Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | ANA CLÁUDIA NOGUEIRA | ||
Descritores: | FACTOS ACUSAÇÃO FACTOS NÃO PROVADOS REDUÇÃO FURTO CONSUMAÇÃO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 07/11/2024 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Sumário: | (da responsabilidade da relatora): I. Não resultando provados todos os factos descritos na acusação por insuficiência da prova produzida, tal não pode impedir que se deem como provados factos que, inserindo-se nesse mesmo acontecimento histórico, representam em relação aqueloutros, uma sua redução. II. Vindo os arguidos acusados da prática de um crime de furto qualificado previsto e punido pelos arts. 202º/d), 203º/1 e 204º/2, e), do Código Penal, por subtração do interior de uma arrecadação fechada, cuja fechadura teriam rompido para o efeito, de 14 andaimes, e não se tendo provado nem que tivessem sido eles a proceder a esse rompimento, nem que tivessem subtraído todos os 14 andaimes, mas provando-se que subtraíram um deles nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar que estavam descritas na acusação, nada impede que se opere a redução dos factos descritos na acusação em conformidade, condenando-se os arguidos pela prática de um crime de furto simples, previsto e punido pelo art. 203º/1 do Código Penal. III. Tal redução não comporta qualquer alteração dos factos descritos na acusação, para efeitos do disposto no art. 358º do Código de Processo Penal. IV. É consumado o furto perpetrado pelos arguidos que, tendo-se apossado de um andaime, por um deles carregado às costas, assim saíram da arrecadação onde se encontrava guardado, encontrando-se do lado de fora, em movimento de deslocação, quando foram surpreendidos por terceiro que os interpelou, abandonando então o andaime e ausentando-se do local. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: RELATÓRIO No Juízo Local Criminal do Funchal – J3 do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo: «Em virtude do exposto, absolvo os arguidos: (…) da prática, como autores materiais e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1 e 204.º, n.º 2, al. e) por referência ao artigo 202.º, al. d), todos do Código Penal. Declaro improcedente o pedido de condenação dos arguidos a pagar, solidariamente, ao Estado, o valor de dois mil euros, correspondente à vantagem da atividade criminosa por eles desenvolvida, nos termos do artigo 110.º, n.º 1, 4 e 6, do Código Penal, e de declaração de perda do mesmo montante, a favor do Estado.» - Do recurso - Inconformado, recorreu o Ministério Público formulando as seguintes conclusões [transcrição]: «1. A decisão recorrida assentou essencialmente no facto de a testemunha/ofendido AA não ter presenciado os factos, não ser proprietário da “loja” onde o furto ocorreu e de a fechadura/cadeado que vedava o local estar partida, o que é verdade, mas ignora que o ora recorrente sustentou, em alegações, que os arguidos fossem condenados pela prática de um crime de furto simples (e não qualificado, por não haver arrombamento) de pelo menos um andaime (e não os 14 da acusação), posição que se mantém neste recurso. II - FACTOS NÃO PROVADOS, FUNDAMENTAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO E MEIOS DE PROVA QUE IMPUNHAM DECISÃO DIFERENTE II.1 ENQUADRAMENTO GERAL E FACTOS SOBRE OS QUAIS INCIDE O RECURSO 2. Salvo melhor opinião e com o devido respeito, o douto Tribunal a quo não efectuou um verdadeiro exame crítico da prova produzida nem uma compatibilização entre os meios de prova e as regras da experiência comum, e, em consequência, deu erradamente ou imprecisamente como não provados os factos 1 a 5 e 7. 3. Com efeito, desde já se diga que o que aqui se sustenta é que o Tribunal, apreciada a prova produzida, deveria ter dado como provados aqueles factos, ainda que com ligeira, irrelevantes, alterações (em itálico e negrito, as alterações em relação ao facto original da acusação) nos seguintes moldes: 1. Em noite não concretamente apurada, entre os dias 10/05/2023 e 13/05/2023, pelas 00.30, os arguidos BB e CC, mediante um plano comum e previamente delineado entre ambos, deslocaram-se a uma arrecadação sita a ..., com o propósito de se apoderarem de bens que ali encontrassem e pudessem transportar consigo. 2. Na execução do referido plano, e com divisão de tarefas e funções, BB e CC lograram aceder ao interior da arrecadação de forma não concretamente apurada. 3. Após, BB e CC retiraram do interior da arrecadação pelo menos 1 andaime de valor não concretamente apurado mas nunca inferior a € 50,00 (cinquenta euros), pertencente a AA. 4. Após terem abandonado a referida arrecadação na posse do andaime, os arguidos BB e CC foram interpelados junto do local por DD, que os surpreendeu, após o que abandonaram o andaime e encetaram fuga do local para parte incerta. 5. BB e CC atuaram mediante acordo prévio gizado entre ambos, com comunhão de esforços, e visando fins idênticos de fazerem seu o aludido bem, o que conseguiram, apesar de saberem que o mesmo não lhes pertencia e que agiam em prejuízo e contra a vontade do legítimo proprietário. 6. (anterior facto 7 não provado) BB e CC agiram sempre de forma livre voluntária, deliberada e consciente deliberada, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei e tinham capacidade para se determinar de acordo com o seu conhecimento. 4. O que aqui se pretende não é, nem poderia ser a mera reapreciação da prova produzida ao arrepio do artigo 127.º do CPP, ou, por assim dizer, um segundo julgamento da matéria de facto, mas uma apreciação da decisão recorrida e da sua fundamentação à luz da prova produzida e que leve em consideração, em especial, todos os pontos que se irão focar e desenvolver neste recurso. II,2 RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO – FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO E PROVA QUE IMPUNHA DECISÂO DIFERENTE 5. O Tribunal a quo atribuiu e bem inteira e total credibilidade ao depoimento da testemunha DD, única que presenciou os factos, mas salvo melhor opinião, equivocou-se na apreciação e conclusões que retirou do seu depoimento. 6. Acresce que não estamos perante o confronto entre versões diferentes dos factos, mas sim perante uma única versão dos factos, feita pela testemunha DD e o silêncio dos arguidos, ausentes do julgamento, Isto posto, 7. Na fundamentação de decisão de facto (dos factos não provados) quanto ao depoimento desta testemunha, entendeu o Tribunal, decisivamente, que: - A testemunha “só” relatou ter visto o arguido BB com um andaime às costas, estando acompanhado pelo arguido CC sem se saber “em que moldes”; - A testemunha afirmou que o arguido BB “recuou e voltou a colocar o andaime no sítio onde se encontrava”; - Não se sabe em que dia a testemunha viu os factos porquanto aludiu a que tinham ocorrido numa quinta-feira mas o dia 12/05/2021 (que consta da acusação) foi uma quarta-feira. Ora, Sobre o arguido BB ter recuado e voltado a colocar o andaime no sítio onde se encontrava 8. Em relação ao facto de o arguido ter “recuado” e colocado o andaime no sítio, de onde o retirara, das declarações da testemunha DD que refere que o arguido, após ser surpreendido, largou o andaime, recuou e fugiu, não poderia ter-se concluído que o arguido tenha “recuado e voltado a colocar o andaime no local onde se encontrava”. 9. A testemunha DD foi clara ao afirmar que, ao ouvir um barulho de andaime a embater nalgum local, surpreendeu o arguido com o andaime às costas, sendo certo que o Tribunal a quo parece ter concluído, que o andaime se encontrava pousado na via pública onde foi reposto pelo arguido, mas nenhum meio de prova sustenta essa conclusão. 10. Para concluir que isso não corresponde completamente ao que foi dito, bastará atentar nas declarações desta testemunha, devidamente transcritas e identificadas na fundamentação do recurso (Sessão de julgamento de 26/10/2023, ficheiro Citius Media Studio - 01m25s aos 04m40s e de 07m44s aos 11m30s). 11. Do depoimento de DD resulta claro que este se encontrava à janela, ouviu o barulho de um andaime a embater e ao olhar nessa direcção, junto do local onde se encontra a “loja” onde tais andaimes estavam guardados, viu o arguido BB a carregar um andaime às costas seguido logo atrás pelo arguido CC [junto da “loja”, e não no interior da “loja”], e que após confrontar os arguidos, o arguido BB pousou o andaime no chão, no local onde estava (o arguido, não o andaime), e em seguida ambos recuaram e foram embora. 