Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | CALHEIROS DA GAMA | ||
Descritores: | PANDEMIA COVID 19 ESTADO DE EMERGÊNCIA VIOLAÇÃO DO DEVER GERAL DE RECOLHIMENTO DOMICILIÁRIO CRIME DE DESOBEDIÊNCIA | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 03/11/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Sumário: | Cometeu um crime de desobediência simples, previsto e punido no artigo 348.º, n.º 1 al. b) do Código Penal, por referência à violação do artigo 5.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março (que regulamentou a aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República a 18 de março de 2020) a conjugar com o artigo 7.º da Lei n.º 44/86 (Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência), o cidadão que tendo sido interceptado pela autoridade policial a 27 março de 2020 em violação do dever geral do recolhimento domiciliário, sendo-lhe nessa ocasião ordenado que se deslocasse para o seu domicílio o mais rápido possível (o que acatou) e mais notificado, nesse momento, para nele permanecer, com a cominação de que não o respeitando incorreria no crime de desobediência, é encontrado dois dias depois, durante nova acção de fiscalização da PSP, na via pública, a mais de dois quilómetros da sua residência, a conviver com um grupo de indivíduos, ouvindo música, a fumar e a beber, bem sabendo que a sua saída da residência nessas circunstâncias não estava enquadrada em nenhuma das exceções legalmente estabelecidas. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório 1. No âmbito do processo abreviado n.º 166/20.3PCLRS, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures – J2, foi submetido a julgamento, com intervenção de Tribunal Singular, o arguido AA, cidadão de nacionalidade portuguesa nascido em …. de ……… de 2001, na freguesia de Loures, concelho de Loures, filho de …………… e de ……………., no estado civil de solteiro, estudante, com domicílio na Rua ………………….., Loures, sendo, por sentença proferida em 15 de Outubro de 2020, absolvido “da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º n.º 1 al. a) e b) do Código Penal, com referência ao artigo 7º da Lei n.º 44/86 (Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência) e artigo 5º do Decreto n.º 2-A/2020 que lhe vinha imputado.” 2. O Ministério Público, inconformado com a mencionada decisão, interpôs recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões: "a) É o presente recurso interposto da douta sentença que absolveu o arguido da prática de um crime um crime de desobediência, por violação do dever geral de recolhimento domiciliário, previsto e punido pelas disposições conjugadas do art.º 348º, n.º 1, al.s a) e b), do Código Penal, conjugado com os art.ºs 5º do Decreto 2-A/2020, de 20/3, e com o art.º 7º, da Lei 44/86, de 30/9, por entender, grosso modo, que as Forças de Segurança não têm o poder para impor o cumprimento aos cidadãos do dever geral de recolhimento domiciliário, previsto nos termos do art.º 5º, do Decreto 2-A/2020, através da cominação da prática de um crime de desobediência, entendendo que tal normativo, o art.º 5º do Decreto 2-A/2020, não cumpre o princípio da tipicidade imposto às normas com alcance penal e que a cominação, a ser feita e só depois de esgotados todos os mecanismos de cariz essencialmente pedagógico para fazer o cidadão recolher ao seu domicílio, terá de se aplicar àquela circunstância em concreto, não podendo dispor para o futuro. b) Cremos ser, antes de mais, nula a decisão que absolveu o arguido da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art.º 348º, n.º 1, a) e b), do Código Penal, existindo uma contradição insanável entre os factos considerados provados e os factos considerados não provados c) Esta contradição insanável caberá na previsão do art.º 410º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, que dispõe que o recurso pode ser interposto, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, quando exista uma “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”. d) Entendemos que a decisão em recurso não poderia dar como provada e não provada a factualidade acima transcrita nos pontos 7, 8 e alíneas b) e c). e) Não poderia dar-se simultaneamente como provado que o arguido compreendeu a ordem de regressar ao seu domicílio e de nele permanecer de futuro – ordem esta que comporta necessariamente dois comandos distintos, pois que o arguido devia, no momento da abordagem a 27/3, regressar a casa e, futuramente, nela permanecer – e que, dois dias volvidos, numa nova situação de permanência na rua sem motivo justificativo, já não soubesse que não podia permanecer na via pública sem motivo atendível, pelo que haverá que concluir que o mesmo agiu de modo a contrariar o segundo comando de que foi destinatário, e que compreendeu. f) Conforme resulta da sentença agora em crise, no ponto 7 da factualidade provada é considerado que o arguido recebeu uma ordem composta por dois segmentos: deslocar-se de imediato para o seu domicílio e nele permanecer. g) A indicação de ter de permanecer no seu domicílio só pode dispor para o futuro pois não faz sentido pedir a um cidadão que retorne ao seu domicílio e que simultaneamente não se proíba o mesmo de no futuro voltar a fazer o mesmo, ou seja, voltar a sair sem motivo atendível, sendo certo que o arguido percebeu ambas as ordens, pois não só regressou ao seu domicílio no dia 27/3 como entendeu que de futuro teria “problemas”, na expressão do mesmo, se fosse visto novamente a circular sem qualquer justificação. h) Se uma ordem, ainda que composta por dois comandos, dispondo para o momento em que é dada e para o futuro, é entendida, como parece decorrer da factualidade provada, não é possível considerar que, dois dias volvidos, o arguido já não compreendesse o alcance da ordem, de que não podia voltar à via pública sem motivo legítimo, e que tinha compreendido dois dias antes. i) Nos termos do art.º 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando o recurso verse também sobre a matéria de facto, deve o recorrente indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e quais as concretas provas que impõem decisão diversa e em que sentido. j) Atenta a matéria de facto dada como provada, não podemos deixar, face às declarações do arguido e ao testemunho do Agente da PSP BB, de discordar do teor das alíneas a), b) e c) da sentença (factos não provados) quando compaginadas com o teor da prova produzida. k) - É verdade que não feita prova de que anteriormente ao dia 27/3 o arguido tivesse sido sensibilizado pela PSP ou outra força de segurança quanto à necessidade de permanecer no seu domicílio, nem tal foi sustentado na acusação pública – mas não é menos verdade que o arguido frequenta o 10º ano de escolaridade e que as recomendações quanto ao que era permitido ou não fazer no decurso do Estado de Emergência foram repetidas à exaustão nos meios de comunicação social, como é do conhecimento geral. l) - É verdade que no dia 27/3 o arguido não desobedeceu à primeira ordem que lhe foi dada, de regressar a casa, não havendo qualquer registo, na participação de fls. 8/11, de 27/3, de que não tenha acatado tal ordem, sendo mais um facto que não consta sequer da acusação pública; m) - É verdade que no dia 29/3 o arguido não foi novamente recomendado para recolher ao seu domicílio nem lhe foi feita nova cominação com a prática de um crime de desobediência se não regressasse ao seu domicílio de imediato, sendo verdade que quando disse ao Agente BB que dois dias antes já tinha sido notificado, em Odivelas, se procedeu de imediato à sua detenção – novamente não são factos que constem sequer na acusação pública n) - É verdade que o agente CC não se recordou de ter procedido à concreta notificação do arguido no dia 27/3, admitindo apenas que a fez, como o atesta fls. 12, e que era seu procedimento, como adiantou por estar em causa a liberdade das pessoas, esclarecer que os cidadãos que interpelava que deveriam manter-se em casa no futuro, explicar-lhes as circunstâncias básicas em que se podia sair de casa e informá-los que cometiam um crime se não o fizessem, sendo detidos pelos seus colegas se voltassem a ser encontrados sem motivo atendível na via pública. o) Não podemos deixar de considerar, e tal devia estar vertido na sentença, que o arguido no dia 29/3 estava numa situação exclusivamente de convívio na via pública com um grupo de outros três indivíduos, à porta de um prédio – inclusivamente a fumar, ingerir bebidas alcoólicas e a ouvir música (ainda que não através de colunas portáteis). p) - Que recolheu ao prédio, onde nenhum deles residia, com o propósito de não ser novamente interceptado pela PSP. q) - Que o arguido sabia, compreendera, que a ordem que foi emanada, de permanecer daí por diante no seu domicílio, era para ser obedecida, não podendo estar na via pública sem motivo atendível, ou, nas suas palavras, para “andar à toa”. r) - Que o arguido estava em clara desobediência a tal ordem de permanecer no seu domicílio, ordem que percebeu e que quis desrespeitar, agindo de modo livre e voluntário. s) - Que o arguido sabia que tal comportamento, manter-se na via pública sem motivo atendível a partir da notificação de fls. 12, teria consequências jurídicas. t) Sustentam estas nossas conclusões exactamente a audição do arguido, em sede de interrogatório e aquando das suas declarações finais, bem como o depoimento da testemunha BB. u) O arguido, que não está obrigado a falar a verdade, compreendeu a notificação de que foi alvo, de que não podia “andar por aí à toa”, que percebeu que se voltasse a ser encontrado na rua seria detido, motivo pelo qual foi, ao sabor das perguntas que lhe eram feitas, alterando a sua versão dos factos. v) Primeiro estava a trançar mas não o podia fazer na via pública porque precisava de sabão. w) Quando confrontado com o facto de ninguém morar naquele prédio de imediato recuou e disse que afinal estava no prédio, a trançar, porque percebeu que só não podia andar na via pública, que dentro do prédio não fazia mal. x) Isto para depois dizer que afinal foi para o prédio porque estava a chover, o que não corresponde à verdade, acabando por dizer que afinal estava a fumar, a beber e a trançar e que tinha saído de casa para ir cortar o cabelo – bem se sabendo que durante a declaração do Estado de Emergência os barbeiros e cabeleireiros estavam encerrados. y) o arguido apresentou não uma mas várias versões dos factos, sempre com o fito de fazer crer ao julgador que ignorava que não podia estar na via pública, usando até a pueril desculpa de que trançar no prédio não fazia mal porque o que fazia mal era fazê-lo na rua, admitindo que estava em convívio na via pública, o que a mera audição da prova permite clarificar. z) Assim deveria ter sido dado como provado que o arguido voltou a ser surpreendido na via pública, a conviver com um grupo de indivíduos, ouvindo música, a fumar e a beber, antes de se refugiar no interior de um prédio ante a presença da PSP. aa) Deveria ter sido dado como provado que o arguido sabia que não podia permanecer na via pública nas condições e pelas razões pelo que o fazia, bem sabendo que já havia sido devidamente advertido que caso adoptasse tal comportamento incorria na prática de um crime. bb) Por último, deveria ter sido dado como provado que, com a conduta descrita, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de não cumprir a ordem que lhe foi dada, bem sabendo que a mesma era legítima, emanava de autoridade competente e lhe devia obediência, sabendo, também, que a sua conduta era proibida e punível por lei penal, o que determinaria a condenação do arguido pelo crime de que vinha acusado. cc) Entendendo a Mm.ª Juíza a quo que não estavam preenchidos os elementos objectivos do crime de desobediência, previsto e punido pelo art.º 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal, por referência à violação do art.º 5º do Decreto 2-A/2020, de 20/3, foram ignorados as demais normas e o outro diploma em que o Ministério Público assentou o seu libelo acusatório. dd) Ainda que tal omissão de pronúncia possa não assumir o relevo de uma nulidade da sentença, prevista no art.º 379º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, não se pode ignorar que a legitimidade da cominação das condutas que violem o dever geral de recolhimento domiciliário, previsto no art.º 5º do Decreto 2-A/2020, não surge exclusivamente da aplicação isolada de tal diploma ou sequer da aplicação única do seu art.º 5º, pois que o mesmo surge enquadrado por um conjunto normativo pré-existente, onde se destaca a Lei 44/86, de 30/9, a qual não foi sequer considerada. ee) Face à recente situação de calamidade por pandemia, ante a propagação da doença contagiosa denominada Covid-19, foi declarado o Estado de Emergência e foi estabelecido o dever geral de recolhimento domiciliário, comum aos Decretos 2-A/2020, 2-B/2020 e 2-C/2020, seu art.º 5º, competindo às forças de segurança zelar e fiscalizar o cumprimento de tal dever, nos termos do art.º 32º do Decreto 2-A/2020. ff) O facto de estar na via pública em situação de convívio social com outros três indivíduos não é umas das excepções ao dever geral de recolhimento, nem, considerada a sua ratio, se pode considerar uma actividade de natureza análoga às demais elencadas, não se verificando qualquer motivo de força maior ou qualquer necessidade impreterível que tenha obrigado o arguido a tal conduta - art.º 5º, n.º 1, al. t). gg) As forças de segurança têm poder para, legitimamente, ordenar aos cidadãos em violação do dever geral de recolhimento domiciliário que retornem às suas residências. hh) A resistência e a desobediência a ordens legítimas das autoridades competentes, quando tal desobediência ou resistência implique uma violação dos deveres impostos no Decreto 2-A/2020, é sancionada nos termos da lei penal, nos termos do art.º 348º do Código Penal. ii) Sendo legítima a ordem para os cidadãos regressarem ao seu domicílio, a única questão juridicamente relevante é saber se as forças de segurança podem cominar a prática de um crime de desobediência para os cidadãos que sejam novamente fiscalizados em incumprimento de tal dever, podendo, nesse caso, proceder à sua detenção e apresentá-los em Tribunal para serem sujeitos a julgamento sob a forma de processo sumário. jj) No caso concreto, resultou provado que no dia 29/3 o arguido foi interceptado na via pública, por permanecer em convívio com um grupo de indivíduos mas que já no dia 27/3 foi interceptado na via pública por Agentes da PSP em incumprimento do dever geral de recolhimento ao domicílio, razão pela qual foi devidamente notificado por estes Agentes de que não podia permanecer na via pública naquelas condições, atento o Estado de Emergência em que Portugal se encontra, devendo regressar imediatamente à residência, pois caso não o fizesse ou voltasse a incorrer no mesmo tipo de comportamento, cometia um crime de desobediência. kk) Sendo lícita a ordem para que os cidadãos regressem ao seu domicílio, a consequência quando voltem a incumprir tal dever não pode deixar de ser o cometimento de um crime de desobediência, tanto mais que, em situação prévia, contemporânea e semelhante, já o mesmo havia sido advertido de que, em caso de futura violação, cometeria o crime de desobediência. ll) - Não se pode conceber que não haja qualquer crime no caso de violação do dever geral de recolhimento, e que tal crime esteja reservado para a violação do disposto no art.º 3º do Decreto 2-B/2020 (confinamento obrigatório) ou, após prévia cominação, apenas para as situações dos artº.s 7º (encerramento de instalações e estabelecimentos), 8º (suspensão de actividades no âmbito do comércio a retalho) e 9º (suspensão de actividades no âmbito da prestação de serviços), como parece decorrer do teor literal do art.º 32º, n.º 1, al. b), do Decreto 2-A/2020. mm) Sendo um estado de excepção constitucional, que acarreta a suspensão de vários direitos, liberdades e garantias, o Estado de Emergência, para o que aqui nos interessa, depende do aparecimento de uma situação de calamidade em que a necessidade de salvaguardar a saúde pública e de travar o sistemático contágio do vírus Covid-19, levou ao decretamento de medidas extremas, comportando restrições de direitos liberdades e garantias, restrições essas que, com respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade, se devem limitar, quer pela sua duração, quer pela sua extensão, quer quanto aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao rápido restabelecimento da normalidade. nn) Ficou bastante restringido o direito de deslocação dos cidadãos, bem como o direito de resistência, ficando impedidos os actos de resistência activa ou passiva às ordens emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência. oo) O regime a que obedeceu a concepção e execução do Estado de Emergência teve como ponto de partida e limite a Lei 44/86, de valor reforçado, que dispões, no seu art.º 7, que “a violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respectivos autores em crime de desobediência” pp) A revisão introduzida na Lei 44/86 pela Lei 1/2012, de 11/5, alterou expressamente este normativo, o art.º 7º, pois onde se falava em crime de responsabilidade para os titulares dos cargos com a função de executarem o regime jurídico e administrativo do Estado de Emergência fala-se agora de um crime de desobediência, não nos parecendo que os destinatários de tal consequência penal sejam somente os titulares de cargos político-administrativos, nada impedido que se dirija igualmente aos demais cidadãos. qq) Neste contexto normativo não nos parece defensável que a violação do dever geral de recolhimento não tenha qualquer consequência penal, que não comporte a prática de um crime de desobediência, ficando os poderes das forças policiais a meras “sensibilizações”, “aconselhamentos” e “recomendações”. rr) Tais autoridades têm o poder de, legitimamente, dar ordens aos cidadãos para que regressem ao seu domicílio, advertindo-os de que, caso voltem a incumprir tal dever geral, incorrerão na prática de um crime de desobediência, motivando a sua detenção e sujeição a julgamento pela prática de tal crime. ss) De outra forma o Estado estaria a prescindir da sua autoridade, deixando que à boa vontade dos cidadãos o cumprimento do dever geral de recolhimento domiciliário, pois que o seu incumprimento apenas poderia dar lugar a uma recomendação ou aconselhamento para regressar ao domicílio, o que não só enfraqueceria desmesuradamente o comando ínsito na norma como frustraria a contenção da pandemia, o que não se quer, sendo certo que a responsabilidade penal do cidadão encontrará sempre arrimo nos citados art.º 7º, da Lei 44/86, art.º 5º do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18/3, art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, de 18/3, e art.º 32º, do Decreto 2-A/20202, de 20/3, ainda que se exija a prévia cominação por parte das autoridades policiais, nos termos do art.º 348º, n.