Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ESTER PACHECO DOS SANTOS | ||
Descritores: | ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL INÍCIO DO PRAZO | ||
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Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 01/21/2025 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PARCIALMENTE PROVIDO | ||
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Sumário: | I. Tendo o processo sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, impõe-se, legal e oficiosamente, que o Julgador profira despacho nos termos do art.º 311º do Cód. Proc. Penal, nomeadamente nos termos do nº 2, apreciando a acusação e rejeitando-a se a considerar manifestamente infundada. II. A acusação só poderá considerar-se manifestamente infundada se não for apta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de rejeição liminar da acusação por manifestamente infundada quando os vícios de que eventualmente padeça não sejam estruturais e graves. Uma acusação que não descreva factos, atribuídos ao arguido, que preencham os elementos do tipo do crime imputado, ou de qualquer outro, é manifestamente infundada, pois a falta de imputação, ao arguido, de concretos factos susceptíveis de fundamentarem uma condenação, é uma falha grave e estrutural, com virtualidade para rejeição liminar da acusação, na medida em que esta não surge como apta para servir de base à aplicação de uma pena ao agente. III. Da leitura do art.º 77º do CPP não resulta que a lei tenha imposto qualquer limite quanto ao início do prazo de apresentação do pedido de indemnização civil, mas tão só quanto ao seu termo, o que se traduz em poder o mesmo ser deduzido pelo lesado desde a abertura do inquérito. | ||
Decisão Texto Parcial: | ![]() | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa, Relatório No âmbito do processo comum (singular), com o nº 2235/20.0T9LSB, que corre termos no Juiz 9 do Juízo Local Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, na sequência de despacho proferido pela Meritíssima Juiz que rejeitou a acusação particular deduzida pelo assistente AA e os pedidos de indemnização civil apresentados, vem aquele interpor o presente recurso pedindo a revogação da decisão proferida e a sua substituição por outra em que se determine a admissão da acusação particular apresentada pelo assistente e dos pedidos de indemnização civil deduzidos. Para tanto formula as conclusões que se transcrevem: I. Salvo o devido respeito, esteve mal o Tribunal a quo ao rejeitar a acusação particular apresentada pelo Recorrente, por manifestamente infundada, e, em simultâneo, ao rejeitar liminarmente os pedidos de indemnização civil apresentados, por não serem tempestivos nem adequados ao objeto do processo. II. O despacho recorrido vem considerar a acusação particular apresentada pelo assistente como manifestamente infundada, motivo pelo qual a mesma é rejeitada, mas aplicar aos presentes autos o disposto no artigo 311.º, n.º 2, al. a), salvo o devido respeito e douto melhor entendimento, é errado. III. A narração dos factos que fundamentam a aplicação ao Arguido de uma pena ou medida de segurança resulta bem evidente da acusação particular deduzida. IV. Todos os elementos referidos no n.º 3 do artigo 311.º do Código de Processo Penal, sem exceção, constam da acusação particular ora deduzida. V. Nos termos da lei, da acusação particular tem de constar apenas e só a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, narração essa que de forma alguma se pode considerar como estando em falta na acusação particular ora deduzida pelo Assistente. VI. Do despacho recorrido resulta, ainda, o seguinte: Na verdade, da acusação particular consta que o arguido escreveu um artigo publicado num blog e no Facebook em que anexa documentos onde estão dados pessoais do assistente que merecem proteção/privacidade. Refere-se ainda na acusação particular que o blog onde tais documentos foram publicados incita ao ódio e à intolerância, num permanente discurso de violência, e a título de exemplo cita parte de uma publicação feita no blogue com expressões que se podem entender, de facto, como injuriosas, mas não atribui tal publicação, nem qualquer outra de idêntico cariz, ao arguido. VII. O que nem sequer tem correspondência com a verdade, sendo falso que a referida publicação - ou qualquer outra - não tenha sido atribuída ao Arguido (vejam-se, nomeadamente, os artigos 3.º e 11.º da acusação particular). VIII. Quanto à publicação do dia .../.../2020, do documento 4 junto à acusação particular resulta a respetiva data e autoria. IX. Dos documentos juntos aos autos resulta expressamente que o Arguido é o autor daquela publicação e de forma alguma resulta como implícita ou subentendida a descrição dos factos que preenchem os elementos dos tipos de crime aqui em juízo. X. A acusação particular contém todos os factos que justificam a aplicação da pena ao Arguido, e que são configuradores dos elementos objetivos e subjetivos dos referidos crimes, fazendo-o de forma livre, deliberada e consciente ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei. XI. A invocada nulidade da acusação particular (por referência ao disposto no artigo 283.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), não integra qualquer nulidade “insanável” e por isso, não poderia ser oficiosamente declarada, como o foi, atento o elenco taxativo das nulidades insanáveis previsto no artigo 119.