Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
14940/23.5T8SNT-A.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: EXCESSO DE PRONÚNCIA
ERRO DE QUALIFICAÇÃO
LAPSO DE ESCRITA
CONTRATO DE MÚTUO
PROMESSA DE MÚTUO
FORMA
NULIDADE
LETRA EM BRANCO
ABUSO DE PREENCHIMENTO
AVAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Sumário (art.º 663º nº 7 do CPC) – Da exclusiva responsabilidade do relator:
1. Não é nula, por excesso de pronúncia, nos termos do Art. 615.º n.º 1 al. d), 2.ª parte, do C.P.C., a sentença que, corrigindo evidentes lapsos verificados, quer nos articulados apresentados pelas partes, quer em contrato, qualifica como “letra de câmbio” o título executivo apresentado, quando as partes o identificavam como sendo uma “livrança”.
2. Nesse caso não há violação do princípio do dispositivo, nem alteração da causa de pedir, porquanto é reconhecido ao juiz, no quadro legal do Art. 5.º n.º 3 do C.P.C., a competência legal para interpretar e aplicar o direito, nomeadamente numa situação em que o erro de qualificação jurídica é patente e o lapso de escrita é revelado do próprio contexto das declarações constantes dos documentos, sendo suscetíveis de correção nos termos Art. 249.º do C.C..
3. O contrato pelo qual uma parte se compromete a emprestar à outra determinada quantia, sem resultar dos seus termos que entregou efetivamente esse valor, vale como mera promessa de mútuo, não correspondendo à celebração de contrato de mútuo tal como o mesmo é regulado nos Art.s 1142.º e ss. do Código Civil.
4. Esse contrato não está sujeito à forma legal do Art. 1143.º do C.C., mas sim à prevista no Art. 410.º n.º 1 e n.º 2 do C.C..
5. Se a quantia vier efetivamente a ser entregue, constituiu-se de facto um “contrato de mútuo” que, não observando a forma legal prevista no Art. 1143.º do C.C., é nulo por falta de forma (Art. 220.º do C.C.).
6. A nulidade determina o nascimento da obrigação de restituição de tudo o que houver sido prestado pelas partes (cfr. Art. 289.º n.º 1 do C.C.). No caso o reembolso do capital de facto emprestado.
7. A invalidade formal do “mútuo” é extensiva às clausulas acessórias que fixavam o benefício de prazo a favor do devedor e as obrigações de juros e demais sanções convencionadas, mas não afeta a validade do ato de entrega duma “letra de câmbio” em branco, previamente aceite pela sociedade devedora e logo avalizada pelos seus sócios gerentes, nem a validade formal do pacto de preenchimento que havia sido estabelecido por escrito no contrato de que constava o compromisso de celebração do mútuo.
8. No caso foram celebrados dois contratos que previam o empréstimo das quantias de €300.000,00 e €200.000,00, respetivamente, tendo sido entregues e em branco, para cada um deles, dois títulos de crédito diferentes, subscritos, como aceitante e avalistas, respetivamente, pela sociedade devedora e pelos seus sócios gerentes, mas a credora-exequente preencheu apenas um desse títulos com a soma das responsabilidades emergentes dos dois contratos.
9. Neste caso há abuso de preenchimento da letra de câmbio dada à execução quanto ao valor que excede a garantia de pagamento do contrato para o qual concretamente esse titulo foi entregue, mas é admissível a redução da responsabilidade cambiária ao valor efetivamente garantido por esse título quando se esteja ainda no domínio das relações imediatas.
10. Ainda se compreende na obrigação garantida dada pelo aceite e aval apostos em letra de câmbio entregue em branco, com pacto de preenchimento constante de clausulado de promessa de mútuo, quer a obrigação de restituição por incumprimento definitivo de futuro contrato de mútuo válido, quer a exigência de restituição do indevido em consequência de o contrato de mútuo ser inválido por razões de inobservância da forma legal (v.g. Art. 1143.º do C.C.).
11. Neste segundo caso, a obrigação de restituição da quantia mutuada de facto pode ser titulada pela letra de câmbio, entretanto preenchida pelo credor, desde que o pacto de preenchimento seja respeitado e a obrigação subjacente se compreenda dentro do âmbito das responsabilidades para as quais a letra de câmbio foi entregue.
12. A invalidade formal do contrato de mútuo subjacente à emissão da letra de câmbio não é causa de extinção da garantia da obrigação do avalista, pois a sua obrigação mantém-se independentemente da validade da obrigação subjacente por si garantida (cfr. Art. 32.º da L.U.L.L.).
13. A jurisprudência fixada no assento do STJ de 1 de fevereiro de 1966 deve ser interpretada restritivamente, em conformidade com o disposto no Art. 31.º § 4 da L.U.L.L., valendo apenas para os casos em que não houver indicação expressa na letra de câmbio da pessoa a favor da qual o aval é prestado. Só nesse caso, mesmo nas relações imediatas, prevalece a regra segundo a qual se deve entender que o aval é prestado a favor do sacador, não sendo possível prova de facto contrário.
14. Constando do verso da letra de câmbio assinaturas por baixo dos dizeres «Bom para aval à firma subscritora» - figura típica das livranças -, não se aplica o Art. 31.º § 4 da L.U.L.L., nem o Assento do STJ de 1 de Fevereiro de 1966, sendo admissível, nomeadamente no domínio das relações imediatas, interpretar o sentido dessa declaração de vontade e assim determinar a favor de quem o aval foi objetivamente prestado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
FM, executado nos autos principais, veio apresentar oposição à execução mediante embargos de executado, contra a exequente, A&C, Lda., pedindo a procedência dos embargos com a consequente extinção da execução.