º 1, b), do Código Penal, a qual, no presente caso, efectivamente até existiu, no dia 27/3, tal como referido na factualidade assente na sentença ora em crise. tt) Assim cremos que fica sobejamente justificada a possibilidade de, em situação de incumprimento do dever geral de recolhimento social, ser cominada, para futuras violações de tal dever, a prática do crime de desobediência, não nos parecendo, ao invés do sustentado na sentença ora recorrida, que cada vez que o cidadão incumpra tal dever tenha sempre de ser novamente sensibilizado e aconselhado para o cumprimento do mesmo, recomendado a voltar ao domicílio e que só perante uma recusa efectiva e naquele mesmo dia pode ser cominada a prática de um crime de desobediência. uu) Tal exigência, que não decorre da lei, frustraria o cumprimento efectivo do dever geral de recolhimento domiciliário pois, na esmagadora maioria das vezes, o cidadão acata momentaneamente a ordem, mas, momentos, horas ou dias volvidos volta a incorrer na mesma violação. vv) Exigir que se repetissem novamente todos preceitos de que o cidadão já está esclarecido – foi ampla a divulgação das excepções ao dever geral de recolhimento domiciliário nos meios de comunicação social –, o novo aconselhamento, a recomendação, a sugestão para voltar ao domicílio, retiraria, como dissemos, toda a eficácia ao dever geral de recolhimento domiciliário como um dos deveres integrantes do Estado de Emergência, tal como este foi decretado pelo Sr. Presidente da República, nos Decretos já mencionados. ww) Por tais motivos, a cominação da prática de um crime de desobediência não tem de ser renovada cada vez que o cidadão incumpre o dever de recolhimento domiciliário, ao contrário do sustentado na sentença agora recorrida. Sendo o Estado de Emergência uma excepção constitucional que foi decretada e que foi renovada mais duas vezes, tal cominação tem de valer para o futuro. xx) Se o cidadão foi advertido das consequências da sua actuação violadora do dever geral de recolhimento já uma vez, e dela ficou ciente, tal como decorre da factualidade provada, não se vê que as suas garantias de defesa exijam que cada vez que incumpre seja advertido, notificado e cominado para actuações futuras e que quando se coloca outra vez, voluntariamente, na mesma situação de violação tenha de ser sempre advertido, notificado e cominado, num círculo interminável, ante a impossibilidade de as forças de autoridade poderem proceder à sua detenção para serem sujeitos a julgamento. yy) Foram assim violados, na douta sentença recorrida, o art.º 7º da Lei 44/86, art.º 5º do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18/3, art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, de 18/3, e art.º 32º, do Decreto 2-A/20202, de 20/3, bem como o art.º 348º, n.º 1, a) e b), do Código Penal. Nestes termos deverá ser declarada nula, pelos motivos indicados, a douta sentença ora em recurso, ou, caso assim não se entenda, deverá tal decisão ser revogada e substituída por outra, nos termos sustentados na motivação apresentada, que importe a condenação do arguido pela prática de um crime de desobediência." (fim de transcrição). 3. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso (cfr. referência Citius n.º 146574464). 4. Respondeu o arguido extraindo da sua motivação as seguintes conclusões: "1. Vem o recurso sob resposta interposto sentença do tribunal a quo que absolveu o arguido AA em autoria material de 1 crime de desobediência p. e p. pelo art. 348.º, n.ºs 1, als. a), e b, do CP; com referência ao artigo 7º da lei n.º 44/86 (regime do Estado de sitio e do Estado de Emergência) e artigo 5º do decreto n.º 2-A/2020; 2. A sentença não padece de nulidade nos termos do nº 2, b) do Artº 410º do C.P 3. Quando o Recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve especificar os pontos de facto que consideram incorrectamente julgados. Na verdade, necessário se torna que o Recorrente identifique os pontos de facto que foram dados como provados ou não provados se é o caso e não deviam tê-lo sido na sua optica. Em 2º lugar o recorrente deve especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. Tratando-se de prova por declarações e depoimentos a seu ver, quanto aos concretas passagens das declarações, bem como ao depoimento das testemunhas em que se funda a impugnação ao que alude o nº 4 do Artº 412º do C.P.P 4. Inexiste contradição entre os factos provados e não provados 5. O Tribunal “ a quo” fez uma criteriosa apreciação da prova produzida em julgamento 6. A qual foi apreciada segundo as regras da experiência comum, nos termos do Artº 127º do C.P.P. A apreciação que o Tribunal a quo fez da prova produzida está devidamente, e bem fundamentada. 7. Verifica-se assim que a douta decisão recorrida captou com rigor a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, tendo operado uma correcta subsunção jurídica e aplicação do direito 8. Não foram violados na sentença o Artº 7º da Lei 44/86, Artº 5º do Decreto do Presidente da Republica nº 14-A/2020, de 18/03, Artº 5º do da Resolução da Assembleia da républica n.º 15-A/2020 de 18/03 e Artº 32º do Decreto 2-A/2020, de 20/03, nem o Artº 348º, nº 1 a) e b) do C.P 9. Nem qualquer preceito legal Entende o Recorrido que nenhuma razão assiste ao Ministério Público e que a douta sentença deverá ser mantida nos precisos termos em que foi proferida, não merecendo qualquer censura. Pelo exposto, deve ser negado provimento ao recurso e consequentemente se manter a absolvição na douta sentença, o que constitui uma decisão de Justiça!" (fim de transcrição). 5. Subidos os autos, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto nesta Relação teve neles “Vista” e emitiu parecer, pronunciando-se no sentido da procedência do recurso interposto, adiantando concordar com a posição assumida pelo Ministério Público na primeira instância (cfr. referência Citius n.º 16570718). 6. Foi cumprido o preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), não tendo havido resposta. 7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso. 8. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir. II – Fundamentação 1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.° - pág. 279 e 453.° - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403.° e 412.°, n.° 1, do CPP). As questões suscitadas pelo recorrente, que deverão ser apreciadas por este Tribunal Superior, são, em síntese, as seguintes: - O recorrente impugna a matéria de facto não provada sob as alíneas a), b) e c) da sentença, quer por padecer de contradição insanável, vício a que alude a alínea b), do n.º 2, do art. 410º, do CPP, pois, segundo defende, não pode, simultaneamente, ser dado como provado o que consta nos pontos 7 e 8 e como não provada a factualidade vertida nas alíneas b) e c), quer por erro de julgamento, nos termos do art. 412.º, n.º 3, do CPP, face às declarações do arguido e ao testemunho do Agente da PSP BB, pelo que os factos contidos em tais alíneas a), b) e c) devem passar de não provados a provados; - Acresce, sofrer a sentença recorrida de incorrecta subsunção dos factos ao direito. 2. Dá-se aqui por integralmente reproduzido, para todos os devidos e legais efeitos, o teor da decisão recorrida que consta da gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal a quo e de que na Acta, com referência Citius n.º 146005972, apenas consta o respetivo dispositivo, que se deixou transcrito em sede de relatório do presente acórdão em I-1. 3. Passemos, pois, ao conhecimento das questões alegadas. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, no que concerne a matéria de facto assente pelo Tribunal a quo [factos declarados provados e não provados] (transcrição): Matéria de facto dada como provada: "1. No dia 29/03/2020, na sequência de reclamações por parte de moradores, o agente policial BB deslocou-se à Rua ......................, em Santo António dos Cavaleiros, concelho de Loures, tendo visualizado quatro indivíduos que entraram para o interior do prédio com o n.º 3. 2. No intuito de abordar os referidos indivíduos, o agente policial solicitou a um morador para abrir a porta, sendo assim possível a entrada no prédio. 3. Chegado ao hall do prédio, na companhia de outro agente policial, o agente percorreu as escadarias, tendo ouvido ruído e barulho de música proveniente dos pisos superiores, sendo que no 8.º piso se deparou com os indivíduos que haviam entrado no prédio. 4. O agente policial BB abordou tais indivíduos, questionando-os sobre a sua presença no local, não tendo nenhum justificado a necessidade de ali permanecer, nem referido residir naquele prédio. 5. De seguida, os mesmos foram revistados e questionados sobre se já haviam sido abordados por elementos policias anteriormente e notificados que, não se enquadrando nas situações previstas na Lei, devem permanecer nos seus domicílios. 6. De seguida, o agente policial BB foi informado pelo arguido que no dia 27/03/2020 já havia sido abordado na via pública, não tendo motivo para tal, sendo notificado pelos elementos da Esquadra de Odivelas, situação que veio a confirmar conforme descrito na participação com o múmero 141313/2020. 7. No dia 27/03/2020, o arguido foi notificado nos termos constantes da notificação de fls. 12, da qual consta que devia deslocar-se ao seu domicílio o mais rapidamente possível, onde devia permanecer e que caso não obedecesse à ordem que lhe está a ser emanada, incorria na prática do crime de desobediência, ordem que o arguido cumpriu. 8. O arguido ficou ciente de que caso não obedecesse à ordem que lhe foi dada no dia 27/03/2020 incorria na prática de crime de desobediência. 9. Em momento algum anterior ao referido dia 27/03/2020 foi o arguido sensibilizado pelas forças e serviços de segurança quanto ao dever geral de recolhimento ou lhe foi dada qualquer recomendação pelas forças e serviços de segurança de cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as excepções previstas no artigo 5.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20/03. Mais se apurou que: 10. O arguido é estudante, frequentando o 10.º ano de escolaridade. 11. Vive com os pais e com os irmãos. 12. Completou o 9.º ano de escolaridade. 13. Regista uma condenação no âmbito do processo 175/19......, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Local de Pequena Criminalidade – J2, pela prática em 10/2/2019, de um crime de detenção de estupefacientes para consumo, tendo sido condenado na pena de 40 dias multa à taxa de diária de € 5,00. Como não provados foram considerados os seguintes factos: a) O arguido voltou a ser surpreendido na via pública, a conviver com um grupo de indivíduos, ouvindo música através de colunas portáteis. b) O arguido sabia que não podia permanecer na via pública nas condições e pelas razões pelo que o fazia, bem sabendo que já havia sido devidamente advertido que caso adoptasse tal comportamento incorria na prática de um crime de desobediência. c) Com a conduta descrita, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de não cumprir a ordem que lhe foi dada, bem sabendo que a mesma era legítima, emanava de autoridade competente e lhe devia obediência, sabendo, também, que a sua conduta era proibida e punível por lei penal." (fim de transcrição da responsabilidade deste tribunal ad quem a partir do respetivo ficheiro áudio). Ainda em sede de fundamentação da matéria de facto assente pelo Tribunal de primeira instância a decisão recorrida explicitou a respectiva motivação quanto à convicção da Mmª Juíza a quo para dar como provados e não provados determinados factos, afirmando, em síntese, que o fez com base no princípio da livre apreciação da prova, atendendo aos documentos constantes dos autos, mormente o CRC actualizado de fls. 35 a 37, e os que foram examinados em audiência de discussão e julgamento, concretamente o auto de notícia de fls. 2/3, a participação de fls. 8 a 11 e a notificação de fls. 12, conjugados com as declarações do arguido de AA prestadas na audiência de discussão e julgamento e com os depoimentos aí igualmente produzidos pelas testemunhas BB (o agente da Polícia de Segurança Pública que teve intervenção na diligência policial do dia 29/03/2020) e CC (o agente da Polícia de Segurança Pública autor da notificação de fls. 12, de 27/3/2020). Designadamente foi considerado: - Que o agente BB declarou que no dia 29/03/2020 avistou o arguido junto a um grupo de indivíduos, nas circunstâncias de tempo e lugar narradas no auto de noticia de fls. 2/3, por si elaborado e cujo teor atestou, tendo-o detido, porquanto o mesmo já havia sido notificado no dia 27/03/2020. - Que no dia 29/03/2020, o arguido foi imediatamente detido, sem ser feita qualquer recomendação ou cominação legal; - Que em momento algum, anterior ao dia 27/03/2020, foi o arguido sensibilizado pelas forças e serviços de segurança quanto ao dever geral de recolhimento ou lhe foi dada qualquer recomendação pelas forças e serviços de segurança de cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as excepções previstas no artigo 5.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20/03, pelo que não poderia dar-se como provado que o arguido desobedeceu à ordem que lhe foi dada no dia 27/03/2020, uma vez que nessa data não lhe foi dada qualquer ordem a que o arguido tivesse desobedecido, aliás, nessa data o arguido respeitou a ordem que lhe foi dada. -Se bem que se o agente CC, nas suas declarações, atestasse, em síntese, os factos narrados na participação de fls. 12, por ele elaborada, embora, como referiu não tivesse memória precisa dos factos a que se reporta a abordagem do arguido, nem o que lhe foi transmitido, embora o seu procedimento habitual incluísse uma advertência quanto à necessidade de permanecerem na residência, fazendo alusão genérica às situações em que se poderiam ausentar. - Quanto à actuação referente ao dia 29/03/2020 nada indica, por um lado, que a notificação de fls. 12 fosse suficiente para o arguido adquirir uma inteira e completa compreensão relativamente às consequências de se ausentar do seu domicilio, até tendo em conta a própria forma como o arguido respondeu (dizendo que pensava cumprir a ordem se estivesse no interior de um prédio e não na via pública) e por outro lado atentando nas próprias declarações da testemunha CC que não foi capaz de esclarecer cabalmente de que forma no dia 27/03/2020 procedeu à notificação do arguido. - Quanto aos factos não provados, cumpre referir que os factos aí constantes resultaram da ausência de prova nesse sentido, designadamente por não se ter demonstrado que o arguido tenha desobedecido à ordem dada no dia 27/03/2020 ou no dia 29/03/2020, dado que os agentes em momento algum referiram que o arguido se tivesse recusado a cumprir as suas instruções. Por seu turno, em sede de fundamentação de direito e apreciação jurídico-penal dos factos, o tribunal a quo na sentença revidenda absolveu o arguido AA da prática de um crime de desobediência, por violação do dever geral de recolhimento domiciliário, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 348.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, 7.º, da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro (Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência) e 5.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, que lhe era imputado, pelo Ministério Público na acusação contra a aquele deduzida, em 30 de março de 2020 e nos termos dos artigos 391º-A e 391º-B, ambos do CPP (cfr. referência Citius n.º 144392561), por entender, em síntese, que as Forças de Segurança não têm o poder de impor o cumprimento aos cidadãos do dever geral de recolhimento domiciliário, imposto nos termos do art. 5º, do Decreto 2-A/2020, de 20 de março, através da cominação da prática de um crime de desobediência, entendendo que tal normativo, o art. 5.º do Decreto 2-A/2020, não cumpre o princípio da tipicidade imposto às normas com alcance penal e que a cominação, a ser feita e só depois de esgotados todos os mecanismos de cariz essencialmente pedagógico para fazer o cidadão recolher ao seu domicílio, terá de se aplicar àquela circunstância em concreto, não podendo dispor para o futuro. 4. Vejamos se assiste razão ao recorrente. 4.1. Em sede de recurso para o Tribunal da Relação, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: quer por arguição dos vícios a que faz referência o art. 410.º, n.º 2, do CPP (a chamada revista alargada), quer pela impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma. No primeiro caso, os mencionados vícios decisórios têm de resultar do texto da decisão recorrida, encarado por si só ou conjugado com as regras gerais da experiência comum – sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo – visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise da prova registada e produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP. De acordo com este normativo, sempre que pretenda impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto o recorrente deve especificar: - os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; - as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; - as provas que devem ser renovadas; A especificação dos “concretos pontos de facto” traduz-se na indicação individualizada dos factos que constam da decisão recorrida e que se consideram incorretamente julgados. Por seu turno, a especificação das “concretas provas” corresponde à indicação do conteúdo específico de meio de prova ou de obtenção da prova, com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida. Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretende, dos vícios previstos no n.º 2 do art. 410.º do CPP e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cf. art. 430.º do CP). E o n.º 4 do art. 412.º estabelece que «quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação», acrescentando o seu n.º 6 que «no caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.» Como se lê no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), de 12 de junho de 2008, proferido no processo n.º 4375/07 - 3.ª[1], esta possibilidade de sindicância da matéria de facto sofre quatro tipos de limitações: «- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.» Como temos reafirmado em diversas ocasiões[2], o tribunal de recurso não pode realizar, por sua conta e risco, uma reponderação da matéria de facto, sem uma prévia definição pelo recorrente de quais os factos que quer ver reapreciados. É certo que, no nosso sistema judicial, são muito importantes os princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material. Mas não o são menos os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law, tão caro aos sistemas judiciais não totalitários: a ideia de que os processos judiciais devem ser justos[3]. No caso do recurso ora em apreço, importa assinalar, em primeiro lugar, que o recorrente Ministério Público vem impugnar a matéria de facto por aquelas duas citadas vias, isto é, quer por revista alargada, por arguição de vício a que alude o art. 410.º, n.º 2, do CPP (in casu o da contradição insanável), quer pela impugnação ampla da matéria de facto, a que alude o art. 412.º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma. E, em segundo lugar, que, no caso concreto, este tribunal ad quem pode conhecer de facto, atento o preceituado no art. 428.º do CPP, uma vez que houve documentação da prova produzida, oralmente, na audiência em primeira instância, sendo que, em conformidade com o disposto na alínea b), do art. 431.