Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
11/22.5T8CSC.L2-2
Relator: RUTE SOBRAL
Descritores: LITISPENDÊNCIA
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
TEORIA DA SUBSTANCIAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: (elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC):
I – A litispendência configura exceção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, determinando a absolvição da instância do réu, ocorrendo quando é proposta ação idêntica a outra ainda pendente, devendo tal identidade manifestar-se quanto aos sujeitos, ao pedido e a à causa de pedir – cfr- artigos 576º,nº 1 e 2, 577º, alínea i), 580º, 581º CPC.
II – A tríplice identidade entre as ações quanto aos sujeitos, pedido e causa de pedir, que permite a afirmação da litispendência, tem como escopo o de “evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior”, nos termos do disposto no artigo 580º, nº 2, CPC.
III – Por decorrência do princípio da substanciação consagrado no regime processual português, inexiste identidade de causas de pedir relativamente a duas ações pendentes entre as mesmas partes, ambas instauradas tendo por base o regime da responsabilidade civil por factos ilícitos, quando são temporal e substancialmente diversos os factos concretos constitutivos das pretensões indemnizatórias feitas valer.
IV – Não pode também afirmar-se a identidade de pedidos quando em tais ações foram formuladas pretensões indemnizatórias cujo valor é coincidente, mas que visam ressarcir danos diversos, gerados por diferentes factos ilícitos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:

I - RELATÓRIO

1.1– O autor A, identificado nos autos, instaurou, em 03-01-2022, no Juízo Local Cível de Cascais, a presente ação declarativa de processo comum contra a ré B, também identificada nos autos, alegando por ela ter sido mandatado, em agosto de 2017, com vista ao seu patrocínio em diversos processos judiciais (processo nº (…)T8CSC da Instância Central Cível de Cascais, processo …T8CTX do Juízo Local Cível de Cascais - J…, processo nº …T9CSC dos Serviços do Ministério Público da Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste e processo de inventário nº …. do Cartório Notarial de C).
Sucede que tal mandato veio a cessar por iniciativa da ré que, em 06-07-2020, apresentou queixa contra o autor no Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados, que deu origem a inquérito preliminar que veio a ser instaurado pelo Conselho de Deontologia de Coimbra daquele organismo.
Considerando o autor que as afirmações produzidas pela ré em tal participação, além de falsas, são ofensivas do seu bom nome e da sua honra pessoal e profissional, contra ela instaurou ação de indemnização que corre termos no Juízo Local Cível de Coimbra (Juiz …) sob o nº …T8LRA.
Sucede que, posteriormente, em 02-11-2021, a ré apresentou no Conselho de Deontologia de Coimbra um aditamento ao processo disciplinar com o “nº …/2020-C/D”, na qual aponta ao autor factos ofensivos da sua honra pessoal e profissional, originando novos danos patrimoniais e não patrimoniais que o autor pretende ver ressarcidos por via da presente ação, considerando que o seu valor deverá ser fixado ulteriormente, tendo indicado, para o efeito, o montante de €8.000,00.

1.2 – Pessoal e regulamente citada, a ré apresentou, além do mais, defesa por exceção, arguindo a exceção de litispendência por existir “(…) já uma ação a correr em Tribunal que versa sobre a mesma matéria da presente causa, o Processo n.º …T8LRA, que corre termos no Juízo Local Cível de Coimbra – J…”, pelo que “(…) apesar de o autor pretender autonomizar o denominado aditamento ao processo disciplinar, a verdade é que o mesmo não é mais do que um esclarecimento ao mesmo. (…) Pelo que, tal aditamento faz parte integrante do processo disciplinar”, sendo “(…) impossível dissociar o aditamento do processo disciplinar (…) Isto porque o mesmo não tem autonomia”.
Concluiu a ré existir identidade entre os sujeitos, a causa de pedir, e o pedido da presente ação e os inerentes ao processo nº …T8LRA, impondo-se, consequentemente, a sua absolvição da instância, por operar a exceção de litispendência.
A ré apresentou ainda outros fundamentos de defesa, sem relevo na apreciação do presente recurso.

1.3 – Exercendo contraditório relativamente à exceção da litispendência, pronunciou-se o autor por requerimento que apresentou em 16-03-2022 (referência 41643594), considerando  que no momento em que instaurou a ação que corre termos no Juízo Local Cível de Coimbra (J…) com o nº …T8LRA «(…) não podia saber que a ré iria reeditar o rol de ofensas a que deu a forma de “aditamento” da participação”».
Mais alegou serem diversos os factos em discussão em ambas as ações, considerando que naquela ação está em causa o facto de a ré ter apontado ao autor: “(…) uma deficiente preparação da ... defesa”, que “não respeitou as regras processuais”, “a ação… ter dado entrada fora do prazo ”, “não ter sido junta prova documental” e que “ nunca foi ao Tribunal de Cascais para consultar o processo”. Já a presente ação mostra-se fundamentada no facto de a ré ter apontado ao autor (no aditamento à participação disciplinar) “falta de profissionalismo” e “falta de caracter”.
Concluiu que a exceção de litispendência deveria ser julgada improcedente.

