Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3667/23.8YRLSB-5
Relator: SANDRA OLIVEIRA PINTO
Descritores: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
AMPLIAÇÃO
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/03/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
Decisão: DEFERIDA A EXECUÇÃO
Sumário: I- O princípio da especialidade só constitui uma salvaguarda enquanto o extraditado se encontrar sob a tutela do Estado requerente, sofrendo, porém, exceções, como ocorre quando houver consentimento do Estado requerido na ampliação, para que a pessoa entregue em cumprimento do MDE responda por outros processos.
II- O consentimento para a execução de um novo MDE quando solicitado por uma autoridade judiciária de um Estado Membro a uma autoridade judiciária de Portugal (na qualidade de Estado de Execução de um anterior MDE), deve por esta ser prestado, sempre que a infração para a qual é solicitado devesse ela própria dar lugar à entrega do requerido.
III- A aplicação de qualquer das causas de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu terá sempre que ser justificada pela demonstração das reais vantagens que resultem para a investigação e conhecimento dos crimes objeto do mandado, da prevalência da jurisdição nacional sobre a jurisdição do Estado de emissão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório
O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação apresentou requerimento em que vem “promover a execução do Pedido de Extensão do Mandado de Detenção Europeu (MDE) apresentado pelas Autoridades Judiciárias ...”, invocando, para o efeito, os artigos 7.º, n.º 2, alínea g) e n.º 4, alíneas a) e d) e 8.º, n.ºs 4 e 5 da Lei n.º 65/ 2003, de 23 de agosto, na redação conferida pela Lei n.º 35/2015, de 04 de maio, respeitante a AA, m. id. nos autos, atualmente detido em ....
Para tanto, alegou em síntese:
Por acórdão deste Tribunal da Relação, proferido neste processo nº 3667/23.8YRLSB, datado de 23 de janeiro de 2024, foi deferida a entrega do requerido às autoridades judiciárias ..., em execução de MDE anteriormente contra ele emitido, para efeitos de procedimento criminal, tendo a entrega sido concretizada em 25 de março de 2024.
Foi agora apresentado pedido de extensão do Mandado de Detenção Europeu, pedido formulado em 14.03.2025, pelo Procurador da República de ... junto do Tribunal da Relação de ..., com referência ao Processo da Procuradoria n.º ... e ao Processo de Instrução n.º ..., respeitante também ao requerido AA, bem como foi emitido, para o efeito, novo mandado de detenção europeu contra o requerido com data de 14.03.2025.
As Autoridades Judiciárias ... referem que a investigação permitiu determinar que o requerido AA participou como autor principal nos factos que motivaram a emissão do Mandado de Detenção Europeu e noutros factos semelhantes praticados entre ... de ... de 2022 e ... de ... de 2023 na ..., em qualquer caso no território …, em Portugal, nos ... e no ..., os quais motivaram a emissão do novo mandado de detenção europeu.
O requerido não renunciou ao beneficio da regra da especialidade.
O pedido de “ampliação” formulado pelas autoridades judiciárias ... funda-se em factos anteriores à entrega do requerido e diferentes daqueles que motivaram a emissão do anterior MDE, visando o afastamento do princípio da especialidade a que ele não renunciou aquando da sua audição, a fim de que o requerido possa ser sujeito a procedimento criminal pelos mencionados factos, no processo pendente em ... e identificado no novo MDE.
Notificado o requerido para, querendo, deduzir oposição, pronunciou-se o mesmo, nos termos que constam do requerimento com a refª Citius 751544, de 14.04.2025, considerando estar verificada a causa de recusa facultativa prevista no artigo 12º, nº 1, alínea h), ponto i) da Lei nº 65/2003, e concluindo que “tal pedido consubstancia uma violação da expectativa do requerido no sentido de que as condições de entrega se limitasse ao pedido inicialmente formulado, o confronto com um pedido novo, e não esperado, de extensão do MDE a situações mais amplas constitui uma situação de deslealdade processual, tanto perante o cidadão português AA, como das Autoridades Judiciárias ... perante as Autoridades Judiciárias Portuguesas”.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir.