º, do CPP, a matéria de facto foi impugnada cumprindo o recorrente Ministério Público (contrariamente ao que defende o arguido na sua resposta ao recurso) as regras contidas no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, já que o recorrente indicou os concretos pontos de facto que foram dados como provados e os não provados, que na sua opinião não deviam tê-lo sido (não provados), por contradição com os primeiros (os provados) e face à prova produzida, bem como especificou as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e tratando-se de prova por declarações e depoimentos assinalou devidamente nas suas motivações as concretas passagens das gravações (minuto e segundo) dessas declarações do arguido e inquirição da testemunha em que se funda a impugnação. A este propósito afirma o recorrente Ministério Público a dado-passo das suas motivações: “Atenta a matéria de facto dada como provada, não podemos deixar, face às declarações do arguido e ao testemunho do Agente da PSP BB, de discordar do teor das alíneas a), b) e c) da sentença quando compaginadas com o teor da prova produzida, a saber: a) Que o arguido não voltou a ser surpreendido na via pública, a conviver com um grupo de indivíduos, ouvindo música através de colunas portáteis. b) Que o arguido não sabia que não podia permanecer na via pública nas condições e pelas razões pelo que o fazia, bem como que não sabia que já havia sido devidamente advertido que caso adoptasse tal comportamento incorria na prática de um crime de desobediência. c) Que com a conduta descrita o arguido não agiu de forma livre, deliberada e consciente, e que não agiu com o propósito de incumprir a ordem que lhe foi dada, ignorando que a mesma era legítima, emanava de autoridade competente e lhe devia obediência, não sabendo, também, que a sua conduta era proibida e punível por lei penal. É outra a leitura que fazemos da prova produzida como a seguir cuidaremos. Na valoração de todas as declarações prestadas e no que se refere à justificação da convicção do Tribunal, esteou-se este na análise crítica das declarações prestadas em audiência de discussão e julgamento pelo arguido, nos depoimentos prestados pela testemunha BB (o agente da Polícia de Segurança Pública que teve intervenção na diligência policial do dia 29/03/2020) e pelo agente CC (o autor da notificação de fls. 12, de 27/3/2020) e nos meios de prova documental juntos aos autos e examinados em audiência de discussão e julgamento, concretamente o auto de notícia de fls. 2/3, a participação de fls. 8 a 11 e a notificação de fls. 12. Designadamente foi considerado: - Que o agente BB declarou que no dia 29/03/2020 avistou o arguido junto a um grupo de indivíduos, nas circunstancias de tempo e lugar narradas no auto de noticia de fls. 2/3, cujo teor atestou, tendo-o detido, porquanto o mesmo já havia sido notificado no dia 27/03/2020. - Que no dia 29/03/2020, o arguido foi imediatamente detido, sem ser feita qualquer recomendação ou cominação legal; - Que em momento algum, anterior ao dia 27/03/2020, foi o arguido sensibilizado pelas forças e serviços de segurança quanto ao dever geral de recolhimento ou lhe foi dada qualquer recomendação pelas forças e serviços de segurança de cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as excepções previstas no artigo 5.º do Decreto n.º 2-A/2020, de 20/03, pelo que não poderia dar-se como provado que o arguido desobedeceu à ordem que lhe foi dada no dia 27/03/2020, uma vez que nessa data não lhe foi dada qualquer ordem a que o arguido tivesse desobedecido, aliás, nessa data o arguido respeitou a ordem que lhe foi dada. -Se bem que se o agente CC, nas suas declarações, atestasse, em síntese, os factos narrados na participação de fls. 12, por ele elaborada, referiu, no entanto, não ter memória precisa dos factos a que se reporta a abordagem do arguido, nem o que lhe foi transmitido, embora o seu procedimento habitual incluísse uma advertência quanto à necessidade de permanecerem na residência, fazendo alusão genérica às situações em que se poderiam ausentar. - Quanto à actuação referente ao dia 29/03/2020 nada indica, por um lado, que a notificação de fls. 12 fosse suficiente para o arguido adquirir inteira compreensão relativamente às consequências de se ausentar do seu domicilio, até tendo em conta a própria forma como o arguido respondeu (dizendo que pensava cumprir a ordem se estivesse no interior de um prédio e não na via publica) e por outro lado atentando nas próprias declarações da testemunha CC que não foi capaz de esclarecer cabalmente de que forma no dia 27/03/2020 procedeu à notificação do arguido. - Quanto aos factos não provados, cumpre referir que os factos aí constantes resultaram da ausência de prova nesse sentido, designadamente por não se ter demonstrado que o arguido tenha desobedecido à ordem dada no dia 27/03/2020 ou no dia 29/03/2020, dado que os agentes em momento algum referiram que o arguido se tivesse recusado a cumprir as suas instruções, e que os agentes policiais, ao tomarem conhecimento da sua notificação, procederam de imediato à detenção do arguido, conforme resultou do depoimento prestado pelo agente BB. Podemos dar como assentes várias destas conclusões, com as quais concordamos: - É verdade que não feita prova de que anteriormente ao dia 27/3 o arguido tivesse sido sensibilizado pela PSP ou outra força de segurança quanto à necessidade de permanecer no seu domicílio, nem tal foi sustentado na acusação pública – mas não é menos verdade que o arguido frequenta o 10º ano de escolaridade e que as recomendações quanto ao que era permitido ou não fazer no decurso do Estado de Emergência foram repetidas à exaustão nos meios de comunicação social, como é do conhecimento geral; - É verdade que no dia 27/3 o arguido não desobedeceu à primeira ordem que lhe foi dada, de regressar a casa, não havendo qualquer registo, na participação de fls. 8/11, de 27/3, de que não tenha acatado tal ordem, sendo mais um facto que não consta sequer da acusação pública; - É verdade que no dia 29/3 o arguido não foi novamente recomendado para recolher ao seu domicílio nem lhe foi feita nova cominação com a prática de um crime de desobediência se não regressasse ao seu domicílio de imediato, sendo verdade que quando disse ao Agente BB que dois dias antes já tinha sido notificado, em Odivelas, se procedeu de imediato à sua detenção – novamente não são factos que constem sequer na acusação pública, pois, na perspectiva da acusação, o facto de ter desobedecido à ordem de permanecer em casa, dada a 27/3, era suficiente para que se procedesse à sua detenção no dia 29/3, como sucedeu, por estar incurso na prática de um crime de desobediência. - É verdade que o agente CC não se recordou de ter procedido à concreta notificação do arguido no dia 27/3, admitindo apenas que a fez, como o atesta fl s. 12, e que era seu procedimento, como adiantou por estar em causa a liberdade das pessoas, esclarecer que os cidadãos que interpelava que deveriam manter -se em casa no futuro, explicar-lhes as circunstâncias básicas em que se podia sair de casa e informá-los que cometiam um crime se não o fizessem, sendo detidos pelos seus colegas se voltassem a ser encontrados sem motivo atendível na via pública. Agora não podemos deixar de considerar, e tal devia estar vertido na sentença, que: - O arguido no dia 29/3 estava numa situação exclusivamente de convívio na via pública com um grupo de outros três indivíduos, à porta de um prédio – inclusivamente a fumar, ingerir bebidas alcoólicas e a ouvir música (ainda que não através de colunas portáteis); - Que recolheu ao prédio, onde nenhum deles residia, com o propósito de não ser novamente interceptado pela PSP; - Que o arguido sabia, compreendera, que a ordem que foi emanada, de permanecer daí por diante no seu domicílio, era para ser obedecida, não podendo estar na via pública sem motivo atendível, ou, nas suas palavras, para “andar à toa” . - Que o arguido estava em clara desobediência a tal ordem de permanecer no seu domicílio, ordem que percebeu e que quis desrespeitar, agindo de modo livre e voluntário; - Que o arguido sabia que tal comportamento, manter-se na via pública sem motivo atendível a partir da notificação de fls. 12, teria consequências jurídicas. Sustentam estas nossas conclusões exactamente a audição do arguido, em sede de interrogatório e aquando das suas declarações finais, bem como o depoimento da testemunha BB.” (fim de transcrição Recordemos, então, os trechos mais relevantes dos pertinentes depoimentos, iniciando-se no minuto 4:54 das declarações prestadas pelo arguido AA: “- Arguido: Mais uma vez boa tarde. A primeira vez (… imperceptível) não percebi o que me disseram bem, não sabia que era um crime de desobediência, depois (impercep.) e não sabia que era, que estava a cometer um crime. - Mmª Juíza: Então deixe-me cá tentar perceber AA. O Sr. AA diz aqui que no dia 27/3 tinha sido notificado de que incorria na prática de um crime de desobediência. Portanto, dois dias antes desta situação, que se reporta ao dia 29 de março, tinha sido encontrado na via pública, tinha sido abordado, que não tinha motivos para tal e que, portanto, tinha sido notificado de que caso voltasse a adoptar aquele comportamento incorria na prática de um crime de desobediência. Eu pergunto, o que é que percebeu na primeira vez então que foi notificado? Foi notificado dois dias antes, o que é que então percebeu dessa situação? - Arg: Eu fui notificado e disseram-me que por causa da pandemia e que se voltassem a encontrar-me fora teria problemas, deram-me papéis para assinar, e eu assinei e… - M. Juíza: E ficar fora de casa? - Arg: Que se ficasse fora de casa tinha problemas. E deram-me uns papéis para eu assinar e eu assinei mas não li. - M. Juíza: E assinou os papéis. O que é que diziam esses papéis? - Arg: Não, não li os papéis. - M. Juíza: Mas já agora, deixe-me ver aqui do processo constará aqui a sua notificação do dia 27, aqui a fls. 12. Pronto. Pronto aqui desta notificação, consta aqui na notificação, consta aqui da notificação feita pelo Sr. Agente CC e que tem aqui a sua assinatura, AA, pronto, dia 27, diz aqui que devia deslocar-se o mais rapidamente possível para o seu domicílio onde deve permanecer, pronto, isso conseguiu perceber. - Arg: Sim. -M. Juíza: Que tinha de deslocar-se. E o que é que o senhor fez? - Arg: Fui para casa. - M. Juíza: Foi para casa. Pronto. E depois diz assim, que caso não obedeça à ordem legal e legítima que lhe está a ser emanada incorre num crime de desobediência. - Arg: Eu não li, eu não li os papéis. - M. Juíza: Mas o que é que percebeu mesmo lendo o que aqui está escrito? Diz assim, caso não obedeça à ordem legal legítima que lhe está a ser emanada incorre num crime de desobediência. O que é que o senhor percebe disso? - Arg: Que se desobedecer à ordem que aí está… - M. Juíza: À ordem de quê? De ir para o domicílio? - Arg: Sim. - M. juíza: Então e depois, o que é que os agentes lhe disseram para o futuro, que não devia sair de casa ou só podia sair de casa em determinadas circunstâncias? - Arg: Só podia sair de casa ou só sair, disse só que não podia sair de casa mesmo. - M. Juíza: Mas isto o senhor recebeu, não é, fls. 12, isto que aqui está a dizer “notificação”, que deve dirigir-se ao domicílio o mais rapidamente possível, onde deve permanecer porque senão incorre num crime de desobediência. Não é!? - Arg: Sim senhor. - M. Juíza: E depois no dia 29 foi aquela situação agora que estamos aqui a tratar, foi novamente encontrado lá no interior do prédio. Isto corresponde à verdade? - Arg. Sim. - Mmª Juíza: Pronto isto tudo é verdade. Estava no interior do prédio com outros três, três pessoas, é isto? O que é que estavam a fazer? - Arg. A trançar o meu colega. - M. Juíza A fazer o quê? - Arg: A trançar o meu colega. A fazer rastas. - M. Juíza: Dentro de um prédio? - Arg: Porque é rasta e rasta precisa de sabão. - M. Juíza: Então mas naquele prédio vivia alguém? - Arg. Não. - Juíza: Porque é que foram para dentro do prédio fazer isso? - Arg: Na zona costumam estar. - M. Juíza: Dentro do prédio ou fora do prédio? Ou foram para dentro do prédio quando viram a polícia? - Arg: Nós fomos para o prédio porque não podiamos estar na rua. - M. Juíza: Ah, foram para o prédio porque não podiam estar na rua. - Arg: Sim. - M. Juíza: Ou porque alguém vos chamou a atenção para isso? - Arg: Não. - M. Juíza: Olhe, hoje em dia já compreende melhor… - Arg: Sim sim. - M. Juíza: Aquilo que é exigido das pessoas, das regras que são necessárias cumprir por causa desta questão da pandemia, que importância tem esta questão da pandemia, destas regras? Hoje em dia já percebe melhor o que é necessário, se vier outro estado de emergência que o senhor não pode sair de casa a não ser que seja mesmo necessário por algum motivo, nomeadamente para ir às compras, para ir trabalhar, para ir à escola, algum motivo devidamente autorizado? Hoje em dia já percebe melhor isso? - Arg: Sim, porque na segunda situação o senhor agente explicou-me tudo e até mostrou-me os papéis e mostrou-me que estava lá esclarecido porque eu não percebia e pronto.” (fim de transcrição, a que se segue o interrogatório do arguido quanto às suas condições pessoais) Retornando ao minuto 11:15, às perguntas formuladas pelo Ministério Público ao arguido: “- Procuradora da República: Senhor AA, o senhor disse aqui, a instâncias da Mm.ª Juíza, que foram para aquele prédio porque não podiam estar na rua. Recorda-se? -Arg: Sim. -Proc: E porque é que não podiam estar na rua? - Arg: Estava a chover nesse dia. - Proc: Porquê? - Arg: Estava a chover nesse dia. - Proc: E então o que é que estavam a fazer na rua? - Arg. Estávamos a fazer rastas, não podíamos fazer em casa, a mãe do colega não deixava. - Proc: Mas ninguém morava naquele prédio, nenhum de vocês… - Arg. Nós não. Nenhum de nós não. Mas ali é um prédio frequente onde param pessoas. - Proc: Então entra assim para o prédio, sem morar lá, então entrança naquele prédio sem morar lá..,. Não percebo… - Arg. Temos amigos que moram lá, mas eles não estavam presentes. - Proc: Então foi por estar a chover que foram para dentro do prédio - Arg: Sim. - Proc: E o senhor guarda tinha-lhe dito no dia 27 que o senhor não podia andar na rua, não era? -. Arg: Sim, Sim. - Proc: Então porque é que o fez no dia 29? - Arg. Mas eu não sabia que estava a cometer um crime. - Proc. Eu só queria saber, disseram-lhe que não podia estar na rua, não é? - Arg: Sim. - Proc: Deu nas notícias todas que as pessoas só podiam sair para ir trabalhar, para ir às compras. Eu só gostava de saber, depois de lhe terem dito isso, porque é que o senhor no dia 29 voltou a estar em grupo, numa actividade que não tem nada a ver com ir para a escola, ir ao supermercado. - Arg: Porque circulando é que, não podíamos era circular na rua, mas eu ali, disseram-me, pensava que não estava a fazer mal nenhum. - Proc. Então se não podia circular na rua porque é que estava parado à porta daquele prédio e achava que não fazia mal nenhum? - Arg: Nós não estávamos na porta do prédio, estávamos dentro do prédio mesmo. -Proc: Diga? - Arg: Estávamos dentro do prédio. - Proc: Quando a polícia vos viu, vocês estavam fora do prédio, é o que diz aqui nos autos. - Arg. Já estávamos dentro. - Proc: Já estavam dentro, não viram a polícia então? Mas o senhor sabia que estar dentro do prédio a fazer rastas não é ir ao supermercado, nem ir trabalhar, nem ir à escola. Não lhe tinham dito que o senhor se tinha de manter em casa no dia 27? - Arg: Sim. - Proc: Então porque é que saiu, era alguma necessidade imperiosa, tinha mesmo... - Arg: Não, não, não. - Proc: Não tinha de sair. Mas isso o senhor percebeu, que não podiam sair por estes motivos de nada. Eu só queria que me dissesse se percebeu ou não, não é, que no dia 27 lhe disseram “vá para casa e só pode sair quando estritamente necessário”? - Arg: O Agente disse que não podíamos estar na rua a circular…, circular…, andar à toa. - Proc: Mas o senhor para ir para aquele prédio circulou. - Arg: Sim, mas no meu pensamento eu não estava a fazer mal a ninguém, estava a trançar o cabelo ao meu colega, como pelos vistos estava a cometer um crime, eu não sabia. - Proc: É isso que eu não percebo. O senhor anda na escola, o senhor sabe ler, o senhor sabe escrever, o senhor percebe ordens normais. Se alguém lhe diz “não pode estar na rua porque estamos em estado de emergência”, se isso dá todos os dias na rádio e na televisão, porque é que o senhor achou que podia estar a fazer tranças? Era só isso que que eu queria perceber. - Arg: Não estava a fazer mal a ninguém. - Proc: Independentemente de estar ou não a fazer mal a alguém sabia que estava a desobedecer ao que o polícia lhe tinha dito dois dias antes? - Arg: … - Proc: Isso é um sim? - Arg: Sim.” (fim de transcrição) Atentemos agora no depoimento do Agente da PSP BB, logo após ter sido identificado e advertido de que deveria responder com verdade: “- Proc: Sabe então o que nos trás aqui (…) eu gostava que me contasse então, antes de ter procedido à detenção do senhor AA. - Test: Recordo-me que foram queixas dos moradores. Estava um grupo de indivíduos na entrada do prédio, que eram supostamente ……………, não os conheciam, estavam em desrespeito da lei do estado de emergência, estavam a consumir bebidas alcoólicas, a ouvir música e basicamente foi isso. - Proc: Isto foi na rua ...............? - Test: Sim. - Proc: Os senhores deslocaram-se ao local … - Test: Exactamente, vimos… - Proc: E eu gostava que me explicasse então o que é que visualizou quando chegou ao local - Test: Visualizámos um grupo de quatro jovens a fumarem e depois junto, na entrada, conseguimos lá ver alguns restos de garrafas, por isso supomos que estivessem também a beber bebidas alcoólicas. - Proc: Portanto, o acto que viu foi eles estarem na rua a fumar. Não viu beber mas isso deduziu por ter lá visto garrafas. - Test: Sim, sim, vi lá copos, viu-os com os copos, vi lá copos e depois vê-se lá as garrafas na entrada do prédio. - Proc: Então também os viu com os copos na mão? - Test. Sim - Proc: Estavam numa situação que podemos chamar de convívio, sem grandes tecnicidades era uma situação de convívio? - Test: Sim, de mero convívio, sim. - Proc: Quanto tempo é que estiveram, os senhores iam fardados, não iam fardados? - Test: Íamos fardados e íamos a pé. - Proc. Quanto tempo é que estiveram a olhar para o grupo, mais ou menos? - Test: Desde que entramos na rua dois minutos sensivelmente. - Proc: E o que é que aconteceu então a esse grupo, a esse grupo de jovens? Eles estavam mesmo na via pública? - Test: Sim, estavam na entrada do prédio. - Proc: Ah, aqueles prédios que têm arcadas… - Test: Não, esse não tem arcadas. - Proc: Portanto é um prédio… - Test: Faz ali uma entrada, uma entrada, um acesso, mas não tem arcada. - Proc: Recorda-se se estava a chover quando… - Test: Não, estava bom tempo. - Proc: E então, quando os jovens se aperceberam da sua presença, sua e do seu colega, o que é que aconteceu? - Test: Entraram para dentro do prédio. - Proc: O prédio tinha a porta aberta? - Test: O prédio por norma tem a porta aberta mas também sabem o código, vão dizendo uns aos outros, acho que o daquele é 164… - Proc: Mas há algo especial