Alegou sucintamente a insuficiência do título executivo, porque os dois “contratos de incentivo à atividade comercial” que servem de base à causa de pedir “são documentos incompletos e alterados face aos documentos originais cujo teor se impugna”, impugnando ainda as assinaturas neles constantes.
Mais alegou que os títulos de crédito só podem servir de base à execução desde que os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo, o que não sucedeu no caso, porquanto não teriam sido alegados factos que evidenciassem a entrega das quantias de €300.000,00 e €200.000,00, nem alegadas as datas em que o capital mutuado foi entregue ou reembolsado, nem alegadas as prestações pagas e/ou incumpridas, nem alegada a data da interpelação, que não correu.
Invocou ainda o preenchimento abusivo do título, alegando que a livrança 500792887211108081, entregue em garantia do contrato de 26/09/2022, foi preenchida com o montante de €531.004,11, que é um valor superior ao valor autorizado de €300.000,00.
Defendeu também a ilegalidade dos juros convencionados, que deveriam ser reduzidos, impugnando o valor da dívida, que não seria superior a €390.000,00.
Admitidos os embargos, a exequente foi deles notificada, contestando e pugnando pela sua improcedência.
Findos os articulados veio a ser realizada audiência prévia, onde se fixaram os temas de prova, o objeto do litígio, admitindo-se os requerimentos probatórios e agendando-se audiência final.
Produzida a prova e discutida a causa, veio a ser proferida sentença que julgou os embargos de executado parcialmente procedentes, por provados, determinando a prossecução da execução, mas reduzindo o valor da dívida a €289.359,05, a que acrescem os juros moratórios vencidos a contar da data da citação do embargante.
É dessa sentença que o embargante vem agora interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
A. O Tribunal a Quo decidiu os embargos e procedência, parcial, da execução com base em títulos executivos (duas letras de crédito) que não foram invocadas pelas Partes nos seus articulados.
B. Nem tão pouco tais letras de crédito aparecem mencionadas nos contratos de inventivo à atividade comercial que foram juntos pela Embargada no requerimento inicial e contestação aos embargos [cf. cláusulas 9.1., alínea a) de cada um dos documentos].
C. Ao decidir com base em títulos executivos não alegados, nem embargados, nem contestados, o Tribunal a Quo apreciou questões – de facto ou de direito - que não tinham sido invocadas pelas partes ou que não eram de conhecimento oficioso, incorrendo na situação descrita no artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC.
D. Devendo ser declarada a nulidade da sentença.
E. O facto considerado provado da Alínea A. contraria o disposto no Documento 1 junto ao Requerimento Inicial, extraindo-se do mesmo a evidência de não ter sido entregue à Embargada qualquer letra de crédito, aquando da assinatura do contrato de incentivo à atividade comercial de 26 de Setembro de 2022.
F. No mesmo sentido o alegado no artigo 8.º do Requerimento Inicial, sendo incontornável que a execução se baseava numa livrança e não numa letra.
G. O facto B também não pode ser considerado provado porque a Embargada não se identificou como sacadora, nem a executada foi identificada como sacada no Requerimento Executivo.
H. Na contestação aos embargos a Embragada não alegou o preenchimento e receção de qualquer letra de crédito.
I. O facto identificado com a letra D. não pode ser considerado provado porque o Embargante não assinou na face anterior do titulo de crédito, por baixo dos dizeres “Bom por aval ao subscritor” (cf. Doc. 2 junto com o Requerimento Executivo).
J. Nem tal figura no documento apresentado pela Embargada em juízo, nem do seu articulado.
K. Acresce que no artigo 24.º dos Embargos o Embargante impugnou a assinatura dos documentos juntos ao Requerimento Inicial.
L. O facto considerado provado e descrito com a letra E. também não pode ser considerado provado porque é contrariado pela já citada cláusula 9.1. do contrato de incentivo comercial: “… a SI LDA. entregou à PRIMEIRA OUTORGANTE o original da Livrança n.º 500792887211108081, subscrita em branco por SI LDA e avalizada pelos sócios gerentes, FM e FB”.
M. Efetivamente, não foi entregue qualquer letra de crédito pela SI Lda. à Embargada, conforme decorre da cláusula 9.1., alínea a) do contrato assinado em 7 de Dezembro de 2022 (cf. Documento 3 junto com a contestação de embargos).
N. Incoerência que emerge igualmente do artigo 12.º do Requerimento Executivo.
O. Cumprindo o disposto no n.º 2 do artigo 376.º do Código Civil terá de se considerar que os factos que decorrem de prova documental “consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante…”.
P. Pelo que deverão ser julgados como não provados os factos enunciados nas alíneas A., B., D., E., P. do segmento dos “Factos Provados”.
Q. Como decorrência da invocada nulidade a sentença recorrida violou os referidos artigos 5.º e artigo 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, que deviam ser interpretados no sentido de vedar ao Tribunal A Quo alterar a matéria de facto alegada pelas Partes sem o prévio impulso destas.
R. Devendo, por isso, a sentença ser revogada porque além de violar a lei contraria jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça em Acórdão extraído do Processo 529/21.7T8GMR-A.G1.S1, de 30 de Maio de 2023.