º do Código de Processo Penal e o disposto no artigo 120.º, n.º 1 do mesmo diploma legal. XII. Ainda que se entenda que a referida publicação de .../.../2020, constante do doc. 4 junto aos autos com a acusação particular, não foi expressamente atribuída ao Arguido - o que não se concebe e se refere apenas por mero dever de patrocínio - tal não pode consubstanciar causa de “nulidade” ou de “rejeição” da acusação, até porque poderá sempre ser colmatada, com recurso ao disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, com a simples reprodução em julgamento dos elementos de prova que constam da peça acusatória. XIII. O despacho recorrido violou, portanto, o disposto nos artigos 119.º, 120.º, 283.º, n.º 3, al. b), 311.º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. b), todos do Código de Processo Penal. XIV. O despacho recorrido rejeita, também, os pedidos de indemnização civil apresentados pelos assistentes por, alegadamente, por não serem tempestivos nem adequados ao objeto do processo. XV. O sistema da adesão obrigatória, consagrado no artigo 71.º Código de Processo Penal, exige que o pedido de indemnização civil só possa ser deduzido em separado em situações excecionais, como as taxativamente previstas no artigo 72.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. XVI. O referido princípio da adesão obrigatória tem sido justificado por razões de economia processual: no único e mesmo processo resolvem-se todas as questões referentes ao facto criminoso, economizam-se meios (os interessados não necessitam de dispersar custos) e evitam-se contradições de julgados. XVII. De forma alguma se encontra violado o princípio da adesão previsto no artigo 71.º do Código de Processo Penal quando o pedido de indemnização civil é formulado no âmbito do próprio procedimento criminal, do processo penal respetivo. Muito pelo contrário, a base do princípio da adesão reside na formulação de um pedido de indemnização civil no âmbito de um procedimento criminal. XVIII. A legitimidade, por sua vez, pertence ao lesado, entendendo-se como tal a pessoa que sofreu danos ocasionados pelo crime, mesmo que se não tenha constituído ou não possa constituir-se assistente. XIX. No caso concreto, o Recorrente recebeu, no passado dia 16/10/2020, pelas mãos do Sr. Agente BB (matrícula n.º ...) da Polícia de Segurança Pública, uma notificação da qual consta expressamente a possibilidade de, querendo, deduzir pedido de indemnização civil. XX. Não se concebe em que medida é que o pedido de indemnização civil apresentado no passado dia 27/10/2020 viola qualquer uma das disposições do Código de Processo Penal. XXI. A circunstância de o Assistente ter sido expressamente notificado para o efeito faz com que uma ulterior rejeição do pedido por extemporaneidade do prazo, com fundamento na sua apresentação prematura, defraudasse completamente as expectativas de regularidade do ato geradas pela notificação. XXII. Na verdade, tal rejeição só pode ser tida como incompatível com o direito do Assistente a um processo equitativo e com o próprio princípio da confiança. XXIII. A admissão do pedido indemnizatório em momento anterior aos previstos no artigo 77.º do Código de Processo Penal não afeta, de forma alguma, aqueles que são os direitos do Arguido. As suas possibilidades de defesa ficam, aliás, completamente intactas. XXIV. Mas ainda que possa estar em causa a prática prematura de um ato, esta intempestividade por antecipação não pode nunca culminar na sua preclusão temporal por esgotamento do prazo: a circunstância de o pedido de indemnização civil ser apresentado antes da acusação não pode nunca constituir fundamento para o seu indeferimento ou para a sua rejeição. XXV. Dos artigos 71.º e seguintes do Código de Processo Penal resulta tão-só que, havendo ação penal, sem renúncia de queixa ou de acusação, o pedido de indemnização civil tem, obrigatoriamente, de ser deduzido na ação penal, o que foi. * O Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando, pela procedência do recurso no que se refere ao recebimento da acusação particular, mas pela improcedência do mesmo quanto à rejeição dos pedidos de indemnização civil. Apresenta as seguintes conclusões: 1. A Mma. Juiz a quo decidiu rejeitar a acusação particular deduzida pelos mesmos nos autos, artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, por ter considerado que a Acusação Particular não continha a descrição dos factos, imputados ao arguido, que preenchessem os elementos do tipo de crime que aí lhe era imputado. 2. No entanto, o entendimento do Ministério Público é de que essa acusação, deduzida pelo Assistente AA, cumpre os requisitos legais, razão pela qual decidimos proferir despacho de acompanhamento da mesma, em 17.07.2023. 3. Com efeito, concordamos com o Recorrente quando alega que a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao Arguido de uma pena ou medida de segurança resulta bem evidente da acusação particular deduzida. 4. Portanto, cremos que tal Acusação contém os requisitos legais exigidos pelo art.º 283.º, nº 3 do Código de Processo Penal, razão pela qual deveria ter sido recebida pelo Tribunal. 5. Assim, entende-se que não tinha a Mma. Juiz a quo fundamento legal para rejeitar a Acusação Particular, pelo que o despacho proferido e ora posto em crise deverá ser substituído por outro, que receba essa Acusação. 