para aquele prédio ser…. - Test: Sinceramente não sei, mas que é habitual estar lá sempre grupos de indivíduos naquele prédio é. - Proc: Portanto, abriram a porta do prédio… - Test: Acho que depois fecharam mas houve um morador que abriu-nos a porta. - Proc: Portanto quando o grupo, os quatro jovens, o viram a si e ao seu colega entraram para dentro do prédio e fecharam a porta do prédio? - Test: Exactamente. - Proc. E os senhores agentes tiveram de tocar? - Test: Não tocámos, os moradores, devia ser o reclamante, já estava à nossa espera e mal a gente lá chegou ouve-se o trinco. - Proc: E vocês puderam logo entrar? - Test: Exactamente. - Proc: E então como é que foi lá no interior do prédio? - Test: Depois entrámos, dividimos, havia mais outro CP (carro patrulha) que era de Loures, então fizemos a entrada, uns foram por um lado, outros foram por outro e depois encontrámos, o grupo estava mas escadas do 8º andar. - Proc: E estavam todos à porta…, no patamar? - Test: Sim, estavam no patamar, nas escadas do 7º para o 8º. - Proc: E o que é que eles estavam a fazer na altura? - Test: Estavam a ouvir música, estavam a confraternizar. - Proc: Mas o senhor ouvia a música, o senhor agente ouvia a música? - Test: Sim, ouvia-se, a gente teve… - Proc: Foram guiados pela música, por assim dizer? - Test: Sim. - Proc. Mas eles não tinham visto que os senhores tinham chegado? - Test. Sim. - Proc: Sabiam que os senhores os tinham visto? - Test: Supostamente não estavam à espera que nos abrissem a porta, que nós fossemos lá, se o intuito seria mesmo abordá-los ou não. - Proc: E depois o que aconteceu? - Test: Abordámos, identificámos, estivemos a falar ali um bocado com eles, questionámos o motivo da presença ali e eles disseram, pronto, não deram nenhuma desculpa, um motivo plausível. - Proc: Qual foi o motivo que eles disseram, que estavam a conviver? - Test: Estavam a conviver. E na altura, se não me engano, o arguido até supostamente, disse que tinha saído de casa para cortar o cabelo porque o pai não gostava do corte de cabelo e pronto. Entretanto foi para ali, foi chamado pelos amigos e foi para ali conviver. - Proc: Foi o Sr. AA que lhe disse, a suas instâncias, que já tinha uma notificação anterior? - Test: Sim. - Proc: Essa notificação anterior não foi o senhor agente… - Test: Não fui eu. - Proc: Foi ele que voluntariamente…, o que é que ele lhe disse quanto a essa notificação? - Test: Nós questionámos se algum deles já tinha sido fiscalizado por nós, e três disseram que não e ele disse logo que sim, que tinha sido abordado e tinha sido notificado uns dias antes em Odivelas.” (fim de transcrição) Atentemos ainda nas últimas declarações do arguido: “- M. Juíza: Desculpe, voltando, sim, voltando ao agente BB, foi a segunda detenção não é? - Arg: Como ele disse que encontrou-nos na porta do prédio com bebidas alcoólicas e a fumar, se, obviamente que se estivesse a fazer algo de mal, se o tivesse visto não ia lá para cima do prédio trançar o cabelo do meu colega, como é óbvio. E como ele disse eu não tinha dito que tinha saído para cortar o cabelo porque eu, como disse, tinha rastas e tinha criado um problema com os meus pais e eles disseram para eu cortar. No entanto, eu fui trançar o cabelo ao meu colega antes de ir cortar o cabelo como disse. E sim é isso. Percebeu mais ou menos o que eu quis dizer? Se eu tivesse visto, se eu tivesse visto como ele disse que eu estava a fumar e isso…sabia que estava a fazer mal, se eu tivesse visto eu acho não estaria dentro do prédio principalmente porque ali tem quatro portas, duas à frente, duas atrás, tinha-me ido embora ou coisa do género. - M. Juiza: Então o que quer dizer é que estava efectivamente a trançar o cabelo, não estava lá a consumir… - Arg: Estava a fumar cigarros, tabaco, para não pensar que estava a fumar… - M. Juíza: Estupefacientes? - Arg: Estupefacientes, etc. - M. Juíza: Estava a fumar tabaco? - Arg: Sim, estava a fumar tabaco e a beber. - M. Juíza: Estava a beber também? - Arg: Mas ele não nos viu no prédio. Se ele tivesse visto na porta sei que não ia fazer mal. - M. Juíza: Mas estava lá a beber ou estava lá a trançar? - Arg: As duas coisas. Os meus colegas estavam a beber e eu a trançar o cabelo do meu colega. - M. Juíza: Ah, os seus colegas é que estavam a beber e o AA estava … - Arg: Sim, sim. Éramos quatro jovens. - M. Juíza: E o AA estava a fazer as tranças? É isso? - Arg: Sim, como eles me encontraram me viram com a mão na manga e isso, mandaram revistar e isso. Eu acho que se tivesse visto (impercep.) e trançar o cabelo ao meu colega, acho que é tudo. - M. Juíza: Se tivesse perfeitamente ciente de que aquilo era proibido… - Arg: Sim também. - M. Juíza: Está bem.” (fim de transcrição) Como refere o recorrente, óbvio se torna resultar claramente das declarações do arguido – o qual não está obrigado a falar a verdade – que compreendeu a notificação de que foi alvo, de que não podia andar aí à toa, que percebeu que se voltasse a ser encontrado na rua seria detido, motivo pelo qual foi, ao sabor das perguntas que lhe eram feitas, alterando a sua versão dos factos. Primeiro estava a trançar mas não o podia fazer na via pública porque precisava de sabão mas quando confrontado com o facto de ninguém morar naquele prédio de imediato recua e diz que afinal estava no prédio, a trançar, porque percebeu que só não podia andar na via pública, que dentro do prédio não fazia mal. Isto para depois dizer que afinal foi para o prédio porque estava a chover, o que não corresponde à verdade, acabando por dizer que afinal estava a fumar, a beber e a trançar e que tinha saído de casa para ir cortar o cabelo – bem se sabendo que durante a declaração do Estado de Emergência os barbeiros e cabeleireiros estavam encerrados. Enfim, o arguido apresentou não uma mas várias versões dos factos, sempre com o fito de fazer crer ao julgador que ignorava que não podia estar na via pública, usando até a pueril desculpa de que trançar no prédio não fazia mal porque o que fazia mal era fazê-lo na rua, admitindo que estava em convívio na via pública, o que a mera audição da prova permite clarificar. O arguido – numa vã tentativa de se desculpabilizar – disse em julgamento que a polícia a 27/3/2020 lhe deu “uns papéis para eu assinar e eu assinei mas não li”. Ora, se assinou sem ler, fez mal, pois só devia ter assinado depois de ler, sendo que nunca o arguido afirmou que não leu por o não terem deixado ler, ao que acresce que como resulta da notificação em causa feita naquela data: “tendo-lhe sido entregue cópia da mesma, tendo este ficado completamente ciente do seu teor.”. Não tendo também o arguido desmentido que lhe tenha sido dada a referida cópia, podia e devia depois, em casa, com calma, no próprio dia ou no seguinte, ter devidamente lido e/ou relido atentando no seu teor, onde se consignava: “Que se encontra em falta a obediência devida a ordem legítima emanada por autoridade competente no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, pelo que nos termos legais suprarreferidos tem que: Deslocar-se para o seu domicílio o mais rápido possível, onde deve PERMANECER; Caso não obedeça à ordem legal e legítima que lhe está a ser emanada, incorre no CRIME DE DESOBEDIÊNCIA previsto no Artigo 348.° do Código Penal, punido com pena de prisão, motivo pelo qual será promovida a sua DETENÇÃO, bem como a apreensão dos instrumentos, produtos e/ou vantagens relacionadas com a prática deste ilícito, para além de outros susceptíveis de servirem como prova.” Acresce ainda que, o arguido não é seguramente analfabeto (como provado tinha de habilitações literárias o 9.º ano de escolaridade), nem sofre de nem iletrismo, pois não tem nem falta de instrução, nem pouca de instrução, nem denotou padecer de iliteracia, que lhe conferisse dificuldade em ler e interpretar aquele texto, já que era à data, como igualmente provado, estudante, a frequentar o 10.º ano de escolaridade. A palavra PERMANECER (com referência ao domícilio) estava escrita em maiúsculas de imprensa, tal como de que a não obediência a esse dever de permanência no domícilio o faria incorrer no CRIME DE DESOBEDIÊNCIA também estava em letras maiúsculas de imprensa, assim bem se destacando do demais texto. Por outro lado, se por um lado, o arguido, nesta esteira, disse em julgamento “eu não sabia que estava a cometer um crime”, “pensava que não estava a fazer mal nenhum” e “no meu pensamento eu não estava a fazer mal a ninguém” de outra banda também afirmou: “Eu fui notificado e disseram-me que por causa da pandemia e que se voltassem a encontrar-me fora teria problemas”, “Que se ficasse fora de casa tinha problemas” que “Sim” que “disseram-lhe que não podia estar na rua”, que “Sim” que “se tinha de manter em casa”, bem como que no dia 27 “O Agente disse que não podíamos estar na rua a circular…, circular…, andar à toa”, bem como, ainda e finalmente, que “Sim” que “Independentemente de estar a fazer mal ou não a ninguém sabia que estava a desobedecer ao que o polícia lhe tinha dito dois dias antes.” Disse-o, no entender deste tribunal ad quem, inequivocamente, mas mesmo que não o tivesse expressamente dito, importa atentar que, no que respeita à convicção quanto à atitude interior do arguido, o tribunal teria então de socorrer-se das máximas da experiência comum, como não podia deixar de ser, uma vez que a atitude interior do arguido não fosse revelada ou não fosse credivelmente revelada. Na verdade, os factos psicológicos que traduzem o elemento subjetivo da infração são, muitas vezes, objeto de prova indireta, isto é, só são suscetíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objetivos, analisados à luz das regras da experiência comum. E essa avaliação só pode ser feita pelo julgador, dado que a mesma resulta da conjugação de vários elementos a ponderar. Como bem se refere no Ac. da Relação do Porto de 25 de março de 2010 (proferido no âmbito do Proc. 1052/05.2GALSD.P1, disponível in www.dgsi.pt), a propósito da verificação do elemento subjetivo da infração, “A este respeito importa, antes de mais, referir que nem sempre a prova em que o tribunal se baseia é prova directa. Não pode, contudo, deixar de ser valorada à luz da experiência comum e de forma concertada com todos os elementos de prova, designadamente no que concerne a aspectos que digam respeito ao foro íntimo das pessoas, tal como sucede com as intenções e também com a consciência da ilicitude. E, tratando-se de processos interiores, se não forem admitidos pelos próprios, só uma avaliação alicerçada em presunções judiciais, não proibidas por lei, com base nos demais factos apurados e nas circunstâncias e contexto global em que se verificam e em dados da personalidade do agente, avaliação essa permitida se feita com respeito pelas regras da experiência comum, permite retirar tais conclusões. Outrossim, não está vedado ao julgador estabelecer presunções desde que assentes em factos, sendo a este propósito que faz todo o sentido apelar às regras da experiência comum pois são elas o necessário elemento aglutinador da avaliação feita a partir dos meios de prova para fazer assentar em factos provados e adquiridos outros não imediatamente apreensíveis mas que se impõem ao juízo de um cidadão de medianas capacidades e conhecimentos de vida.” (fim de transcrição) E, ainda, o Ac. da Relação de Évora de 28 de fevereiro de 2012 (proferido no âmbito do Proc. 468/06.1GFSTB.E1, disponível in www.dgsi.pt) “Os factos integrantes do tipo subjectivo – que se desdobra, muito sinteticamente, nas componentes cognoscitiva ou intelectual e volitiva ou intencional do dolo, correspondentes ao conhecer ou saber e ao querer o desvalor do facto – raramente se provam directamente. Na ausência de confissão/admissão destes factos – e dificilmente se concebendo outra prova que incida directamente sobre eles – resta ao julgador a apreciação de prova indirecta, aquela que lhe permite, sempre com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto ao facto probando. E são muito frequentes os casos em que a prova é indirecta, precisamente no que respeita ao elemento subjectivo do crime. Daí a grande importância dessa prova no processo penal. Terá aqui o julgador de retirar dos factos externos as necessárias ilações, de forma a poder ou não concluir que o agente se comportou internamente da forma como o revelou externamente. A convicção obter-se-á através de conclusões baseadas em raciocínios e não directamente verificadas, ou seja, num juízo de relacionação normal entre o indício e o facto probando.” (fim de transcrição) Que o arguido tinha plena consciência da sua ilicitude, resulta, designadamente, de sabendo encontrar-se na via pública, sem justificação para o efeito, e em desobediência a ordem de permanecer no domicílio, se ter, com os demais, escondido dentro do prédio, ao vislumbrarem a aproximação da polícia. Se algum deles tivesse sido encontrado a consumir ou na posse de estupefacientes, o que consigo sucedera no ano anterior, poderia ser esse o motivo para se esconderem. Porém, não foi esse o caso, já que só estava na via pública, com os demais três indivíduos que constituíam o seu grupo, a conviver ouvindo música, fumando e bebendo. Atente-se ainda que entre o n.º 13 da Rua ..............., em Loures, onde reside o arguido, e n.º 3 da Rua ......................, em Santo António dos Cavaleiros, onde este foi encontrado pela autoridade policial a 29/3/2020, distam mais de 2 km, facto que é público e notório, como uma simples consulta ao mapa da zona permite verificar, pelo que bem sabia aquele que não estava sequer junto de casa, mas bem longe da sua residência, onde devia permanecer e só dela se ausentar nos casos excepcionais, previstos na regulamentação daquele estado de emergência, em que a mera circulação individual e o convívio grupal de jovens na via pública manifestamente não se inseriam, como, aliás, os media à época amplamente divulgavam. Assim, tendo em conta as declarações prestadas, nos termos acima transcritos, e as regras da experiência comum, dever-se-ia igualmente ter dado como provado (e não como factos não provados), em consonância com o que lhe era imputado na acusação, que: a) O arguido voltou a ser surpreendido na via pública, no dia 29/03/2020, a conviver com um grupo de indivíduos, ouvindo música, a fumar e a beber, antes de se refugiar no interior de um prédio ante a presença da PSP. b) O arguido sabia que não podia permanecer na via pública nas condições e pelas razões pelo que o fazia, bem sabendo que já havia sido devidamente advertido no dia 27/03/2020 que caso adoptasse tal comportamento incorria na prática do crime de desobediência. c) Com a conduta descrita, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de não cumprir a ordem que lhe foi dada, bem sabendo que a mesma era legítima, emanava de autoridade competente e lhe devia obediência, sabendo, também, que a sua conduta era proibida e punível por lei penal. Factos que este tribunal superior agora adita aos provados, ficando a ser os n.ºs, respetivamente, 14., 15. e 16., eliminando todos os que na sentença recorrida foram dados como não provados, assim procedendo o recurso neste segmento. O recorrente, como vimos, impugnava também a matéria de facto não provada sob as alíneas a), b) e c) da sentença, por entender padecer de contradição insanável, vício a que alude a alínea b), do n.º 2, do art. 410.º, do CPP, pois, segundo defende, não pode, simultaneamente, ser dado como provado o que consta nos pontos 7 e 8 e como não provada a factualidade vertida nas alíneas b) e c). Como se sabe, só existe contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, quando há oposição entre os factos provados, entre estes e os não provados ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto. Ocorre ainda, quando segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados. Ainda numa outra formulação, pode afirmar-se que existe contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, quando sobre a mesma questão há posições antagónicas e inconciliáveis, sendo tal contradição naturalmente insanável. Este vício não pode ser confundido com uma qualquer contradição entre partes de alguns depoimentos prestados na audiência de julgamento realizada na 1ª Instância, ou sequer entre um depoimento prestado em audiência ou noutra fase do processo. Consideramos, no entanto, ficar prejudicada in casu a apreciação desta questão, porquanto, mesmo a existir tal vício de contradição insanável o mesmo mostra-se entretanto sanado perante a alteração da matéria de facto a que supra procedemos. 4.2. Vejamos agora se, como vem alegado pelo recorrente, sofre a sentença recorrida de incorrecta subsunção dos factos ao direito, devendo, ao invés do que sucedeu na decisão revidenda, mostrar-se preenchido o imputado crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º n.º 1 al. a) e b) do Código Penal, com referência ao artigo 7º da Lei n.º 44/86 (Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência) e artigo 5º do Decreto n.º 2-A/2020, que era vinha imputado ao arguido AA, e, consequentemente ser, pela sua prática, em autoria material e na forma consumada, condenado e não, como ocorreu em primeira instância, dele absolvido. Tal absolvição, pelo tribunal a quo, decorre da sentença ora recorrida, onde, em sede de fundamentação de direito, que aqui seguiremos de muitíssimo perto mas nem sempre textualmente, por ter sido ditada para a acta e não reduzida a escrito, se disse: “Como é sabido, constituem elementos do tipo objectivo do ilícito em causa a existência de uma ordem ou de um mandado legítimo, a emanação da mesma da parte de autoridade ou funcionário com competência para o efeito, a sua regular comunicação ao respectivo destinatário e, naturalmente, a falta de obediência devida. No que se reporta ao tipo subjectivo de ilícito, estamos perante um crime exclusivamente doloso, mas em que o dolo pressuposto é meramente genérico. Ora, o crime previsto na alínea b) do artigo 348º do Código Penal existe apenas para os casos em que nenhuma norma jurídica prevê o comportamento desobediente, não se podendo prescindir da cominação da punição por desobediência. (…) Assim, a legalidade material e formal do acto, a competência da autoridade ou do agente que emite o comando, a ordem, não pode fazer descurar a dimensão negativa e positiva do princípio da legalidade: - O princípio da legalidade negativa da administração, com arrimo no princípio da prevalência da lei em todos os actos e - O princípio da legalidade na sua vertente positiva, segundo o qual, o ato só pode ser autorizado ou ter na sua base a própria lei. Assim, a norma incriminadora publicitada no artigo 348º, nº 1, alínea b) do Código Penal, preconiza uma norma legal deixada em aberto pelo legislador, pertencendo ao intérprete, ao aplicador do direito, integrar as condutas que nele cabem, à luz do princípio da legalidade penal e do princípio que aponta o direito penal como a ultima ratio. Não se actuando deste modo, corre-se o sério risco de tipificar, de modo discricionário, condutas penalmente puníveis com o risco de desigualdades inerentes, violando, por essa via, o princípio da legalidade, este que reveste primordial papel na garantia da limitação do poder punitivo do Estado e para a tutela dos direitos fundamentais do Homem. Com efeito, a norma legal tem que ser certa, ou seja, tem de determinar com suficiente precisão o facto criminoso, dado que a comissão por acção ou omissão não pode ser inferido da lei, antes tem que ser definido por esta. Ora, apreciando os preceitos legais invocados em sede de libelo acusatório, importa primeiramente verificar que desde logo se suscitam dúvidas quanto ao âmbito de aplicação do dever geral de recolhimento domiciliário imposto pelo artigo 5.