S. Se cumprisse o Princípio do Dispositivo, o Tribunal a Quo não poderia deixa de concluir pela indeterminabilidade, parcial, da relação subjacente e, consequentemente, da relação cartular, conforme foi alegado e demonstrado pelo Embargado.
T. Agindo com critério diverso o Tribunal a Quo também o sentido da decisão do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Outubro de 2024 - processo 466/22.8T8ELV-C.E1.S1).
U. Deveria ser associado o respetivo desvalor à conduta da Embargada que preencheu e entregou em juízo, como doloso e em modo fraudulento um titulo de crédito, com um valor que exorbitava o que havia sido contratualizado com o Embargado.
V. Bem sabendo a Embargada que assim se eximia ao julgamento da relação subjacente, que só poderia concluir pela nulidade dos contratos de incentivo à atividade comercial por falta de forma (artigo 1143.º do Código Civil).
W. Mais sabendo que dos referidos contratos emergia a previsão de entrega, preenchimento e eventual execução de livranças e não da letra de crédito que a Embargada apresentou em juízo.
X. Ciente de todos estes factos estava o Tribunal A Quo vinculado a julgar a nulidade da relação cartular, por força do disposto no n.º 1 do artigo 280.º do Código Civil.
Y. Norma que foi igualmente violada pela sentença recorrida.
Pede assim que seja revogada a sentença e substituída por decisão que determine a extinção da execução.
A embargada respondeu ao recurso, sobrelevando das suas contra-alegações as seguintes conclusões:
I- O Recorrente assinou e entregou à Recorrida uma letra de câmbio, alegando que estava convencido de que estava a assinar e a entregar uma livrança.
II- A Recorrida recebeu da Recorrente, a título de garantia, uma letra de câmbio, convencida de que estava a receber uma livrança.
III- Foi o Recorrente e o seu sócio FB que contrataram os Advogados que instruíram o negócio subjacente e reconheceram as assinaturas das Partes outorgantes.
IV- O Recorrente ao assinar e entregar à Recorrida uma letra de câmbio, tinha a intenção de garantir, por aval, o financiamento prestado pela Recorrida à firma SI, Lda.
V- A Letra de câmbio assinada pelo Recorrente, contém todos os requisitos do art.º 1º da LULL.
VI- A Letra de câmbio assinada pelo Recorrente, constitui o título executivo da presente execução.
VII- O Tribunal a quo andou bem ao decidir, tendo por base o título executivo que foi assinado pelo Recorrente e entregue por este à Recorrida.
VIII- A circunstância de as partes designarem por Livrança uma letra de câmbio, não retira a esta a sua validade e eficácia, como título executivo.
IX- Não há erro ou vício de julgamento quando se decidiu com base no título executivo, que foi apresentado ao Tribunal, apesar das Partes denominarem tal título de modo incorreto.
X- O elemento prevalecente para a validade e eficácia do título executivo, consiste na vontade que o avalista tinha, quando assinou e entregou ao Recorrente o título e não o nome deste.
XI- O título executivo foi preenchido pela Recorrida, com valor em excesso, face ao que esta estava autorizada.
XII- O Tribunal a quo reduziu o valor de €531.004,11 do título executivo, para o montante de €289.359,00.
XIII- Ao fazer tal redução, o Tribunal a quo sanou o vício derivado do preenchimento do título, em excesso.
Pede assim que seja negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença na sua totalidade.
O Tribunal a quo, ao admitir o recurso, não proferiu despacho sobre a invocada nulidade da sentença recorrida ao abrigo do Art. 617.º n.º 1 do C.P.C., no entanto, em face dos termos como a questão foi colocada também não se nos afigura indispensável fazer o processo baixar à 1.ª Instância para suprir essa omissão (cfr. Art. 617.º n.º 1 “a contrario” do C.P.C.).
*
II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.s 635º n.º 4 e 639º n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos, as questões a decidir são as seguintes:
a. A nulidade da sentença por excesso de pronúncia;
b. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto; e
c. O mérito dos embargos, tendo em atenção o princípio do dispositivo, no que se refere à invalidade formal da relação subjacente e à indeterminação do objeto da obrigação avalizada e consequente invalidade da relação cartular.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
*
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
A. A ação executiva de que os presentes embargos constituem apenso foi instaurada em 27/09/2023, para pagamento da quantia de €531.004,11, com base em letra de câmbio com o n.º 500792887211108081.
B. Na letra dada à execução é sacador a sociedade “A&C, Lda.” e sacado a sociedade “SI, Lda.”.
C. A letra tem apostos os seguintes dizeres:
Data de emissão: 2022.09.26
Importância: €531.004,11
Data de vencimento: 2023.09.26
D. O embargante apôs a assinatura na face anterior da letra de câmbio, por baixo dos dizeres “Bom por aval ao subscritor”.
E. A letra foi entregue em branco à exequente (sacador), para garantia das obrigações de pagamento assumidas por “SI, Lda.” no “Contrato de Incentivo à Atividade Comercial”, datado de 26/09/2022.
F. O “Contrato de Incentivo à Atividade Comercial” datado de 26/09/2022 encontra-se assinado pelas sociedades outorgantes, representadas no ato pelos gerentes, encontrando-se as assinaturas dos gerentes da sociedade “SI, Lda.” reconhecidas por advogado – registo de 26/09/2022 de “reconhecimento simples”.