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II. Fundamentação
1. Factos provados com relevo para a decisão:
1.1. O mandado de detenção europeu (MDE) originário foi emitido pelo Juiz de Direito do Tribunal Judiciário de ..., ..., em 11.12.2023, no processo de instrução nº ..., com vista à detenção e entrega de AA para procedimento criminal, pela prática dos factos descritos no campo 44 do formulário A da inserção Schengen e no campo e) do formulário do MDE, constitutivos de crimes de:
- Importação não autorizada de estupefacientes como membro de bando organizado, previsto pelos artigos 222.º-36, al. 1, 222.º-41, 132.º-71, todos do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al. 1, R.5132-77, R.5132-78, todos do Código de Saúde Pública e pelo artigo 1.º da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos artigos 222.º-36, al. 2, 222.º-44, 222.º-48, 222.º-49, 222.º-50, 222.º-51 e 131.º-26-2, todos do Código Penal Francês;
-Branqueamento do produto da importação não autorizada de estupefacientes como membro de bando organizado, previsto pelos artigos 222.º-38, 222.º-36, al. 2, al. 1, 222.º-41 e 132.º-71, todos do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al. 1, R.5132-77, R.5132-78, todos do Código de Saúde Pública e pelo artigo 1.º da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos artigos 222.º-38, 222.º-36, al. 2, 222.º-44 parágrafo I, 222.º-45, 222.º-47, 222.º-48, 222.º-49, 222.º-50, 222.º-51 e 131.º-26-2, todos do Código Penal Francês;
- Participação em associação criminosa, previsto pelos artigos 450.º-1, al. 1, al. 2, do Código Penal Francês, e punido pelos arts. 450.º-1, al. 2, 450.º-3, 450.º-5, do mesmo diploma legal;
- Transporte não autorizado de estupefacientes, previsto pelos artigos 222.º-37, al. 1, 222.º-41, ambos do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al. 1, R.5132-74, R.5132-77, todos do Código de Saúde Pública e ainda pelo artigo 1.º da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos artigos 222.º--37, al. 1, 222.º-44, 222.º¬45, 222.º-47, 222.º-48, 222.º-49, 222.º-50 e 222.º-51, todos do Código Penal Francês;
- Detenção não autorizada de estupefacientes, previsto pelos artigos 222.º-37, al. 1, 222.º-41, ambos do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al. 1, R.5132-74, R.5132-77, todos do Código de Saúde Pública e pelo artigo 1.º da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, punido pelos artigos 222.º-37, al. 1, 222.º-44, 222.º-45, 222.º-47, 222.º-48, 222.º-49, 222.º-50 e 222.º-51, todos do Código Penal Francês;
- Distribuição não autorizada de estupefacientes, previsto pelos artigos 222.º-37, al. 1, 222.º-41, ambos do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al. 1, R.5132-74, R.5132-77, todos do Código de Saúde Pública e pelo artigo 1 da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos artigos 222.º-37, al. 1, 222.º-44, 222.º-45, 222.º-47, 222.º-48, 222.º-49, 222.º-50 e 222.º-51, todos do Código Penal Francês;
- Aquisição não autorizada de estupefacientes, previsto pelos artigos 222.º-37, al. 1, 222.º-41, ambos do Código Penal Francês, e pelos arts. L.5132-7, L.5132-8, al. 1, R.5132-74, R.5132-77, todos do Código de Saúde Pública e pelo artigo 1.º da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos artigos 222.º-37, al. 1, 222.º-44, 222.º-45, 222.º-47, 222.º-48, 222.º-49, 222.º-50 e 222.º-51, todos do Código Penal Francês;
- Participação em associação criminosa com vista à preparação de crime punido com pena de 10 anos de prisão, previsto pelo artigo 450.º-1, al. 1, al. 2, do Código Penal Francês, e punido pelos arts. 450.º-1, al. 2, 450.º-3, 450.º-5, do mesmo diploma legal;