º dos sucessivos decretos que implementaram as restrições aos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, em estado de emergência, no caso concreto o decreto 2-A/2020, de 20 de março, designadamente: - Quais as condutas em concreto que violam o art. 5º - o que leva alguns agentes policiais a fazer advertências e detenções e outros a permitir que o cidadão esteja na via pública nas mesmas circunstâncias; - Qual a consequência da violação do art. 5º - havendo quem entenda que a pessoa deve ser logo advertida da cominação da desobediência e outros que apenas seja aconselhada a regressar a casa e só se se recusar é que deverá ser feita a advertência e outros ainda entendem que nunca pode haver cominação e crime de desobediência em caso de violação do art. 5º desses decretos. Ora, tem-se constatado que, na comarca de Loures, as entidades policiais adoptam o seguinte procedimento: assim que visualizam um cidadão numa situação que um agente policial em concreto entende ser violadora do artigo 5º e depois do mesmo anuir em respeitar a ordem de regresso ao domicílio: - Apresentam ao cidadão um expediente intitulado “notificação”, do qual fazem constar que o mesmo: 1) Se encontra em falta a obediência devida a ordem legitima emanada por autoridade competente, no âmbito da Declaração de Estado de Emergência pelo que, nos termos legais, deverá deslocar-se para o seu domicílio o mais rapidamente possível onde deve permanecer; 2) Concomitantemente, na mesma notificação escrita, fazem constar a seguinte advertência “Caso não obedeça à ordem legal e legitima que lhe esta a ser emanada, incorre no crime de desobediência, previsto no artigo 348.º do Código Penal”; - Posteriormente, dias ou semanas depois, se o mesmo cidadão é novamente encontrado na via pública, em situação que os agentes policiais consideram violadora do artigo 5.º é o mesmo de imediato detido, por referência à cominação anteriormente efectuada. Tal é o caso dos presentes autos. No âmbito da vigência do Estado de Emergência previa o Decreto 2-A/2020, de 20/03, no seu art. 5º que os cidadãos não abrangidos pelo disposto nos artigos anteriores só podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, para algum dos propósitos aí mencionados. Portanto, o referido artigo 5.º prevê diversas situações em que o cidadão poderá ausentar-se do seu domicílio. Por outro lado, o referido Decreto não previa, de forma expressa, que o cidadão que circulasse fora dos propósitos aí mencionados deveria ser cominado de que incorria na prática de um crime de desobediência. Muito pelo contrário, previa o artigo 32º do mesmo diploma, num primeiro plano de actuação, a necessidade dos agentes das forças e serviços de segurança procederem: “- A aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública; - A recomendação a todos os cidadãos do cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as excepções previstas no artigo 5.º e - A emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, a cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos do artigo 348.º do Código Penal, por violação do disposto nos artigos 7.º a 9.º do presente decreto e do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º, bem como a condução ao respectivo domicílio” Assim, da redacção do referido preceito resulta manifesto que todos estes modos de proceder deverão, assim, nessas situações, preceder uma eventual cominação com o crime de desobediência e apenas quando todos esses modos falharem, perante persistentes transgressões à autonomia intencional e às prescrições do estado de excepção, não restaria às autoridades competentes, ao que se julga, recorrerem, por necessidade e sempre com o respeito pela proporcionalidade, à ultima ratio que é o Direito Penal e à coerção que lhe é inerente. (…) Assim, entende-se que, caso efectivamente o arguido persistisse na sua vontade em se ausentar ou não regressar ao seu domicílio, após devidamente aconselhado e advertido(a) por autoridade competente de que tal o poderia fazer incorrer num crime de desobediência, nos termos do artigo 348.º, do CP), sujeitar-se-ia a eventual responsabilidade penal, verificados que estejam os demais pressupostos, entre outros, o dolo, a imputabilidade, a inexistência de causas de exclusão da ilicitude ou culpa, ou de erro relevante, e exigibilidade. Na situação em crise nestes autos a actuação do arguido não surge sujeita a cominação legal com o crime de desobediência, na medida em que na data dos factos objecto dos autos, o arguido não foi aconselhado, recomendado, sensibilizado para o cumprimento do dever de recolhimento, mas sim de imediato detido. E prescrevendo a Lei sobre as formalidades a que deve obedecer a identificação dos suspeitos e posterior cominação do crime, deverão as mesmas ser observadas. Devem, ainda, as medidas de polícia e as ordens dos agentes policiais em que se traduzem estas medidas, como todos os actos públicos potencialmente lesivos dos direitos fundamentais, estar sujeitas aos princípios da necessidade, exigibilidade e proporcionalidade, previstos aliás no art. 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, ou seja, as ordens devem visar interesses públicos legalmente previstos e na prossecução destes interesses devem sacrificar no mínimo os direitos dos cidadãos. Assim, em obediência a estes princípios e ao princípio da fragmentariedade do Direito Penal, a punição pela prática do crime de desobediência, previsto no art. 348.º, do Código Penal, tem natureza subsidiária relativamente a outras formas de sancionar a desobediência. Queremos com isto dizer que tratando-se a norma proclamada no artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal uma norma penal em branco, a qual prevê uma cominação funcional, a qual tem um carácter absolutamente subsidiário, na medida em que a autoridade ou o funcionário só podem fazer uma tal cominação quando o comportamento em causa não constitua um ilícito previsto pelo legislador para sancionar essa mesma conduta, seja ele de natureza criminal ou de natureza contraordenacional, só será válida tal cominação se for materialmente legítima, em nome de um modelo de intervenção mínima, de acordo com o artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa. Ora, no caso dos autos, não resultou demonstrado que, na data dos factos (29/03/2020), o arguido tenha sido aconselhado a recolher ao seu domicílio e que, perante tal conselho, se tenha recusado. Também não resultou provado que, em tal data, tenha sido advertido de que, caso continuasse na via pública sem justificação, cometeria um crime de desobediência. Com efeito, essa notificação foi feita em momento anterior à prática dos factos e noutro contexto, que pode ser semelhante ao dos autos, mas ocorrido noutro dia. Com efeito, no momento em que tal notificação foi feita ao arguido os agentes informaram-no de que deveria recolher à sua residência ao mesmo tempo que lhe fizeram a advertência de que cometia o crime de desobediência se não permanecesse em casa. Ou seja, ao invés de se aconselhar os cidadãos a regressarem a casa e só se estes se recusarem se fazer a cominação da desobediência, contemporânea da sua actuação, fez-se tal cominação independentemente da recusa, saltando-se, aqui, no entender do Tribunal, procedimentos prévios elementares e previstos na lei. Ora, tais pressupostos seriam essenciais para que se pudesse concluir pela legitimidade da ordem policial e consequente desobediência por parte do arguido à mesma. E têm de ser contemporâneos, isto é aferidos face à data dos factos, não se podendo entender que uma notificação e advertência efectuadas dias ou semanas antes possa valer como advertência para todas as situações em que aquele cidadão for visualizado na via pública em alegada violação do Estado de Emergência. Acresce que, a notificação que foi feita no caso concreto é uma advertência geral que apenas refere que o arguido foi advertido que no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, teria de “deslocar-se para o seu domicílio o mais rápido possível, onde deve permanecer”, sob pena de incorrer no crime de desobediência – o que, literalmente tem por significado que o cidadão não mais poderia sair de casa. Ora, não é isso que a lei prevê, nem o decreto 2-A/2020, nem os posteriores. Serve isto também para esclarecer, que a notificação que o agente policial fez ao cidadão, nem sequer está em conformidade com o preceituado no Decreto 2-A/2020, já que tal notificação nem esclarece as situações em que os cidadãos podem ou não sair de casa, dizendo apenas que são advertidos para permanecerem em casa, podendo, nalguns casos, os agentes dar algumas explicações não exaustivas e meramente exemplificativos, das situações em que o cidadão poderá ausentar-se do domicílio, o que no caso concreto se desconhece. Por outro lado, a verdade é que, mesmo no momento em que foi feita a cominação da desobediência, em data anterior à situação dos autos, também não houve qualquer recusa por parte do cidadão à ordem dada pelo agente policial, pese embora lhe tenha sido de imediato feita a cominação pelo crime de desobediência, mesmo cumprindo a ordem que lhe foi dada. Ora, entendemos que não é, de todo, isso que visa ou que determina o Decreto 2- A/2020 de 20/03. Entende pois o tribunal que cumpria aos agentes policiais esgotar todos os meios legais disponíveis para alcançar o conteúdo útil da ordem/recomendação/ aconselhamento (no caso, o recolhimento domiciliário), residindo aí a condição de legitimidade material da própria ordem em nome do princípio da proporcionalidade e o princípio da intervenção mínima do direito penal. Assim, face do exposto, considerando não estar preenchido, na sua essência, o elemento objectivo do ilícito pelo qual o arguido vinha acusado, por inexistência de legitimidade material para a cominação apontada (referente ao dia 27/03/2020), dado que não foi precedida dos procedimentos exigidos por lei (designadamente os previstos no artigo 32.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Decreto 2 -A/2020, de 20/03 e falta de recusa de cumprimento a ordem por parte do arguido nessa data e, por outro lado, por inexistência de cominação à data dos factos (dia 29/03/2020) e consequente falta de recusa de cumprimento de qualquer ordem, e por não estar preenchido o elemento subjectivo do crime que lhe vem imputado, mais não resta a este Tribunal senão proferir um juízo absolutório.” (fim de transcrição da responsabilidade deste tribunal ad quem a partir do respetivo ficheiro áudio e que como dissemos ab initio não é feita ipsis verbis). No Decreto da Presidência do Conselho de Ministros n.º 2-A/2020, de 20 de março, rectificado pela Declaração de Retificação n.º 11-D/2020, de 20 de março (publicado no DR N.º 57, Série I-1º Supl, de 20 de março de 2020), que regulamentou a aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República a 18 de março de 2020, para vigorar entre 22 março e 3 de abril de 2020, pode ler-se e foi nele estabelecido o seguinte: “No dia 18 de março de 2020 foi decretado o estado de emergência em Portugal, através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março. A Organização Mundial de Saúde havia qualificado a situação atual de emergência de saúde pública ocasionada pela epidemia da doença COVID-19, tornando-se imperiosa a previsão de medidas para assegurar o tratamento da mesma, através de um regime adequado a esta realidade, que permita estabelecer medidas excecionais e temporárias de resposta à epidemia. A situação excecional que se vive e a proliferação de casos registados de contágio de COVID-19 exige a aplicação de medidas extraordinárias e de caráter urgente de restrição de direitos e liberdades, em especial no que respeita aos direitos de circulação e às liberdades económicas, em articulação com as autoridades europeias, com vista a prevenir a transmissão do vírus. É prioridade do Governo prevenir a doença, conter a pandemia, salvar vidas e assegurar que as cadeias de abastecimento fundamentais de bens e serviços essenciais continuam a ser asseguradas. Com efeito, urge adotar as medidas que são essenciais, adequadas e necessárias para, proporcionalmente, restringir determinados direitos para salvar o bem maior que é a saúde pública e a vida de todos os portugueses. A democracia não poderá ser suspensa, numa sociedade aberta, onde o sentimento comunitário e de solidariedade é cada vez mais urgente. Assim, o presente decreto pretende proceder à execução do estado de emergência, de forma adequada e no estritamente necessário, a qual pressupõe a adoção de medidas com o intuito de conter a transmissão do vírus e conter a expansão da doença COVID-19. Estas medidas devem ser tomadas com respeito pelos limites constitucionais e legais, o que significa que devem, por um lado, limitar-se ao estritamente necessário e, por outro, que os seus efeitos devem cessar assim que retomada a normalidade. O presente decreto incide, designadamente, sobre a matéria da circulação na via pública, regulando a prossecução de tarefas e funções essenciais à sobrevivência, as deslocações por motivos de saúde, o funcionamento da sociedade em geral, bem como o exercício de funções profissionais a partir do domicílio. Fica também prevista uma exceção genérica que permite a circulação nos casos que, pela sua urgência, sejam inadiáveis, bem como uma permissão de circulação para efeitos, por exemplo, de exercício físico, por forma a mitigar os impactos que a permanência constante no domicílio pode ter no ser humano. Fica também acautelada a necessidade de deslocação por razões familiares imperativas, como por exemplo para assistência a pessoas com deficiência, a filhos, a idosos ou a outros dependentes. Bem assim, o presente decreto atende à importância e imprescindibilidade do funcionamento, em condições de normalidade, da cadeia de produção alimentar para a manutenção do regular funcionamento da sociedade. O Governo entende que os contactos entre pessoas, que constituem forte veículo de contágio e de propagação do vírus, devem manter-se ao nível mínimo indispensável, o que se reflete, pelo presente decreto, nos espaços de comércio a retalho, especialmente propícios a contactos entre clientes, entre estes e os trabalhadores e entre os próprios trabalhadores. Também não estão excluídos os riscos de contágio e de propagação através de produtos ou de superfícies onde o vírus temporariamente se aloje, pelo que a redução do contacto entre pessoas e bens ou estruturas físicas deve ser acautelada e reduzida tanto quanto possível. Acresce que a prestação de serviços envolve, a maior parte das vezes, um contacto próximo entre pessoas e potencia a respetiva movimentação e circulação, situação esta que igualmente se pretende minorar. São estabelecidas regras aplicáveis ao funcionamento ou suspensão de determinados tipos de instalações, estabelecimentos e atividades, incluindo aqueles que, pela sua essencialidade, devam permanecer em funcionamento, sendo estabelecidas regras de permanência nos mesmos. Determina-se, ainda, que por decisão das autoridades competentes, podem ser requisitados quaisquer bens ou serviços de pessoas coletivas de direito público ou privado que se mostrem necessários ao combate à doença COVID-19. Por fim, são fixadas prerrogativas e competências, neste contexto, aos membros do Governo responsáveis pelas áreas setoriais a quem caiba concretizar, pelo Governo, medidas adicionais no âmbito do estado de emergência. Assim: Nos termos da alínea g) do artigo 199.º da Constituição, o Governo decreta: Artigo 1.º Objeto O presente decreto procede à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República n.o 14-A/2020, de 18 de março. Artigo 2.º Aplicação territorial O presente decreto é aplicável em todo o território nacional. Artigo 3.º Confinamento obrigatório 1 - Ficam em confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde ou no respetivo domicílio: a) Os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-Cov2; b) Os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa. 2 - A violação da obrigação de confinamento, nos casos previstos no número anterior, constitui crime de desobediência. Artigo 4.º Dever especial de proteção 1 - Ficam sujeitos a um dever especial de proteção: a) Os maiores de 70 anos; b) Os imunodeprimidos e os portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde devam ser considerados de risco, designadamente os hipertensos, os diabéticos, os doentes cardiovasculares, os portadores de doença respiratória crónica e os doentes oncológicos. 2 - Os cidadãos abrangidos pelo número anterior só podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, para algum dos seguintes propósitos: a) Aquisição de bens e serviços; b) Deslocações por motivos de saúde, designadamente para efeitos de obtenção de cuidados de saúde; c) Deslocação a estações e postos de correio, agências bancárias e agências de corretores de seguros ou seguradoras; d) Deslocações de curta duração para efeitos de atividade física, sendo proibido o exercício de atividade física coletiva; e) Deslocações de curta duração para efeitos de passeio dos animais de companhia; f) Outras atividades de natureza análoga ou por outros motivos de força maior ou necessidade impreterível, desde que devidamente justificados. 3 - Salvo em situação de baixa médica, os cidadãos abrangidos pela alínea b) do n.º 1 podem, ainda, circular para o exercício da atividade profissional. 4 - A restrição prevista no n.º 2 não se aplica: a) Aos profissionais de saúde e agentes de proteção civil; b) Aos titulares de cargos políticos, magistrados e líderes dos parceiros sociais. Artigo 5.º Dever geral de recolhimento domiciliário 1 - Os cidadãos não abrangidos pelo disposto nos artigos anteriores só podem circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, para algum dos seguintes propósitos: a) Aquisição de bens e serviços; b) Deslocação para efeitos de desempenho de atividades profissionais ou equiparadas; c) Procura de trabalho ou resposta a uma oferta de trabalho; d) Deslocações por motivos de saúde, designadamente para efeitos de obtenção de cuidados de saúde e transporte de pessoas a quem devam ser administrados tais cuidados ou dádiva de sangue; e) Deslocações para acolhimento de emergência de vítimas de violência doméstica ou tráfico de seres humanos, bem como de crianças e jovens em risco, por aplicação de medida decretada por autoridade judicial ou Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, em casa de acolhimento residencial ou familiar; f) Deslocações para assistência de pessoas vulneráveis, pessoas com deficiência, filhos, progenitores, idosos ou dependentes; g) Deslocações para acompanhamento de menores: i) Em deslocações de curta duração, para efeitos de fruição de momentos ao ar livre; ii) Para frequência dos estabelecimentos escolares, ao abrigo do n.