acaba de prestar subsistirá mesmo havendo alteração da renda agora fixada e mesmo depois de decorrido o prazo de cinco anos a que alude o n.º 2 do artigo 655º do CPC”. G. Os 1º a 5º RR. são os herdeiros da falecida inquilina e foram habilitados nos autos de execução para entrega de coisa certa sob …/… H. O 6 Réu é fiador dos inquilinos do contrato de arrendamento referido em B). I. Os AA requereram ao juiz dos juízos cíveis do Tribunal da Comarca de Lisboa a notificação judicial avulsa do ora 1º R. e sua mulher MTP de que declararam resolvido o contrato de arrendamento, processo que correu termos sob o n.º …/…, no 9º juízo cível, 1 Secção. H. O 1º R. inquilino e a R. inquilina, já falecida, foram notificados a 9 e 16 de março de 2009, respetivamente, do conteúdo da notificação avulsa de que contrato de arrendamento foi resolvido. J. Em face do que o locado devia ter sido desocupado e entregue aos ora AA. até 16 de junho de 2009. K. O A intentou ação executiva para entrega de coisa certa que correu termos no 2 juízo – 1 secção dos juízos de execução de Lisboa – processo …/…. L. Em 15-10-2009, a Executada, naquele processo, invocou estar doente requerendo o diferimento da desocupação do locado pelo prazo de dez meses, ficando pendente o pedido de diferimento da desocupação o qual assumiu carácter urgente. M. No processo referido em K) o pedido de deferimento de desocupação do imóvel foi deferido, por decisão datada de 05-12-2011, pelo prazo de seis meses, a contar da data do trânsito em julgado da mesma decisão. N. O 1º R. deduziu oposição à execução, a qual por sentença datada de 3-12-2014, foi julgada improcedente por não provada. O. Após a prolação da sentença referida em M) os executados deveriam ter entregue o locado e pago as rendas e indemnizações em dívida. P. Mas os 1 a 5 RR. mantiveram-se no locado a utilizarem diariamente o locado mantendo ali o seu domicilio fiscal, não obstante o contrato de arrendamento ter sido revogado em 9 de Março de 2009. Q. No âmbito da execução n.º …/…, 2º JUÍZO, 1 SECÇÃO, para entrega de coisa certa, o aí executado AMP foi citado para os termos da mesma a 30-08-2010. R. No âmbito da execução referida em P), o aqui 6 Réu aí executado, foi declarado, parte ilegítima, por despacho datado de 28-09-2010, por se entender que a entrega de coisa certa apenas pode ser exigida dos executados AP e MTP, arrendatários. S. Os RR. não pagaram parte da renda do mês de março de 2008, no valor de €750,00 e a totalidade das rendas de abril a dezembro de 2008. T. Os RR. não pagaram as rendas de janeiro a março de 2009. U. Os RR. continuaram a usar a fração objeto do contrato de arrendamento até finais de Março de 2015. V. Por certidão emitida pela autoridade tributária aduaneira, serviço de finanças de Lisboa 7 em 31 de maio de 2017, JM (…) em cumprimento do despacho exarado no requerimento que antecede e , após ter consultado os elementos oficiais existentes neste serviço de Finanças, que têm a ver com as transmissões gratuitas sujeitas a imposto de selo, verifiquei o seguinte: “ 1º - não foi instaurado processo de imposto de selo por óbito de MTP, NIF … e 2º Mais certifico que em nome de cujus não constavam bens imóveis a 14 de Outubro de 2011. – cfr. doc. fls. 74 cujo teor se dá por reproduzido. IV. Razões de Direito - da fiança não abranger a indemnização prevista pela mora na entrega do locado Alega o Recorrente que não pode ser responsabilizado enquanto fiador pela indemnização resultante da mora na entrega do locado e já depois da resolução do contrato de arrendamento. A sentença sob recurso considerou, tendo em conta o teor do contrato subscrito pelo fiador, que o mesmo responde pelo pagamento da indemnização correspondente ao dobro da renda, até à entrega do locado, considerando ser devida a indemnização vencida a partir de abril de 2012 a março de 2015 data da entrega do locado, por entender estar prescrito o direito do senhorio a haver do fiador as rendas vencidas e não pagas e a indemnização peticionada até março de 2012. No âmbito do contrato de arrendamento, uma vez findo o contrato, é obrigação do locatário restituir a coisa locada, como prevê expressamente o art.º 1038.º al. i) do C.Civil. O art.º 1045.