G. Consta do Considerando D do “Contrato de Incentivo à Atividade Comercial” que:

H. Nos termos da cláusula 1ª do “Contrato de Incentivo à Atividade Comercial”:

I. Nos termos da cláusula 2ª do “Contrato de Incentivo à Atividade Comercial”:

J. Nos termos da cláusula 5ª do “Contrato de Incentivo à Atividade Comercial”:

K. Nos termos da cláusula 7ª do “Contrato de Incentivo à Atividade Comercial”:

L. Nos termos da cláusula 8ª do “Contrato de Incentivo à Atividade Comercial”:

M. Nos termos da cláusula 9ª do “Contrato de Incentivo à Atividade Comercial”:


N. Do montante de €300.000,00 foi, até 26/03/2023, pago à exequente o montante de €65.000,00.
O. Em 07/12/2022, a embargada financiou à mesma sociedade Subtilândia, Lda., como “incentivo à sua atividade comercial”, a quantia de € 200.000,00.
P. Em garantia do cumprimento do contrato referido em O foi entregue à embargada a letra com o n.º 500792887210789158.
Q. O montante aposto na letra dada à execução (€ 531.004,11) corresponde à soma dos seguintes valores:
- € 235.000,00 de capital referente ao financiamento de 26/09/2022, acrescido de €33.209.05 de juros calculados desde 26/09/2022 até 31/12/2022 (€7.339,73 - à taxa comercial em vigor de 7%, acrescidos de 5 pontos percentuais), de 01/01/2023 até 30/06/2023 (€16.804,11 - à taxa comercial em vigor de 9,5%, acrescidos de 5 pontos percentuais) e de 01/07/2023 até 26/09/2023 (€9.065,21 - à taxa comercial em vigor de 11%, acrescidos de 5 pontos percentuais), acrescido de €21.150,00 referente a cláusula penal prevista na cláusula 2ª (valor total de €289.359,05)
- €200.000,00 referente ao financiamento de 07/12/2022, acrescido de €23.594,06 de juros e €18.000,00 referente a cláusula penal.
- €51,00 referente a taxa de justiça
*
O tribunal julgou ainda por não provados os seguintes factos:
1. O valor da dívida dos dois financiamentos não é superior a €390.000,00, por referência a junho de 2023.
2. A exequente comunicou ao embargante o preenchimento da letra.
Tudo visto, cumpre apreciar.
*
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas as questões suscitadas pela presente apelação, iremos então debruçar-nos sobre elas pela sua ordem de precedência lógica, começando inevitavelmente pela nulidade da decisão recorrida.
1. Da nulidade da sentença por excesso de pronúncia.
O Recorrente veio invocar a nulidade da sentença, por violação do Art. 615.º n.º 1 al. d) do C.P.C., por alegadamente enfermar do vício de excesso de pronúncia.
Em termos muito sucintos este tema do recurso resume-se à circunstância de a sentença ter decidido os embargos de executado pronunciando-se sobre a existência de um título executivo, no caso uma letra de câmbio, que não teria sido alegada pelas partes nos seus articulados.
De facto, o tribunal deu por provado que, na sequência de dois “contratos de inventivo à atividade comercial” (cfr. factos provados F. e O.), assinados entre a embargada e a sociedade comercial “SI, Lda.” (cfr. doc.s n.º 1 e 3 do requerimento inicial executivo), foram entregues duas letras à embargada, avalizadas pelo embargante (cfr. factos provados E. e P). No entanto, em cada um desses contratos apenas se referia a entrega de “livrança”, sendo que a exequente-embargada alegou apenas a existência de “livranças” no seu requerimento executivo (cfr. artigos 8.º e 12.º), tendo sido sobre esses concretos factos que o Recorrente deduziu os seus embargos de executado. Neste pressuposto, delimitada assim a matéria de facto pelas partes, ao abrigo do princípio do dispositivo, defende-se que a sentença seria nula, por excesso de pronúncia, porquanto apreciou questões de facto ou de direito que não tinham sido invocadas pelas partes e não poderiam ser de conhecimento oficioso, quando se pronunciou sobre a existência de “letras de câmbio” e não sobre as alegadas “livranças”.
A Recorrida, por seu turno, reconhece que, quer nos contratos que suportam a relação subjacente ao título executivo, quer nos seus articulados iniciais, foi designado o título entregue por “livrança”, quando, efetivamente, tal título era uma “letra de câmbio”. Acresce que, segundo alega, foi o Recorrente, em conjunto com o seu sócio, quem escolheu os advogados que elaboraram os contratos e reconheceram as assinaturas dos outorgantes e, por isso, não pode agora tentar tirar proveito de factos que ele próprio criou. Seja como for, defende que se trata de um mero erro, compreensível do contexto da ação, sendo que o que seria relevante era o que correspondia à intenção das partes que, quando contrataram, queriam paralelamente celebrar um negócio cambiário que servisse de garantia aos mútuos convencionados. O que, no caso, passou pela assinatura pelo Recorrente da letra que serve de título à execução, pretendendo-se por ela garantir por aval o pagamento dos montantes que eram mutuados à sociedade “SI, Lda.”, da qual o Recorrente era sócio e gerente. A circunstância de ter sido assinada uma letra de câmbio, quando estaria convencido que assinava uma livrança, não é assim determinante para a consideração da validade da garantia prestada.
Como vimos o Tribunal a quo, ao admitir o recurso, não se pronunciou sobre a alegada invalidade da sentença, sendo certo que desta última consta explicitamente, logo no início da discussão jurídica da causa, que considerou que: «O título executivo nos autos é a letra (título cambiário) dada em garantia do contrato (que a exequente igualmente juntou com o requerimento executivo)» (sic).