12. Não nos parece que existam dúvidas que a testemunha presenciou os arguidos a furtarem pelo menos aquele andaime, num momento em que o crime já se encontrava consumado (estavam na rua, junto da “loja”, carregando o andaime). 13. Acresce que a eventual reposição do andaime no mesmo local (que não resulta das declarações desta testemunha) nunca interferia na consumação do crime, que já ocorrera e nunca obstaria a que os arguidos fossem condenados, como se irá abordar no recurso quanto à matéria de Direito. Sobre as concretas circunstâncias de tempo 14. Ainda sobre a responsabilidade do arguido BB, o Tribunal deu relevância ao facto de a testemunha DD ter afirmado que os factos tinham ocorrido numa quinta-feira, quando os que constam da acusação ocorreram numa quarta. 15. A testemunha DD, sobre as circunstâncias de tempo (dia) em que os factos ocorreram disse apenas o seguinte: “Que eu saiba isso foi numa quinta... num sábado à tarde eu já tinham-me dito que já tinham roubado”, tendo daqui o Tribunal a quo concluído que a testemunha terá afirmado com certeza que os factos ocorreram numa quinta-feira, atribuindo relevância a tal declaração. 16. Desde logo, não pode ser indiferente na apreciação da prova que o julgamento ocorreu 2 anos e meio depois dos factos, não sendo exigível às testemunhas que se recordem de datas exactas ou dias da semana, e, por outro lado, uma coisa é o que as testemunhas garantem ter visto e outra, bem diferente, é quando é que “acham” que ocorreram os factos, sem grande certeza, sendo certo que a testemunha dá entender que a referência a uma “quinta-feira” se deve menos à certeza ou convicção de que o episódio que relatou se passou numa quinta-feira mas mais propriamente, deve-se ao facto de, dias depois a ter assistido ao episódio, lhe “ter constado” que a loja tinha sido assaltada na quinta-feira. 17. Por outro lado, tendo até em consideração as declarações do ofendido AA GONÇALVES (Sessão de julgamento de 26/10/2023, ficheiro Citius Media Studio - 00m48s aos 02m27s) transcrito e identificado na fundamentação e do próprio DD, bem como a prova documental (auto de denúncia e aditamentos, de fls. 3 e 6), aquilo que se apurou neste julgamento com certeza é que o furto ocorreu num período não concretamente determinado de 4 dias e que o ofendido deu pela falta dos andaimes no dia 12 ou 13 de Maio de 2021. Sobre a responsabilidade do arguido CC 18. Salvo melhor opinião, atentas as declarações sérias e credíveis, de DD, o Tribunal a quo, apelando às regras da experiência comum e do bom senso, não deveria ter ficado com dúvidas sobre qual a intervenção do arguido CC nos factos dos autos. 19. De facto, salvo o devido respeito, resulta cristalino das declarações desta testemunha que aquele arguido acompanhava o arguido BB, aquando dos factos, que ocorreram pelas 00h30m, seguindo atrás dele quando o BB carregava um andaime (não estava meramente no mesmo local, mas seguia mesmo atrás dele) e que, confrontados pela testemunha, ambos recuaram e fugiram. 20. A testemunha DD, embora só tenha visto o arguido BB com um andaime, demonstrou sempre não ter tido quaisquer dúvidas que os arguidos se encontravam a agir conjuntamente, praticando aqueles factos de acordo com um plano comum, independentemente de apenas um dos arguidos carregar o andaime. B – DO RECURSO DA MATÈRIA DE DIREITO 21. Ao desvalorizar os factos presenciados pela testemunha DD, o Tribunal a quo parece ter incorrida, também, até pelo raciocínio exposto na fundamentação, num erro de direito. 22. Com efeito, resulta da sentença que o Tribunal não teve quaisquer dúvidas que DD viu o arguido BB na rua, carregando às costas um andaime que havia retirado da arrecadação, juntamente com o arguido BB. 23. Mesmo que o Tribunal a quo, com todo respeito devido, considerasse (como considerou, a nosso ver erradamente) que o arguido após ser surpreendido, voltou a colocar o andaime no local de onde o retirara, isso jamais impediria que o crime de furto não estivesse já consumado, como parece ter sido o entendimento. 24. O Tribunal desvalorizou estes factos (ao ponto de nem os dar como provados) como se a reposição posterior do andaime no local de onde, momentos antes, tinha sido subtraído, obstasse à consumação do furto, fazendo, salvo melhor opinião, uma incorrecta interpretação do artigo 203.º do CP e do conceito de “subtracção”, pacífico na jurisprudência, conforme os exemplos citados na fundamentação. 25. Ainda, que se o Tribunal a quo entendesse não ter havido consumação (por causa da reposição posterior) - o que expressamente se rejeita - sempre teria de condenar os arguidos pela prática de um crime de furto na forma tentada (nos termos do n.º 2 do artigo 203.º do Código Penal), pelo que, de uma forma ou de outra, teria de ter valorado criminalmente e dado como provados os factos que resultaram da audiência de julgamento, já atrás referidos. » - Da resposta - Notificados para tanto, os Arguidos não responderam. Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos, e com efeito meramente devolutivo. Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no seguinte sentido: «Entendendo-se, porém, que o recorrente omite nas Conclusões as concretas passagens em que se funda a impugnação da matéria de facto; vendo que tal regra é meticulosamente observada nas Motivações do recurso – sugere-se então se convide ao aperfeiçoamento das Conclusões, nos termos do art.º 417.º n.º 3 CPP. » Mais adita, no seu parecer, que «o recurso fundamenta bem um verdadeiro erro de julgamento, sendo verdade que será inexorável reduzir a factualidade provada ao furto de um andaime, retirado de um lugar acessível sem arrombamento ou escalamento, o que levará à desqualificação do crime. O recurso deve, portanto, merecer provimento.». Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao parecer. Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência, vindo aí a firmar-se divergência de posição quanto à decisão, com mudança de Relator para a 1.ª Adjunta. Cumpre decidir. QUESTÃO PRÉVIA Invoca o Ministério Público junto deste Tribunal a possibilidade de ser proferido despacho de aperfeiçoamento por, nas conclusões do recurso apresentado, não serem indicadas as concretas passagens em que se funda a impugnação da matéria de facto. Efetivamente, o recurso não tem tal indicação nas conclusões, não obstante a sua exposição em sede de motivação. Porém, sendo limitadas as referências, que estão devidamente expostas na motivação, e estando manifestamente explicada a alteração da matéria de facto pretendida e a relação com o raciocínio que sustenta o recurso, conclui-se que o mesmo está suficientemente inteligível, não se justificando o pedido de aperfeiçoamento, podendo o Tribunal retirar, das conclusões, o objeto do recurso. OBJECTO DO RECURSO Nos termos do art. 412º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995] Desta forma, tendo presentes tais conclusões, importa decidir se há erro de julgamento quanto aos factos provados e não provados? DA SENTENÇA RECORRIDA Da sentença recorrida consta o seguinte quanto à matéria de facto: «Resultaram provados os seguintes factos: 1. O arguido BB não tem antecedentes criminais. 2. O arguido CC foi condenado, no âmbito do processo 79/22.4PDFUN, por decisão proferida a 16.10.2023 e transitada em julgado a 17.11.2023, pela prática, a 11.02.2022, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e dois meses de prisão, suspensa por igual período. Não se provou a seguinte factualidade: 1. No dia 12.05.2021, pelas 00h30, BB e CC mediante um plano comum e previamente delineado entre ambos, deslocaram-se a uma arrecadação sita na ..., propriedade de AA, com o propósito de se apoderarem de bens que ali se encontrassem e pudessem transportar consigo. 2. Na execução do referido plano, e com divisão de tarefas e funções, BB e CC forçaram a fechadura da porta de entrada da arrecadação, partindo-a, e acederam ao interior daquele espaço. 3. Após, BB e CC retiraram do interior da arrecadação 14 pares de andaimes, no valor de 2.000 € (dois mil euros). 4. BB e CC encetaram depois fuga do local para parte incerta, na posse dos aludidos bens, que fizeram seus. 5. BB e CC atuaram mediante acordo prévio gizado entre ambos, com comunhão de esforços e visando fins idênticos de fazerem seus os aludidos bens, o que conseguiram, apesar de saberem que os mesmos não lhes pertenciam e que agiam em prejuízo e contra a vontade do seu legítimo proprietário. 