º dispondo sobre a indemnização pelo atraso na restituição da coisa, dispõe: “1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, exceto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida. 2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.” O legislador fixa nesta norma a indemnização devida pelo locatário no caso do mesmo não cumprir a obrigação de entrega do locado, aqui se prevendo que continue a pagar o valor da renda acordada a título de indemnização, que é elevado ao dobro em caso de mora, como expressamente estabelecido no n.º 2 deste artigo. Na situação em presença, está assente e não é controvertido que o contrato foi resolvido pelo senhorio e devia ter sido entregue livre e desocupado até junho de 2009; na falta de tal entrega foi intentada ação executiva pelo senhorio para o efeito e no âmbito desta execução foi proferida decisão a 05.12.2011 que diferiu a desocupação do imóvel pela arrendatária pelo prazo de 6 meses, tendo-se mantido os 1º a 5º RR. no locado até março de 2015. A questão que aqui se discute é então a de saber se a obrigação de pagamento da indemnização prevista no art.º 1045.º n.º 2 do C.Civil, que incide sobre o arrendatário, pelo atraso culposo na entrega do locado, equivalente ao valor da renda mensal em dobro por cada mês de atraso na restituição do bem é também responsabilidade do fiador, em razão da fiança que prestou perante o senhorio quando da celebração do contrato de arrendamento. Vejamos sumariamente o regime da fiança previsto nos art.º 627.º ss. do C.Civil, nos pontos mais relevantes para a decisão desta questão. A fiança cuja noção vem prevista no art.º 627.º do C.Civil constitui uma garantia pessoal de satisfação de um direito de crédito que é dada por um terceiro – fiador – perante o credor, que assim responde com o seu património pela dívida que garante, tratando-se de uma obrigação acessória da que recai sobre o principal devedor, como estabelece o n.º 2 deste artigo, característica que tem o sentido da fiança ficar subordinada e acompanhar a obrigação principal. Como nos dizem Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, in Garantias de Cumprimento, pág. 82: “A fiança implica que haja um segundo património, o património de um terceiro (fiador), que vai, cumulativamente com o património do devedor, responder pelo pagamento da dívida. (…) Da parte do fiador há uma responsabilidade pessoal pelo cumprimento de uma obrigação alheia.” A vontade de prestar a fiança deve ser expressamente declarada pela forma exigida para a obrigação principal, como refere o art.º 628.º do C.Civil e como negócio jurídico que é, o seu conteúdo pode ser livremente estipulado pelas partes, desde que se situe no âmbito dos limites legais e desde que corresponda a um interesse do credor digno de proteção legal, como é exigência do art.º 398.º do C.Civil. Com a epígrafe “obrigação do fiador” o art.º 634.º do C.Civil estabelece: “A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor.” Em anotação a esta norma, ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, Vol. I, pág. 467: “O fiador é responsável, portanto, não só pela prestação devida, como pela pena convencional (cfr. art.º 810.º), ou pela reparação dos danos, havendo culpa do devedor (cfr. art.º 798.º) salvo se outra coisa se tiver convencionado, já que, como resulta do artigo 631.º, n.º 1, a fiança pode ser contraída em menos onerosas condições.” Daqui podemos concluir que a resposta à questão de saber se o fiador responde ou não perante o credor pela indemnização da responsabilidade do devedor resultante da mora na entrega do locado e já depois da resolução do contrato de arrendamento não é unívoca, não resultando do regime legal da fiança tal exclusão, pelo contrário, tudo dependendo daquilo que tenha sido expressamente acordado pelas partes. Com argumentação que temos por correta, pronuncia-se o Acórdão do TRP de 5 de março de 2018 no proc. 43/14.7T8PFR.P1 in www.dgsi.pt nos seguintes termos: “Revertendo à questão que nos ocupa: poderá responsabilizar-se o fiador pelo pagamento da indenização por mora prevista no n.º 1 do art.º 1041.