-Branqueamento do produto da importação não autorizada de estupefacientes, previsto pelos artigos 222.º-38, 222.º-36, al. 1, 222.º-37, todos do Código Penal Francês, e pelo art.º L.5132-7, do Código de Saúde Pública e pelo artigo 1.º da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, punido pelos artigos 222.º-38, 222.º-44, 222.º-45, 222.º-47, 222.º-48, 222.º-49, 222.º-50 e 222.º-51, todos do Código Penal Francês;
- Transporte de mercadoria perigosa para a saúde pública (estupefaciente) sem documentação justificativa-contrabando, previsto pelos artigos 419.º, § 1, 215.º, 215.º-BIS, e 38.º § 4, todos do Código Aduaneiro, e pelo artigo 1.º, § 1 da Resolução do Conselho de Ministros de 22/02/1990, e punido pelos artigos 419.º, § 2 e § 3, 414.º, al. 3 e al. 1, 435.º, 436.º, 438.º, 432.º-BIS, e 369.º, todos do Código Aduaneiro;
- Tráfico de mercadorias em infração das regras de proibição da importação na zona aduaneira - importação sem declaração de mercadorias proibidas, previsto pelos artigos 420.º, al. 17, 38 § 4 e § 5, do Código Aduaneiro e pelo artigo 1.º, anexo II da Resolução do Conselho de Ministros de 22/09/2011, e punido pelos artigos 414.º, al. 1, 435.º, 436.º, 432.º-BIS, 369.º, todos do Código Aduaneiro;
1.2. Esse MDE dizia respeito a infrações criminais em investigação nos processos n.º ... e ... do Tribunal Judicial de ... e terão sido cometidas entre ... de 2021 e ... de 2022, consistindo, em suma:
- Entre estas datas, nomeadamente nos dias ... de ... de 2022 e nos meses de ... e ... de 2022, navios de carga provenientes do ... efetuaram escala no porto de ..., transportando escondida na caixa de mar ou baús de marinheiro (tradução aproximada da denominação original Sea Chest), substância de natureza estupefaciente, nomeadamente cocaína.
- Em ... de ... de 2022, os agentes da alfandega … encontraram e apreenderam 124 Kg de cocaína, escondida no Sea Chest do navio de carga “...”.
- No processo acima enunciado, as autoridades ... suspeitam da participação do aqui requerido, a par de respetivo genro, BB e de CC (cunhado deste último) nesta atividade de transporte de produto de natureza estupefaciente do ..., por via marítima, para o porto de ....
- No âmbito da recolha de prova por interceções telefónicas, determinaram a presença de linhas telefónicas ..., uma delas pertencente a AA.
- Em ........2022, esta linha encontrava-se ativa em relés telefónicos próximo do aeroporto de ... antes de passar para as antenas de Portugal.
- Informações obtidas junto da companhia aérea permitiram identificar AA, nascido a ........1958.
- O aqui requerido contactou empresa de aluguer de equipamentos de mergulho entre os dias ... e ... de novembro de 2021;
- Em ..., o requerido viajou para ..., em data em que o navio Accari ARROW, carregado com 119 Kg de cocaína, fez escala antes de prosseguir a sua viagem para os ....
- O respetivo bilhete de avião foi reservado por CC, fazendo uso do endereço de correio eletrónico.
- No referido processo, suspeitam as autoridades ... que BB, genro do aqui requerido (e cunhado de CC) é o responsável pelo tráfico, recrutando membros da respetiva família para o auxiliar nas importações.
- Investigam as autoridades ... a participação de DD, ... de profissão, que esteve presente em ... tanto no momento da chegada do navio ... como do navio ..., em ...e ... de 2022, com a finalidade de auxiliar na recuperação do produto estupefaciente (exigindo a localização do mesmo nas embarcações a presença de um ...).