1.4 – Considerando que os presentes autos consubstanciavam uma “ação de honorários”, foi proferido, em 06-07-2022, despacho declarando o Juízo Local Cível de Cascais incompetente para conhecer a presente ação, de harmonia com o disposto no artigo 73º nº 1, CPC, tendo sido o autor convidado a indicar qual o processo a que os presentes autos deveriam ser apensos (referência 137495190).

1.5 – Reagindo a tal despacho, o autor do mesmo interpôs recurso tendo sido proferida por este Tribunal da Relação de Lisboa decisão que julgou parcialmente procedente o recurso, constando do seu dispositivo:
«a) Mantém-se a decisão recorrida na parte em que declara o Juízo Local Cível de Cascais incompetente, em razão do território, para dirimir o pleito;
b) Revoga-se a decisão recorrida na parte em que julgou “competente para conhecer dos autos um dos processos em que os serviços foram prestados, cabendo ao A. escolher o processo a que deve ser apensada a presente ação” e, outrossim, declaram-se os Juízos Locais Cíveis de Lisboa competentes para a tramitação e julgamento da presente ação declarativa de condenação».

1.6 – Remetidos os autos aos Juízos Locais Cíveis de Lisboa, foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada procedente a exceção de litispendência, tendo por base os seguintes fundamentos:
Vem a Ré B requerer a sua absolvição da instância nos presentes autos, com fundamento em exceção dilatória de litispendência, ao abrigo do n.º 2 do artigo 576.º do Código de Processo Civil (Requerimento com a Referência Citius 20398914, de 07.02.2023)
Alega, para o efeito, a pendência do Processo N.º …T8LRA, do Juízo Local Cível de Coimbra-J…, processo esse que, tal como os presentes autos, visa a indemnização do Autor no valor total de 8.000 euros ou outro valor a apurar em sede de execução de sentença, relativo aos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pela queixa apresentada pela Ré no dia 6 de julho de 2020 junto do Conselho da Ordem dos Advogados, queixa esta relativa ao exercício de patrocínio deficiente e ilegal pelo Autor no âmbito dos Processos N.º …T8CSC, …T8CTX, …T9CSC e no Processo de Inventário n.º ….
Por sua vez, a Autora pugna pela improcedência da exceção dilatória de litispendência, alegando que as causas de pedir dos dois processos são distintas (Referência Citius 20667645, de 16.03.2023).
Cumpre assim apreciar e decidir.
A litispendência é, nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 278.º, do n.º 2 do artigo 576.º e da alínea i) do artigo 577.º do Código de Processo Civil, uma exceção dilatória que conduz à absolvição do Réu da instância. Ademais, do n.º 1 do artigo 582.º do Código de Processo Civil, tal exceção é conhecida e provoca a absolvição da instância na ação na ação proposta em segundo lugar, ou seja, na ação para a qual o réu foi citado posteriormente.
No que respeita ao conceito de litispendência, da conjugação do n.º 1 do artigo 580.º com o artigo 581.º do Código de Processo Civil, decorre que a litispendência pressupõe a existência de uma tríplice identidade- identidade de sujeitos, pedido e de causa de pedir-entre duas ações pendentes. A este propósito cumpre aludir, a título de exemplo, para a jurisprudência constante dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de outubro de 2022 (Processo N.º 474/20.3YHLSB-L1-PICRS, Sérgio Rebelo) e do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de julho de 2017 (Processo N.º 1220/15.9T8STR.E1.S1, Olindo Geraldes), disponíveis em www.dgsi.pt, segundo os quais: 1- a identidade de sujeitos pressupõe que as partes são, nas duas ações, as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, 2- a identidade de pedidos depende da circunstância de efeito prático-jurídico que o Autor pretende atingir com as duas ações ser o mesmo e 3- a identidade da causa de pedir ocorre quando o facto jurídico de que deriva a pretensão do Autor nas duas ações é o mesmo.
Compulsados os presentes autos, verifica-se que, no presente processo e no Processo N.º …T8LRA, os sujeitos são os mesmos (A como Autor e B como Ré), sendo também idêntico o pedido destas duas ações (condenação da Ré no pagamento da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que venham a liquidar-se no futuro em execução de sentença que, provisoriamente, se fixam em €8.000,00 ou outra que o tribunal entenda atribuir, a título de compensação).
No que respeita à causa de pedir das duas ações, esta também é a mesma: responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito por ofensa ao bom nome do Autor (artigo 484.º do Código Civil), causada pela apresentação de queixa pela Ré junto do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados contra o Autor no dia 6 de julho de 2020, relativo ao exercício de patrocínio deficiente e/ou ilegal da mesma no âmbito dos Processos N.º …T8CSC da Instância Central Cível de Cascais, …T8CTX do Juízo Local Cível de Cascais-J... e do Processo nº …T9CSC dos Serviços do Ministério Público da Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, e no Processo de inventário nº …do Cartório Notarial de C.
Ainda que o Autor pretenda autonomizar o aditamento ao processo disciplinar, alegando que nesta ação a causa de pedir e esse aditamento e não o processo disciplinar, a verdade é que tal aditamento faz parte integrante do processo disciplinar e da dinâmica natural da sua tramitação, não podendo dele ser desassociado e como tal integra a mesma causa de pedir.
Na verdade, as diligências realizadas ou a realizar com vista à organização da sua defesa, designadamente, deslocações, foram e serão no âmbito do processo disciplinar, não se afigurando sequer possível autonomizar essas diligências, no âmbito de uma única tramitação processual.
Verifica-se, desta forma, a tríplice identidade constante do n.º 1 do artigo 581.º do Código de Processo Civil (identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir) entre a presente ação e o Processo N.º …T8LR
Ademais, a Ré foi citada para os presentes autos no dia 7 de janeiro de 2022, tendo sido citada para o Processo n.º…8LRA em momento anterior (dia 8 de setembro de 2020).
Assim sendo, existe uma relação de litispendência entre o presente processo e o Processo n.º …T8LRA, devendo a exceção dilatória de litispendência ser deduzida e conhecida nos presentes autos, enquanto processo para o qual a Ré foi citada posteriormente, nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 582.º do Código de Processo Civil.
Deve, desta forma, a exceção dilatória de litispendência deduzida pela Ré ser julgada procedente e a mesma absolvida da instância com tal fundamento, nos termos conjugados da alínea e) do n.º 1 do artigo 278.º, dos n.ºs 1 e 2 do artigo 576.º e da alínea i) do artigo 577.º do Código de Processo Civil.
DECISÃO
Nestes termos, julgo procedente a exceção dilatória de litispendência deduzida pela Ré e a pretendida absolvição da instância nesta sede. Notifique. Custas pelo Autor, enquanto parte que deu causa à presente ação (n.º 1 do artigo 527.º do Código de Processo Civil)”.