º do CC, numa situação em que a mora lhe é comunicada já após a extinção do contrato (in casu, ocorrida por iniciativa da locatária)? Como refere Gravato Morais, «… a fiança é um negócio que envolve um risco assaz elevado para o garante, muito maior até do que o contrato de arrendamento para o próprio inquilino, que, v.g., pode pôr termo ao contrato a todo o tempo, ao contrário daquele, que não pode extinguir a fiança nas mesmas circunstâncias. A sua vinculação fica inteiramente dependente da vontade (e do cumprimento) do inquilino». Esta situação de risco e de debilidade traduz-se, doutrinariamente, na “interpretação estrita das declarações de assunção de risco, com a correlativa tendencial aplicação dos critérios in dubio pro fideiussione e in dubio pro fideiussore”, na tese de Januário Gomes, que enfatiza a especificidade do “negócio jurídico fiança” e as consequências específicas que dele advém ao nível da interpretação da declaração do fiador, concluindo: «Na dúvida sobre o sentido da declaração, não será directamente relevante o critério subsidiário do art.º 237 CC - “dicotomizado” entre os negócios gratuitos e os onerosos - mas, antes, o critério do carácter menos gravoso para o declarante. Assim resulta, natural e razoavelmente, do facto de a fiança ser um negócio de risco, donde decorre que deve ser o credor, beneficiário da garantia, a curar no sentido de a declaração “cobrir”, inequivocamente, todas as situações que pretende ver resguardadas». A situação de ‘risco’ e de ‘debilidade’ em que se coloca o fiador não o exime das responsabilidades que o seu estatuto legal lhe confere, proclamadas no artigo 634.º do Código Civil com inquestionável limpidez: «A fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor». Como lapidarmente referem Pires de Lima e Antunes Varela, «o fiador é responsável, portanto, não só pela prestação devida, como pela pena convencional (…) ou pela reparação dos danos, salvo se outra coisa se tiver convencionado (…). Os termos claros em que se exprime o artigo 634.º mostram que não é legítima a dúvida que já se levantou (…) quanto à responsabilidade do fiador pelos lucros cessantes (…). Tal é a função da fiança, que o fiador não deve desconhecer. O fiador não tem de admitir só que venha a ter de entregar ao credor o equivalente pecuniário da prestação devida pelo devedor principal, mas, como já se acentuou, também a indemnização dos danos causados pelo não cumprimento, pela mora ou pelo cumprimento imperfeito da obrigação». No mesmo sentido, veja-se o comentário de Joana Farrajota à norma citada: «Esta relação entre as duas obrigações significa que o fiador responde não só pela prestação principal, mas por quaisquer prestações que venham a surgir – por efeito da lei ou do contrato – na esfera jurídica do devedor em resultado do incumprimento – temporário, defeituoso ou definitivo – da obrigação. Donde, se, vencida a obrigação, o devedor não cumprir e forem devidos juros de mora, o fiador responderá igualmente por estes, sem necessidade de qualquer interpelação, da mesma forma que responderá por quaisquer danos sofridos pelo credor em resultado do incumprimento do devedor. Em síntese, dir-se-á que o fiador responde por tudo a que o devedor se encontre obrigado». (…) A relação contratual (arrendamento) desenvolve-se entre o locador e o locatário, resumindo-se o estatuto do fiador a garantir o integral cumprimento da prestação do locatário, com as consequências daí resultantes, enunciadas de forma transparente no citado artigo 634.º do Código Civil.” Não se ignora que a jurisprudência não tem sido unânime quanto à solução dada à questão de saber se a obrigação de pagamento da indemnização prevista no art.º 1045.º n.º 2 do C.Civil, que incide sobre o arrendatário, pelo atraso culposo na entrega do locado equivalente ao valor da renda mensal em dobro por cada mês de atraso na restituição do bem é também da responsabilidade do fiador. Constata-se, no entanto, na avaliação da jurisprudência, que a ponderação desta questão incide muitas vezes sobre situações em que o contrato de fiança prestado no âmbito de contrato de arrendamento celebrado assume contornos diversos daquele que está em causa nestes autos, restringindo a responsabilidade do fiador relativamente à do inquilino. Considera-se que a resposta a esta questão apenas é possível de acordo com o que em cada circunstância é expressamente afirmado pelos contraentes quando da prestação da fiança, o que revela a importância de se ponderar o negócio que em cada caso concreto é feito pelas partes, de modo a melhor determinar o âmbito da fiança. Ou seja, sendo possível e admitida pelo art.