- O bilhete de regresso a Portugal de DD, a ... de ... de 2022, a partir do aeroporto de Bordéus, foi pago pelo cartão de crédito de CC que, suspeitam as autoridades ..., presta apoio logístico na atividade de tráfico, nomeadamente na reserva das passagens áreas, incluindo ao aqui requerido.
- Foram detetados vários números de telefone portugueses em território … em período contemporâneo com a presença dos navios acima mencionados, os quais as autoridades ... procuram identificar, nomeadamente na sequência da DEI emitida e das operações conjuntas ... e portuguesas.
1.3. Por acórdão deste Tribunal da Relação, datado de 23 de janeiro de 2024, foi deferida a entrega do requerido às autoridades judiciárias ..., em execução do referido MDE, para efeitos de procedimento criminal, tendo a entrega sido concretizada em 25 de março de 2024.
1.4. O MDE que está agora em causa, emitido em ... de ... de 2025, pelo Procurador da República de ... junto do Tribunal da Relação de ..., com referência ao Processo da Procuradoria n.º ... e ao Processo de Instrução n.º ..., respeitante também ao requerido AA, para procedimento criminal, por factos praticados entre ........2022 e ........2023, assim sintetizados:
- A ... de ... de 2022, a alfândega … descobriu no porto de ..., três fardos de cocaína, com um peso total de 124,28 kg, escondidos nos «sea chest»1 do cargueiro “...”, proveniente do porto de ..., no ....
- As investigações conduziram à descoberta de dois factos suplementares nos meses de ... e ..., períodos em que outros cargueiros (“...”, em ........2021, e “...”, em ........2022) carregados de estupefacientes vindos do ..., fizeram uma escala em ....
- As investigações telefónicas revelaram a presença nos locais de vários telefones … dos quais uma linha identificada em nome de EE. A ........2022, esta linha ativou relés situados no aeroporto de ..., antes de ativar a rede portuguesa. As investigações junto à companhia aérea permitiram identificar AA nascido a ........1958.
- Ademais, a pesquisa da linha …atribuída a AA revelou que ele havia contactado uma sociedade de locação de material de mergulho entre 20 e ........2021.
- Os factos cometidos de ... de ... de 2022 a ... de ... de 2023, assentam nos seguintes factos e integram para as Autoridades Judiciárias ... as seguintes infrações:
- Factos relativos a importação não autorizada de estupefacientes cometida em bando organizado – tráfico, factos cometidos de ... de ... de 2022 a ... de ... de 2023 em ..., em território …, com extensão em Portugal, ..., em ... e no ..., previstos pelos Art.222-36 AL.2, AL.1, Art.222-41, Art.132-71 do Código Penal. Art.L.5132-7, Art.L.5132-8, AL.1, Art.R.5132-74, Art.R.5132-77, Art.R.5132-78 do Código da Saúde Pública Art.1 do Decreto Ministerial de 22/02/1990, e punidos pelos Art.222-36 AL.2, Art.222-44 §I, Art.222-45, Art.222-47, Art.222-48, Art.222-49, Art.222-50, Art.222-51 e Art.º 131-26-2 do Código Penal.
- Factos relativos a branqueamento de capitais: Ajuda numa operação destinada a investir, dissimular ou converter o produto de importação não autorizada de estupefacientes em bando organizado, factos cometidos de ... de ... de 2022 a ... de ... de 2023 em ..., em território …, com extensão em ... e no ..., factos previstos pelos Art.222-38, Art.222-36 AL.2, AL.1, Art.222- 41, Art.132-71 do Código Penal, Art.L.5132-7, Art.L.5132-8 AL.1, Art.R.5132-74, Art.R.5132-77, Art.R.5132-78 do Código da Saúde Pública Art.1 do Decreto Ministerial de 22/02/1990, e punidos pelos Art.222-38, Art.222-36 AL.2, Art.222-44 §I, Art.222-45, Art.222-47, Art.222-48, Art.222-49, Art.222-50, Art.222-51, Art.131-26-2 do Código Penal.