6. Tal despacho rejeitou igualmente os pedidos de indemnização civil formulados pelos Assistentes, por entender que os mesmos não eram tempestivos, nem adequados ao objecto do processo, do que o Recorrente igualmente discorda e o que versa no seu recurso. 7. Conforme resulta do art.º 77.º do C.P.P., a Lei prevê que o pedido de indemnização civil enxertado no processo penal seja sempre deduzido após a dedução da acusação: no próprio despacho, se for formulado pelo Ministério Público ou após a notificação desse despacho, se for formulado pelo lesado. 8. A formulação de pedido de indemnização civil em processo penal tem subjacente a verificação de crime e a consequente imputação dos factos ilícitos que o consubstanciam a um determinado agente. 9. Portanto, importa que exista previamente essa imputação e a fixação do objecto do processo, através do despacho de Acusação, para que então exista fundamento legal para a dedução de pedido de indemnização civil. 10. Assim, e no que a esta questão diz respeito, cremos que bem andou a Mma. Juiz a quo ao rejeitar, nomeadamente por extemporaneidade e por não se revelarem adequados ao objecto do processo, os pedidos de indemnização civil deduzidos nos autos, termos que que tal despacho deverá ser mantido, nessa parte. * Nesta Relação, ao Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer no sentido da total improcedência do recurso. Efectuado o exame preliminar, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir. * * * Fundamentação A decisão sob recurso é a seguinte: A 21.03.2023 o assistente AA veio deduzir acusação particular contra o arguido CC imputando-lhe a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, do Código Penal. O Ministério Público acompanhou a acusação particular. Nos termos do disposto na al. a), do n.º 2, do artigo 311.º, do Código de Processo Penal, “Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;” Esclarecendo as als. b) e d, do n.º 3, do mesmo artigo, que se considera a acusação manifestamente infundada quando não contenha a narração dos factos ou se os factos não constituírem crime. No que respeita à narração dos factos, preceitua a al. b), do n.º 3, do artigo 283.º, do Código de Processo Penal, que a acusação deve conter a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 283.º, n.º 3, do Código Penal, constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem. A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, consagrado na Constituição da República Portuguesa – cfr. art.º 32.°. Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem” - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 - 5.ª. Descendo ao caso dos presentes autos, verifica-se que a acusação particular não contém a descrição de factos, atribuídos ao arguido, que preencham os elementos do tipo de crime que lhe é imputado. De facto, analisada a mesma à luz dos considerandos supra expostos, verifica-se que não indica todos os factos que se exigiria para que se possa concluir pelo preenchimento do crime em causa, ou de qualquer outro. Na verdade, da acusação particular consta que o arguido escreveu um artigo publicado num blog e no Facebook em que anexa documentos onde estão dados pessoais do assistente que merecem proteção/privacidade. Refere-se ainda na acusação particular que o blog onde tais documentos foram publicados incita ao ódio e à intolerância, num permanente discurso de violência, e a título de exemplo cita parte de uma publicação feita no blogue com expressões que se podem entender, de facto, como injuriosas, mas não atribui tal publicação, nem qualquer outra de idêntico cariz, ao arguido. Não se pode, pois, ter como implícita ou subentendida a descrição dos factos que preencham o elemento do tipo. Não há lugar à existência de "factos implícitos", mas apenas a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena. Desta forma, não se poderá concluir pela existência de um ilícito penal. Por fim, cumpre referir que não é admissível ao juiz ordenar qualquer convite ao aperfeiçoamento ou correção de uma acusação, formal ou substancialmente deficiente (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa, de 10/10/2002, Col. de Jur., ano XXVII, tomo IV, pág. 132). Pelo exposto, e ao abrigo do disposto no artigo 311º, nº 2, alínea a) e nº 3, alínea b), considero a acusação particular apresentada pelo assistente manifestamente infundada e, consequentemente, rejeito a mesma. (…) Quanto aos pedidos de indemnização civil apresentados pelos assistentes nos autos a 27.10.2020. Nos termos do artigo 71.º do Código de Processo Penal e em conformidade com o princípio da adesão que aí se consagra, deve o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime ser deduzido no âmbito do processo penal em que se aprecia a responsabilidade criminal emergente da infracção cometida. Pressuposto da possibilidade de apreciação do pedido cível deduzido em processo penal é que o facto constitutivo da sentença condenatória em matéria de responsabilidade civil se possa incluir no âmbito do facto criminoso que é imputado ao arguido, de tal forma que, se não existirem ou simplesmente não se provarem os pressupostos da punição penal, a condenação em indemnização civil possa ainda subsistir sustentada na verificação dos pressupostos da ilicitude civil permitida pela apreciação da realidade factual em causa. Assim, como bem explica o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13.05.2020, Rel. Maria Joana Grácio, “a dedução do pedido de indemnização civil pressupõe que no respectivo processo penal seja exercida acção penal com dedução de acusação com imputação de qualquer crime ao arguido que seja suporte do pedido cível, pois só assim este pode aderir à acção penal”. Também resulta do artigo 77.