º 634.º do C.Civil a responsabilidade do fiador pela indemnização correspondente ao dobro da renda devida pela mora na restituição do locado, só em face de cada contrato de fiança em concreto é que podemos dizer se foi essa a medida da responsabilidade assumida pelo fiador. O fiador enquanto garante da dívida do arrendatário que outorga no contrato de arrendamento nessa qualidade, assume no contrato a posição de devedor, ficando pessoalmente obrigado perante o credor senhorio, nos termos do art.º 627.º n.º 1 do C.Civil, sendo à luz do que for expressamente estabelecido no contrato de arrendamento que pode delimitar-se o âmbito da dívida que por ele é assumida e que tem apenas como limite a dívida principal que não pode exceder, podendo no entanto ser contraída por quantidade menor ou em condições menos onerosas do que aquela, conforme previsto no art.º 631.º n.º 1 do C.Civil. No caso o Recorrente subscreveu o contrato de arrendamento enquanto fiador, ali constando expressamente na sua cláusula décima: “O fiador ou terceiro outorgante, abaixo assinado, assume solidariamente com os inquilinos a obrigação fiel do cumprimento de todas as cláusulas deste contrato, seus aditamentos e suas renovações até à efectiva restituição do locado arrendado, livre, devoluto e nas condições estipuladas e, bem assim, declara que a fiança que acaba de prestar subsistirá mesmo havendo alteração da renda agora fixada e mesmo depois de decorrido o prazo de cinco anos a que alude o n.º 2 do artigo 655º do CPC”. O R. fiador não veio invocar qualquer erro da sua declaração, pelo que tendo em conta os termos em que a fiança foi expressamente prestada não pode deixar de concluir-se que o mesmo assumiu solidariamente com os inquilinos as obrigações para eles resultantes do contrato de arrendamento celebrado até à efetiva entrega do locado, sendo assim responsável pelas consequências legais da mora no cumprimento de tal obrigação, conforme previsto no art.º 631.º do C.Civil, o que não afastou. Pelo contrário, o que se constata é que a obrigação assumida pelo fiador no contrato de arrendamento em questão até foi muito ampla, abrangendo todas as obrigações dos inquilinos decorrente do contrato até à efetiva restituição do locado, além de ter sido expressamente prevista a manutenção da fiança nas situações de aumento de renda ou de renovação do contrato de arrendamento mesmo além do prazo de 5 anos previsto no anterior art.º 655.º n.º 2 do C.Civil, o que no caso, porém, não chegou a verificar-se, na medida em que o contrato de arrendamento foi resolvido por falta de pagamento da renda antes de decorridos cinco anos de manutenção da relação contratual. Alega ainda o Recorrente que quando da resolução do contrato de arrendamento pelo senhorio, não foi dela notificado, pelo que não lhe foi dada oportunidade para evitar o acumular da indemnização a que o senhorio tem legalmente direito. Não obstante tenham alegado que a efetuaram, os AA. não lograram provar que também logo notificaram o R. fiador quando da resolução do contrato de arrendamento realizada em março de 2009, devendo o imóvel ter sido desocupado e entregue até 16 de junho de 2009 – ponto I dos factos provados. Contudo, o que se verifica é que foi dado conhecimento ao fiador de tal facto quando os AA. intentaram ação executiva com vista à entrega do locado antes de 15 de outubro de 2009, o que decorre do ponto L dos factos provados, poucos meses depois da data em que o locado devia ter sido entregue e da resolução do contrato, em execução movida também contra o R. fiador, que nela foi citado, pelo que menos a partir da citação ficou o mesmo a ter conhecimento da extinção do contrato de arrendamento e do incumprimento por parte dos locatários em procederem à entrega do imóvel arrendado. Assim, pelo menos a partir de 30.08.2010 data da sua citação naquela execução, conforme alega o Recorrente, o mesmo teve “a oportunidade de evitar o acumular da indemnização”, sendo certo que nada invocou ter feito nesse sentido. Verifica-se ainda, que a sentença recorrida condenou o fiador apenas no pagamento da indemnização devida pela mora na desocupação do locado a partir de abril de 2012 e até março de 2015 e por isso por datas posteriores àquela em que o fiador foi citado na execução. De qualquer modo, sempre se adianta que à data da resolução do contrato não existiam ainda os n.