Apreciando, temos de partir da consideração de que o Art. 615.º n.º 1 al. d), 2.ª parte, do C.P.C. comina com a nulidade a sentença quando o juiz conheça questões de que não poderia tomar conhecimento.
Estamos perante um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de atividade que afeta a validade da sentença, encontrando-se essa nulidade diretamente relacionada com o disposto no Art. 608.º n.º 2, 2.ª parte, do C.P.C., segundo o qual: «O juiz (…) não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Não se deve confundir a questão a decidir com a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos. Só há excesso de pronúncia quando o juiz se ocupa de questões que as partes não tenham suscitado, sendo estas questões os pontos de facto ou de direito relativos à causa de pedir e ao pedido que centram o objeto do litígio.
Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de dezembro de 2012 (Proc. n.º 496/11, Relator: João Bernardo, disponível em www.dgsi.pt), à luz do princípio do dispositivo, há excesso de pronúncia sempre que a causa do julgado não se identifique com a causa de pedir ou o julgado não coincida com o pedido, não podendo o julgador condenar, além do pedido, nem considerar a causa de pedir que não tenha sido invocada.
Contudo, quando o tribunal, para decidir as questões postas pelas partes, usar de razões ou fundamentos não invocados pelas mesmas, não está a conhecer de questão de que não deve conhecer ou a usar de excesso de pronúncia suscetível de integra nulidade (cfr. Ac. do STJ de 15/12/2011, Proc. n.º 2/08 – Relator: Pereira Rodrigues, disponível no mesmo sítio).
Por outro lado, a não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença (cfr. Ac. TRL de 17/5/2012, Proc. n.º 91/09 – Relator: Gilberto Jorge, idem).
Ora, no caso, é por demais evidente que, apesar de as partes se referirem constantemente nos articulados a “livranças” e nos contratos que foram juntos também se fazer menção à entrega de “livrança”, a verdade é que se tratou de um evidente erro de identificação do título de crédito que concretamente estaria em causa, perfeitamente compreensível do contexto dos articulados e da prova documental junta.
Veja-se que o exequente, no requerimento inicial, juntou como documento n.º 2 o seguinte documento, que identificou como “livrança” (cfr. Doc. n.º 2 - “Livrança” de 30-09-2023 Ref.ª n.º 24150694 - p.e.):

Visto isto, não há dúvida nenhuma que se trata duma letra de câmbio, como resulta inequivocamente dos dizeres impressos nesse documento.
Por outro lado, não podemos deixar de realçar o pormenor de que na cláusula nona do contrato junto pelo exequente como documento n.º 1 do seu requerimento inicial (cfr. Doc. n.º 1 - “Contrato” de 30-09-2023 Ref.ª n.º 24150694 - p.e.), se identifica uma “livrança”, como título entregue em garantia, nos seguintes termos:

Veja-se que a alegada “livrança”, identificada no contrato (doc. n.º 1 do requerimento inicial executivo), tem precisamente o mesmo número (“n.º 500792887211108081”) que a “letra de câmbio” que o exequente juntou como título executivo (doc. n.º 2 do requerimento inicial executivo).
É, portanto, evidente que com este “contrato de incentivo à atividade comercial” (cit. doc. n.º 1) foi entregue o título de crédito junto pelo exequente como documento n.º 2 e não qualquer outro título de crédito que se possa identificar como “livrança”.
O erro de escrita, independentemente de quem tenha sido responsável por ele, é patente e revelável do contexto da declaração, admitindo por isso retificação nos termos do Art. 249.º do C.C..
Foi uma letra de câmbio, mais concretamente o documento n.º 2 junto com o requerimento inicial, que foi entregue com a celebração do contrato a que se reporta o documento n.º 1, igualmente junto com o mesmo articulado, ainda que por evidente lapso, repetido nos articulados, se tenha referido que esse documento era uma “livrança”, quando era efetivamente uma letra de câmbio.
Por outro lado, o que o exequente alegou no requerimento inicial e na contestação aos embargos, devidamente contextualizado com a prova documental a que se reportou, ainda que repetindo o erro de qualificação jurídica do título de crédito que concretamente estava em causa, foi que o título de crédito que foi entregue com a celebração do contrato (v.g. doc. n.º 1) foi o que corresponde ao documento que juntou como documento n.º 2, que efetivamente não é uma livrança, mas sim uma letra de câmbio.
Daí que a sentença recorrida se tenha limitado a reconhecer isso mesmo quando, logo de início, afirma: «O título executivo nos autos é a letra (título cambiário) dada em garantia do contrato (que a exequente igualmente juntou com o requerimento executivo)».
Ao tomar esta posição de princípio, não se pode dizer que violou o princípio do dispositivo, pois limitou-se a fazer a devida qualificação jurídica dos factos alegados em função da prova que concretamente foi junta pelas partes em seu suporte. O que se compreende claramente no âmbito do poder jurisdicional estabelecido no n.º 3 do Art. 5.º do C.P.C..
Não é pela circunstância de as partes dizerem que o título executivo é uma livrança, quando juntam para o efeito uma letra de câmbio, que uma letra de câmbio se converte necessariamente numa livrança, sem qualquer possibilidade de discussão dessa conclusão jurídica. Nestas circunstâncias o tribunal não pode ficar inibido de fazer a devida qualificação de direito que se impõe por força da prova junta pelas próprias partes, corrigindo necessariamente as alegações articuladas que de facto enfermam de erro patente.