º, do Código de Processo Penal que “1 - Quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido é deduzido na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada. 2 - O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ele houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias. 3 - Se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado nos termos do número anterior, o lesado pode deduzir o pedido até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se o não houver, o despacho de pronúncia.” Ora, no caso dos autos os queixosos, agora assistentes, apresentaram queixa a 02.03.2020, e a 27.10.2020 já estavam a apresentar pedido de indemnização civil. Acontece que a acusação do Ministério Público só foi deduzida a 14.07.2023 e a acusação particular, agora rejeitada, só foi deduzida a 21.03.2023. Assim, concluímos que os assistentes quando deduziram o pedido de indemnização civil ainda não tinham acusação com que o conformar nem se poderia falar naquela data em estar verificado o princípio da adesão previsto no artigo 71.º, do Código de Processo Penal. Assim, por não ser tempestivo nem adequado ao objecto do processo decide o Tribunal rejeitar liminarmente os pedidos de indemnização civil apresentados pelos assistentes. * * * Apreciando… De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso. Assim, cumpre averiguar se existe fundamento para a rejeição da acusação particular, por manifestamente infundada, e se os pedidos de indemnização civil deduzidos devem ser rejeitados por intempestivos. * Da rejeição da acusação particular por manifestamente infundada… Segue-se, nesta parte, o projeto inicial apresentado pela relatora, por corresponder à solução que obteve vencimento. Assim, Alega o assistente/recorrente que a acusação particular contém todos os factos que justificam a aplicação de pena ao arguido e que são configuradores dos elementos objetivos e subjetivos dos referidos crimes. E diz que ainda que se entenda que a publicação de 3.02.2020, constante do doc. 4 junto aos autos com a acusação particular, não foi expressamente atribuída ao arguido, tal não é causa de “nulidade” ou de “rejeição” da acusação porque poderá sempre ser colmatada, com recurso ao disposto no art.º 358º do Cód. Proc. Penal, com a simples reprodução em julgamento dos elementos de prova que constam da peça acusatória. Alega também que a invocada nulidade da acusação particular (por referência ao disposto no art.º 283º, nº 3, do Cód. Proc. Penal), não integra qualquer das nulidades “insanáveis” previstas no art.º 119º do Cód. Proc. Penal e por isso não poderia ser oficiosamente declarada, como foi. De acordo com as disposições conjugadas dos arts. 283º, nº 3, alínea b) e 285º, nº 3, ambos do Cód. Proc. Penal, a acusação particular “deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”. E, nos termos do nº 2 do art.º 311º do Cód. Proc. Penal, “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”, esclarecendo o nº 3 que a acusação se considera manifestamente infundada: “b) quando não contenha a narração dos factos”; “d) se os factos não constituírem crime”. No caso em análise, tendo o processo sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, impunha-se, legal e oficiosamente, que o Julgador proferisse despacho nos termos do art.º 311º do Cód. Proc. Penal, nomeadamente nos termos do nº 2, apreciando a acusação e rejeitando-a se a considerasse manifestamente infundada, como foi o caso. Não está em causa, nesta rejeição, a apreciação da nulidade da acusação, mas o facto de se ter considerado que a mesma era manifestamente infundada. Assim, não pode ser chamado à colação o disposto no art.º 119º do Cód. Proc. Penal (como faz o recorrente), posto que a acusação foi rejeitada com base em imposição legal estabelecida no art.º 311º do Cód. Proc. Penal. Vejamos, então, se a acusação particular pode ser considerada manifestamente infundada. O Tribunal a quo rejeitou a acusação particular por manifestamente infundada entendendo que a mesma não continha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena. Cumpre antes de mais esclarecer que só uma falta grave, que seja susceptível de comprometer o êxito da acusação e que obste a uma apreciação de mérito, justifica a rejeição liminar. Ou seja, a acusação só poderá considerar-se manifestamente infundada se se verificarem os “vícios estruturais graves” enunciados no nº 3 do citado art.º 311º (assim Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição actualizada, 2009, p. 789), se não for apta para servir de base a uma sentença condenatória, o que desde logo afasta a possibilidade de rejeição liminar da acusação por manifestamente infundada quando os vícios de que eventualmente padeça não sejam estruturais e graves. Acresce que, para a acusação se considerar manifestamente infundada nos termos da alínea d) do nº 3 do art.