2 - Não se conformando com a decisão proferida, o autor da mesma interpôs recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que, julgando improcedente a exceção de litispendência, ordene o prosseguimento dos autos, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem:
1ª. Contra o doutamente decidido, não se verifica a exceção da litispendência invocada pela ré e confirmada pela sentença em recurso. Vejamos:
2ª. A ré/recorrida começou por apresentar, no dia 08/07/2020, no Conselho Deontológico de Coimbra da Ordem dos Advogados, uma participação contra o autor porquanto, com referência ao processo instaurado com o nº …T8LRA de distribuição no Juízo Local Cível de Coimbra – Juiz …, ele teria violado, no exercício do mandato conferido para o patrocínio de diversos processos, um conjunto de deveres deontológicos, designadamente com “uma deficiente preparação da ... defesa ”, por “não respeitar as regras processuais “, “ a ação… ter dado entrada fora do prazo ”, “não ter sido junta prova documental ”e “ nunca ter ido ao Tribunal de Cascais para consultar o processo ” .
3ª. Mais tarde, no dia 02/09/2020 [na realidade em 02-11-2021, como resulta da consulta do documento em questão, correspondendo a data referida pelo recorrente, por manifesto lapso, à da interposição da ação nº …T8LRA – parênteses da relatora], dirigindo-se ao mesmo órgão da Ordem dos Advogados, a ré invocou, reportando-se ao autor, para além doutras situações, algumas novas outras reputadas de falsas, atribuindo-lhe os epítetos de “falta de profissionalismo” e “falta de carácter”, o que determinou a instauração deste processo (judicial).
4ª. Na contestação viria a ré a deduzir a exceção de litispendência por ter considerado que “a causa de pedir, o pedido e os fundamentos são os mesmos” nas duas ações, reputando esta queixa como meramente adicional ou esclarecedora da participação inicial e, portanto, sem autonomia relativamente àquela.
5ª. Por razões de economia processual, no dia 16/03/2020, o autor impetrou, previamente à realização da audiência prévia e de julgamento (como seria regimental), um requerimento de resposta à deduzida exceção expendendo que o alegado não tinha qualquer rigor factual nem técnico-jurídico porquanto, por um lado, os factos carreados pela ré eram não só novos como falsos e ofensivos (donde o pedido de nova indemnização formulado); por outro lado, eram também radicalmente diferentes, num e noutro processo, razões porque inexistiria qualquer identidade da causa de pedir e dos seus fundamentos, sendo também diversas as suas consequências.
6ª. Suportou-se este requerimento no facto de no Parecer do Conselho Superior da Ordem dos Advogados de 06/12/2023 constar que a ré viria mais tarde a acrescentar nova factualidade à sua primitiva participação fazendo novas imputações (relacionadas com a falta de profissionalismo e de carácter do autor) e, além do mais, juntando novos documentos (carta de honorários, cópia de um processo comum e da notificação de uma injunção) que continham factos não considerados na queixa inicial, o que demonstra à evidência a falta de identidade dos factos alegados nas duas ações.
7ª. Embora tenha mais a ver com a procedência dos pedidos do que propriamente com o julgamento da exceção, não pode deixar de consignar-se o segmento do relatório do referido Parecer de que consta que “NÃO FOI PRODUZIDA PROVA QUE DEMONSTRE A EXISTÊNCIA DE VIOLAÇÃO DE DEVERES DEONTOLÓGICOS”, o que é elucidativo do modus operandi, da desorientação, má fé e total falta de razão da ré.