6. BB e CC agiram da forma descrita com o propósito de se apoderarem e de fazerem seus os referidos objetos que se encontravam, no interior da arrecadação, bem sabendo que para ali aceder tinham que ultrapassar as barreiras físicas ali existentes, o que fizeram forçando e estroncando a fechadura da porta de entrada daquele espaço. 7. BB e CC agiram sempre de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e tinha capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento» FUNDAMENTAÇÃO - Do erro de julgamento sobre a matéria de facto Pretende o Recorrente que se reconheça ter ocorrido um erro de julgamento relativamente aos factos não provados n.ºs 1 a 5 e 7. Entende que, tendo o Tribunal conferido credibilidade à testemunha presencial DD, e admitindo não se ter provado que os arguidos tivessem arrombado a fechadura da porta de acesso ou que tenha havido apropriação pelos arguidos dos 14 andaimes referidos na acusação, teria que dar como provada a apropriação pelos mesmos arguidos, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, de, pelo menos, um desses andaimes. Transcreve o Recorrente as passagens dos depoimentos testemunhais das quais entende decorrer a imposição de uma diferente decisão em relação à matéria de facto, no sentido preconizado. Vejamos, então. A matéria de facto dada como provada em primeira instância pode ser impugnada e alterada em sede de recurso por uma de duas vias: a impugnação restrita ou revista ampliada, mediante invocação de algum dos vícios do art. 410º/2 do Código de Processo Penal; ou a impugnação ampla, mediante indicação dos factos erradamente julgados nos termos do art. 412º/3 do Código de Processo Penal. O Recorrente optou por esta última. Assim, nos termos previstos no art. 412º/3, 4 e 6, do Código de Processo Penal: «(…) 3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas. 4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…) 6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.». Nesta forma de impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida, como sucede com os vícios previstos no art. 410º/2 do Código de Processo Penal, alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova produzida em audiência, nomeadamente por via da análise da documentação dessa prova e/ou da audição da gravação, no caso da prova por declarações e testemunhal; essa análise e audição é, no entanto, sempre delimitada e guiada pela especificação que onera o recorrente, como previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º do Código de Processo Penal. Ou seja, serão uma análise e audição cingidas aos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, às concretas provas que, na sua perspetiva, impõem decisão diversa da recorrida, sendo que, quando gravadas, mediante audição das passagens em que se funda a impugnação que forem especificamente indicadas. Todavia, conforme tem vindo a entender-se de forma pacífica na jurisprudência, esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse;[1] antes se destina a uma reapreciação dos pontos da matéria de facto impugnados, com base na análise (ou audição, de for o caso) das provas concretamente indicadas, sem prejuízo de o Tribunal de recurso poder ouvir e visualizar outras passagens que não as indicadas, procurando indagar sobre a razoabilidade da decisão do Tribunal a quo quanto a esses concretos pontos que o recorrente especifique como incorretamente julgados. Na prática, o que se visa é uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida, como postulado pelo disposto no art. 412º/3,b) do Código de Processo Penal. Nessa reapreciação, este tribunal terá que atender à forma como se formou a convicção do julgador vertida na decisão sob recurso e a observância dos limites da livre apreciação da prova, como previsto no art. 127º do Código de Processo Penal, usando igualmente dessa livre convicção, com observância do princípio in dubio pro reo, numa valoração autónoma das provas indicadas especificamente no recurso, sem olvidar a não imediação na sua produção, contrariamente ao que sucede em primeira instância. Daí a importância da fundamentação da decisão sobre os factos, exigindo-se do julgador a indicação dos fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito. Não bastará, assim ao tribunal de recurso a assunção ou a recuperação genéricas da convicção ou dos termos da convicção do tribunal recorrido. [2] Assim como não basta para uma eventual alteração do decidido quanto aos factos, uma diferente convicção ou avaliação quanto à prova produzida. A decisão recorrida será, pois, de alterar apenas quando, avaliada a prova indicada, for evidente que as provas não conduzem a ela, já não o devendo ser quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a de forma lógica e racional; ou seja, o tribunal da Relação só pode e deve determinar uma modificação da matéria de facto quando, à luz das regras da livre apreciação da prova, concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.[3] Em suma: o Tribunal de recurso deve verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova nela indicados e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa, num exercício de reapreciação dessa concreta prova também segundo os princípios da livre apreciação consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal e in dubio pro reo, decorrente este último da premissa constitucional de presunção de inocência do arguido, decidindo, em caso de dúvida razoável, a favor do arguido. Só assim resulta garantido um efetivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, como previsto nos arts. 428º e 431º/1, b), do Código de Processo Penal. * O Recorrente impugna a matéria de facto por esta via, da impugnação ampla, indicando os factos que considera erradamente julgados e bem assim as passagens da prova que impunham diversa decisão. E no essencial, entendemos assistir-lhe razão. Vejamos antes de mais a fundamentação da sentença recorrida. «Motivação da Factualidade: Provada: O tribunal atendeu aos certificados de registo criminal dos arguidos, juntos aos autos. Não Provada: Não se provou que os arguidos tivessem, efetivamente, praticado os factos que lhes foram imputados. Não foram encontrados vestígios lofoscópicos, conforme decorre do relatório de inspeção junto a folhas 8 a 10. De resto, as testemunhas ouvidas não viram os arguidos a cometer os factos que lhes foram imputados, na acusação, nem foi produzido qualquer outro meio de prova que o demonstrasse. Note-se que o que a testemunha DD viu, conforme decorreu do seu depoimento, foi apenas o arguido BB com um andaime às costas, acompanhado (não se sabendo, em que moldes) pelo arguido CC, mas, na sequência da testemunha ter falado com o arguido BB, este recuou e voltou a colocar o andaime no sítio onde se encontrava. A mesma testemunha esclareceu que acabou de fumar o seu cigarro e foi embora, não tendo visto mais nada de revelo para os autos. Importa referir que nem se sabe se o que a referida testemunha relatou, ocorreu no mesmo dia mencionado na acusação, já que fez alusão a que os factos a que assistira tinham ocorrido numa quinta-feira, e o dia 12.05.2021 coincidiu com uma quarta-feira. Mas ainda que o relatado pela testemunha tivesse ocorrido no dia mencionado no libelo acusatório (sendo que as circunstâncias de tempo aí descritas se reportam a pouco depois da meia noite, mais precisamente meia hora depois, o que poderia levar a que DD se tivesse enganado na referência ao dia da semana em causa), tal relato foi insuficiente para que resultasse provado que foram os arguidos a cometer os factos em causa, com a certeza necessária para o efeito (para o que não basta um mero juízo de probabilidade, com base no relatado pela aludida testemunha). O ofendido AA, por sua vez, não presenciou os factos em causa, tendo esclarecido que o material subtraído estava colocado num sítio que não é de sua propriedade, e que pertence ao Município, mas que tinha aí guardado material e colocado um cadeado e que a fechadura já estava estragada antes de ter sido subtraído o seu material. Decorreu do depoimento de ambas as testemunhas que a aludida porta não se encontrava trancada. O ofendido referiu que o cadeado, na altura em que ocorreu a subtração dos objetos em causa, não era adequado para vedar o acesso ao espaço em causa, que permitia a observação do que estava no interior e que bastaria pressionar/empurrar a porta para aceder ao interior do espaço em causa. A testemunha DD, por seu