º 311º do Cód. Proc. Penal, é necessário que os factos não constituam crime, podendo, obviamente, constituir crime diverso do que é imputado na acusação – caso em que, no decurso do julgamento, se procederá como determinam os arts. 358º e 359º do Cód. Proc. Penal. No caso concreto, a questão está em saber se os factos constantes da acusação constituem crime e se podem ser imputados ao denunciado. A acusação – particular – imputa ao arguido, além do mais (no mais visando a imputação de crimes de natureza semi-pública por que o Ministério Público veio a deduzir acusação), a prática de crimes de difamação, p. e p. pelo art.º 180º do Cód. Penal, com a agravação constante do art.º 183º do mesmo Código. Não estando neste momento processual em causa a existência, ou não, de indícios suficientes da prática pelo arguido dos factos imputados, a questão centra-se na análise de a acusação (o texto) conter, ou não, todos os elementos típicos do crime de difamação com referência ao agente dos factos. O crime em causa – previsto no art.º 180º do Cód. Penal – necessita da imputação, ou da reprodução da imputação, mesmo sob a forma de suspeita, de um facto, ou da formulação de um juízo, ofensivos da honra ou consideração de outra pessoa. Honra e consideração são conceitos que não se confundem. A honra tem componente individual ou subjectiva, podendo definir-se como o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua inviolável dignidade, atributo inato de qualquer pessoa; a consideração envolve uma componente social, devendo entender-se como a reputação que a pessoa tem no seio da comunidade em que se insere. Assim, a lesão do direito à honra e consideração ocorre quando alguém – objectivamente determinado – imputa a outrem um facto, ou formula um juízo, objectivamente adequado a depreciar ou desacreditar, quer individual quer socialmente, a vítima. Quanto ao tipo subjectivo do ilícito, é ele necessariamente doloso, embora baste o dolo genérico (em qualquer das três modalidades legalmente previstas: directo, necessário ou eventual), sendo assim necessário, mas suficiente, que o agente tenha consciência da aptidão ofensiva das suas palavras ou gestos e ainda assim queira levar a cabo a sua actuação, ou, pelo menos, que admita como possível que essa mesma conduta ofenda a honra e reputação do visado e, não obstante, não se abstenha de agir, conformando-se com essa eventualidade. E é também necessário que o agente actue de forma consciente, livre e deliberada. Ora, lida a acusação, verificamos que ali se refere que: − No passado dia ... de ... de 2020, foi, pela ... (doravante ...), publicado no blogue online denominado “...” um artigo intitulado “... para os utentes do ...”, cujo artigo e respetiva publicação é da autoria do CC, presidente do ...; − Um dos anexos daquele artigo reproduz uma petição inicial e a cópia da procuração forense que legitima a Advogada signatária da mesma, documento esse que, entre outros, contém elementos como nome completo, naturalidade, morada, número de identificação fiscal e identificação do cartão de cidadão do Assistente; − No mesmo blogue, a ... de ... de 2020, publicou-se um artigo intitulado “... responde a comunicações do grupo ... e ...”, ao qual foram anexadas duas comunicações trocadas entre o ... e o Assistente AA, artigo esse que, uma vez mais, é da autoria do CC; daquele anexo consta o número de telemóvel do Assistente; − O acima descrito atenta à confidencialidade dos dados ligados exclusivamente à esfera pessoal do Assistente, isto é, daqueles dados que dizem respeito, entre outros, à respetiva identificação e residência; − A sua difusão, no contexto que ora nos ocupa, é forçosamente suscetível de causar, concreta e efetivamente, prejuízo à proteção da vida privada e da integridade dos visados; − Está em causa um blogue que promove o incitamento à hostilidade, ao ódio e à intolerância, com um constante e permanente discurso de violência contra alvos já há muito identificados (a título de exemplo, veja-se o excerto que consta da publicação feita no mesmo blogue a ... de ... de 2020, junto como doc. 4 e cujo conteúdo se deu por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, intitulada “A mentira compulsiva dos incendiários”): Com este Comunicado, desafiamos os gestores/administradores AA e DD a repetirem, na praça pública, perante a comunicação social, o chorrilho de mentiras que, numa iniciativa de claro terrorismo laboral, proferiram no seu covil de lavagem cerebral de trabalhadores.”; − As publicações supra referidas foram, igualmente, veiculadas através da rede social Facebook, na página do próprio ..., página essa que conta com mais de 10.000 (dez mil) seguidores; − Ao agir da forma descrita, o Arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, o crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º do Código Penal, provocado através de meios ou em circunstâncias que notoriamente facilitam a sua divulgação, nomeadamente de meios de comunicação social, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 183.