º 5 e 6 do art.º 1041.º do C.Civil, introduzidos pela Lei 13/2019 de 12 fevereiro, que agora vêm estabelecer, caso exista fiança e o arrendatário não faça cessar a mora, que o senhorio deve notificar o fiador da mora e das quantias em dívida nos 90 dias seguintes, apenas podendo exigir do fiador a satisfação dos seus direitos de crédito após efetuar tal notificação. Como salienta o Acórdão do STJ de 30 de novembro de 2021 no proc. 2399/14.2TBVFX.L1.S1 in www.dgsi.pt : “A necessária notificação prévia ao fiador quanto ao montante das quantias em dívida, prevista hoje no disposto no n.º 5 do art.º 1041.º C.Civil (introduzido na redacção do art.º 2.º da Lei n.º 13/2019, em vigor a partir de 13/2/2019) não assume natureza de norma interpretativa, nos termos do art.º 13.º n.º 1 C.Civil, posto que o anterior regime geral da fiança, aplicado ao arrendamento, não suscitava anteriormente qualquer controvérsia, fosse doutrinal, fosse jurisprudencial, pelo que a ponderação da norma é de afastar ao caso dos autos, ocorrido na vigência da norma proveniente da reforma de 1977 do Código Civil.” Refira-se ainda e finalmente, que a circunstância da extinção da obrigação principal determinar a extinção da fiança, como previsto no art.º 651.º do C.Civil, não exclui a responsabilidade do fiador pelas consequências da mora ou culpa do devedor em resultado da fiança anteriormente prestada, como expressamente salvaguardado pelo já mencionado art.º 634.º do C.Civil. Resta concluir que, neste caso e atento o âmbito e o teor do contrato de fiança celebrado, não merece censura a sentença proferida na parte em que considera que o Recorrente deve ser responsabilizado enquanto fiador pela indemnização resultante da mora na entrega do locado, correspondente ao dobro da renda por cada mês de atraso na sua restituição. - do abuso de direito na reclamação da indemnização do fiador Alega ainda o Recorrente que o credor não cumpriu a sua obrigação de o informar do incumprimento do contrato por parte dos arrendatários, do que só teve conhecimento ao ser citado nestes autos, existindo também uma inércia do senhorio em obter a desocupação do locado, constituindo um abuso de direito agora virem reclamar de si os valores indemnizatórios devidos por aquela demora. A sentença recorrida considerou improcedente a exceção do abuso de direito suscitada pelo R. O instituto do abuso de direito tem a sua previsão no art.º 334.º do C.Civil que estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. Está em causa o exercício anormal de um direito em termos reprovados pela lei, ou seja, é respeitada a estrutura formal do direito, mas violada a sua afetação substancial, funcional ou teleológica. Não é qualquer conduta que é suscetível de integrar o conceito de abuso de direito, já que a norma em questão impõe que o titular do direito exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Dizem-nos a este propósito, com grande propriedade, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, Vol. I, pág. 217, em anotação a esta norma: «Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem pois fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Teoria Geral das Obrigações, pág. 63). O Prof. Vaz Serra refere-se, igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” (Abuso do direito, no Bol. N.º 85, pág. 253).» O Acórdão do STJ de 15 de fevereiro de 2002, inwww.dgsi.pt refere a este respeito: “a teoria do abuso de direito serve, como se sabe, de válvula de segurança para casos de pressão violenta da nossa consciência jurídica contra a rígida estruturação, geral e abstracta, de normas legais, obstando a injustiças clamorosas que o próprio legislador não hesitaria em repudiar se as tivesse vislumbrado.” Razões de lealdade e confiança são inerentes ao princípio da boa fé, que se impõe, quer na negociação dos contratos, quer na sua execução, conforme dispõem, respetivamente o art.º 227.º e 762.º n.