turno, referiu que o local estava aberto, “escancarado” e que era frequentado por diversas pessoas, que usavam, inclusivamente, o local, como dormitório. Referiu que entravam lá muitas pessoas e que aí permaneciam horas e horas (o que a testemunha sabia por, na altura, morar nas proximidades, mais precisamente em frente ao local em questão). Por todo o exposto, não pôde ser dado como provado que foram os arguidos a subtrair os objetos que o ofendido deu por falta.» O Recorrente coloca a tónica do recurso numa diversa interpretação do depoimento da testemunha DD, o que em alguns aspetos ocorre efetivamente, como é o caso da participação de CC nos factos ou do local onde os arguidos viriam a abandonar o andaime; no entanto, a partir da fundamentação da sentença recorrida ora transcrita, fica também claro que o Tribunal a quo, confere credibilidade à aludida testemunha e tem por verdadeiro o relato que a mesma faz dos factos, conforme os testemunhou; o ponto é que, ao invés de considerar provados os factos tal qual resultam desse relato, como pretendido pelo Ministério Público, além de deles realizar interpretação não consentânea com as regras da experiência, optaria por considerar não provados in totum todos os factos descritos na acusação. Mas vejamos melhor. Escutado o depoimento de DD, resulta claro e isento de dúvidas que viu o arguido BB (que reconheceu na fotografia de fls. 135) com um andaime às costas, enquanto o arguido CC (que reconheceu na fotografia de fls. 127) «tava por trás», ambos «no local onde o senhor tem aquela ferramenta, a ferramentazinha», junto a essa oficina, dizendo não saber «se já tinham acartado mais», reportando-se claramente aos dois como perpetradores de um furto daquela ferramenta. O que o Tribunal a quo também não escamoteia. É certo que esta testemunha não terá presenciado tudo o que antecedeu aquele momento, para o qual despertou pelo barulho do impacto do andaime, mas do seu depoimento decorre de forma nítida a sua perceção de que os arguidos, ambos, estavam a «acartar» os andaimes, levando-os consigo apesar de saberem não lhes pertencerem; só assim se justifica que, como depôs muito espontaneamente, tivesse dito ao «Diba» (BB): «Diba, mete isso lá, que o rapaz precisa disso para trabalhar, isso não serve de nada que isso é ferro, não dá dinheiro.». E só isso explica que em face desta abordagem, ainda segundo DD, os arguidos, sem qualquer explicação, tivessem recuado e o arguido BB pousado «onde estava» o andaime que trazia às costas, tendo ambos ido embora, «para baixo» - Sessão de julgamento de 26/10/2023, ficheiro Citius Media Studio - 01m25s aos 04m40s e de 07m44s aos 11m30s. Assim, como se refere no recurso, não pode extrair-se do depoimento de DD que após ter recuado, o arguido BB tenha colocado o andaime no sítio de onde o retirara; segundo o seu relato, o arguido, após ser surpreendido, largou o andaime, recuou e fugiu; não poderia, pois, ter-se concluído que o arguido tenha «recuado e voltado a colocar o andaime no local onde se encontrava», como se fez constar da fundamentação da sentença. Por outro lado, como dito na sentença, pese embora alguma indefinição de DD quanto à localização temporal dos factos que relatou ao Tribunal, é possível fazê-los coincidir com o período temporal descrito na acusação, sendo que a referência feita pela testemunha a uma quinta-feira, quando o dia 12/05/2021, mencionado na acusação, foi uma quarta-feira, pode explicar-se não apenas pelo efeito na memória da passagem de mais de 2 anos sobre o acontecimento relatado, como pelo facto de, como se escreveu na sentença: «(…) as circunstâncias de tempo aí descritas se reportam a pouco depois da meia noite, mais precisamente meia hora depois, o que poderia levar a que DD se tivesse enganado na referência ao dia da semana em causa.». Tendo em conta o depoimento de AA, quanto à forma como soube a identidade dos arguidos por DD e quando viu pela última vez a porta do local fechada, assim como a data em que apresentou a denúncia – 13/05/2021, pelas 9h49m –, fixando-se como data em que teve conhecimento do desaparecimento dos andaimes o dia 12/05/2021, pelas 18h, e o tal provável equívoco quanto ao dia da semana indicado por esta testemunha, mostra-se possível dar como provado que s factos ocorrerem efetivamente na noite de 12 de maio de 2021, cerca das 0h30m, tal qual constava da acusação. À mesma conclusão se chega se partirmos do auto de denúncia que situa os factos de terça para quarta-feira, entre as 18h de 11/05/2021 e as 18h de 12/05/2021 – fls. 3 -, do aditamento que ocorre a 16/5/2021, portanto, no domingo subsequente e já reporta que o queixoso falou com a testemunha DD e conseguiu a identificação dos arguidos, permite um juízo seguro de que os eventos presenciados por este coincidiram com o desaparecimento dos andaimes na sua totalidade, assim como de que os arguidos transportaram uma das peças de andaime, ainda que por pouco tempo, na noite de 12/05/2021. O certo é que, como já referido, o Tribunal a quo não fez qualquer referência que ponha em causa a credibilidade da testemunha DD, o que também não se vislumbrou na audição da sua inquirição – basta que se atente na forma muito assertiva e espontânea como disse encontrar-se a loja onde se encontravam os andaimes livremente acessível por qualquer pessoa e como separou claramente aquilo que efetivamente viu daquilo que uma vizinha lhe disse depois ter visto; será, pois, de valorar como credível o seu depoimento. E assim sendo, impunha-se que o Tribunal a quo tivesse considerado provado que na noite de 12/05/2021, pelas 00.30, os arguidos BB e CC, lograram aceder ao interior da arrecadação de forma não concretamente apurada, da qual retiraram pelo menos um andaime de valor não concretamente apurado – não há nos autos elementos para o fixar em € 50,00 (cinquenta euros), como pretendido no recurso -, pertencente a AA; mais teria que ficar provado que, já no exterior dessa arrecadação, quando se deslocavam na posse do andaime, os arguidos foram interpelados junto do local por DD, que os surpreendeu, após o que o abandonaram e saíram dali (pelo menos do ângulo de visão da testemunha). Na verdade, tendo os arguidos sido vistos nestas circunstâncias a transportar um objeto que lhes não pertencia e, uma vez interpelados no sentido de que não deveriam fazê-lo, abandonaram esse objeto, sem que então ou posteriormente tivessem, qualquer deles, apresentado qualquer explicação para tal conduta, não pode senão concluir-se que estavam os mesmos a apropriar-se desse objeto, o que fizeram conjuntamente e até serem interrompidos na sua ação por intervenção de terceiro. Como é sabido, a prova pode ser direta, mas as mais das vezes implica uma leitura indiciária; ou seja, importa um juízo de probabilidade acima de toda a dúvida razoável, formulado a partir de indícios sérios, graves e concordantes entre si. E, com franqueza, tendo por base o relato feito pela testemunha DD que, como se disse, é credível para o Tribunal a quo, sendo igualmente credível para este Tribunal, não vemos que outra explicação - que não a de que assim se apropriavam de bem alheio - poderia haver para que os arguidos, durante a noite, julgando não estarem a ser vistos, estivessem, juntos, na zona exterior da divisão onde estavam armazenados os andaimes de AA, um deles com um andaime às costas, transportando-o; andaime que acabariam por abandonar, ausentando-se do local, assim que interpelados nesse sentido por um terceiro. O Tribunal a quo não se deu sequer ao cuidado de tentar fornecer explicação alternativa àquela que assim assoma evidenciada e inelutável por mera aplicação das regras da lógica e da experiência comum. Mas mais. Optaria simplesmente por ignorar os factos resultantes da dinâmica descrita por DD, decidindo não os incluir, nem como provados nem como não provados. A nosso ver, incorretamente. É certo que não se provou terem sido os arguidos a arrombar a fechadura do espaço onde os andaimes do queixoso eram guardados, assim como não ficou provado terem sido eles a apropriar-se dos 14 andaimes que ali eram guardados, como constava da acusação. Mas isso impede que se dê como provado que, nas mesmas circunstâncias de tempo e espaço indicadas na acusação, se apropriaram de um desses andaimes? Parece-nos claro que não. Uma coisa é dar-se como não provada uma parte da factualidade descrita na acusação por insuficiência da prova de suporte à mesma, outra, muito diferente, é daí concluir-se pela