º do Código Penal; − O bem jurídico protegido pelo crime imputado ao Arguido é a honra e preenchidos estão todos os pressupostos da infração, a saber, a imputação a outra pessoa, diante de terceiros, de um facto ofensivo da honra ou consideração do visado, a mera formulação sobre ela de um juízo também ofensivo da sua honra ou consideração, ou ainda a mera reprodução de uma tal imputação ou juízo. − Quanto aos danos provocados na esfera jurídica do Assistente, sempre se diga que a gravidade do dano depende, por um lado, da intensidade das afirmações feitas e da divulgação que lhes foi dada, e, por outro, da personalidade e funções do visado; − Sendo inquestionável a intensidade das afirmações proferidas - e mais ainda a gravidade do modo como as mesmas foram divulgadas -, menos dúvidas podem subsistir a respeito do relevo das funções desempenhadas pelo Assistente enquanto gerente da sociedade ...; − Posto isto, o Assistente sentiu-se profundamente ofendido na sua credibilidade, prestígio, crédito, reputação e imagem; − Na verdade, o Arguido proferiu, contra o Assistente, expressões manifestamente ofensivas da sua honra e consideração, divulgando-as na internet para que qualquer cidadão as lesse; − E fê-lo não só na rede social Facebook, como também num blogue de acesso público que, reitere-se, promove o incitamento à hostilidade, ao ódio e à intolerância; − O Arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o intuito, conseguido, de ofender o Assistente na sua integridade moral, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei; − Os factos praticados pelo Arguido são manifestamente ofensivos da honra e consideração do Assistente e, não bastando, foram-no praticados através de meios ou em circunstâncias que notoriamente facilitam a sua divulgação; − A prática destes factos por via de plataformas com milhares de utilizadores e que promovem o incitamento à hostilidade, ao ódio e à intolerância, com um constante e permanente discurso de violência, foram suficientes para prolongar no tempo a sensação de insegurança, medo e intranquilidade vividas pelo Assistente; − Face ao exposto, o Arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, pelo menos, o crime de difamação (p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, n.º 2, do Código Penal), de utilização de dados de forma incompatível com a finalidade da recolha e de desvio de dados, sendo o Assistente a sua vítima (p. e p. pelos artigos 46.º e 48.º da Lei n.º 58/2019, de 08 de agosto); − Ao atuar da forma supra descrita, o Arguido quis e sabia que a sua conduta era idónea a provocar danos na esfera da vida privada e na integridade do visado.” Analisando a acusação particular, no que se refere à imputada prática do crime de difamação, verificamos que a mesma descreve que: - o blogue online denominado “ ...” promove o incitamento à hostilidade, ao ódio e à intolerância, com um constante e permanente discurso de violência contra alvos já há muito identificados (a título de exemplo, veja-se o excerto que consta da publicação feita no mesmo blogue a ... de ... de 2020, junto como doc. 4 e cujo conteúdo se deu por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, intitulada “A mentira compulsiva dos incendiários”): Com este Comunicado, desafiamos os gestores/administradores AA e DD a repetirem, na praça pública, perante a comunicação social, o chorrilho de mentiras que, numa iniciativa de claro terrorismo laboral, proferiram no seu covil de lavagem cerebral de trabalhadores”; − As publicações supra referidas foram, igualmente, veiculadas através da rede social Facebook, na página do próprio ..., página essa que conta com mais de 10.000 (dez mil) seguidores; − Ao agir da forma descrita, o Arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, o crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º do Código Penal, provocado através de meios ou em circunstâncias que notoriamente facilitam a sua divulgação, nomeadamente de meios de comunicação social, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 183.º do Código Penal; − Na verdade, o Arguido proferiu, contra o Assistente, expressões manifestamente ofensivas da sua honra e consideração, divulgando-as na internet para que qualquer cidadão as lesse e fê-lo não só na rede social Facebook, como também num blogue de acesso público que, reitere-se, promove o incitamento à hostilidade, ao ódio e à intolerância; − O Arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o intuito, conseguido, de ofender o Assistente na sua integridade moral, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei. Da análise da acusação não resulta que a mesma descreva factos, atribuídos ao arguido, que preencham os elementos do tipo do crime de difamação que lhe é imputado, ou de qualquer outro. Efectivamente, a acusação particular, depois de dizer que o arguido escreveu um artigo publicado num blog e no Facebook em que anexa documentos com dados pessoais do assistente que merecem proteção/privacidade, limita-se a afirmar que o blog onde tais documentos foram publicados incita ao ódio e à intolerância, num permanente discurso de violência, e a título de exemplo reproduz um excerto do doc. 4, publicado em dia diverso daquele em que foi realizado o escrito que anexou documentos com dados pessoais do assistente (“cujo conteúdo…dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos”) onde o recorrente e DD são desafiados “a repetirem, na praça pública, perante a comunicação social, o chorrilho de mentiras que, numa iniciativa de claro terrorismo laboral, proferiram no seu covil de lavagem cerebral de trabalhadores”. Ora a imputação de incitamento ao ódio e à intolerância, num permanente discurso de violência, sem que se reproduzam os factos de onde se pode concluir tal incitamento, é absolutamente anódina. Já o excerto mencionado, ainda que proferido num contexto de luta sindical, poderia ser eventualmente considerado ofensivo (não cabendo agora esse tipo de ponderação) mas ainda que o fosse, não é atribuído na acusação particular ao arguido CC, nem a ninguém. Resta, na acusação particular, a