8ª. Sem qualquer rigor, a sentença recorrida declarou que, nos vertentes autos, os sujeitos processuais são os mesmos do Proc. nº …T8LRA do Juízo Local Cível de Coimbra – J3, sendo também idêntico o pedido formulado nas duas ações e igualmente a mesma a causa de pedir que concretiza no seguinte: a responsabilidade civil extracontratual por facto ílícito (ofensa ao bom nome do autor), o que salvo o devido respeito se afigura paradoxal.
9ª. Refere ainda o aresto em impugnação que ao autor é vedado autonomizar o aditamento e os esclarecimentos constantes da segunda queixa por fazerem parte do processo disciplinar inserindo-se na sua tramitação e dele não podendo ser dissociado, integrando, como tal, a causa de pedir.
10ª. Salvo melhor juízo, confundiram-se os factos dos autos com os fundamentos da responsabilidade civil extracontratual, unificando-se este instituto para os dois casos e concluindo-se pela verificação da referida exceção de litispendência.
11ª. O recorrente não pode acolher a tese defendida pela sentença recorrida que no seu processo lógico-dedutivo cometeu erros crassos no tocante aos factos carreados nas duas peças processuais ou nos documentos juntos, unificando-os na sua valoração pelo simples facto de terem sido vertidos no mesmo processo disciplinar o que comporta insanável confusão.
12ª. Na realidade, os factos e imputações formuladas pela ré, são diversas num e noutro processo, para o que bastará compulsar o teor de cada uma das queixas apresentadas, não podendo olvidar-se que a causa de pedir é o facto jurídico invocado pelo autor como fundamento da sua pretensão, em cada uma das ações, pelo que é patente que, mesmo à vista desarmada, falta a exigida identidade dos factos.
13ª. Parece igualmente incontroverso que a nova participação da ré deu azo à realização de novas diligências de defesa, de novos contactos com o processo disciplinar e a produção de mais e diferente prova. O processo disciplinar é o mesmo, mas as consequências quer em termos de organização da defesa quer de despesas e danos são totalmente diversas.
14ª. De resto, fácil será concluir que são diferentes os factos e fundamentos de uma e outra ação; o autor, que não tem poderes divinatórios, não podia prever, quanto propôs o processo inicial, que a ré viesse a denunciar outros factos atentatórios da sua honra e consideração não sendo de admitir que o Tribunal a quo possa aceitar que as novas imputações formuladas fiquem sem qualquer censura ou tutela jurídica.
15ª. Pressupondo a litispendência a repetição de uma causa, a identidade objetiva para efeitos deste instituto é reportada, não ao objeto das pretensões deduzidas, mas ao “thema decidendum”, ao objeto da sentença que seria proferida no âmbito do processo inicialmente proposto e que pode ou não coincidir com o objeto da ação formulada posteriormente. Assim, não ocorrem in casu todos os pressupostos necessários à verificação da litispendência, razão pela qual o tribunal recorrido não podia ter julgado procedente a invocada exceção.
16ª. O Mmº Juiz a quo cometeu um erro de julgamento (error in judicando) resultante da incorreta apreciação da matéria de facto com a consequente distorção da realidade factual (error facti) e também na aplicação do direito (error júris), decidindo, assim, contra lei expressa e factos apurados o que conduz a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou normativa do caso.
17ª. A decisão recorrida violou os normativos dos artigos 4º, 567º, nº 2, 577º, 580º, nº 1, 581º e alínea c) do nº 1 do CPC pelo que deve ser revogada, ordenando-se o prosseguimento da ação, como é da mais elementar JUSTIÇA”