º 1 do artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março; h) Deslocações de curta duração para efeitos de atividade física, sendo proibido o exercício de atividade física coletiva; i) Deslocações para participação em ações de voluntariado social; j) Deslocações por outras razões familiares imperativas, designadamente o cumprimento de partilha de responsabilidades parentais, conforme determinada por acordo entre os titulares das mesmas ou pelo tribunal competente; k) Deslocações para visitas, quando autorizadas, ou entrega de bens essenciais a pessoas incapacitadas ou privadas de liberdade de circulação; l) Participação em atos processuais junto das entidades judiciárias; m) Deslocação a estações e postos de correio, agências bancárias e agências de corretores de seguros ou seguradoras; n) Deslocações de curta duração para efeitos de passeio dos animais de companhia e para alimentação de animais; o) Deslocações de médicos-veterinários, de detentores de animais para assistência médico-veterinária, de cuidadores de colónias reconhecidas pelos municípios, de voluntários de associações zoófilas com animais a cargo que necessitem de se deslocar aos abrigos de animais e de equipas de resgate de animais; p) Deslocações por parte de pessoas portadoras de livre-trânsito, emitido nos termos legais, no exercício das respetivas funções ou por causa delas; q) Deslocações por parte de pessoal das missões diplomáticas, consulares e das organizações internacionais localizadas em Portugal, desde que relacionadas com o desempenho de funções oficiais; r) Deslocações necessárias ao exercício da liberdade de imprensa; s) Retorno ao domicílio pessoal; t) Outras atividades de natureza análoga ou por outros motivos de força maior ou necessidade impreterível, desde que devidamente justificados. (…) Artigo 32.º Fiscalização 1 - Compete às forças e serviços de segurança fiscalizar o cumprimento do disposto no presente decreto, mediante: a) O encerramento dos estabelecimentos e fazendo cessar as atividades previstas no anexo I ao presente decreto; b) A emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, a cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos do artigo 348.º do Código Penal, por violação do disposto nos artigos 7.º a 9.º do presente decreto e do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º, bem como a condução ao respetivo domicílio; c) O aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública; d) A recomendação a todos os cidadãos do cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as exceções previstas no artigo 5.º” (fim de transcrição). O Presidente da República, ao renovar, por mais 15 dias (das 0:00 horas do dia 3 de abril às 23:59 horas do dia 17 de abril de 2020) a declaração do estado de emergência, pelo seu Decreto n.º 17-A/2020, de 2 de abril, começou por assinalar que: “Não obstante o exemplar comportamento dos Portugueses no cumprimento destas medidas, bem como a aceitação e apoio que mereceu a declaração do estado de emergência, e sem prejuízo dos efeitos positivos que elas já permitiram alcançar no combate à disseminação da doença, torna-se indispensável a sua manutenção. (…) Os efeitos ainda iniciais das medidas adotadas confirmam o acerto da estratégia seguida e aconselham a sua manutenção. Tal é tanto mais evidente quanto se aproxima o tempo da Páscoa, época tradicional de encontro de famílias e de circulação internacional. É essencial para o sucesso da estratégia traçada e conduzida até aqui que este tempo não conduza ao aumento de contactos entre pessoas e, consequentemente, de infeções.”, para, depois, no ponto 5 do diploma, passar a consignar expressamente que: “Fica impedido todo e qualquer ato de resistência ativa ou passiva exclusivamente dirigido às ordens legítimas emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência, podendo incorrer os seus autores, nos termos da lei, em crime de desobediência.” (fim de transcrição). Nesta sequência, o Decreto da Presidência do Conselho de Ministros n.º 2-B/2020, de 2 de abril, passa, por um lado, a igualmente estabelecer expressamente, no n.º 6 do seu artigo 43.º, que “a desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em violação do disposto no presente decreto, são sancionadas nos termos da lei penal ” e, por outro lado, agrava a pena do crime de desobediência ao mais preceituar que “e as respetivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º da Lei n.º 27/2006, de 3 de julho” (Lei de Bases da proteção Civil) onde se dispõe que: “A desobediência e a resistência às ordens legítimas das entidades competentes, quando praticadas em situação de alerta, contingência ou calamidade, são sancionadas nos termos da lei penal e as respectivas penas são sempre agravadas em um terço, nos seus limites mínimo e máximo.”. Neste contexto, o crime de desobediência, nestes casos, passaria a ser punido com pena de prisão até 1 ano e 4 meses ou pena de multa até 160 dias, já que aquele nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal é, fora daqueles casos, punido com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa até 120 dias. No entanto, se atentarmos na globalidade daquele artigo 43.º, do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, temos que: “1 - Compete às forças e serviços de segurança e à polícia municipal fiscalizar o cumprimento do disposto no presente decreto, mediante: a) A sensibilização da comunidade quanto ao dever geral de recolhimento b) O encerramento dos estabelecimentos e a cessação das atividades previstas no anexo I ao presente decreto; c) A emanação das ordens legítimas, nos termos do presente decreto, designadamente para recolhimento ao respetivo domicílio; d) A cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, bem como do artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, por violação do disposto nos artigos 6.º, 9.º a 11.º do presente decreto, bem como do confinamento obrigatório de quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º; e) O aconselhamento da não concentração de pessoas na via pública e a dispersão das concentrações superiores a cinco pessoas, salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar; f) A recomendação a todos os cidadãos do cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, nos termos e com as exceções previstas no artigo 5.º” (fim de transcrição). Ou seja, a violação do dever geral do recolhimento domiciliário, obrigação que está prevista no art. 5.º, quer do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, quer do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, fica de fora seja da segunda parte da alínea d) do n.º 1 do art. 43.º deste último diploma seja da alínea b) do n.º 1 do art. 32.º do primeiro. Já, presentemente, no estado de emergência do corrente ano, quer o Decreto n.º 3-A/2021, de 14 de janeiro, que Regulamentou o estado de emergência decretado pelo Presidente da República, quer o Decreto n.º 3-C/2021, de 22 de janeiro, que alterou a regulamentação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República, estabelecem ambos nos seus artigos 41.º, n.ºs 1, alíneas d) que “Compete às forças e serviços de segurança e às polícias municipais fiscalizar o cumprimento do disposto no presente decreto, mediante a cominação e a participação por crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, bem como do artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, por violação do disposto nos artigos 4.º, 5.º, 14.º e 15.º do presente decreto, bem como do confinamento obrigatório por quem a ele esteja sujeito nos termos do artigo 3.º” Sendo que o mencionado artigo 4.º é o que respeita ao “Dever geral de recolhimento domiciliário”. Sendo de assinalar que o Decreto-Lei n.º 14-E/2021, de 12 de fevereiro, que regulamentando o estado de emergência decretado pelo Presidente da República, procedeu à prorrogação da vigência do Decreto n.º 3-A/2021, de 14 de janeiro, de igual modo prorrogando a vigência do Decreto n.º 3-D/2021, de 29 de janeiro, determinou a continuação da aplicabilidade, até 1 de março de 2021, das regras que aqueles diplomas estabelecem. O mesmo tendo sucedido com Decreto n.º 3-F/2021, de 26 de fevereiro, determinando a continuação da aplicabilidade, até 16 de março de 2021, das regras que aqueles diplomas estabelecem. Ou seja, actualmente é indiscutível que a violação do dever geral de recolhimento domiciliário consubstancia a prática do crime de desobediência. Porém, a lei penal não tem efeitos retroactivos (cfr. artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa e artigos 1.º e 2º do Código Penal). Ainda assim, importa perceber – questão fulcral a agora ser decidida – se o Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, rectificado pela Declaração de Retificação n.º 11-D/2020, de 20 de março, que regulamentou a aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República e que esteve vigente entre 22 março e 3 de abril de 2020, isto é no período temporal a que se reportam os factos em apreciação nestes autos, ao não conter menção expressa a que a violação do dever geral de recolhimento domiciliário constitui crime de desobediência, como já sucedia para a violação da obrigação de confinamento, exclui a possibilidade de incriminação e punição a esse título. Afigura-se-nos que não, porquanto, à data da prática dos factos (29 de março de 2020), a previsão do preenchimento do crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal, já resultava, nesse período de tempo situado entre 22 março e 3 de abril de 2020, da necessária conjugação do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, com o disposto no artigo 7.º da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro, norma - artigo 7.º - que o MºPº em sede de acusação deduzida contra o arguido expressamente referiu ter sido violada e crime para que havia sido o mesmo notificado pela PSP, em 27 de março de 2020, estaria incurso se não permanecesse no domicílio dele se ausentando fora dos casos legalmente previstos, tendo-lhe sido dado a conhecer a respetiva lista de únicas situações e propósitos em que lhe seria permitido circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, e nas quais não constava a situação que apresentou como justificação para circular na via pública em 29 de março de 2020 e que o levou a nessa data sair do seu domicílio. Atente-se que a sentença ora recorrida na sua fundamentação de direito omite por completo qualquer referência ao artigo 7.º da Lei n.º 44/86, pese embora fosse norma constante da acusação pública e alegada como devendo ser conjugada para a punição do arguido a título de desobediência, bem como mais se atente que a sentença ora recorrida na sua fundamentação de direito também omite por completo qualquer referência a, ao ter sido o arguido AA notificado pela PSP, em 27 de março de 2020, de que incorreria no crime de desobediência se não permanecesse no domicílio dele se ausentando fora dos casos legalmente previstos, lhe ter sido dada a conhecer a lista de únicas situações e propósitos em que lhe seria permitido ausentar-se do domicílio e circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas. Com efeito, estabelece o artigo 7.º (epigrafado “Crime de desobediência”), da Lei n.º 44/86, de 30 de setembro (Regime do estado de sítio e do estado de emergência) (publicado no DR n.º 225, Série I, de 30 de Setembro de 1986) (na sua Versão consolidada vigente desde 12 de maio de 2012), , vigente à data dos factos dos autos, que “A violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência.”, sendo que o Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, decretou, nomeadamente que “1.º É declarado o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública. 2.º A declaração de estado de emergência abrange todo o território nacional. 3.º O estado de emergência tem a duração de 15 dias, iniciando-se às 0:00 horas do dia 19 de março de 2020 e cessando às 23:59 horas do dia 2 de abril de 2020, sem prejuízo de eventuais renovações, nos termos da lei. 4.º Fica parcialmente suspenso o exercício dos seguintes direitos: a) Direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional: podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes as restrições necessárias para reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à epidemia, incluindo o confinamento compulsivo no domicílio ou em estabelecimento de saúde, o estabelecimento de cercas sanitárias, assim como, na medida do estritamente necessário e de forma proporcional, a interdição das deslocações e da permanência na via pública que não sejam justificadas, designadamente pelo desempenho de atividades profissionais, pela obtenção de cuidados de saúde, pela assistência a terceiros, pelo abastecimento de bens e serviços e por outras razões ponderosas, cabendo ao Governo, nesta eventualidade, especificar as situações e finalidades em que a liberdade de circulação individual, preferencialmente desacompanhada, se mantém; (…) g) Direito de resistência: fica impedido todo e qualquer ato de resistência ativa ou passiva às ordens emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência.” (fim de transcrição, com negritos nossos). Destarte, em determinadas circunstâncias, a violação do dever geral do recolhimento domiciliário à data dos factos (29 de março de 2020) seria passível de fazer o seu prevaricador incorrer na prática do crime de desobediência, nos termos e para os efeitos da alínea b) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal. Não o seria, quanto a nós, com o devido respeito e salva melhor opinião, à data de 29 de março de 2020, a primeira vez que o infractor do dever geral do recolhimento domiciliário fosse interceptado pela autoridade policial, caso em que apenas lhe deveria ser por esta recomendado o cumprimento do dever geral do recolhimento domiciliário, e aquele de imediato a acatasse, mas se a autoridade policial nessa primeira ocasião, emanando ordem que era legítima, lhe tivesse ordenado a que, nos termos do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, permanecesse no domicílio e dele tão-só se ausentasse nas situações previstas no seu art. 5.º, indicando-lhe especificadamente quais eram essas exceções, e com a cominação de que não o respeitando incorreria na prática do crime de desobediência, o cidadão nela – desobediência – incorreria se, posteriormente, em nova fiscalização policial, ocorrida noutra data, viesse a verificar-se estar novamente em violação do dever geral do recolhimento domiciliário, bem sabendo que a sua saída da residência não estava enquadrada em nenhuma das exceções, que não podia desconhecer quais eram, e já tendo sido notificado para, salvo no caso de alguma delas, permanecer no domicílio, com a advertência – em forma de legal notificação – de que incorreria na prática do crime de desobediência. Tudo isto se verificou no caso dos autos quanto ao arguido, contrariamente aos demais indivíduos que com ele se encontravam na ocasião, que, apesar de estarem igualmente em situação de flagrante violação do dever geral do recolhimento domiciliário, era a primeira vez que eram policialmente fiscalizados constando-se estarem nesse quadro de ilegalidade. Na falta de jurisprudência e doutrina, suficientemente densificada, sobre esta questão, para além da aportada pelo recorrente, de que mais abaixo se dará conta, citamos aqui o expedido a este propósito no artigo de opinião do Procurador da República Adão Carvalho, intitulado “O crime de desobediência decorrente da declaração do estado de emergência”, logo publicado a 30 de março de 2020 (dia seguinte ao da prática dos factos) na revista Visão[4], posição que vem em apoio da nossa e com que inteiramente comungamos. Aí consignou aquele Digníssimo magistrado: “O Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência (Lei 44/86, de 30 de setembro) estabelece que a violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou naquele regime, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência. Por seu turno o Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, diploma que procede à execução da declaração do estado de emergência efetuada pelo Decreto do Presidente da República, para vigorar entre 19 de março e 2 de abril de 2020, com fundamento na calamidade pública decorrente da pandemia internacional ocasionada pela doença COVID-19, comina como desobediência a violação da obrigação de confinamento obrigatório que incide sobre os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-Cov2 e os cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa. Não prevê expressamente o Decreto n.º 2-A/2020 a cominação com o referido crime para quem viole o dever especial de proteção previsto no artigo 4º e para quem viole o dever geral de recolhimento domiciliário previsto no artigo 5º. Estão em causa no artigo 4º os maiores de 70 anos e os imunodeprimidos e os portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde devam ser considerados de risco, aos quais só é permitido circular em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, para algum dos propósitos expressamente previstos no mesmo artigo e limitadas ao estritamente necessário como para aquisição de bens ou serviços ou para obtenção de cuidados de saúde. O artigo 5º prevê um dever geral de recolhimento domiciliário para todos os demais cidadãos, permitindo as deslocações com as finalidades aí também previstas com um leque mais alargado que para aqueles, onde se incluem as deslocações para efeitos de desempenho de atividades profissionais ou equiparadas ou para procurar emprego. Embora não esteja prevista expressamente a cominação do crime de desobediência no Decreto n.º 2-A/2020 para quem viole os referidos deveres entendemos que a falta de cumprimento dos mesmos pode fazer incorrer os infratores na prática do crime de desobediência. Tal decorre da norma geral prevista no Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência e que deverá ser conjugada com o artigo 32º do Decreto n.º 2-A/2000 o qual estabelece que compete às forças e serviços de segurança fiscalizar o cumprimento do disposto no referido decreto, designadamente através da emanação de ordens legítimas, nos termos aí previstos, bem como a cominação e a participação por crime de desobediência. Tal previsão legitima que qualquer força ou serviço de segurança, no uso dos seus poderes possa emitir uma ordem de acatamento dos deveres impostos pela Declaração do Estado de Emergência, com expressa cominação da prática do crime de desobediência, tanto mais que recai sobre os cidadãos o dever de colaborar no cumprimento de ordens ou instruções dos órgãos e agentes responsáveis pela segurança, proteção civil e saúde pública na pronta satisfação de solicitações, que justificadamente lhes sejam feitas pelas entidades competentes para a concretização das medidas, não podendo resistir àquelas ordens ou instruções. Assim, embora se possa questionar que a violação dos deveres especial e geral acima referidos possam, sem mais, integrar a prática do crime de desobediência, até porque existem muitas situações cinzentas ou de fronteira que implicam um reforço de clarificação das consequências do incumprimento das medidas, certo é que as autoridades podem elucidar os cidadãos que os seus comportamentos constituem infração ao estado de emergência decretado e cominar expressamente com desobediência a reiteração desses comportamentos.” (fim de transcrição). Por seu turno, como doutamente expendeu o recorrente nas suas motivações de recurso, a que aderimos, atenta à sua boa argumentação, pela clareza e acerto jurídico, e por estar em consonância com a posição já supra expressa ser a deste tribunal ad quem: “Da última ratio do crime de desobediência e da validade da sua cominação Entende a Mm.