- Factos relativos a transporte não autorizado de estupefacientes, factos cometidos de ... de ... de 2022 a ... de ... de 2023 em ..., em território …, com extensão em ..., em ... e no ..., previstos pelos Art.º 222- 37 AL.1, Art.º 222-41 do Código Penal, Art.L.5132-7, Art.L.5132-8 AL.1, Art.R.5132-74, Art.R.5132-77 do Código da Saúde Pública Art.1 do Decreto Ministerial de 22/02/1990, e punidos pelos Art.222-37 AL.1, Art.222-44, Art.222-45, Art.222-47, Art.222-48, Art.222-49, Art.222-50, Art.222-51 do Código Penal.
- Factos relativos a detenção não autorizada de estupefacientes, factos cometidos de ... de ... de 2022 a ... de ... de 2023 em ..., em território …, com extensão em ..., em ... e no ..., previstos pelos Art.222- 37, AL.1, Art.222-41 do Código Penal, Art.L.5132-7, Art.L.5132-8, AL.1, Art.R.5132-74, Art.R.5132-77 do Código da Saúde Pública Art.1 do Decreto Ministerial de 22/02/1990, e punidos pelos Art.222-37 AL.1, Art.222-44, Art.222-45, Art.222-47, Art.222-48, Art.222-49, Art.222-50, Art.222-51 do Código Penal.
- Factos relativos a oferta ou cessão não autorizada de estupefacientes, factos cometidos de ... de ... de 2022 a ... em ..., em território …, com extensão em ..., em ... e no ..., previstos pelos Art.222-37 AL.1, Art.222-41 do Código Penal e Art.L.5132-7, Art.L.5132-8 AL.1, Art.R.5132-74, Art.R.5132-77 do Código da Saúde Pública Art.1 do Decreto Ministerial de 22/02/1990, e punidos pelos Art.222-37, AL.1, Art.222‐44, Art.222-45, Art.222-47, Art.222-48, Art.222-49, Art.222-50, Art.222-51 do Código Penal.
- Factos relativos a aquisição não autorizada de estupefacientes, factos cometidos de ... de ... de 2022 a ... em ..., em territóriof…, com extensão em ..., em ... e no ..., previstos pelos Art.º 222-37, AL.1, Art.º 222-41 do Código Penal, e Art.º L.5132-7, Art.L.5132-8, AL.1, Art.R.5132-74, Art.R.5132-77 do Código da Saúde Pública Art.1 do Decreto Ministerial de 22/02/1990, e punidos pelos Art.222-37, AL.1, Art.º 222-44, Art.º 222‐ 45, Art.º 222-47, Art.º 222-48, Art.º 222-49, Art.222-50, Art.222-51 do Código Penal.
- Factos relativos a participação numa associação criminosa com vista à preparação de um delito punido com 10 anos de prisão, factos cometidos de ... de ... de 2022 a ... em ..., em território …, com extensão em ..., em ... e no ..., previsto pelo Art.450-1 AL.1, AL.2 do Código Penal, e punido pelos Art.450-1 AL.2, Art.450-3, Art.450-5 do Código penal.
- Factos relativos a detenção de mercadorias perigosas para a saúde pública (estupefacientes) sem documentos comprovativos regulares, facto considerado como importação em contrabando, factos cometidos de ... de ... de 2022 a ... em ..., em território …, com extensão em ..., em ... e no ..., previstos pelos Art.419 §1, Art.215, Art.215-BIS, Art.38 §4 do Código da Alfândega, ART.1 §1 AL.1 Decreto Ministerial de .../.../2001, ART.1 §1 AL.1 do Decreto Ministerial de .../.../2003. ART.L.5132-7 do Código da Saúde Pública, Art.1 do Decreto Ministerial de 22/02/1990, e punidos pelos Art.419 §2, §3, Art.414 AL.3. AL.1, Art.435, Art.436, Art.438, Art.432-BIS, Art.369 do Código da alfândega.