narração genérica de que o arguido proferiu, contra o assistente, expressões manifestamente ofensivas da sua honra e consideração, divulgando-as na internet para que qualquer cidadão as lesse, agindo livre, deliberada e conscientemente, com o intuito, conseguido, de ofender o assistente na sua integridade moral, bem sabendo que tal conduta era proibida e punida por lei. Contudo, estas generalidades, não reportadas às concretas expressões que o arguido teria proferido contra o assistente, são também elas anódinas. Lembra a Ex.ma PGA, no seu douto Parecer que, como refere Gerhard Zuberbier, citado a fls. 1197 no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, edição da Almedina, em anotação ao artigo 283º, “A narração dos factos é o ponto fulcral ou o coração da acusação: ela deve ser suficientemente clara e percetível não apenas, por um lado, para que o arguido possa saber com precisão, do que vem acusado, mas igualmente por outro lado, para que o objeto do processo fique claramente definido e fixado.” E refere-se ainda, justamente, naquela anotação: “efetuar meras remissões para documentos juntos aos autos, sem referência expressa ao seu conteúdo – e principalmente, sem referir expressamente o seu significado (…) – não pode então constituir (…) uma mera “simplificação” da acusação (…) ainda compatível com aquelas exigências de clareza e narração sintética dos factos imputados ao arguido(...)” – que o artigo 283º nº. 3 al. b) do Código de Processo Penal, aplicável por força do artigo 285º nº 3 do mesmo código, reclama. Tal como se lê no despacho recorrido “Não se pode, pois, ter como implícita ou subentendida a descrição dos factos que preencham o elemento do tipo. Não há lugar à existência de "factos implícitos", mas apenas a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena. Desta forma, não se poderá concluir pela existência de um ilícito penal”. Defende o recorrente que qualquer deficiência da acusação particular, nomeadamente a imputação, ao arguido, da expressão ofensiva, poderá sempre ser colmatada, com recurso ao disposto no art.º 358º do Cód. Proc. Penal, com a simples reprodução em julgamento dos elementos de prova que constam da peça acusatória. Não tem razão. O disposto no art.º 358º do Cód. Proc. Penal só se aplica perante uma alteração não substancial de factos, ou seja, se a deficiência a colmatar não constituir uma falha grave, susceptível de comprometer o êxito da acusação, obstando a uma apreciação de mérito. Contudo a falta de imputação, ao arguido, de concretos factos susceptíveis de fundamentarem uma condenação, é uma falha grave e estrutural, com virtualidade para rejeição liminar da acusação, na medida em que esta não surge como apta para servir de base à aplicação de uma pena ao agente. E porque se trata de um vício estrutural e grave, também não há lugar a convite para correcção da acusação particular, sob pena de violação do princípio do acusatório constitucionalmente consagrado. Pelo que bem andou a Mma. Juiz a quo ao não receber a acusação particular por manifestamente infundada. Da extemporaneidade dos pedidos de indemnização civil… Alega o assistente/recorrente que em 16.10.2020 foi notificado, expressamente, da possibilidade de, querendo, deduzir pedido de indemnização civil, pelo que uma ulterior rejeição do pedido por extemporaneidade do prazo, com fundamento na sua apresentação prematura, defrauda as expectativas de regularidade do acto geradas pela notificação, sendo incompatível com o direito do assistente a um processo equitativo e com o próprio princípio da confiança, dado o consagrado sistema da adesão obrigatória (arts. 71º ss do Cód. Proc. Penal). Refere que a admissão do pedido indemnizatório em momento anterior aos previstos no art.º 77º do Cód. Proc. Penal não afecta os direitos do arguido e que ainda que possa estar em causa a prática prematura de um acto, esta intempestividade por antecipação não pode culminar na sua preclusão temporal por esgotamento do prazo. Assiste-lhe, no nosso entender, razão, tal como passaremos a demonstrar. De facto, compulsados os autos, verifica-se que: - a 16.10.2020 foram os eventuais lesados notificados, expressamente, da possibilidade de, querendo, deduzirem pedido de indemnização civil; - o pedido de indemnização civil foi apresentado pelo recorrente em 27.10.2020 (à semelhança daquele outro que de igual modo foi apresentado não pelo recorrente, mas pelo assistente EE); - a acusação do Ministério Público foi deduzida a 14.07.2023 e a acusação particular (rejeitada) foi deduzida a 21.03.2023. Quanto aos prazos para dedução do pedido de indemnização civil preceitua o art.º 77º do Cód. Proc. Penal que: “1 - Quando apresentado pelo Ministério Público ou pelo assistente, o pedido é deduzido na acusação ou, em requerimento articulado, no prazo em que esta deve ser formulada. 2 - O lesado que tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 2 do artigo 75.º, é notificado do despacho de acusação, ou, não o havendo, do despacho de pronúncia, se a ele houver lugar, para, querendo, deduzir o pedido, em requerimento articulado, no prazo de 20 dias. 3 - Se não tiver manifestado o propósito de deduzir pedido de indemnização ou se não tiver sido notificado nos termos do número anterior, o lesado pode deduzir o pedido até 20 dias depois de ao arguido ser notificado o despacho de acusação ou, se o não houver, o despacho de pronúncia (…)”. Ou seja, da leitura deste preceito legal não resulta que a lei tenha imposto qualquer limite quanto ao início do prazo de apresentação do pedido de indemnização civil, mas tão só quanto ao seu termo. Tanto significa que o pedido de indemnização civil podia ser deduzido pelo lesado desde o início do inquérito até ao fim do prazo referido e demarcado pelo citado art.