Esta situação nem sequer poderá ser enquadrada como “facto instrumental” que resulta da instrução do processo (cfr. Art. 5.º n.º 2 al. a) do C.P.C.), nem como “facto complementar ou concretizador” do que as partes hajam alegado (cfr. Art. 5.º n.º 2 al. b) do C.P.C.), porque esta precisão reporta-se claramente à causa de pedir, como facto essencial à pretensão executória formulada, só que invocada em erro.
Essa operação de mera qualificação jurídica, no quadro legal do Art. 5.º n.º 3 do C.P.C., em circunstância alguma pode configurar-se como um excesso de pronúncia. Desde logo, porque as partes, que estão patrocinadas por advogados, teriam a obrigação de saber ler os documentos que suportam as suas alegações e perceber que haveria “erro” na qualificação jurídica dos factos, não podendo constituir qualquer surpresa atendível para as mesmas que o Tribunal poderia, e deveria, por força da adequação do direito efetivamente aplicável, requalificar juridicamente o título executivo que concretamente foi apresentado.
Estamos claramente no domínio do velho princípio de Direito Romano jura novit cura. É o juiz que conhece e aplica o direito, em homenagem ao princípio constitucional da legalidade do conteúdo das decisões judiciais, para o que irreleva por completo a vontade das partes (vide, a propósito: Lebre de Freitas in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 3.ª Ed., págs. 18 e 19).
Sendo certo que no “plano dos factos” vigora o princípio do dispositivo, no caso concreto, a afirmação (claramente equivocada) de que o título executivo é uma livrança está para lá duma mera constatação de facto, porque tem em si ínsita uma valoração de natureza eminentemente jurídica que pode, e deve, ser alterada pelo juiz, para mais quando se verifica não corresponder minimamente à verdade que para esse efeito foi documentada nos autos.
Ora, a sentença teve em consideração que havia um erro de qualificação jurídica de um documento, sem que se pudesse dizer que houvesse qualquer erro de identificação na ação executiva de que era o documento n.º 2, junto com o requerimento de execução, que constituída o alegado “título executivo”.
A correção desse erro, admissível no quadro legal do Art. 249.º do C.CF., tem evidentes repercussões nas afirmações, constantes dos articulados, de que esse título de crédito é uma “livrança”. Tal como terá inevitável tradução em termos da necessária correção da redação da matéria de facto provada, sem que se possa falar numa verdadeira alteração da causa de pedir na ação executiva, que sempre teve por base o título efetivamente junto com o requerimento inicial executivo, que é, e sempre foi, o documento n.º 2.
Em suma, sem necessidade de maiores considerações sobre o assunto, julgamos que não se verifica a apontada nulidade da sentença recorrida, improcedendo as conclusões que sustentam o contrário do exposto.
2. Da impugnação da matéria de facto.
O Recorrente, muito na senda da pretendida procedência da nulidade da sentença supra apreciada, veio também impugnar a matéria de facto provada, pretendendo que os factos constantes das alíneas A, B, D, E e P devessem ser julgados por não provados.
Assim, quanto ao facto provado na alínea A, entende que o mesmo é contrariado pelo documento n.º 1 junto pela exequente, que corresponde ao “contrato de incentivo à atividade comercial” assinado em 26 de Setembro de 2022 entre a exequente e a sociedade “SI, Lda.”, pois na sua cláusula 9.1., al. a), estipulou-se que esta última sociedade entregou à exequente «o original da Livrança n.º 500792887211108081, subscrita em branco por SI LDA e avalizada pelos sócios gerentes, FM e FB».
Invoca ainda que, no requerimento executivo, a exequente alegou no artigo 8.º que: «8 º - Subscreveram este financiamento, como avalistas e principais devedores, os aqui Executados, os quais, na qualidade de sócios da devedora, deram o seu aval a esta dívida, mediante a assinatura de titulo de crédito (Livrança), que se junta como Doc. 2».
Portanto, defende que o título executivo alegado era uma livrança, com o n.º 500792887211108081, sendo que o contrato não fazia referência à emissão e entrega de qualquer outro título de crédito, não tendo sido convencionada a emissão de qualquer “letra de crédito”, nem tal teria sido alegado no requerimento inicial executivo.
Em conclusão, tal teria como consequência que o facto constate da alínea A deveria necessariamente ser dado por não provado.
O assim exposto teria iguais implicações quanto ao facto provado em B, que também não teria sido alegado nesses termos pela embargada, não podendo dizer-se que esta invocou que se identificava no título como “sacadora”, nem que a executada era a “sacada”, tendo em atenção o que a propósito resulta do mesmo artigo 8.º do requerimento executivo, ou o que foi invocado na contestação aos embargos.
Quanto à alínea D, também não se poderia dizer que o Embargante assinou na face anterior do titulo de crédito, por baixo dos dizeres “Bom por aval ao subscritor”, relembrando que no artigo 24.º da petição de embargos impugnou a assinatura dos documentos juntos ao requerimento inicial, não figurando nessa qualidade no documento apresentado, nem no articulado pela embargada.
Quanto à alínea E, sustenta que esse facto é igualmente contrariado pela cláusula 9.1. do contrato de incentivo comercial, quando aí se refere à entrega da “Livrança n.º 500792887211108081”, sendo assim patente que não foi entregue qualquer letra à embargada.