- Factos relativos a branqueamento de capitais: Ajuda numa operação destinada a investir, dissimular ou converter o produto de um delito de tráfico de estupefacientes, factos cometidos de ... de ... de 2022 a ... em ..., em território …, com extensão em ..., em ... e no ..., previstos pelos Art.º 222-38, AL.1, Art.222-36 AL.1, Art.º 222-37 do Código Penal, Art.º L.5132-7 do Código da Saúde Pública, Decreto Ministerial de 22/02/1990, e punidos pelos Art.222-38, Art.222-44, Art.222-45, Art.222-47, Art.222-48, Art.222-49, Art.222-50 e Art.222-51 do Código Penal.
1.5. O requerido não renunciou ao benefício da regra da especialidade quando foi ouvido neste Tribunal da Relação, nem posteriormente (designadamente, aquando da sua inquirição, em ..., em ........2024).
2. Apreciando
O princípio da especialidade consagrado no artigo 7º da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto, traduz-se em limitar os factos pelos quais a pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu será sujeita a procedimento criminal, condenada ou privada de liberdade, após a entrega ao Estado requerente, àqueles que motivaram essa entrega.
Como refere Anna Zairi (Le Principe de la Spécialité de l’Extradition au Regard des Droits de l'Homme, p. 30, apud José Manuel Cruz Bucho e outros, Cooperação Judiciária Internacional, I, pág. 40 n. 71), referindo-se à extradição, o fundamento jurídico do princípio assenta no reconhecimento da soberania do Estado requerido pelo Estado requerente, expressa no carácter convencional da extradição e corresponde à observância pelo Estado requerente do compromisso perante o Estado requerido de apenas perseguir o extraditando pelas infrações mencionadas no pedido. Todavia, uma conceção mais moderna, fundada na ideia de proteção dos interesses do indivíduo, considera a especialidade como uma regra que releva do costume internacional e que vale mesmo na falta de disposições convencionais. Partindo desta visão humanista, a autora citada estabelece uma conexão entre o princípio da especialidade da extradição e a matéria dos direitos do homem, fazendo derivar o princípio da especialidade do artigo 6º, nº 3, alínea a), da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, na medida em que essa norma exige que o acusado seja informado da natureza e da causa da acusação contra ele formulada, o que significa que só pode haver extradição por factos de que o extraditando tenha conhecimento (vd., a este propósito, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.01.2014, no processo nº 144/13.9YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, em www.dgsi.pt).
Como se considerou neste acórdão, o princípio da especialidade só constitui uma salvaguarda enquanto o extraditado se encontrar sob a tutela do Estado requerente, sofrendo, porém, exceções, como ocorre quando houver consentimento do Estado requerido na ampliação, para que a pessoa entregue em cumprimento do MDE responda por outros processos.
No âmbito da extradição, assim como um Estado pode requerer a entrega de um cidadão com fundamento em vários procedimentos criminais de que este é suspeito, arguido ou condenado, assim também, se depois de operada a entrega, se vier a verificar a existência de outros processos, pode ser solicitada, ao Estado requerido, a ampliação da extradição, a qual só é possível se esse Estado nela consentir.
Por sua vez, no âmbito do MDE, o artigo 7º, nº 2, alínea g), da Lei nº 65/2003, na redação da Lei nº 35/2015, de 04 de maio, expressamente dispõe que a salvaguarda do princípio da especialidade cede perante a existência de consentimento da autoridade judiciária de execução que proferiu a decisão de entrega - consentimento a que a pessoa entregue seja sujeita a procedimento criminal, condenada ou privada da liberdade por uma infração praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do MDE.
Estabelece o nº 4 do artigo 7º que o consentimento a que se refere o nº 2, alínea g), é prestado pelo Tribunal da Relação que proferiu a decisão de entrega e que tal consentimento “deve ser prestado sempre que esteja em causa infração que permita a entrega, por aplicação do regime jurídico do mandado de detenção europeu [alínea c) do nº4] e “deve ser recusado pelos motivos previstos no artigo 11º, podendo ainda ser recusado apenas com os fundamentos previstos nos artigos 12º e 12º-A” [alínea d) do nº 4].