3. A ré não apresentou contra-alegações.

4. Foi admitido o recurso como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.

5. Remetidos os autos a este tribunal em 21-05-2024, requerido e obtido o acompanhamento eletrónico do processo nº …T8LRA pendente no Juízo Local Cível de Coimbra (Juiz 3), e inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.

II – QUESTÕES A DECIDIR

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Consequentemente, nos presentes autos, constitui questão a decidir a de saber se se verifica ou não a exceção de litispendência.
 
III – FUNDAMENTAÇÃO
A – Os factos
A decisão recorrida considerou operar a exceção de litispendência entre o presente processo e o processo n.º …T8LRA, tendo por base os fundamentos já transcritos no relatório desta decisão.
Ponderando o acordo colhido dos articulados, a prova documental carreada para o processo, os elementos constantes quer da decisão recorrida, quer da consulta eletrónica dos autos, são os seguintes os factos a considerar:
- Em agosto de 2017 a ré mandatou o autor, advogado de profissão, com vista ao seu patrocínio em diversos processos (processo nº …T8CSC da Instância Central Cível de Cascais, processo nº …T8CTX do Juízo Local Cível de Cascais - J..., processo nº …T9CSC dos Serviços do Ministério Público do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste e processo de inventário nº … do Cartório Notarial de C.);
- Tal relação de mandato cessou em maio de 2020, por iniciativa da ré;
- Em 06/07/2020, a ré apresentou ao Presidente do Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados queixa contra o autor, manifestando a pretensão de ser indemnizada em € 80.000,00, considerando ter sido penalizada pelo mau serviço por ele prestado, alegando, no essencial:
. O autor patrocinou-a em ação que estava a correr termos, em setembro de 2017, no Juízo Central Cível de Leiria (Juiz …) com o nº …T8 na qual ficou vencida em resultado de uma deficiente preparação da sua defesa;
. Também no recurso interposto de tal decisão, a ré ficou vencida constando do acórdão que o advogado da recorrente não respeitou as regras processuais e que não foi produzida qualquer prova a favor da recorrente;
. A ação de prestação de contas instaurada pela ré (patrocinada pelo autor) no Juízo Local Cível de Cascais que correu termos com o nº …T8CTX, foi julgada improcedente por ter sido apresentada fora de prazo e por o seu mandatário não ter apresentado qualquer prova dos seus fundamentos;
. Encontra-se a decorrer processo crime contra o ex-marido da ré (por falsificação de assinaturas, falsificação de documentos, apropriação de bens que pertencem à ré) no Tribunal de Cascais, não lhe tendo o autor fornecido qualquer informação sobre o mesmo, nem se tendo deslocado àquele tribunal para consultar o processo;
- Com data de 02/11/2021, viria a ré a apresentar no Conselho de Deontologia de Coimbra um “aditamento processo disciplinar nº …” dirigido à Drª …, Presidente do Conselho de Deontologia de Coimbra, da Ordem dos Advogados, do mesmo constando:
“Na sequência da minha missiva no passado dia 16 de abril do corrente, em que me foi solicitado a junção de mais elementos, venho, por este meio, esclarecer ponto nº 4, o qual encontra-se suscetível de alguma confusão:
Em setembro de 2020, no seguimento da minha queixa à ordem, o Dr.ª Gaspar intentou uma ação cível contra mim.
No dia 19 de setembro desse ano, sou contactada pela minha atual advogada, na medida em que este pedia uma compensação para retirar a ação (…)
Assim, era pretensão do Dr. A em troca da desistência das duas ações e da desistência da nossa queixa na ordem, que lhe pagássemos 4.000 euros. Obviamente que não aceitamos.
Considero que mais do que a falta de profissionalismo demonstrada durante [a] minha representação, o mais grave é a falta de carater manifestado, nomeadamente ao intentar contra mim dois processos (um cível e uma injunção) após queixa na ordem, assim como as compensações pedidas para desistir da mesma”;
- A queixa e o aditamento deram origem a processo disciplinar que correu os seus termos no Conselho de Deontologia de Coimbra, da Ordem dos Advogados, com o nº …, no âmbito do qual veio a ser proferida decisão que determinou o seu arquivamento;
- O autor instaurou contra a ré o processo nº ….T8LRA que corre termos no Juízo Local Cível de Coimbra (Juiz…, aí alegando, designadamente:
A ora ré imputou ao autor a prática de atos e omissões violadores da lei no exercício das suas funções, com a clara intenção de ofender a sua honra, consideração, credibilidade e o seu prestígio, inerentes à sua atuação profissional como advogado (artigo 13º da petição inicial);
.“A conduta da ré, designadamente a apresentação da participação junto da Ordem dos advogados, desencadeou um processo de inquérito contra o autor, que foi e será apto a desencadear o acompanhamento com a tramitação desse inquérito, a necessidade de deslocação à ordem, perdas de tempo daí emergentes, a organização da sua defesa, junção de documentos, deslocação de testemunhas, bem como das demais decorrentes dum processo daquela envergadura (artigo 22º da petição inicial);
. “Tais despesas são configuráveis como danos patrimoniais, que só a final poderão ser quantificáveis com rigor, que provisoriamente se fixam em 3.000,00 euros.” (artigo 23º da petição inicial)