ª Juíza a quo, na fundamentação de direito da sentença ora recorrida, que se levantam muitas dúvidas sobre a criminalização da desobediência por violação das regras impostas em Estado de Emergência quanto ao dever geral de recolhimento domiciliário, previsto no art.º 5º do decreto 2-A/2020, de 30/3, competindo saber qual a consequência para o seu não acatamento, tendo sempre como base de partida que o crime previsto no art.º 348º, n.º 1, al. b), do Código Penal tem natureza subsidiária e existe apenas para os casos em que nenhuma norma jurídica prevê o comportamento desobediente, comportando em si dois passos: - O desrespeito por uma ordem legítima; - A cominação da punição da conduta por desobediência. Não podemos, aqui, deixar de concordar. (…) Vejamos então se a conduta do arguido violou o disposto no art.º 5º do Decreto 2-A/2020, de 20/3. Face à recente situação de calamidade por pandemia, ante a propagação da doença contagiosa denominada Covid-19, foi declarado o Estado de Emergência e, ao que nos interessa, foi estabelecido o dever geral de recolhimento domiciliário, comum aos Decretos 2-A/20202, 2-B/2020 e 2-C/2020. Porque os factos que foram sujeitos a julgamento tiveram lugar na vigência do Decreto 2-A/2020, de 20/3, reproduzindo aqui o normativo legal: Artigo 5.º Dever geral de recolhimento domiciliário (…) Para fiscalização do cumprimento deste e dos demais deveres impostos aos cidadãos, prevê o art.º 32º do mesmo Decreto, que agora se reproduz (…) Da análise dos dois normativos em causa, podemos ter duas certezas: - Que o facto de estar na via pública, em situação de convívio social num grupo de 4 não é umas das excepções ao dever geral de recolhimento, nem, considerada a sua ratio, se pode considerar uma actividade de natureza análoga às demais elencadas, não se verificando qualquer motivo de força maior ou qualquer necessidade impreterível que tenha obrigado o arguido a tal conduta - art.º 5º, n.º 1, al. t). - Que as forças de segurança têm poder para emanar ordens legítimas para cumprimento do dever geral de recolhimento, de cominar e de participar por crime de desobediência, nos termos e para efeitos do disposto no art.º 348º, do Código Penal, art.32º, n.º 1, al. b). Pelo que quanto a nós, sendo legítima a ordem para os cidadãos regressarem ao seu domicílio, a única questão juridicamente relevante é saber se as forças de segurança podem cominar a prática de um crime de desobediência para os cidadãos que sejam novamente fiscalizados em incumprimento de tal dever, podendo, nesse caso, proceder à sua detenção e apresentá-los em Tribunal para serem sujeitos a julgamento sob a forma de processo sumário. Entende a Mm.ª Juíza a quo que assim não o é, que perante cada situação concreta de violação de dever de recolhimento domiciliário tem de ser cominada a prática de um crime de desobediência que só é válida para aquela situação, pelo que, se só naquele momento não regressar ao domicílio é que o cidadão comete um crime de desobediência, ou seja, ante a cominação que lhe é feita naquela ocasião. É que, voltando ao caso concreto, resultou provado que no dia no dia 27/3/2020 o arguido foi advertido que, no âmbito da Declaração do Estado de Emergência, teria de “deslocar-se para o seu domicílio o mais rápido possível, onde deve permanecer”, sob pena de incorrer no crime de desobediência, cominação de que este ficou ciente, sendo que no dia 29/3 foi novamente interceptado na via pública em situação de convívio social com um grupo de outros três indivíduos. Ou seja, por estar em incumprimento do dever geral de recolhimento ao domicílio no dia 27/3, foi devidamente notificado por elementos das forças policiais de que não podia permanecer na via pública naquelas condições, atento o Estado de Emergência em que Portugal se encontra, devendo regressar imediatamente à residência, pois caso não o fizesse ou voltasse a incorrer no mesmo tipo de comportamento, cometia um crime de desobediência. E arguido ficou ciente de tal advertência, mas no dia 29/3 voltou a ser visualizado numa nova situação de incumprimento, em convívio social. Sendo lícita a ordem para que os cidadãos regressem ao seu domicílio, qual é a consequência quando voltem a incumprir tal dever? - Cometem de imediato um crime de desobediência, independentemente de qualquer cominação? - Ou só cometem um crime de desobediência se, em situação prévia, contemporânea e semelhante, já haviam sido advertidos de que, em caso de futura violação, cometeriam o crime de desobediência? - Ou não há qualquer crime no caso de violação do dever geral de recolhimento, estando o crime de desobediência reservado para a violação do disposto no art.º 3º do Decreto 2-A/2020 (confinamento obrigatório) ou, após prévia cominação, apenas para as situações dos artº.s 7º (encerramento de instalações e estabelecimentos), 8º (suspensão de actividades no âmbito do comércio a retalho) e 9º (suspensão de actividades no âmbito da prestação de serviços), como parece decorrer do teor literal do art.º 32º, n.º 1, al. b), do Decreto 2-A/2020? Sendo esta a primeira vez que Portugal se vê perante uma situação de Estado de Emergência, a resposta a estas questões, não sendo simples, é possível, sendo, porém, necessário situar os diplomas no ponto de vista temporal e compreender a sua ratio. Do Estado de Emergência, em geral Sendo um estado de excepção constitucional, que acarreta a suspensão de vários direitos, liberdades e garantias, o Estado de Emergência, para o que aqui nos interessa, depende do aparecimento de uma situação de calamidade em que, como no presente caso, a necessidade de salvaguardar a saúde pública e de travar o sistemático contágio do vírus Covid-19, levou ao decretamento de medidas extremas, art.º 1º, n.º 1, da Lei 44/86, de 30/9, Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência, adiante Lei 44/86, restrições essas que, com respeito pelos princípios da adequação e proporcionalidade, se devem limitar, quer pela sua duração, quer pela sua extensão, quer quanto aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao rápido restabelecimento da normalidade. Tal estado de excepção teve na sua base a declaração do Sr. Presidente da República, Decreto do Presidente da República n.º 14-A/20202, de 18/3, que declarou o Estado de Emergência ante a qualificação pela Organização Mundial de Saúde de uma situação de emergência de saúde pública internacional ocasionada pela doença covid-19, como uma pandemia internacional, que constitui uma calamidade pública. Tal estado teria a duração de 15 dias, sem prejuízo de eventuais renovações. No que aqui nos interessa, o direito de deslocação ficou bastante restringido, decorrendo do seu texto que, “Direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional: podem ser impostas pelas autoridades públicas competentes as restrições necessárias para reduzir o risco de contágio e executar as medidas de prevenção e combate à epidemia, incluindo o confinamento compulsivo no domicílio ou em estabelecimento de saúde, o estabelecimento de cercas sanitárias, assim como, na medida do estritamente necessário e de forma proporcional, a interdição das deslocações e da permanência na via pública que não sejam justificadas, designadamente pelo desempenho de atividades profissionais, pela obtenção de cuidados de saúde, pela assistência a terceiros, pelo abastecimento de bens e serviços e por outras razões ponderosas, cabendo ao Governo, nesta eventualidade, especificar as situações e finalidades em que a liberdade de circulação individual, preferencialmente desacompanhada, se mantém”. Restringido ficou também o direito de resistência: “Fica impedido todo e qualquer acto de resistência activa ou passiva às ordens emanadas pelas autoridades públicas competentes em execução do presente estado de emergência”, mais se determinando que “são ratificadas todas as medidas legislativas e administrativas adotadas no contexto da presente crise, as quais dependam da declaração do estado de emergência”. A este Decreto seguiu-se a autorização/ratificação por parte da Assembleia da República, Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, de 18/3, que reproduz o decreto presidencial, obtendo exequibilidade através do Decreto n.º 2-A/2020, de 20/3, da lavra do Governo, em sede de Conselho de Ministros, cujos art.º 5º (dever geral de recolhimento domiciliário) e 32º (fiscalização) acima transcrevemos. Claro que o regime a que obedeceu a concepção e execução do Estado de Emergência não foi qualquer inovação mas teve como ponto de partida e limite a Lei 44/86, de valor reforçado, já acima mencionada, sendo aqui de reter o seu art.º 7, que reproduzimos: Artigo 7.º Crime de desobediência A violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respetivos autores em crime de desobediência. Cremos que este normativo é de primordial importância para a questão que cumpre resolver pois, com base no seu teor é possível já afirmar ser absolutamente defensável que, face a este dispositivo, todas as violações às normas jurídicas que regulam o Estado de Emergência comportam a prática de um crime de desobediência, nele se incluindo, por razões óbvias, a violação do dever geral de recolhimento domiciliário – É esta a posição de Vânia Filipe Magalhães, no seu artigo “Reflexões sobre o crime de desobediência em Estado de Emergência”, publicado na Revista “Julgar”, disponível on line, escrito na data em que vigorava o Decreto 2-A/2020, sustentando que “Reportando-se este art.º (7º da Lei 44/86) à execução da Lei, só pode querer significar que o crime de desobediência é aplicável a todas as violações das normas emanadas na Declaração do Estado de Emergência e na resolução de execução emitida pelo Governo nos termos do art.º 17º do Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência”. Pouco ainda se encontra escrito sobre a nova legislação que dá execução ao Estado de Emergência, mas, dos escritos a que tivemos acesso, cremos que não assiste razão a Alexandre Oliveira no seu artigo “O crime de desobediência no actual estado de emergência, em especial no domínio das restrições ao direito de deslocação e fixação”, publicado no ebook do CEJ “Estado de Emergência - Covid 19 – Implicações na Justiça”, disponível na página daquele Centro de Estudos. No ponto de vista deste autor, o art.º 7º da Lei 44/86 não está de forma alguma a criminalizar os comportamentos do comum dos cidadãos que violem o estabelecido no Decreto do Presidente da República, na Resolução da Assembleia da República e no Decreto do Governo acima identificados, porquanto não podemos ignorar que na sua versão original este normativo previa exclusivamente a responsabilidade dos titulares dos cargos político-administrativos, sendo, por isso um crime de responsabilidade – dispunha a sua versão original, antes das alterações introduzidas pela Lei 1/2012, de 11/5, sob a epígrafe “Crimes de Responsabilidade”, “A violação do disposto na declaração do estado de sítio ou do estado de emergência ou na presente lei, nomeadamente quanto à execução daquela, faz incorrer os respectivos autores em crime de responsabilidade”. Sendo esta a versão inicial do art.º 7º da Lei 44/86, a verdade é que a revisão introduzida pela Lei 1/2012, de 11/5, alterou expressamente este normativo, pois onde se falava em crime de responsabilidade para os titulares dos cargos com a função de executarem o regime jurídico e administrativo do Estado de Emergência, fala-se agora de um crime de desobediência, não nos parecendo que os destinatários de tal consequência penal sejam somente os titulares de cargos político administrativos, nada impedido que se dirija igualmente aos demais cidadãos, optando-se aqui, neste caso, pela posição quanto a esta questão expressa por André Lamas Leite, no seu artigo “Desobediência em tempos de cólera”, in Revista do Ministério Público, número especial Covid-19. E neste contexto não será defensável que a violação do dever geral de recolhimento não tem qualquer consequência penal, que não comporta a prática de um crime de desobediência, ficando os poderes das forças policiais a meras “sensibilizações”, “aconselhamentos” e “recomendações”, pois que estas têm o poder de, legitimamente, dar ordens aos cidadãos para que regressem ao seu domicílio, advertindo-os de que, caso voltem a incumprir tal dever geral, incorrerão na prática de um crime de desobediência, motivando a sua detenção e sujeição a julgamento pela prática de tal crime. De outra forma o Estado estaria a prescindir da sua autoridade, deixando que à boa vontade dos cidadãos o cumprimento do dever geral de recolhimento domiciliário, pois que o seu incumprimento apenas poderia dar lugar a uma recomendação ou aconselhamento para regressar ao domicílio, o que não só enfraqueceria desmesuradamente o comando ínsito na norma como frustraria a contenção da pandemia, o que não se queria, sendo certo que a responsabilidade penal do cidadão encontrará sempre arrimo nos citados art.º 7º, da Lei 44/86, art.º 5º do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18/3, art.º 5º da Resolução da Assembleia da República n.º 15-A/2020, de 18/3, e art.º 32, do Decreto 2-A/20202, de 20/3, ainda que se exija a prévia cominação por parte das autoridades policiais, nos termos do art.º 348º, n.º 1, b), do Código Penal, a qual, no presente caso, efectivamente até existiu, no dia 27/3, tal como referido na factualidade assente na sentença ora em crise. Assim cremos que fica sobejamente justificada a possibilidade de, em situação de incumprimento do dever geral de recolhimento social, ser cominada, para futuras violações de tal dever, a prática do crime de desobediência, não nos parecendo, ao invés do sustentado na sentença ora recorrida, que cada vez que o cidadão incumpra tal dever tenha sempre de ser novamente sensibilizado e aconselhado para o cumprimento do mesmo, recomendado a voltar ao domicílio e que só perante uma recusa efectiva e naquele mesmo dia pode ser cominada a prática de um crime de desobediência. Tal exigência, que não decorre da lei, frustraria o cumprimento efectivo do dever geral de recolhimento domiciliário pois, na esmagadora maioria das vezes, o cidadão acata momentaneamente a ordem, mas, momentos, horas ou dias volvidos volta a incorrer na mesma violação. Aqui exigir que se repetissem novamente todos preceitos de que o cidadão já está esclarecido – foi ampla a divulgação das excepções ao dever geral de recolhimento domiciliário nos meios de comunicação social -, o novo aconselhamento, a recomendação, a sugestão para voltar ao domicílio, retiraria, como dissemos, toda a eficácia ao dever geral de recolhimento domiciliário como um dos deveres integrantes do Estado de Emergência, tal como este foi decretado pelo Sr. Presidente da República, nos Decretos já mencionados. Por tais motivos, a cominação da prática de um crime de desobediência não tem de ser renovada cada vez que o cidadão incumpre o dever de recolhimento domiciliário, ao contrário do sustentado na sentença agora recorrida. Sendo o Estado de Emergência uma excepção constitucional que foi decretada e que foi renovada mais duas vezes, é óbvio que tal cominação tem de valer para o futuro. Se o cidadão foi advertido das consequências da sua actuação violadora do dever geral de recolhimento já uma vez, e dela ficou ciente, tal como decorre da factualidade provada, não se vê que as suas garantias de defesa exijam que cada vez que incumpre seja advertido, notificado e cominado para actuações futuras e que quando se coloca outra vez, voluntariamente, na mesma situação de violação tenha de ser sempre advertido, notificado e cominado, num círculo interminável, ante a impossibilidade de as forças de autoridade poderem proceder à sua detenção para serem sujeitos a julgamento.” (fim de transcrição). Pelo exposto, tudo visto e ponderado, no caso concreto, perante a factualidade apurada e o enquadramento jurídico supra traçado, o comportamento do arguido é subsumível, à prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo disposto no artigo 348.º, n.º 1 al. b) do Código Penal, por referência à violação do artigo 5.º (Dever geral de recolhimento domiciliário) do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março (que regulamentou a aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República a 18 de março de 2020) a conjugar com o artigo 7.º da Lei n.º 44/86 (Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência), pelo que, e não se vislumbrando quaisquer causas de exclusão da culpa ou justificação da ilicitude, importa passar a determinar a escolha e medida da pena a ser-lhe aplicada. Tendo-se aqui em consideração o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de janeiro de 2016 em que “É fixada jurisprudência no sentido que em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena.” 4.3. Segundo o n.º 1 do art. 71.º do Código Penal (doravante CP), «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». Por sua vez, dispõem os nºs 1 e 2 do art. 40.º do CP que «a aplicação de penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» - já que o processo de determinação da pena é (e só pode ser) um puro derivado da posição tomada pelo ordenamento jurídico-penal em matéria de sentido, limites e finalidades da aplicação das penas. Na determinação da medida da pena, o requisito legal de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção satisfaz a necessidade comunitária de punir o crime e, consequentemente, de realizar as finalidades da pena; o requisito legal de que seja considerada a culpa do agente satisfaz a exigência de que a vertente pessoal do crime, decorrente do respeito pela dignidade da pessoa do agente da prática do crime, limite as exigências de prevenção. Os fins das penas têm sido equacionados a partir de um objetivo essencial: a redução ou prevenção da criminalidade. Na concretização deste objetivo identificamos a prevenção geral e a prevenção especial. A primeira na perspetiva da intimidação coletiva, a segunda na perspetiva da intimidação individual, isto é, de prevenção da reincidência. Com a determinação que sejam tomadas em consideração as exigências de prevenção geral procura dar-se satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respetivos bens jurídicos. E com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se satisfazer as exigências da socialização do agente, com vista à sua reintegração na comunidade (Ac. do S.T.J. de 4-7-1996, Col. de Jur.- Acs. do S.T.J., ano IV, tomo 2, pág. 225). A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência coletiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstrata, entre o mínimo em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente: entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. do S.T.J. de 15-10-1997, Proc.