Finalmente, quanto à alínea P, é o seu teor contrariado pelo que consta da cláusula 9.ª, al. a) do contrato assinado em 7 de Dezembro de 2022 (doc. n.º 3 da contestação aos embargos), onde consta que:
«9.1. Na data da assinatura do presente contrato, a SI. entrega à PRIMEIRA OUTORGANTE os originais dos seguintes instrumentos de garantia das obrigações de pagamento assumidas no presente Contrato pelo mesmo:
«a) Livrança n.º 500792887210789158, subscrita em branco por SI LDA e avalizada pelo sócios gerentes, FM e FB.
«A PRIMEIRA OUTORGANTE fica desde já autorizada a preencher tal livrança até ao montante de €200.000 (duzentos mil euros)».
Por outro lado, o que foi alegado no requerimento executivo, no artigo 12.º foi que: «12º - Subscreveram também este financiamento, como avalistas e principais devedores, os aqui Executados, os quais, na qualidade de sócios e gerentes da SI, Lda., deram o seu aval a esta dívida mediante subscrição do título de crédito (Livrança), que se junta como Na letra dada à execução é sacador a sociedade “A&C, Lda.” e sacado a sociedade “SI, Lda.”».
A tudo acresce que os documentos em causa fazem prova dos factos contrários aos aí declarantes, nos termos do Art. 374.º n.º 2 do C.C..
Em suma, todos esses factos impugnados, no entender do Recorrente, deveriam, por estas razões, ser dados por não provados.
Em contraposição, a Recorrida veio sustentar que houve um mero erro na identificação do título cambiário como sendo uma livrança, o que não altera a vontade das partes, nem o resultado final pretendido. Quer se tratasse de uma livrança ou de uma letra, o que se pretendia era que, em caso de incumprimento da devedora principal, os avalistas ficariam sempre obrigados pelo título executivo que subscreveram. Realçou também que o número de identificação do título cambiário onde o Recorrente apôs a sua assinatura (v.g. o n.º “500792887211108081”) é coincidente com o título executivo junto. Pelo que, no final, pugnou pela manutenção da decisão sobre a matéria de facto impugnada.
Apreciando, o que consta da alínea A só poderia ser dado por provado, porque se traduz na mera constatação objetiva de que foi instaurada uma ação executiva, com determinado pedido e com base num título executivo que é o documento n.º 2, que objetivamente é uma letra de câmbio e tem o n.º 500792887211108081, tal como dado por provado. É isso que está documentado nos autos (cfr. “Requerimento Executivo” de 30-09-2023 – Ref.ª n.º 24150694 -p.e.; e “Doc. 2 [Livrança]” / “Livrança” de 30-09-2023 Ref.ª n.º 24150694 - p.e.) e, por isso, improcede necessariamente a impugnação nesta parte.
Na alínea B está provado que, na letra dada à execução, o sacador é a exequente e o sacado é a sociedade “SI, Lda.”. Ora, é isso mesmo que resulta do mencionado documento n.º 2 junto ao requerimento inicial executivo (cfr. “Doc. 2 [Livrança]” / “Livrança” de 30-09-2023 Ref.ª n.º 24150694 - p.e.), cuja imagem reproduzimos no ponto 1 do presente acórdão.
O mesmo se diga relativamente à alínea C dos factos provados que corresponde à reprodução dos dizeres desse mesmo documento, quanto à data de emissão, importância e data de vencimento.
No que tange à alínea D, também se constata a existência de dizeres relacionados com a prestação de aval e uma assinatura que foi imputada à autoria do embargante, que são perfeitamente identificáveis nesse mesmo documento, cuja imagem reproduzimos no ponto 1 do presente acórdão. No entanto, no que se refere à impugnação da assinatura constante do verso da letra de câmbio (por baixo dos dizeres manuscritos «bom por aval à firma subscritora») sendo certo que o ónus de prova dessa autoria compete à exequente (cfr. Art. 374.º n.º 2 do C.C.), a verdade é que cumpriu esse ónus, pois consta da sentença recorrida que o tribunal fundou a sua convicção sobre esse facto nos seguintes termos:
«O embargante, no requerimento de embargos, impugnou os “DOCs 1 e 3 juntos com o Requerimento Inicial”, referindo que tais documentos são “incompletos e alterados face aos documentos originais cujo teor se impugna, incluindo as assinaturas neles constantes”.
«Em audiência, aquando a prestação de declarações, disse ainda o embargante que a assinatura aposta quer nos contratos, quer na letra não é a sua – não mereceu credibilidade tal declaração.
«A assinatura do embargante, aposta nos dois contratos, foi reconhecida por advogado, constando do termo de reconhecimento, que foi objeto de registo, que a assinatura foi aposta no contrato na presença do signatário.
«Também o co executado FB atestou que a assinatura dos dois contratos foi efetuada por ambos (o próprio e o embargante) num escritório de advogados, tendo ambos assinado, no mesmo momento, a letra e cheques» (sublinhados nossos).
Perante estes meios de prova relevados pelo Tribunal a quo, o Recorrente, nas suas alegações de recurso, não pôs minimamente em causa, como era seu ónus (cfr. Art. 640.º n.º 1 al. b) do C.P.C.), a sua credibilidade, nem sustentou, noutros meios probatórios, que concretamente deveria identificar, a conclusão de que se impunha decisão diversa. Pelo que, motivos não existem para alterar em substância a redação da alínea D.
Na verdade, apenas se deverão corrigir os concretos dizeres constantes da declaração de aval, pois aí não está manuscrito “Bom por aval ao subscritor”, mas sim “bom por aval à firma subscritora”. O que é um mero pormenor.