. “A ré, agiu de vontade livre e consciente, tendo perfeito conhecimento da ilicitude da sua conduta e que a mesma era proibida e punida por lei, ao imputar factologia que bem sabia não ser verdade, que preocuparam o autor e retiraram a sua tranquilidade e capacidade para o exercício da sua vida com qualidade, com o propósito de o ofender na honra, consideração e dignidade pessoal e profissional do ora autor” (artigo 25º da petição inicial);
. “Por todo o exposto, considerada a prática jurisprudencial seguidas, regras da boa prudência, do senso prático e a criteriosa análise das realidades da vida, reputa-se adequado, em juízo de equidade, peticionar pela compensação dos danos não patrimoniais, a quantia de 5.000,00 euros ou outra que o Tribunal equitativamente fixar ou a liquidar em execução de sentença” (artigo 26º da petição inicial)
“Nestes termos e nos demais de direito aplicáveis e doutamente supridos, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e consequentemente, a ré ser condenada no pagamento ao ora autor da indemnização por danos morais e patrimoniais que vierem a liquidar-se no futuro em execução de sentença, que provisoriamente se fixam em 8.000,00 euros, ou outra que o Tribunal venha a liquidar , a título de compensação pelos danos sofridos e suportados pelo autor (artigo 26º)”;
- Nos presentes autos, o autor alega nos artigos 1º a 7º da petição inicial que:
. No decurso do mês de agosto de 2017, foi mandatado pela ré para o patrocínio de diversos processos judiciais (processo nº …T8CSC da Instância Central Cível de Cascais, processo …T8CTX do Juízo Local Cível de Cascais-J…, do processo nº …T9CSC dos Serviços do Ministério Público da Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste e processo de inventário nº 1…do Cartório Notarial de C;
. Tal relacionamento profissional viria a cessar no dia 08/05/2020 por a ré ter informado o autor que prescindia dos seus serviços;
. No dia 06/07/2020, a ora ré apresentou ao Presidente do Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados queixa contra o autor que, considerando que as afirmações ali efetuadas ofendiam a sua honra, bom nome, dignidade pessoal e profissional, contra ela instaurou a ação nº …T8LRA;
- Já nos artigos 8º a 12º da petição inicial apresentada nestes autos, o autor alega que:
. Com data de 02/11/2021, a ré apresentou no Conselho de Deontologia de Coimbra um “aditamento processo disciplinar nº …, no qual alterou a verdade dos factos, dizendo que o autor tinha pedido à sua mandatária “uma compensação” para retirar a ação, no valor de € 2.000,00, que instaurara uma injunção referente a honorários pelos serviços prestados no valor de € 11.000,00, quando no momento da cessação do mandato informara que “estava tudo bem” e que “nada lhe era devido”;
. Em tal aditamento foi ainda referido que o autor se propôs desistir dos autos de injunção, caso a ré desistisse da queixa apresentada na Ordem dos Advogados, desde esta lhe pagasse a importância de €4.000,00, e foi-lhe imputado “falta de profissionalismo” no decurso do patrocínio que exerceu em sua representação e “falta de carácter” por ter intentado um processo cível e uma injunção após a queixa na Ordem, assim como “as compensações ”  pedidas para colocar termo ao processo.
- Nesta ação o autor terminou formulando o seguinte pedido:
“Nestes termos e nos demais de direito aplicável e doutamente supridos, deve a vertente ação ser julgada procedente e provada e, consequentemente, a ré ser condenada no pagamento ao autor da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais que venham a liquidar-se no futuro em execução de sentença que, provisoriamente, se fixam em €8.000,00 ou outra que o tribunal entenda atribuir, a título de compensação pelos danos sofridos pelo autos, com as inerentes consequências”.
- A ação nº …T8LRA foi instaurada pelo aqui autor contra a aqui ré em 02-09-2020, tendo esta aí sido citada no dia 09-09-2020;
- Os presentes autos foram instaurados em 03-01-2022 e a ré foi citada em 07-01-2022.
*
B- O direito
Nos presentes autos, a controvérsia radica na verificação (ou não) da exceção de litispendência entre a presente ação e a ação nº 1…T8LRA, pendente nos Juízos Locais Cíveis de Coimbra (Juiz …).
A litispendência constitui exceção dilatória que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa – cfr. artigos 576º, nºs 1 e 2 e 577º, i), CPC. Trata-se de exceção que deve ser objeto de conhecimento oficioso pelo tribunal e que pressupõe a repetição de uma causa – cfr. artigos 578º e 580º, nº 1, CPC. Nos termos desta última norma: “se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência”. Por outro lado: “Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir” - cfr. artigo 581º, nº 1, CPC.
Na realidade, existe litispendência quando o conflito em discussão nos autos constitui o objeto de outra ação judicial, ainda pendente, devendo tal exceção ser deduzida na que foi proposta em segundo lugar – cfr. artigo 582º, nº 1, CPC. Por outro lado, “considera-se proposta em segundo lugar a ação para a qual o réu foi citado posteriormente” ou, em caso de citação efetuada em ambas as ações no mesmo dia, haverá que atender à ordem de entrada das respetivas petições iniciais – cfr. artigo 582º, nºs 2 e 3, CPC.