º n.º 589/97, 3ª secção). É também esta, em síntese, a lição do Prof. Figueiredo Dias quer em “O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187, quer em Direito Penal Português, pág. 198, bem como de Robalo Cordeiro em Escolha e Medida da Pena, em Jornadas de Direito Criminal, pag. 269 e ainda de Manso Preto, em Moldura Penal Abstracta, Pena Concreta, Escolha da Pena, pág. 162. "A pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada... É, pois, o próprio conceito de prevenção geral de que se parte que justifica que se fale aqui de uma «moldura» de pena. Esta terá certamente um limite definido pela medida de pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto óptimo de realização das necessidades preventivas da comunidade. Mas, abaixo desta medida de pena, outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a protecção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral; definido, pois, em concreto, pelo absolutamente imprescindível para se realizar essa finalidade de prevenção geral e que pode entender-se sob a forma de defesa da ordem jurídica" (Anabela Miranda Rodrigues, in "A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade", Coimbra Editora, pág. 570-571) Modernamente, da prevenção especial decorre ainda aquilo que se pode designar de reforma e que consiste na ressocialização do delinquente. Este fim de ressocialização do delinquente vai para além da prevenção da reincidência, tal como esta tem sido classicamente entendida. Pretende-se que o delinquente não reincida não por recear sofrer numa reação criminal, mas porque não tem necessidade de cometer o crime, uma vez que pode levar uma vida ética e socialmente não reprovável. E é deste quid que emerge o conceito de reinserção social (Relatório do Provedor de Justiça apresentado à Assembleia da República, 2007, pág. 20). Com efeito, tendo em vista o assinalável desajustamento que se verificava entre as finalidades político-criminais subjacentes ao Código Penal de 1982 e a experiência resultante da sua aplicação prática, o legislador, com a revisão operada em 1995 quis afirmar, expressamente, no artigo 40.º, então introduzido, como proposições basilares do programa político-criminal: que o direito penal é um direito vinculado à tutela de bens jurídicos; que a culpa é tão-só limite da pena; que a intervenção penal tem como finalidade a "proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade". Foi reafirmado, igualmente, o princípio da ultima ratio da pena de prisão, valorizando-se o papel da multa como pena principal e alargando-se o âmbito de aplicação das penas de substituição. Na exposição de motivos da proposta de Lei 98/X (que está na origem da revisão de 2007) podemos ler que a revisão procura "fortalecer a defesa dos bens jurídicos, sem nunca esquecer que o direito penal constitui a ultima ratio da política criminal do Estado", indicando-se, entre as principais orientações da revisão, "a diversificação das sanções não privativas da liberdade, para adequar as penas aos crimes, promover a reintegração social dos condenados e evitar a reincidência". Versando sobre este tema, Adelino Robalo Cordeiro disse nas Jornadas de Direito Criminal, (Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, 1998, pág. 48): “O critério geral que preside à escolha da pena (artigo 70.º) e bem assim os critérios particulares a que obedece a aplicação (escolha) das penas de substituição, assentam no pressuposto comum, clara e repetidamente explicitado na redacção introduzida pela Revisão, de que a pena escolhida há-de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, tal como agora definidas no artigo 40.º, n.º 1: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, vale dizer, as exigências de prevenção geral positiva e de prevenção especial de socialização. São, portanto, puras razões ou exigências de prevenção que dominam a operação de escolha da pena, portanto a aplicação das penas de substituição: a culpa esgotou as suas virtualidades na determinação da pena principal.”. Dentro dos limites estabelecidos no tipo legal, a determinação da medida da pena faz-se em função da culpa do arguido e as exigências de prevenção (art. 71.º, n.º 1, e 40.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CP), havendo que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o arguido considerando, nomeadamente, os fatores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do art. 71.º do CP. Dito de outro modo, a determinação da medida concreta da pena há-de efectuar-se em função da culpa do agente (relevando o ilícito típico, através desta) e das exigências de prevenção, quer a prevenção geral positiva ou de integração (proteção de bens jurídicos), quer a prevenção especial (reintegração do agente na sociedade) - art. 40.º, n.º 1, do CP -, funcionando a culpa como limite máximo que aquela pena não pode ultrapassar (n.º 2 deste art. 40.º). As circunstâncias referidas no n.º 2 do art. 71.º do CP constituem os itens a que deve atender-se para a fixação concreta da pena e atuam dentro dos limites da moldura penal abstrata, sem se partir de qualquer ponto determinado dessa moldura. São essas circunstâncias e outras que tenham igual relevância do ponto de vista da culpa e da prevenção, porque a enumeração legal é exemplificativa, que vão determinar a medida concreta da pena, a qual há-de satisfazer as necessidades de tutela jurídica do bem jurídico violado e as exigências de reinserção social do agente. A medida da tutela dos bens jurídicos, correspondente à finalidade de prevenção geral positiva ou de integração, é referenciada por um ponto ótimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime, entre esses limites se devendo satisfazer, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, às quais cabe, em última análise, a função de determinação da medida da pena dentro dos limites assinalados - cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, p. 227 e ss. Lembre-se ainda que, como se expendeu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15 de janeiro de 2014, proferido no processo 24/13 e consultável na JusNet, "A multa, como autêntica pena criminal que é, não pode deixar de realizar plenamente as finalidades da punição, em particular a finalidade de prevenção geral positiva. Por isso, sempre com respeito pelo limite imposto pela medida da culpa, não podem ser aplicadas multas leves, quase insignificantes (e frequentemente pagas em suaves prestações) ou que, verdadeiramente, não representem um sacrifício para o condenado, pois de contrário serão vistas como uma absolvição disfarçada ou uma dispensa de pena. Uma pena de multa que seja meramente simbólica é, irremediavelmente, afectada na sua eficácia preventiva, não atingindo sequer o nível mínimo da verdadeira advertência penal. Dizendo de outro modo, a pena de multa, para ter eficácia dissuasora, tem de pesar e constituir um verdadeiro sacrifício para quem a sofre." Ou seja, se é certo que com a aplicação da pena de multa não se visa um qualquer confisco que coloque o arguido na dificuldade de fazer face às despesas de subsistência (ex. alimentação, vestuário, saúde, etc.), é igualmente certo que a multa não deve ser tão branda que não envolva um phatos, um efectivo sofrimento provocado pela pena. Neste sentido, veja-se o expendido no Acórdão da Relação de Évora de 20 de janeiro de 2004, publicado em www.dgsi.pt: "a multa deve, pois, traduzir-se num encargo sensível não podendo converter-se num negócio cómodo para o condenado". No que respeita ao crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, a alternativa entre pena privativa ou não da liberdade coloca-se, porquanto a lei estabelece uma moldura penal abstracta que tanto pode ser a prisão até 1 ano como a de multa até 120 dias. Sendo possível aplicar uma pena privativa e uma pena não privativa da liberdade deve o tribunal, atento o disposto no artigo 70.° do Código Penal, dar preferência à segunda, desde que esta realize de uma forma adequada as finalidades da punição, nomeadamente as fixadas pelo artigo 40.° do mesmo diploma legal: "a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade." . Descendo ao caso destes autos, há que considerar que as exigências de prevenção geral quanto a este tipo de criminalidade, crescente no país, são já de enorme relevância. Na verdade, tem vindo a aumentar a preocupação pelo acréscimo de desrespeito ao dever geral do recolhimento domiciliário decretado no quadro dos estados de emergência decorrentes da calamidade pública da pandemia internacional ocasionada pelo novo coronavírus SARS-Cov2 e pela doença COVID-19 dele resultante, que em Portugal, no espaço de doze meses, já levou à morte de mais de 16000 pessoas e ao limite as estruturas do Serviço Nacional de Saúde e dos seus profissionais, mesmo ao “quase-colapso/ruptura” e exercício de “medicina de catástrofe”, perante um excessivo número de hospitalizados, muitos deles em Unidades de Cuidados Intensivos, a que reconhecidamente, perante a ainda falta de tratamento/medicação eficaz e a inexistência de vacinas em quantidade suficiente para a população portuguesa em termos de se atingir a imunidade de grupo, só medidas preventivas de confinamento e distanciamento social, em que se insere o dever geral do recolhimento domiciliário, se revelam adequadas a evitar o contágio pessoa-a-pessoa e a propagação da doença pela criação de candeias de transmissão, sendo já superior a 800.000 o número de pessoas testadas confirmadamente como positivas no nosso país e quase 17.000 os óbitos verificados em razão da Covid-19. E foram comportamentos como os do ora arguido que em muito contribuíram para o estado de calamidade a que se chegou, em cujo pico máximo as mortes diárias chegaram a ultrapassar as 300 e os novos infectados os 16.000, sendo que na ocasião dos factos dos autos (em curva ascendente da 1ª vaga) nem sequer se estava, como hoje sucede (em curva descendente da 3ª vaga), numa situação em que as pessoas começam a afrouxar as medidas de necessário recolhimento e distanciamento social perante notório cansaço de tantos meses sujeitas a longos períodos de confinamento domiciliário. Como dá conta a Direção-Geral da Saúde (DGS) no seu site “As medidas de afastamento social, como o isolamento e o distanciamento social são essenciais em Saúde Pública, especialmente utilizadas em resposta a uma epidemia. São das medidas mais efetivas para quebrar cadeias de transmissão, e por isso utilizadas pelas Autoridades de Saúde para minimizar a transmissão da COVID-19. (…) As medidas de distanciamento social são medidas a adotar para reduzir a interação social entre pessoas, de forma a reduzir a transmissão da doença por COVID-19. O sucesso das medidas preventivas depende essencialmente da colaboração dos cidadãos e das instituições. Para quebrar as cadeias de transmissão e proteger a comunidade, é fulcral a adoção de medidas de distanciamento social por todas as pessoas.”[5] Deve, assim, ser reforçada, aos olhos da comunidade, a validade da norma violada que pune tal conduta e protege bens jurídicos fundamentais, como o direito à saúde e in extremis à vida, perante a significativa taxa de mortalidade associada à doença que o recolhimento domiciliário visa evitar. Aos olhos da sociedade é ainda necessário demonstrar que quem prevarica, desrespeitando reiteradamente o dever geral do recolhimento domiciliário, deve ser punido de forma rigorosa, demonstrando a intransigência do Estado para com a insistência em assumir comportamentos socialmente inadmissíveis. Contudo, é de concluir que as necessidades de prevenção especial são in casu algo diminutas, pese embora à data dos factos já ter sido o arguido AA condenado pela prática, no ano anterior (2019), de um crime de detenção de estupefacientes para consumo, que apesar de ser crime de natureza diferente do dos presentes autos, que é o de desobediência ao dever geral do recolhimento domiciliário no quadro da presente pandemia, todavia, o bem jurídico protegido é o mesmo em qualquer dos dois crimes - a defesa da saúde e sanidade públicas. Assim, consideramos que tais circunstâncias ainda permitem aplicar ao arguido uma pena de multa, respondendo esta de forma adequada e suficiente às exigências de prevenção geral e especial que se impõem ao caso. Escolhida a pena principal a aplicar - pena de multa -, cabe-nos agora determinar a sua medida. Tendo presente todo o circunstancialismo dado como provado na decisão recorrida, o elevado grau de culpa do arguido AA, que atuou com a forma de dolo mais intenso (direto), a também elevada ilicitude, enquanto desvalor da acção, aferida pelo tipo de conduta apurada, as elevadas e supra assinaladas necessidades de prevenção geral, face ao apontado acréscimo de violação do dever geral do recolhimento domiciliário, militando a favor do arguido ser jovem (tinha 18 anos à data da prática dos factos), revelando alguma imaturidade, com o denota o seu apurado comportamento, ter confessado a prática dos factos (embora de forma não integral e com reservas) e ter apenas registado um único antecedente criminal, pela prática, no ano de 2019, de um crime de detenção de estupefacientes para consumo, tendo sido condenado em pena de multa, parece-nos como perfeitamente adequada, por justa e proporcional, fixar a medida da pena em 60 (sessenta) dias de multa, pena essa que, moldada segundo o rigor de compreensão dos factores de ponderação, se revela inteiramente ajustada, não violando o princípio da proporcionalidade (proibição de excesso), consagrado no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, nem os subprincípios, em que aquele se desdobra, da necessidade (ou exigibilidade), da adequação e da racionalidade (ou da justa medida), e se situa próxima do limite médio legalmente previsto. Atendendo à situação económica do arguido AA, que é estudante do secundário e não tem rendimentos mensais próprios (pelo menos constantes, já que em julgamento disse apenas que trabalha por vezes nas férias, sem esclarecer onde, em quê e quanto aufere), dependendo, portanto e em primeira linha dos pais, com quem vive, juntamente com irmãos, reputa-se por inteiramente justificado, razoável e justo fixar a taxa diária para cada dia de multa no mínimo legal, que é de € 5,00 (cinco euros) (vd. 47.º, n.º 2, do CP), perfazendo, assim, a pena de multa o montante de € 300,00 (trezentos euros). Lembre-se ainda, a este propósito, que, por um lado, como Maia Gonçalves[6] refere, “a amplitude atribuída pela lei ao montante diário da multa prende-se com a exigência da realização do princípio da igualdade de ónus e sacrifícios por forma a esbater a crítica apontada a esta pena que é a de ter distintos pesos, conforme a situação económica do agente”, e, por outro lado, como é entendimento corrente, a taxa diária da multa deve ser fixada de modo a representar um sacrifício real para o condenado, para que mantenha a sua característica de verdadeira pena, pois de outro modo não será possível, através da sua aplicação, realizar as finalidades da punição. No entanto, não pode deixar de ser assegurado o mínimo necessário e indispensável à satisfação das suas necessidades básicas e do seu agregado familiar. Se a multa agora aplicada ao arguido AA não for paga, voluntária ou coercivamente, terá que cumprir 40 (quarenta) dias de prisão subsidiária, nos termos do art. 49.º, n.º 1, do Código Penal. III – Decisão Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, em conformidade com o que decidem alterar a matéria de facto provada e não provada nos termos acima indicados [em síntese: aditando aos factos provados o que consta nos três novos pontos n.ºs 14., 15. e 16. e eliminando os que na sentença recorrida foram dados como não provados sob as alíneas a) a c)], e, consequentemente, condenam o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo disposto no artigo 348.º, n.º 1 alínea b), do Código Penal, por referência à violação do artigo 5.º (Dever geral de recolhimento domiciliário) do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março (que regulamentou a aplicação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República a 18 de março de 2020), a conjugar com o artigo 7.º da Lei n.º 44/86 (Regime do Estado de Sítio e do Estado de Emergência), na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo o montante de € 300,00 (trezentos euros), sendo que se a multa não for paga, voluntária ou coercivamente, terá que cumprir 40 (quarenta) dias de prisão subsidiária, nos termos do art. 49.º, n.º 1, do Código Penal. Mais vai o arguido condenado a pagar as custas e demais encargos do processo, fixando a taxa de justiça no seu limite mínimo (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela III anexa a este último diploma legal). Notifique nos termos legais, sendo ainda o arguido de que, transitada em julgado a presente decisão, pode, requerer junto do tribunal de primeira instância, isto é do Juízo Local de Pequena Criminalidade de Loures – J2, que a pena de multa em que agora vai condenado (fixada em trezentos euros) seja, total ou parcialmente, substituída por dias de trabalho a favor da comunidade, a ser realizado em estabelecimentos, oficinas ou obras do Estado ou de outras pessoas colectivas de direito público, ou ainda em instituição particular de solidariedade social, podendo ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, mas neste caso sem que os períodos de trabalho possam prejudicar as actividades escolares (tempos lectivos/aulas) e/ou a sua jornada normal de trabalho, se for o caso, tudo nos termos dos artigos 49.º, n.ºs 1 e 2, e 58.º, n.º 4, ambos do Código Penal. Após trânsito, deverá, na primeira instância, ser remetido Boletim à D.S.I.C., nos termos do disposto nos artigos 5.º e 6.º al. a) da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio, e 12.º do DL n.º 171/2015, de 25 de agosto. (o presente acórdão foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2, do CPP) Lisboa, 11 de março de 2021 Calheiros da Gama Abrunhosa de Carvalho _______________________________________________________ [1] In www.stj.pt [2] Vd., entre outros, os Acórdãos desta Secção e Relação prolatados em 12 de março de 2016 no processo n.º 247/13.0 PFLSB.L1, em 22 de março de 2017 no processo n.º 119/15.3SKLSB.L1, em 22 de março de 2018 no processo n.º 629/16.5GBMFR.L1, em 20 de setembro de 2018 no processo n.º 509/17.7PULSB.L1, em 11 de abril de 2019 no processo n.º 73/07.5TELSB.L1, em 2 de maio de 2019 no processo n.º 41/17.9PFAMD.L2, em 23 de dezembro de 2019 no processo n.º 83/15.9PJLRS.L1 e em 10 de setembro de 2020 no processo n.º 785/17.5T9VFX.L1, todos relatados pelo ora relator. [3] Cf. Ac. do STJ de 26-02-2009, Proc. n.º 3270/08 - 5.ª, ibidem. [4] Disponível em https://visao.sapo.pt/opiniao/2020-03-30-o-crime-de-desobediencia-decorrente-da-declaracao-do-estado-de-emergencia/ bem como em https://www.smmp.pt/actividade-smmp/o-crime-de-desobediencia-decorrente-da-declaracao-do-estado-de-emergencia/ [5] Vd. https://covid19.min-saude.pt/wp-content/uploads/2020/04/Distanciamento-social-07-04-2020.pdf [6] Vide MAIA GONÇALVES, “Código Penal Anotado”, 8.ª Edição, p. 307. |