Estamos assim relegados para o domínio da aferição da existência de causas de recusa do cumprimento do mandado (ampliativo) emitido.
A execução de um MDE e, portanto, também do consentimento para extensão da entrega conforme previsto no nº 2, alínea g), do artigo 7º, e bem assim no nº 4, alíneas a) e d), e artigo 8º, nos 4 e 5, só poderá ser recusado pelos motivos de recusa obrigatória previstos no artigo 11º (“será recusada”) ou de recusa facultativa previstos no artigo 12º (“pode ser recusada”) da Lei nº 65/2003, na redação dada pela Lei nº 35/2015.
O consentimento para a execução de um novo MDE quando solicitado por uma autoridade judiciária de um Estado Membro a uma autoridade judiciária de Portugal (na qualidade de Estado de Execução de um anterior MDE), deve por esta ser prestado, sempre que a infração para a qual é solicitado devesse ela própria dar lugar à entrega do requerido, isto é, sempre que estejam reunidas as condições que permitiriam a execução da entrega do cidadão procurado, caso se tratasse da execução de um primeiro MDE.
É o caso dos autos.
Não se suscitam quaisquer dúvidas sobre a regularidade formal e substancial do MDE.
Os factos descritos constituem para a autoridade judiciária de emissão crimes de importação não autorizada de estupefacientes cometida em bando organizado – tráfico, ajuda numa operação destinada a investir, dissimular ou converter o produto de importação não autorizada de estupefacientes em bando organizado, oferta ou cessão não autorizada de estupefacientes, e participação numa associação criminosa – ilícitos que a autoridade judiciária de emissão inclui na lista de infrações constante da parte I do campo e) do formulário do MDE, pelo que, atento o disposto no artigo 2º, nos 1 e 2, alíneas a), e) e i), da Lei nº 65/2003, de 23 de agosto, dispensa a verificação da dupla incriminação dos factos que justificam a emissão do MDE – sendo de assinalar, não obstante, que tais factos no nosso ordenamento jurídico constituem igualmente crimes. Não se constata a existência de qualquer causa de recusa obrigatória.
Quanto a causas de recusa facultativa - que têm sido encaradas como tendo, quase todas, um fundamento ainda ligado, mais ou menos intensamente, à soberania penal (cf. Pires da Graça, A Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça na execução do regime relativo ao Mandado de Detenção Europeu - pág. 20 e seguintes) -, também não logramos identificar a presença de qualquer uma.
Na verdade, a extensão do MDE solicitada pelas autoridades judiciárias ..., mais do que reportar a prática de distintos crimes, anteriores à entrega do requerido, amplia o âmbito dos ilícitos que já haviam fundamentado o MDE originalmente emitido. E compreende-se que assim seja: o crime de tráfico de estupefacientes (e os associados crimes de branqueamento de capitais e participação em associação criminosa), é um crime exaurido, que se concretiza numa multiplicidade de atos, cada um deles capaz de preencher o tipo em questão, que, tipicamente, se prolongam no tempo e que, no específico caso do tráfico internacional de estupefacientes (que é o que aqui está em causa), admite a existência de atos de execução em várias localizações geográficas e com a colaboração de diversos agentes.
Assim, o que se pede a este Tribunal é o consentimento para que a investigação em curso abranja um período mais alargado (para lá do já autorizado, de ... a maio de 20222), no caso, de ........2022 a ........2023, e um perímetro geográfico mais alargado, compreendendo a circunscrição da jurisdição inter-regional de …, e atos eventualmente praticados no território …, em Portugal, nos ... e no ....