Na base da exceção de litispendência (assim como na exceção de caso julgado) está a ideia de “(…) repetição, que surge quando os elementos definidores das duas ações são os mesmos. A exceção é feita valer na ação que (…) não deve prosseguir (…) além de um objetivo manifesto de economia processual, as exceções da litispendência e do caso julgado visam evitar que a causa seja julgada mais do que uma vez, o que brigaria com a força do caso julgado (…)quando ainda há mera litispendência, trata-se  de evitar que duas decisões sejam proferidas ou que se tenha de aguardar o momento em que a decisão seja proferida e transite numa das causas para que a outra seja impedida de prosseguir” – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[1].
A noção de “repetição da causa” mostra-se consagrada no artigo 581º, CPC, que sob a epígrafe “Requisitos da litispendência e do caso julgado”, dispõe:
1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2- Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.
A litispendência deve ser enquadrada no conceito de prejudicialidade, considerando-se que uma causa é prejudicial relativamente a outra quando “(…) o desfecho possível de uma das causas seja suscetível de fazer desaparecer o fundamento ou razão de ser da outra (…) não basta que o resultado possível de uma ação seja suscetível de conduzir à impossibilidade ou inutilidade de outra causa, mas torna-se necessário que exista uma precedência lógica entre o fim de uma ação e o da outra, o que deverá ser perseguido no ângulo de conexão  das respetivas relações materiais controvertidas” - Manuel Tomé Soares Gomes[2].
Haverá que ponderar que a ré foi demandada pelo aqui autor na ação …, na qual, é requerida a sua condenação no pagamento de indemnização provisoriamente fixada em €8.000,00, relativa a danos morais e patrimoniais a liquidar ulteriormente, tendo por fundamento a queixa que apresentou contra o autor em 06/07/2020 na Ordem dos Advogados.
Nos presentes autos, o autor deduziu contra a ré pedido idêntico (pagamento de indemnização a liquidar ulteriormente, provisoriamente fixada em €8.000,00), tendo por fundamento o teor do “aditamento” ao processo disciplinar nº …, apresentado pela autora em 02-11-2021.
Devendo inequivocamente afirmar-se a identidade das partes em ambas as ações, julgamos que o mesmo não pode ser afirmado relativamente ao pedido e à causa de pedir.
O pedido, que nos termos do disposto nos artigos 3º, nº 1, e 552º, nº 1, alínea e), CPC, deve ser formulado pelo autor na petição inicial, consiste na providência processual requerida ao tribunal para tutela da “(…) situação jurídica ou do interesse (…) materialmente protegido”- Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[3]. Para Alberto dos Reis[4] o pedido é a “enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar”, considerando ainda aquele autor que identidade de objeto equivale a identidade de pedido, equiparando-se esta à identidade de providência jurisdicional solicitada pelo autor.
Ainda na definição destes autores, a causa de pedir consiste no facto constitutivo “da situação jurídica material que quer fazer valer[5]. Assim, a causa de pedir será constituída “(…) pelo facto ou pelos factos concretos que preenchem a norma jurídica da qual o Autor faz derivar os direitos que, segundo ele, conduzirão à procedência do pedido” – Acórdão da Relação de Coimbra de 10-07-2019[6]. Nos termos do disposto nos artigos 5º, nº 1, 186º, nº 2, alínea a) e 552º, nº 1, alínea d), CPC, incumbe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir. Como resulta do disposto no artigo 581º, nº4, 1ª parte CPC: “Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico”. De harmonia com a teoria da substanciação adotada pela nossa lei adjetiva ao autor incumbe a alegação dos factos concretos constitutivos do direito que pretende fazer valer – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/1/2023[7]
Ora, inequivocamente, o autor enquadra as pretensões deduzidas em ambas as ações no regime da responsabilidade civil extracontratual, cuja causa de pedir, sendo complexa se extrai do disposto no artigo 483º, nº 1, do CC. Efetivamente, nesta norma estão consagrados os pressupostos de que depende o direito de indemnização assente nesta modalidade de responsabilidade civil, que são: o facto; a ilicitude; a imputação subjetiva do facto ao lesante (culpa); o dano; e o nexo de causalidade entre o facto e o dano. Só a reunião destes elementos poderá, pois, constituir o lesante na obrigação de indemnizar o lesado.
As expressões que o autor considerou ofensivas da sua honra e dignidade profissionais que fundamentam o pedido indemnizatório deduzido na ação nº …T8LRA constam da participação que a ré dirigiu à Ordem dos Advogados em 06-07-2020, na qual imputa ao aqui autor um patrocínio deficiente, manifestado nos seguintes processos:
- ação … do Juízo Central Cível de Leiria (Juiz …);
- ação de prestação de contas instaurada pela ré, que correu termos no Juízo Local Cível de Cascais com o nº …;
- processo crime contra o ex-marido da ré, que o autor não consultou e sobre o qual não deu qualquer informação à ré.
No âmbito dos presentes autos, o autor invoca como causa de pedir as expressões que a autora fez constar do aditamento ao processo disciplinar nº …”, apresentado em 02-11-2021, com o seguinte teor: “Em setembro de 2020, no seguimento da minha queixa à ordem, o Dr. A intentou uma ação cível contra mim.