não prova de toda a restante factualidade para a qual existe esse suporte. Na realidade, os factos efetivamente apurados por via do relato de DD quanto a um dos andaimes, poderiam até permitir dar como provada a versão mais ampla que vinha descrita na acusação, reunidos outros indícios consistentes com os mesmos; o que não sucedeu pelas razões indicadas na sentença recorrida, aceites pelo Recorrente. Mas o facto de não se dar esta versão mais ampla como provada, não pode impedir de se dar como provados aqueloutros factos que, na prática, são relativos à execução operacional do originariamente imputado crime de furto. Estamos a falar de uma parcela factual contida por inteiro no pedaço de vida trazido à acusação, numa relação de menos para mais, e não de uma realidade inteiramente nova. Neste quadro, a consideração inscrita na fundamentação da decisão recorrida de que tal relato foi insuficiente para que resultasse provado que foram os arguidos a cometer os factos a que a acusação se reportava, e que definiam o objeto do processo, sendo correta, ignora por completo o que também resulta do mesmo relato quanto a uma redução desses factos à já exposta apropriação de um andaime. Note-se que não estamos sequer perante alteração relevante dos factos descritos na acusação, para efeitos de acionamento do procedimento de comunicação previsto sob o art. 358º do Código de Processo Penal. O que temos em boa verdade é a prova de factos que absolutamente se contêm naqueles que vinham descritos na acusação, e que assim importam uma sua redução na transposição para a factualidade dada como provada. Como se escreveu bem a propósito no acórdão da Relação de Coimbra de 22/03/2023 (sumário), relatado por Cristina Branco no processo 791/16.7PBLRA.C1: «(…) III - O tribunal está vinculado ao thema decidendum definido pela acusação ou pela pronúncia, que deve manter-se inalterado até ao trânsito em julgado da condenação, como forma de assegurar a plenitude da defesa, garantindo ao arguido que apenas tem de defender-se dos factos acusados e não de outros e que apenas por esses factos poderá ser condenado, mas tal não impede que o tribunal, na sua actividade cognoscitiva e decisória, atenda a factos que não foram objecto da acusação, sejam quais forem as circunstâncias. IV - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração substancial ou não substancial dos factos descritos na acusação, o tribunal pode deles conhecer desde que ocorrida nos casos e condições previstos nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal. V - Em cada caso há que determinar se ocorre uma alteração de factos, ocorrendo há que verificar, depois, se ela é substancial ou não substancial e, perante essa definição, desencadear os mecanismos legais previstos para assegurar o exercício dos direitos de defesa. VI - A alteração substancial dos factos pressupõe uma diferença de identidade, de grau, de tempo, ou espaço, que transforme o quadro factual descrito na acusação em outro diverso, ou manifestamente diferente no que se refira aos seus elementos essenciais, ou materialmente relevantes de construção e identificação factual, determinando a reformulação do objecto do processo, operada pelo acordo dos sujeitos processuais com vista à rápida resolução do litígio, tudo sem intervenção do julgador e, portanto, sem trair o princípio do acusatório. VII - A alteração de factos que desencadeia a necessidade de comunicação a que alude o artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo tem que ser relevante, o que sucede quando essa modificação divirja do que se encontra descrito na acusação ou na pronúncia e a subsequente comunicação se mostre útil à defesa. VIII - Não existe alteração dos factos integradora do artigo 358.º quando a factualidade dada como provada no acórdão condenatório consiste numa mera redução daquela que foi indicada na acusação ou na pronúncia, por não se terem dado como assentes todos os factos aí descritos, quando na sentença são descritos os mesmos factos da acusação ou da pronúncia com uma formulação distinta, ou quando se explicitam, pormenorizam ou concretizam factos, já narrados sinteticamente na acusação ou na pronúncia, que não sejam relevantes para a tipificação ou para a verificação de qualquer agravante qualificativa.» (negrito e sublinhado nossos). Ora, ao considerar como provados os factos resultantes do relato efetuado pela testemunha DD, não posterga o Tribunal qualquer direito de defesa dos arguidos que tiveram oportunidade de se defender dos mesmos, neles se incluindo a pequena parte dos mesmos que resultou provada. Estamos perante o mesmo acontecimento histórico descrito na acusação, em relação ao qual não se verifica verdadeiramente qualquer alteração, mas apenas uma sua redução, por ausência de prova de parte dos factos que constituem objeto do processo. [4] De resto, como nos diz Vinício Ribeiro [5], «A jurisprudência dos Tribunais superiores tem sido constante no entendimento de que, não há alteração, substancial ou não, para os efeitos dos arts. 358.º e 359.º do CPP, quando os factos considerados provados representam um minus relativamente aos da acusação e nenhuns novos são introduzidos – cfr. Ac. STJ, de 3.4.1991, CJ, tomo II, pág. 17; Ac. STJ, de 5.7.2001, proc. n.º 4000/00-3.ª, SASTJ n.º 53, 62; Ac. STJ, de 7.11.2002, proc. n.º 3158/02-5.ª, SASTJ n.º 65, 67; Ac. STJ, de 12.11.2003, proc. n.º 1216/03-3.ª; SASTJ, n.º 75,93.». Assim também o aresto da Relação de Coimbra de 22/03/2023 acima citado. Nestes termos, somos a entender ser procedente o recurso do Ministério Público, devendo considerar-se provados os factos seguintes: 1. No dia 12/05/2021, pelas 00.30h, os arguidos BB e CC, mediante um plano comum e previamente delineado entre ambos, deslocaram-se a uma arrecadação sita a ..., com o propósito de se apoderarem de bens que ali encontrassem e pudessem transportar consigo. 2. Na execução do referido plano, e com divisão de tarefas e funções, BB e CC lograram aceder ao interior da arrecadação de forma não concretamente apurada. 3. Após, BB e CC retiraram do interior da arrecadação pelo menos 1 andaime de valor não concretamente apurado, pertencente a AA. 4. Depois de abandonarem a referida arrecadação na posse do andaime, os arguidos BB e CC foram interpelados junto do local por DD, que os surpreendeu, após o que abandonaram o andaime e encetaram fuga do local para parte incerta. 5. BB e CC atuaram mediante acordo prévio gizado entre ambos, com comunhão de esforços, e visando fins idênticos de fazerem seu o aludido bem, o que conseguiram, apesar de saberem que o mesmo não lhes pertencia e que agiam em prejuízo e contra a vontade do legítimo proprietário. 6. BB e CC agiram sempre de forma livre voluntária, deliberada e consciente deliberada, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei e tinham capacidade para se determinar de acordo com o seu conhecimento. Já provados em primeira instância: 7. O arguido BB não tem antecedentes criminais. 8. O arguido CC foi condenado, no âmbito do processo 79/22.4PDFUN, por decisão proferida a 16/10/2023 e transitada em julgado a 17/11/2023, pela prática, a 11/02/2022, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e dois meses de prisão, suspensa na execução por igual período. Além destes, provaram-se ainda os seguintes factos quanto às condições pessoais dos arguidos (resultado do que consta dos documentos de fls. 64, 65, 69, 119, 123): 9. O arguido BB não possui bens; em 15/03/2022 apresentava na base de dados da Segurança Social como último registo de remuneração, a auferida em dezembro de 2014, no valor de €970,79; 10. O arguido CC não possui bens, sendo que à data dos factos dormia na rua, em local incerto; em 15/03/2022 apresentava na base de dados da Segurança Social como último registo de remuneração, a auferida em fevereiro de 2018, no valor de €285,93. * - Do Direito Tendo por base a factualidade dada como provada, temos que os arguidos praticaram, em coautoria, factos subsumíveis ao crime de furto previsto e punido pelo disposto no art. 203º/1 do Código Penal. Com efeito, agindo de forma livre e voluntária, mediante acordo prévio gizado entre ambos, em comunhão de esforços, e visando fins idênticos de fazerem seu o aludido bem, apropriaram-se do andaime pertencente a EE apesar de saberem que o mesmo não lhes pertencia e que agiam em prejuízo e contra a vontade do seu legítimo proprietário. Dispõe o art. 203º/1 do Código Penal que comete o crime de furto «quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheia.». Nos termos do preceituado no art. 26º do Código Penal, «É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.». Note-se que em matéria de momento da consumação da apropriação podem em tese configurar-se quatro grandes linhas de orientação: (a) a de quem situa a consumação no momento em que o agente toca a coisa de outrem – conhecida por contrectatio; (b) a de quem situa a consumação no momento em que a coisa é removida do lugar em que se achava – conhecida por amotio; (c) a de quem considera a consumação havida quando ocorre a transferência da coisa para fora da esfera de domínio do sujeito passivo – conhecida por ablatio; (d) e a de quem defende que a consumação só se verifica quando o infractor tem a coisa subtraída em pleno sossego – conhecida por illatio.