Obviamente, não pode sustentar-se que, por via da pretendida ampliação, o Tribunal de … ficaria habilitado a investigar quaisquer crimes cometidos pelo requerido naquele período e naquelas áreas geográficas: o que está em causa é o cometimento do crime de tráfico de estupefacientes (e crimes ao mesmo associados), nas concretas circunstâncias descritas nos autos. Ou seja, a participação do arguido nos transportes internacionais de elevadas quantidades de cocaína, utilizando para o efeito navios provenientes do ..., realizando escala no porto de ..., e com destino, designadamente, aos ..., recorrendo a uma atividade colaborativa de vários indivíduos, nomeadamente o requerido, e pessoas das suas relações, com residência habitual em Portugal, mas também em ... e no ....
Não há qualquer violação do identificado princípio da lealdade (o requerido não tem um direito subjetivo a que apenas seja investigada uma parte dos atos praticados – ponto é que lhe seja dada oportunidade de se defender de todos os factos imputados, o que não está sequer em causa no presente procedimento).
Acresce que a recusa do consentimento, como se compreende, inviabilizaria a investigação em curso.
Por outro lado, não se verifica a causa de recusa facultativa identificada pelo requerido na sua oposição (ou qualquer outra), já que os factos aqui em discussão não estão a ser investigados no nosso país (nem há notícia de que estejam a ser investigados em qualquer outro dos Estados com os quais apresentam conexão), sendo claro que não só a notícia do crime surgiu, em primeiro lugar, em território …, como é com o Estado requerente que apresentam conexão mais relevante.
Com efeito, e como é entendimento uniforme do nosso mais Alto Tribunal, a aplicação de qualquer das causas de recusa facultativa de execução do mandado de detenção europeu terá sempre que ser justificada pela demonstração das reais vantagens que resultem para a investigação e conhecimento dos crimes objeto do mandado, da prevalência da jurisdição nacional sobre a jurisdição do Estado de emissão (cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.04.2018, no processo nº 29/18.2YRPRT.S1, e de 09.05.2012, processo nº 27/12.0YRCBR.S1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt) – o que, no caso, não se verifica.
Os demais fundamentos da oposição apresentada reconduzem-se à posição já expressa pelo requerido face ao MDE original, sobre os quais este Tribunal já se pronunciou, nada havendo a alterar ao que então se decidiu.
Finalmente, há que ter em conta que a entrega do requerido se fez depois de prestada a garantia de que o mesmo, sendo nacional português, seria devolvido a Portugal, para aqui cumprir a pena em que eventualmente vier a ser condenado. Tal garantia mantém plena atualidade, face à ampliação pretendida, mantendo-se a vinculação assumida pelo Estado requerente.
Em conclusão, tendo sido devidamente assegurado o contraditório exigível no caso e não existindo qualquer motivo de recusa para a prestação do consentimento previsto no artigo 7º, nos 2, alínea g) e 4, da Lei nº 65/2003 de 23 de agosto, entende-se ser de prestar, por via desta decisão, o consentimento pretendido.
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III. Dispositivo
Pelo exposto, após conferência, os juízes deste Tribunal da Relação, acordam em prestar o consentimento a que o procedimento criminal visando requerido AA, m. id. nos autos, se estenda aos factos constantes do MDE ampliativo, designadamente, no que se refere ao período temporal e localizações geográficas indicadas, mantendo-se válida a garantia, já prestada, de que o requerido será devolvido a Portugal, para cumprimento da pena ou medida de segurança privativa da liberdade em que venha a ser condenado em ....
Sem custas.
Proceda-se às necessárias notificações e comunicações ao Ministério Público, à autoridade judiciária de emissão, ao requerido e à ilustre mandatária.
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Lisboa, 03 de junho de 2025
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)
Sandra Oliveira Pinto
Ana Lúcia Gordinho
Alexandra Veiga
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1. Compartimento submerso destinado à dessanilização de água.
2. Chama-se a atenção para que, ao contrário do que parece vir sugerido na oposição apresentada, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.02.2024, não foi proferido no âmbito dos presentes autos, inexistindo qualquer restrição aos factos ocorridos entre 01 e 31 de maio de 2022 (ou limitação ao território de ...).