º 77.º Não podia era ultrapassar tal prazo, como de facto não ultrapassou (veja-se, neste sentido, o Ac. da Relação de Évora de 30.10.2007, proferido no âmbito do processo 1823/07-1, disponível em www.dgsi.pt). Em abono desta nossa posição, leia-se Paulo Pinto Albuquerque, em anotação ao art.º 77º, onde então refere: “2. O lesado pode deduzir o pedido desde a abertura do inquérito (desde logo, acórdão do TRE, de 19.6.1990, in CJ, XV, 3, 290, acórdão do TRP, de 4.11.1992, in CJ, XVII, 5, 247, e acórdão do TRL, de 23.9.1998, in CJ, XXIII, 4, 142, cujo entendimento é admitido pelo acórdão do TC n.º 611/94), competindo ao juiz de julgamento decidir em que medida o pedido formulado antes da acusação ou da pronúncia ultrapassa o objecto destas (acórdão do TRG, de 17.6 .2002, in CJ, XXVII, 3, 295)” (in Comentário do Código de Processo Penal -, Universidade Católica Editora, 3ª edição atualizada, abril 2009, 224-225).. Em conclusão: o pedido de indemnização civil apresentado pelo recorrente nos autos no passado dia 27.10.2020 é tempestivo. Coisa diversa, e de não menos importância, é se de facto o pedido de indemnização civil formulado pelo recorrente cabe ainda na matéria levada a julgamento, quando é certo que viu rejeitada a acusação particular que procurava dar-lhe suporte. É que a formulação de pedido de indemnização civil em processo penal tem subjacente a verificação de crime, isto é, apenas o facto criminoso fundamenta o direito de pedir o ressarcimento dos danos causados por esse facto, Ou seja, haverá efetivamente de tomar posição sobre em que medida o pedido de indemnização civil formulado nos presentes autos pelo recorrente cabe ainda na matéria levada a julgamento, quando é certo ter sido deduzida acusação pelo Ministério Público contra os arguidos/demandados pela prática de crimes de natureza semi-pública. Ora, olhando à sua formulação afigura-se-nos que mesmo parcialmente é de considerar que o facto constitutivo de uma eventual sentença condenatória em matéria de responsabilidade civil se poderá incluir no âmbito do facto criminoso que é imputado aos arguidos em sede de acusação pública, porquanto a mesma abarca ainda a factualidade relativa aos crimes pelos quais o Ministério Público deduziu acusação - crimes de utilização de dados de forma incompatível com a finalidade da recolha, p. e p. pelo art.º 46.º, n.º 1 da Lei n.º 58/2019, de 08 de Agosto. Pelo que mal mandou o despacho recorrido ao rejeitar os pedidos de indemnização civil. De qualquer modo, apenas se impõe a admissão daquele que foi formulado pelo recorrente, porquanto só a ele lhe assiste legitimidade no presente recurso, mostrando-se transitada a decisão no respeitante à rejeição do pedido formulado pelo assistente EE. * * * Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando, em consequência, o despacho recorrido na parte que rejeitou o pedido de indemnização apresentado pelo assistente AA e, em sua substituição, ordenar a sua admissão para julgamento, confirmando, no mais, a decisão recorrida. Sem custas. Notifique. Lisboa, 21.01.2025 (processado e revisto pela 1ª Adjunta por vencimento da Relatora) Ester Pacheco dos Santos João Grilo Amaral Alda Tomé Casimiro, vencida nos seguintes termos: É intempestivo, e deve ser rejeitado como tal, o pedido de indemnização civil deduzido antes dos prazos definidos no art.º 77º do Cód. Proc. Penal. Independentemente de afectar, ou não, os direitos do demandado, só após a dedução da acusação é que faz sentido a dedução de um pedido de indemnização civil no âmbito da adesão à acção penal. Efectivamente, a formulação de pedido de indemnização civil em processo penal tem subjacente a verificação de crime, é o facto criminoso que fundamenta o direito de pedir o ressarcimento dos danos causados por esse facto, pelo que só após a fixação e delimitação do objecto do processo, através do despacho de acusação, é que existe fundamento legal para a dedução de pedido de indemnização civil e é possível delimitar os danos que se visam ressarcir. Uma notificação em cumprimento do disposto no nº 1 do art.º 75º do Cód. Proc. Penal, não pode ser confundida com uma notificação para deduzir pedido de indemnização civil e, assim, também não defrauda as expectativas de regularidade do acto geradas pela notificação, nem é incompatível com o direito do assistente a um processo equitativo e com o próprio princípio da confiança. As normas processuais, enquanto reguladoras da tramitação dos autos, não podem ser postergadas – nomeadamente as atinentes a prazos – sob pena de se compaginar com o caos. O direito a um processo equitativo e o princípio da confiança, também impõem a observância das regras processuais e têm que ser entendidos como compreendidos dentro dos limites processualmente definidos. Mais, uma decisão de intempestividade (por antecipação), ao contrário do que alega o recorrente, não culmina na sua preclusão temporal, pois que um ulterior pedido, desde que efectuado nos prazos previstos no art.º 77º do Cód. Proc. Penal, sempre seria tomado em consideração nos autos. Alda Tomé Casimiro |