[6] De entre as perspetivas indicadas entendemos que a mais operativa é uma solução que se aproxima da da ablatio: a apropriação verifica-se no momento em que a coisa entra, de forma minimamente estável, no domínio de facto do agente, isto é, quando este passa a dela poder dispor como se sua fosse.[7] E a essa luz, ocorreu a consumação do furto perpetrado pelos arguidos, visto que, tendo-se apossado do andaime, por um deles carregado às costas, assim saíram da arrecadação onde se encontrava guardado, encontrando-se do lado de fora, em movimento de deslocação, quando foram surpreendidos pela testemunha DD, e interromperam essa sua ação, abandonando aí o andaime e ausentando-se do local. Assim, em face da factualidade provada, dúvidas não restam de que se mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de furto, simples, previsto e punido pelo disposto no art. 203º/1 do Código Penal, cometido pelos arguidos em coautoria, com dolo direto e consciência da ilicitude, já que atuaram deliberada e voluntariamente, cientes de que se apropriavam de bem que lhes não pertencia contra a vontade do respetivo dono, sabendo ainda que a sua conduta era ilícita e punida por lei. Encontra-se ainda verificado o pressuposto processual relativo ao exercício do direito de queixa, como resulta do inscrito a fls. 3 verso do auto de denúncia, visto que o procedimento criminal dela depende nos termos do art. 203º/3 do Código Penal Devem, por isso, os arguidos ser condenados pela prática, em coautoria, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo disposto no art. 203º/1 do Código Penal, revogando-se, em conformidade, a sentença absolutória recorrida. * Revertendo a decisão absolutória proferida em primeira instância, para decisão condenatória, cumpre realizar nesta instância de recurso as operações de escolha e determinação concreta da pena a aplicar ao arguido. Isto, tendo presente a jurisprudência uniformizada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 4/2016[8] no sentido de que «em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 3, alínea b), 368º, 369º, 371º, 379º, nº 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424º, nº 2, e 425º, nº 4, todos do Código de Processo Penal.». Vejamos então. - Dos critérios legais da escolha e determinação da pena Como decorre do disposto no art. 40º/1 e 2, do Código Penal, «A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade», sendo que, «Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.». A culpa não é, pois, o fundamento da pena, antes constituindo, a um tempo, o seu suporte axiológico-normativo, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa – e também o limite que a pena nunca poderá exceder. Em sintonia com o citado preceito, dispõe o art. 71º/1 do mesmo código que «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.». A medida concreta da pena será então obtida tendo como limite mínimo da moldura a medida da necessidade de tutela de bens jurídicos (exigências de prevenção geral positiva), sendo em seguida doseada por referência às exigências de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais; por fim, a culpa fornece o limite máximo e inultrapassável da pena. Culpa e prevenção (geral e especial) são, por conseguinte, os dois limites a observar no processo de escolha e determinação concreta da medida da pena, assegurando o equilíbrio entre a medida ótima da tutela dos bens jurídicos e das expectativas da comunidade e a medida concreta da pena abaixo da qual «já não é comunitariamente suportável a fixação das penas sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar».[9] Daí que, será justa toda a pena que responda adequadamente às exigências preventivas e não exceda a medida da culpa.[10] O nº 2 do citado art. 71º dispõe que «Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, depuserem a favor ou contra ele», nomeadamente as enunciadas nas suas várias alíneas, ou seja: - o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente [al. a)]: - a intensidade do dolo ou da negligência [al. b)]; - os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [al. c)]; - as condições pessoais do agente e a sua situação económica [al. d)]; - a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime [al. e)]; e - a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena [al. f)]. As circunstâncias e os critérios do art. 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.[11] Estatui ainda o art. 70º do Código Penal que, se ao crime forem alternativamente aplicáveis uma pena privativa e uma pena não privativa da liberdade, o tribunal deverá dar preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, previstas no art. 40º do mesmo diploma. Assim, o critério de determinação da pena concreta aplicável encontra-se condicionado pelo momento prévio de necessária escolha da pena, atendendo aos requisitos impostos pelo art. 70º do Código Penal, segundo os quais, prevendo os preceitos incriminadores da conduta do agente a possibilidade de aplicação de uma pena alternativa de multa, será esta aplicável se com tal se compatibilizarem as exigências de prevenção. - Da escolha da pena e determinação da sua medida Na situação sob apreciação, cremos ser bastante a aplicação de uma multa para que fiquem convenientemente salvaguardadas as exigências de prevenção, geral e especial, verificadas. É certo que os arguidos têm dificuldades de inserção social reveladas nos factos provados em 9. e 10., e adotaram uma atitude processual displicente e até negligente, faltando, sem comunicação ou justificação às convocatórias que lhes foram dirigidas - BB, em 31/05/2021, 11/01/2022 e 18/02/2022 – e CC, em 08/06/2021, tendo havido necessidade de proceder à sua detenção a 25/10/2021 e 26/10/2021 para constituição como arguidos, prestação de termo de identidade e residência e interrogatório pela PSP de Câmara de Lobos – cfr. fls. 21 a 24, 50, 57 a 65, 79 a 83, 111, 112; além disso faltaram sem qualquer comunicação ou justificação a todas as sessões de julgamento. São, portanto, significativas as exigências de prevenção especial de ressocialização; todavia, considerando a redução dos factos operada, estando em causa o furto de apenas um andaime, de valor não apurado, sendo, portanto, o desvalor da ação e a gravidade menores, situam-se a um nível também inferior as exigências de prevenção geral positiva, de proteção do bem jurídico protegido, património. Além disso, à data dos factos o arguido CC tinha 32 anos de idade, e BB, 49 anos de idade, não apresentando então antecedentes criminais. Ora, como vimos, é em atenção à prevenção especial e ao intuito ressocializador, no sentido de eficácia da pena como dissuasora da prática de novos crimes, que a escolha da pena deve operar. Neste quadro, e pese embora as relevantes exigências de prevenção especial, a sanção pecuniária afigura-se-nos ainda suficiente para afastar os arguidos da prática deste tipo de ilícito. Por tudo o exposto, opta-se pela aplicação aos arguidos de uma pena de multa. * A determinação da medida concreta desta pena importa duas operações distintas, segundo o sistema adotado no nosso Código Penal conhecido por «sistema dos dias-de-multa»: num primeiro momento – art. 47º/1 do Código Penal -, determina-se o número de dias de multa dentro da moldura penal abstrata correspondente ao tipo de crime, na consideração dos fatores relevantes para a culpa e para a prevenção, segundo o previsto no art. 71º/2 do Código Penal; num segundo momento – art. 47º/2 do Código Penal -, é fixado o quantitativo de cada dia de multa em função da situação económico-financeira do condenado. Quanto ao número de dias, o limite