No dia 19 de setembro desse ano, sou contactada pela minha atual advogada, na medida em que este pedia uma compensação para retirar a ação (…)
Assim, era pretensão do Dr. A em troca da desistência das duas ações e da desistência da nossa queixa na ordem, que lhe pagássemos 4.000 euros. Obviamente que não aceitamos.
Considero que mais do que a falta de profissionalismo demonstrada durante [a] minha representação, o mais grave é a falta de carater manifestado, nomeadamente ao intentar contra mim dois processos (um cível e uma injunção) após queixa na ordem, assim como as compensações pedidas para desistir da mesma”.
Ora, tais imputações já não se relacionam propriamente com as deficiências de patrocínio que a aqui ré apontou na participação que apresentou em 06-07-2020, mas sim com uma atuação posterior do autor. Ou seja, no “aditamento” à participação disciplinar, a ré informa a Ordem dos Advogados que na sequência da participação por si dirigida a tal organismo, o autor instaurou contra si duas ações e manifestou aceitar um montante pecuniário como contrapartida de uma desistência das mesmas, bem como de desistência da participação disciplinar.
Em face do exposto, ainda que no domínio do mesmo enquadramento jurídico (responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos), subjacentes a ambas as ações estão factos diversos, incluindo no domínio temporal (sendo posteriores os que se discutem nesta ação), originando diversas pretensões indemnizatórias.
Por isso, afigura-se que inequivocamente deve ser afirmada a diversidade das causas de pedir subjacentes à presente ação e à ação nº …T8LRA.
Por outro lado, não pode afirmar-se a identidade dos pedidos nos termos subsumíveis à litispendência. De facto, ainda que computados no mesmo montante em ambas as ações, na perspetiva do autor, o valor é devido para cada um dos factos ilícitos que imputa à ré, não podendo afirmar-se que o pedido deduzido nestes autos está contido no que foi formulado na ação …T8LRA, pois embora deva ser liquidado ulteriormente, sempre estará limitado pelos factos ali em discussão.
Acresce que a apreciação de ambas as ações não envolve qualquer risco de uma das decisões contradizer a outra, dada a diversidade subjacente aos factos ilícitos em discussão. E o certo é que, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-2020: «O critério formal da litispendência e do caso julgado, assente na tríplice identidade dos elementos que definem a ação, do art.º 581.º do CPC, deve interpretar-se de acordo com a diretriz substancial traçada no n.º 2 do art.º 580.º, em que se diz que “tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior”»
Pelo exposto, afigura-se que a alegada ilicitude do comportamento da ré não pode, nem deve ser unificada apenas porque a sua participação inicial, e o “aditamento” foram objeto de apreciação unitária, num único processo disciplinar.
Efetivamente, há que reiterar que na ação …T8LRA a participação da ré tem por base a atuação profissional do autor nos processos aí identificados. Na presente ação, está em causa a conduta do autor após tal participação, designadamente os factos de ter, na sua sequência, instaurado ações judiciais e ter sugerido o pagamento pela ré de determinado montante com vista à sua desistência em tais ações
Assim, estando em causa relações jurídicas diversas, não há qualquer repetição/duplicação de causas que justifique que, em nome da boa administração da justiça e da segurança e da certeza visadas pela ordem jurídica, o autor fique coartado de obter a apreciação jurisdicional das pretensões que deduziu em cada uma das ações, o que, a ocorrer, se repercutiria ao nível da qualidade do seu direito de acesso à justiça, com consagração constitucional no artigo 20º CRP.
Conclui-se, em consequência, que a diversidade das causas de pedir e dos pedidos subjacentes a ambas as ações obsta à verificação da exceção de litispendência, entre a presente e a ação …T8LRA. Assim, importa determinar a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que, julgando improcedente a exceção da litispendência, ordene a prossecução dos autos.

Revelando-se procedente o recurso, as custas serão suportadas pela recorrida, dado que, apesar de não ter contra-alegado, invocou a exceção de litispendência, cuja procedência originou o presente recurso – cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2, CPC

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III – DECISÃO
Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e, em consequência:
- Julga-se improcedente a exceção de litispendência invocada pela ré;
- Determina-se o prosseguimento dos autos.

Custas da apelação pela recorrida – cfr. artigo 527º, nºs 1 e 2, CPC.

D.N.

Lisboa, 4 de julho de 2024
Rute Sobral
António Moreira
Arlindo Colaço Crua
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[1] Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, pág. 590
[2] Da dinâmica geral do processo civil – Início, desenvolvimento, crises e formas de extinção da instância – Cadernos do Cej, Lisboa, 1994, pág. 40.
[3] Código de Processo Civil anotado, 23ª edição, 2º Vol., pág. 352.
[4] Código de Processo Civil Anotado, III Vol.  pág. 340
[5] Ob. Cit. Pág. 353.
[6] Proferido no processo nº 5149/19.3YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt
[7] Proferido no processo nº 2384/18.0T8STR.E1.S1, disponível em www.dgsi,pt