º 2 do C.Civil. O legislador vem impor através destas normas que as partes orientem o seu comportamento pelos princípios da boa fé, surgindo esta como regra normativa de conduta humana, dirigida para a colaboração entre as partes em qualquer relação negocial. Tal princípio de colaboração no âmbito das obrigações, tal como nos ensina Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 1º vol., pág. 145, determina, por um lado, um non facere, traduzido num dever geral de não prejudicar a parte contrária, do que decorre que está de má fé aquele que age com o objetivo direto ou necessário de lesar os interesses de outrem; e por outro lado, impõe a tomada de posições concretas por quem é parte no contrato, de acordo com as circunstâncias, com vista à satisfação do interesse da parte contrária, do que emergem diversos deveres acessórios como sejam os deveres de lealdade, honestidade, notificação, informação, etc. Pondo-se a questão de saber qual a “medida de colaboração” entre os contratantes, na execução do contrato que é exigida, pelo princípio da boa fé que se impõe por força do art.º 762.º n.º 2 do C.Civil, podemos socorrer-nos da norma legal que constitui o art.º 487 nº 2 do C.Civil que faz referência ao bonus pater familias e que nos diz que a culpa, na falta de outro critério legal, é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso. A este respeito, ensina-nos Menezes Cordeiro, in ob. cit. pág. 153: “Não obstante a referência legal citada surgir, em sede de culpa, na responsabilidade civil, a figura do bom pai de família deve ser tratada, primordialmente, no campo da diligência devida, em termos de boa fé.” Uma das modalidades de que pode revestir-se o abuso de direito é o denominado venire contra factum proprium que tem sempre como pressuposto a criação de uma situação objetiva de confiança – uma conduta de alguém que lhe irá ser vinculativa no futuro, apresentando-se o exercício do direito como contraditório em face de conduta anterior, frustrando as expectativas associadas ao comportamento anterior. Refere Baptista Machado, inObra Dispersa, vol. I, pág. 415 que o ponto de partida do venire é “uma anterior conduta de um sujeito jurídico que, objectivamente considerada, é de molde a despertar noutrem a convicção de que ele também, no futuro, se comportará, coerentemente, de determinada maneira”, podendo “tratar-se de uma mera conduta de facto ou de uma declaração jurídico-negocial que, por qualquer razão, seja ineficaz e, como tal, não vincule no plano do negócio jurídico. É sempre necessário que a conduta anterior tenha criado na contraparte uma situação de confiança, que essa situação de confiança seja justificada e que, com base nessa situação de confiança, a contraparte tenha tomado disposições ou organizado planos de vida de que lhe surgirão danos irreversíveis.” A respeito do abuso de direito enquanto comportamento violador da confiança, contraditório com as expectativas criadas na outra parte, diz-se de forma clara no Acórdão do TRP de 23 de março de 2017 no proc. 12383/15.3T8PRT.P1 que subscrevemos como adjunta: “Constituem modalidades desta figura os casos chamados suppressio e surrectio. Tratam-se dos casos em que o comportamento do titular do direito ao longo do tempo criou a legítima confiança de que aquele não exercerá mais o direito ou renunciou a ele ou então que reconhece a outrem um direito ou faculdade jurídica que de outra forma não existiria ou já se encontrava extinta. Enquanto formas de tutela da confiança concitada noutrem por um determinado comportamento, o que releva é o significado da aparência do comportamento, a ilação que o mesmo permite quanto ao comportamento da mesma pessoa – do mesmo titular do interesse juridicamente protegido – no futuro. Por isso, não importa se por não exercer o direito, o seu titular queria ou não renunciar ao mesmo, nem isso poderia ser facilmente concluído a partir de um comportamento – puramente – omissivo. Importa sim que a esse comportamento possa ser legitimamente associado um determinado significado perceptível pelo comum dos destinatários. Para tanto, mais que o tempo e para além do tempo, tornam-se necessários indícios objectivos desse significado que permitam concluir que a confiança criada não foi iminentemente subjectiva – correspondente à vontade e desejo de outrem – mas objectivamente fundada, só assim merecendo a tutela do direito. Para tanto, esses elementos objectivos hão-de