mínimo da moldura aplicável in casu corresponde ao mínimo legal de 10 dias nos termos dos arts. 203º/1 e 204º/1, f), em conjugação com o art. 47º/1, sendo o máximo de 600 dias. No que concerne à taxa diária, visando-se dar realização ao princípio da igualdade de ónus e sacrifícios, estabeleceu-se sob o art. 47º/2 do Código Penal que cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 5€ e 500€, a fixar em concreto em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais. Na ausência da definição na lei de critérios a tomar em conta para determinar a condição económica e financeira do condenado, Figueiredo Dias[12] conclui que o silêncio do nosso Código Penal «só pode significar (…) o desejo do legislador de oferecer ao juiz o maior campo possível de eleição de factores relevantes. É seguro que deverá atender-se (…) à totalidade dos rendimentos próprios do condenado, qualquer que seja a sua fonte (…). Como é seguro, por outro lado, que àqueles rendimentos hão-de ser deduzidos os gastos com impostos, prémios de seguro (…) e encargos análogos. Como igualmente parece legítimo tomar em conta (…) rendimentos e encargos futuros, mas já previsíveis no momento da condenação (…)». Como se escreve no sumário do acórdão da Relação de Coimbra de 05/11/2008 relatado por Fernando Ventura no processo 329/06.4TAMLD.C1[13]: «I.- O sistema de sanção pecuniária diária em montante variável, acolhido no nosso ordenamento penal, procura obviar aos inconvenientes assacados à pena de multa, a saber, o peso desigual para pobres e ricos, e constitui corolário evidente do princípio da igualdade, impondo o mesmo sacrifício qualquer que sejam os meios de fortuna. II.- Através da autonomização da operação de determinação da pena consubstanciada na definição do quantitativo diário da pena, procura conferir-se ao sistema elasticidade na adequação à situação económico-financeira do condenado, preservando eficácia preventiva, tanto no plano da prevenção geral positiva – contrariando a percepção comunitária de que a sanção pecuniária não é dissuasora – como da prevenção especial de integração – obrigando o condenado a genuína reflexão, através de real sacrifício, sem colocar em causa mínimos de subsistência.». Ainda segundo o acórdão da mesma Relação de Coimbra de 08/03/2017 relatado por Olga Maurício no processo 415/09.9GASPS.C1[14], «Na fixação da taxa diária da pena de multa o tribunal tem que atender à situação presente para adequar a pena de multa de modo a não fixar uma pena nem que seja de cumprimento impossível, nem que se traduza numa quase absolvição.». Assim, decidido que ficou aplicar aos arguidos a pena de multa, caberá desta feita, e dentro da respetiva moldura abstrata já acima definida, encontrar a medida concreta dessa pena considerando as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham contra ou favor do arguido. Como circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, se associam diretamente à sua prática ou à motivação que lhe deu origem, haverá a considerar ainda que: - os arguidos agiram com dolo na sua modalidade mais intensa, de dolo direto; - atuaram em conjunto; - assim que surpreendidos pela interpelação de DD, abandonaram o andaime que transportavam consigo; - o bem subtraído, apesar de desconhecido o respetivo valor, atenta a sua utilização (era usado) e de acordo com as regras da experiência será de valor diminuto; - o arguido BB não tem antecedentes criminais; - o arguido CC foi condenado no âmbito do processo 79/22.4PDFUN, por decisão proferida a 16/10/2023 e transitada em julgado a 17/11/2023, pela prática, a 11/02/2022, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e dois meses de prisão, suspensa na execução por igual período. - Os arguidos faltaram sem qualquer comunicação ou justificação a todas as convocatórias realizadas no inquérito e bem assim a todas as sessões da audiência de julgamento; - não lhes são conhecidos atividade laboral ou rendimentos. Face às circunstâncias descritas, uma vez que se revela intenso o grau de culpa, baixa a ilicitude, acentuadas as exigências de prevenção especial, e menores as de prevenção geral, dado que o limite inferior da pena se situa em 10 dias e o superior em 360 dias, não havendo razão para diferenciar os arguidos, julga-se justa a aplicação a cada um deles de uma pena de 120 (cento e vinte) dias de multa. * Atenta a débil situação económica dos arguidos, tal como resulta dos autos, pois que são desconhecidos aos mesmos rendimentos, ou sequer atividade laboral, fixar-se-á o quantitativo diário da multa no mínimo legal, de 5,00€ (cinco euros). * Em suma: serão os arguidos condenados, cada um deles, pela prática em coautoria de um crime de furto simples, previsto e punido pelos arts. 26º e 203º/1 do Código Penal, numa pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, a uma taxa diária de 5,00€ (cinco euros), num total de 600,00€ (seiscentos euros). * III- DISPOSITIVO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso do Ministério Público, em consequência do que revogam a sentença absolutória e: - julgam provados os seguintes factos: 1. No dia 12/05/2021, pelas 00.30h, os arguidos BB e CC, mediante um plano comum e previamente delineado entre ambos, deslocaram-se a uma arrecadação sita a ..., com o propósito de se apoderarem de bens que ali encontrassem e pudessem transportar consigo. 1. Na execução do referido plano, e com divisão de tarefas e funções, BB e CC lograram aceder ao interior da arrecadação de forma não concretamente apurada. 2. Após, BB e CC retiraram do interior da arrecadação pelo menos 1 andaime de valor não concretamente apurado, pertencente a AA. 3. Depois de abandonarem a referida arrecadação na posse do andaime, os arguidos BB e CC foram interpelados junto do local por DD, que os surpreendeu, após o que abandonaram o andaime e encetaram fuga do local para parte incerta. 4. BB e CC atuaram mediante acordo prévio gizado entre ambos, com comunhão de esforços, e visando fins idênticos de fazerem seu o aludido bem, o que conseguiram, apesar de saberem que o mesmo não lhes pertencia e que agiam em prejuízo e contra a vontade do legítimo proprietário. 5. BB e CC agiram sempre de forma livre voluntária, deliberada e consciente deliberada, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei e tinham capacidade para se determinar de acordo com o seu conhecimento. 6. O arguido BB não tem antecedentes criminais. 7. O arguido CC foi condenado, no âmbito do processo 79/22.4PDFUN, por decisão proferida a 16/10/2023 e transitada em julgado a 17/11/2023, pela prática, a 11/02/2022, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e dois meses de prisão, suspensa na execução por igual período. 8. O arguido BB não possui bens; em 15/03/2022 apresentava na base de dados da Segurança Social como último registo de remuneração, a auferida em dezembro de 2014, no valor de €970,79; 9. O arguido CC não possui bens, sendo que à data dos factos dormia na rua, em local incerto; em 15/03/2022 apresentava na base de dados da Segurança Social como último registo de remuneração, a auferida em fevereiro de 2018, no valor de €285,93. - condenam cada um dos arguidos, BB e CC, pela prática, em coautoria, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo disposto nos arts. 26º e 203º/1, do Código Penal, numa pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 5,00€ (cinco euros), num total de 600,00€ (seiscentos euros). * Sem custas. * Notifique. Lisboa, 11/07/2024 Ana Cláudia Nogueira Luísa Alvoeiro Rui Coelho (Relator vencido) Voto de vencido Votei vencido por entender que não pode ser dado provimento à pretensão do Recorrente quanto ao reconhecimento de um erro de julgamento relativamente aos factos não provados n.ºs 1 a 5 e 7. Assenta a sua diferente leitura na prova produzida, nomeadamente na desconsideração do depoimento da testemunha DD do qual, defende, resulta a apropriação pelos Arguidos de, pelo menos, um dos andaimes. Perante esta forma de impugnação, cumpre ao Tribunal da Relação de Lisboa analisar os factos questionados, verificar se têm suporte na fundamentação da decisão recorrida e avaliar e comparar a prova indicada na dita fundamentação, testando a sua consistência e coerência. Apenas no caso de tal sustentação soçobrar perante este exame deverá o Tribunal considerar que outra decisão deveria ter sido tomada pelo Tribunal recorrido e, consequentemente, intervir na respectiva correcção [cfr. Acs. STJ de 14.03.2007, Conselheiro Santos Cabral - ECLI:PT:STJ:2007:07P21.5C; de 23.05.2007, Conselheiro Henriques Gaspar - ECLI:PT:STJ:2007:07P1498.95; de 29.10.2008, Conselheiro Souto de Moura - ECLI:PT:STJ:2008:07P1016.19; e de 20.11.2008, Conselheiro Santos Carvalho - ECLI:PT:STJ:2008:08P3269.6B]. O Tribunal de recurso só poderá alterar a decisão se as provas indicadas obrigarem a uma decisão diversa da proferida. Caso tais provas não imponham essa decisão diversa, mas apenas a permitam, paralelamente àquela que foi a decisão da primeira instância, deverá ser esta última a prevalecer, não havendo lugar a qualquer correcção da decisão recorrida, desde que se mostre devidamente fundamentada e, face às regras da experiência comum, couber dentro de uma das possíveis soluções (vd., Ac. Tribunal da Relação de Lisboa de 02.11.2021, Desembargador Jorge Gonçalves - ECLI:PT:TRL:2021:477.20.8PDAMD.L1.5.A4). A discordância do Recorrente assenta na interpretação do depoimento da testemunha DD. Da fundamentação é claramente compreensível o juízo do Tribunal a quo, em sentido contrário. Mas há que questionar se, ao invés de concluir como o fez, devia o Tribunal alcançar a prova dos factos como pretendido pelo Ministério Público. Vejamos se tal depoimento merece um novo olhar, nomeadamente quanto aos factos relativos à apropriação do andaime. Ouvido o seu depoimento, sem dúvida DD viu BB com um andaime às costas, algo que a sentença não escamoteia. Porém, tudo o que antecedeu aquele momento não foi visto pela testemunha. Esta desconhece como o Arguido se apoderou do andaime, quais as circunstâncias dessa apropriação. O CC acompanhava-o, mas nada mais disse quanto a ele, pelo que, deste depoimento, apenas se poder retirar a sua presença. Na sequência da sua interpelação, o BB recuou e terá ido deixar o andaime no sítio. Também aqui a testemunha nada mais viu que o Arguido a recuar e, posteriormente, passar sem nada levar consigo. Como bem aponta a sentença, é possível fazer coincidir estes factos com o período descrito na acusação. O Tribunal não fez nenhuma referência que ponha em causa a credibilidade da testemunha, o que também não se vislumbrou na audição da sua inquirição, pelo que será de valorar o seu depoimento. Segundo o Recorrente, então, deveria o Tribunal ter provado que em noite não concretamente apurada, entre os dias 10/05/2023 e 13/05/2023, pelas 00.30, os arguidos BB e CC, lograram aceder ao interior da arrecadação de forma não concretamente apurada, da qual retiraram pelo menos um andaime de valor não concretamente apurado mas nunca inferior a € 50,00 (cinquenta euros), pertencente a AA. Que, após terem abandonado a referida arrecadação na posse do andaime, os arguidos foram interpelados junto do local por DD, que os surpreendeu, após o que abandonaram o andaime. Não iria tão longe. Do depoimento indicado nada se retira que permita provar qualquer acção do CC. O facto de estar ali, seguindo o Arguido que transportava um andaime, não permite concluir nada quanto à sua prévia ou actual intervenção naquela posse. Por isso, nesta parte, é manifesta a falta de sustento da visão do Ministério Público, aqui Recorrente. No que toca aos factos referentes ao BB, decorrentes da descrição desta testemunha, o Tribunal decidiu não os incluir, nem como provados nem como não provados. O depoimento de DD permitiria outra decisão que traduzisse o que realmente aconteceu. Quando conjugado com o depoimento do queixoso, reforça-se a percepção de que outro evento ocorreu que levou à subtracção de todos os elementos dos andaimes, à excepção de três. Ou seja, catorze pares de andaimes, como consta da acusação. Acrescentamos, ninguém se apropria desta quantidade de andaimes carregando-os um a um numa noite. A sua subtracção implica a alocação de meios de transporte que, manifestamente, o Arguido não tinha. A análise da data da participação que situa os factos de terça para quarta-feira, do aditamento que ocorre num domingo e já identifica que o queixoso falou com a testemunha permite um juízo seguro que os eventos presenciados por DD coincidiram com o desaparecimento dos andaimes. O depoimento apenas permite apurar que o Arguido transportou uma das peças de andaime, ainda que brevemente. A consideração inscrita na fundamentação de que tal relato foi insuficiente para que resultasse provado que foram os arguidos a cometer os factos em causa, com a certeza necessária para o efeito, traduz aquilo que pode ser concluído atento o objecto do processo. Não foi o Arguido quem se apoderou das estruturas de andaime desaparecidas. Apurou-se, ainda assim, que alguma coisa aconteceu. A pergunta que se impõe é a de saber se deveria o Tribunal ter transposto essa outra realidade para os factos provados. O confronto desta realidade com aquilo que consta da acusação revela o seu conteúdo distinto. Responder à matéria de facto descrevendo aquilo que emerge do dito depoimento, acrescenta factos novos que extravasam o âmbito e sentido da acusação refletindo, então, uma alteração substancial de factos [art.º 1.º al. f) do Código de Processo Penal «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis» porque referente a uma realidade diversa daquela inicialmente imputada. Senão vejamos. Do facto provado número 1, apenas poderíamos manter as circunstâncias de tempo e de lugar, ou seja o dia e o local, bem como a presença do BB acompanhado do CC. Dos factos não provados n.º 2, a 7 nada poderia ser transposto para os factos provados. Restaria acrescentar a realidade emergente do depoimento. Que naquelas circunstâncias de tempo e lugar o BB se encontrava na posse de uma das peças de andaime de AA e que, depois de interpelado por DD, abandonou tal objecto. Consequentemente, por não serem factos que se integrem na factualidade descrita na acusação e que traduzam a imputação do crime pelo qual foram os Arguidos trazidos a julgamento, não deverão tais factos ser objecto de resposta, nomeadamente aditados ao leque dos factos provados (art.º 359.º/1 do Código de Processo Penal). Por isso, aqui chegados, concluía não ser a decisão recorrida merecedora de censura julgando o recurso improcedente e mantendo inalterada a decisão recorrida. _______________________________________________________ 1.Entre outros, os acórdãos do STJ de 18/01/2018, relatado por Maia Costa no processo 563/14.3TABRG.S1, que aqui seguimos de perto, e de 17/03/2016, relatado por Pires da Graça no processo 849/12.1JACBR.C1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt . 2.Neste sentido, o acórdão do STJ de 20/01/2010 relatado por Henriques Gaspar no processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt . 3.Cfr. o acórdão do STJ de 25/03/2010, relatado por Raul Borges no processo 427/08.OTBSTB.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt . 4.Assim, Pedro Soares Albergaria, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo IV Almedina, 2022, pág. 632, §6 e 633, §8, referindo naquele primeiro ponto que o vocábulo «alteração» remete para a ideia de mudança, enfim, de variação.». 5.Em anotação ao art. 1º do Código de Processo Penal, in Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2008, pág. 73, citação extratada do acórdão da Relação do Porto de 14/06/2006, relatado por Borges Martins no processo 0612048, e acessível em www.dgsi.pt. 6.Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Volume I, 2.ª edição, 2022, pág. 61, e Paulo Saragoça da Mata, «Subtracção de coisa móvel alheia: os efeitos do admirável mundo novo num crime “clássico”», in Direito Penal, Parte Especial, Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, 2007, pág. 648 e sgs., esta última referência extratada do acórdão do STJ de 09/05/2019, relatado por Raul Borges no processo 10/16.6PGPDL.S1, acessível em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2019:10.16.6PGPDL.S1 . 7.Sobre os fundamentos desta solução vide, por todos, o Acórdão da Relação de Lisboa de 24/11/2009, relatado por Pedro Martins no processo 451/08.2PVLSB.L1-5, acessível em www.dgsi.pt . 8.Publicado no Diário da República, 1ª série, nº 36, de 22/02/2016. 9.Cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 214 e sg. e 229. 10. Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 3ª Edição, 2019, Gestlegal, pág. 96. 11. Veja-se neste sentido o acórdão do STJ de 28/09/2005, in Coletânea de Jurisprudência - STJ, 2005, Tomo 3, pág. 173. 12. In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 129. 13. [Acessível em www.dgsi.pt . 14. Acessível em www.dgsi.pt . |