indiciar que o direito não mais será exercido ou se renunciou a ele em definitivo. O que significa, afinal, que o contexto e as circunstâncias em que o comportamento tem lugar podem ser decisivos para a interpretação do seu significado.” A respeito da noção de supressio, diz-nos Menezes Cordeiro, em artigo intitulado “Do abuso do direito: estado das questões e perpectivas”, in ROA ano 65, Vol. II, setembro 2005: “A suppressio (supressão) abrange manifestações típicas de “abuso do direito” nas quais uma posição jurídica que não tenha sido exercida, em certas circunstâncias e por certo lapso de tempo, não mais possa sê-lo por, de outro modo, se contrariar a boa fé.” Tendo presente os factos que resultaram provados, é patente que não podemos concluir por uma conduta dos AA. manifestamente contrária à boa fé ao virem reclamar do fiador uma indemnização pela mora na entrega do locado, não se vislumbrando a existência de quaisquer factos que objetivamente o revelem. No que se refere à invocada falta de comunicação ao fiador do incumprimento do contrato, já tivemos oportunidade de nos pronunciar sobre tal situação quando da apreciação da questão anterior, para o que remetemos, evidenciando apenas dois aspetos: por um lado, o art.º 1041.º n.º 5 do C.Civil invocado pelo Recorrente não estava em vigor à data do incumprimento contratual dos inquilinos, sendo norma que apenas foi introduzida pelo legislador já no decurso da presente ação; por outro lado, não é verdade que o R. fiador só tenha tido conhecimento do incumprimento e da mora na entrega do locado quando foi citado para a presente ação, o que decorre do facto de ter sido citado em 30.08.2010 precisamente na execução que foi intentada pelo senhorio contra os arrendatários e contra si fiador, com vista à restituição do imóvel locado, circunstância que o mesmo esquece ou faz por esquecer… Não pode, também por isso falar-se de qualquer inércia do senhorio em reaver o imóvel locado quando o mesmo intenta tal ação executiva apenas alguns meses depois da resolução do contrato de arrendamento, como decorre dos factos provados. Inexiste qualquer prolongada conduta omissiva dos AA. em reclamar a entrega do locado, não se vislumbrando, como é que podiam ter criado no Recorrente a confiança e justa expectativa de que não iriam exercer o seu direito, não vindo os AA. com a presente ação contrariar o seu comportamento anterior, em termos que manifestamente excedem os limites da boa fé, conforme exigência do art.º 334.º do C.Civil para o abuso de direito. Não decorre minimamente dos factos provados, pelo contrário, que o R. tenha sido surpreendida pela conduta das AA. ao reclamarem uma indemnização pela mora na entrega do locado, não podendo falar-se de um qualquer abuso de direito da sua parte manifestado por um comportamento desleal ou contrários aos princípios da boa fé. - dos juros de mora em dívida Alega ainda o Recorrente que só pode ser condenado no pagamento dos juros de mora desde a citação, por não se ter constituído em mora em momento anterior. A sentença recorrida condenou o R. no pagamento dos juros de mora contabilizados desde o vencimento de cada uma das parcelas da indemnização devida pela ocupação do locado desde abril de 2012 a março de 2015. Estabelece o n.º 2 do artigo 804.º do C.Civil que o “devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido”. Se o princípio geral é o de que o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir, conforme dispõe o n.º 1 do art.º 805.º do C.Civil invocado pelo Recorrente, casos há em que, independentemente de interpelação, se verifica a mora do devedor, tal como acontece nas situações previstas nas várias alíneas do n.º 2 do mesmo artigo. Os AA. reclamam nestes autos uma indemnização pela mora no cumprimento da entrega do locado por parte dos inquilinos, quando pedem a condenação dos RR. no pagamento da renda em dobro por cada mês de mora na entrega do imóvel locado, indemnização prevista expressamente no art.º 1045.º n.º 2 do C.Civil para estas situações. O legislador afastou aqui as regras da obrigação indemnizar previstas nos art.º 562.º ss. do C.Civil, ao estabelecer a indemnização a que o senhorio tem direito pela mora na restituição do bem. Como nos diz o Acórdão do STJ de 20 de novembro de 2012 no proc. 1587/11.8TBCSC.L1.S1 in www.dgsi.pt : “ (…) existindo mora na entrega do locado, então o senhorio terá o direito a receber do locatário o dobro do valor das rendas convencionadas, em relação ao período entre a constituição da mora e a efectiva entrega do locado. Isto, independentemente dos prejuízos efectivos que o senhorio sofra. Através do disposto do nº 1 visa-se compensar o senhorio pela privação do uso do locado. Já pelo determinado no n°2 pretende-se retribuir o locador pela não restituição do bem locado em devido tempo por culpa do locatário.” A renda em dobro a que alude o art.º 1045.º n.º 2 do C.Civil a título de indemnização pela mora é devida até à restituição do locado e enquanto esta não ocorre não existe qualquer fundamento para o senhorio cumular esta indemnização com quaisquer juros de mora, sob pena de se estar a duplicar diferentes indemnizações por um mesmo prejuízo, na medida em que até entrega do bem o senhorio pediu o ressarcimento do seu prejuízo daquela forma. Nesta circunstância, a obrigação de indemnizar que os inquilinos foram condenados a pagar até à entrega do locado foi a renda em dobro, pelo que apenas se podem vencer juros de mora sobre aquele valor indemnizatório em dívida depois da restituição daquele. Os AA. não lograram fazer prova que depois da entrega do locado interpelaram os RR. para procederem ao pagamento de qualquer indemnização devida pela mora nos termos do art.º 1045.º n.º 2 do C.Civil pelo que, só a partir da citação é que pode considerar-se que os mesmos se constituíram em mora sobre esta obrigação de pagar a dívida que se foi acumulando até à entrega do imóvel, de acordo com o disposto no art.º 805.º n.º 1 do C.Civil. Pelo exposto, dá-se razão o Recorrente nesta parte, quando entende que apenas são devidos juros de mora desde a citação, sobre a quantia indemnizatória devida pela ocupação ilegítima do locado que foi condenando a pagar, revogando-se a sentença proferida na parte em que condena o Recorrente nos juros de mora contabilizados desde o vencimento de cada uma das indemnizações que se substitui nesta parte pela condenação em juros desde a citação até integral pagamento. - da retificação da sentença quanto ao montante que o 6.º R. foi condenado a pagar Alega o Recorrente que a sentença padece de um erro de cálculo quando o condena no pagamento da quantia de € 82.000,00 pela ocupação do locado contabilizada desde abril de 2012 a março de 2015 uma vez que 36 meses multiplicado pelo valor da indemnização de € 2.000,00 totaliza € 72.000,00, pugnando pela sua retificação. Tem razão o Recorrente com esta questão suscitada, sobre a qual o tribunal de 1ª instância não tomou posição, omitindo a prolação do despacho a que alude o art.º 617.º n.º 1 do CPC. Tendo em conta o disposto no art.º 1045.º n.º 1 e 2 do C.Civil, como considerou a sentença recorrida e não merece controvérsia, o valor indemnizatório que deve ser contabilizado em cada mês pelo atraso na entrega do locado é o de €2.000,00 equivalente ao dobro da renda acordada. De abril de 2012 a março de 2015 data em que foi entregue o locado, período em que se venceu a indemnização pela qual também foi responsabilizado o fiador, decorreram 36 meses, o que à razão de €2.000,00 mensais perfaz efetivamente a quantia total de €72.000,00. Nesta parte existiu um manifesto lapso na decisão proferida, quando quantifica a quantia que o 6º R. fica condenado a pagar aos AA., devendo constar da decisão o valor de €72.000,00 (setenta e dois mil euros) onde está €82.000,00 impondo-se a reforma da al. c) do dispositivo da sentença em conformidade. IV. Decisão: Em face do exposto, julga-se o recurso intentado pelo R. AMP parcialmente procedente, alterando-se a sentença recorrida na condenação expressa na al. c) do segmento decisório que respeita ao 6º R. fiador e Recorrente, que se substitui pela condenação deste R. a pagar aos AA. a quantia de €72.000,00 (setenta e dois mil euros) a título de indemnização devida pela ocupação do locado contabilizada de abril de 2012 a março de 2015, quantia a que acrescem juros de mora à taxa legal desde a citação até integral pagamento. Custas pelo Recorrente e pelos AA. na proporção do decaimento. Notifique. * Lisboa, 13 de outubro de 2022 Inês Moura Laurinda Gemas António Moreira |