Quanto à alínea E, o tribunal a quo expressou a sua convicção na sentença recorrida, nos seguintes termos:
«O legal representante da embargada, que igualmente prestou declarações, referiu que do contrato de 26/09/2022 foi paga a quantia de €55.000,00, através do 1º cheque, e €10.000,00 referentes a juros do 2º e 3º cheques que não foram pagos.
«Das declarações prestadas pelo legal representante da embargada resultou inequívoco que a letra entregue em garantia do contrato firmado em setembro de 2022 foi preenchida pelos valores calculados pela embargada com referência aos dois contratos (de setembro e de dezembro de 2022), mantendo o depoente na sua posse a letra que titula o contrato de dezembro de 2022.
«Cabia ao embargante demonstrar que foi paga outra quantia para além do montante que a embargada refere ter sido paga, prova que não foi efetuada – com efeito, não constitui um balancete prova firme e inequívoca de qualquer pagamento (daí que se tenha dado como não provado o facto indicado no ponto 1).
«A testemunha RD, referiu ter apresentado as partes, confirmou o financiamento e o incumprimento, embora não tenha acompanhado qualquer dos negócios com a “SI”».
Também nesta parte o Recorrente, nas suas alegações de recurso, não pôs minimamente em causa, como era seu ónus (cfr. Art. 640.º n.º 1 al. b) do C.P.C.) esta valoração da prova, sustentando agora a sua impugnação apenas no teor do contrato de setembro de 2022, do qual constam claramente declarações escritas assentes em erros de escrita, retificáveis no quadro legal do Art. 249.º do C.C., pelas razões que já fomos expondo e, por isso, não poderá ser aplicada cegamente a regra do Art. 376.º n.º 2 do C.C., porquanto se fez prova de factos contrários que auxiliam na correta interpretação das declarações negociais assim escritas (cfr. Art. 393.º n.º 3 do C.C.). Por esse motivo não existem razões atendíveis para alterar a redação da alínea E.
Finalmente, quanto à alínea P, o que aí está em causa é que para garantia do cumprimento do contrato de 7 de dezembro de 2022, referido em O, teria sido entregue uma letra com o n.º 500792887210789158.
Ora, tal como no contrato anterior, de setembro de 2022, também neste se faz menção a uma “livrança”, precisamente com o número que foi dado por provado, sendo que a sentença referiu que, das declarações prestadas pelo legal representante da embargada, este terá mencionado que ainda está na posse da letra que titula o contrato de dezembro de 2022 e, portanto, evidenciou-se a repetição do mesmo erro de escrita nesse segundo contrato. Pelo que, motivos não vemos para deixar de manter esse facto como provado, em função da valoração feita da prova pelo Tribunal a quo, que não foi minimamente beliscada pelos fundamentos expostos na motivação do recurso.
Em função de todo o exposto, julgamos apenas alterar a redação da alínea D dos factos provados, que passará a ser a seguinte:
«D- O embargante apôs a assinatura na face anterior da letra de câmbio, por baixo dos dizeres manuscritos “bom por aval à firma subscritora».
Feita esta precisão, no mais mantém-se a factualidade provada e não provada, improcedendo a impugnação apresentada.
3. Do mérito dos embargos de executado.
Passando agora às questões de fundo suscitadas explicitamente no presente recurso – uma vez mais, ainda no quadro do entendimento sobre a invalidade da sentença recorrida, por se ter debruçado sobre uma relação cartular (letra de câmbio) que não foi alegada pelas partes –, veio o Recorrente sustentar que, estando em causa o preenchimento de título de crédito entregue em branco e recordando que essa relação ainda ocorre no domínio das relações imediatas, o embargante, na qualidade de avalista, poderia opor ao portador do título todas as exceções decorrentes da relação contratual subjacente (cfr. Ac. STJ de 30 de maio de 2023 – Proc. n.º 529/21.7T8GMR-A.G1.S1).
Assim, por um lado, em respeito pelo princípio do dispositivo, em face da insuficiência das alegações da embargada quanto à relação subjacente, o tribunal deveria concluir pela indeterminabilidade, parcial, da relação subjacente e, consequentemente, da relação cartular. Nessa medida, o avalista pode defender-se com exceções pessoais, fundadas na nulidade do pacto de preenchimento e do aval por indeterminabilidade do objeto, nos termos (cfr. Art. 280.º do C.C.).
Por outro lado, no caso, para além do mais, subjacente ao título estavam “contratos de incentivo à atividade comercial” que eram nulos por falta de forma (cfr. Art. 1143.º do C.C.).
Assim, conjugando esses dois vícios, de preterição de forma do documento que suporta a relação imediata (cfr. Art. 1143.º do C.C.) e a indeterminabilidade da relação mediata (cfr. Art. 280.º do C.C.), deveria reconhecer-se a invocação bem sucedida da exceção de desconformidade no preenchimento, com o inerente afastamento da pretensão cambiária e nulidade do aval alegadamente prestado.
A Recorrida, por seu lado, veio sustentar a validade da relação cartular e a prevalência da vontade real das partes ao subscreverem a letra de câmbio, por pretenderem, por essa via, titular a garantia de pagamento pelos avalistas das obrigações assumidas pela devedora principal, sendo que a sentença já corrigiu o efeito da alegada indeterminação parcial da obrigação pela redução da garantia ao crédito emergente do contrato de 26 de setembro de 2022, reduzindo o valor de €531.004,11 da letra que serve de título executivo para o montante de €289.359,00.
Apreciando, temos de dizer, em primeiro lugar, que a questão da invalidade formal dos contratos que estão subjacentes à emissão da letra de câmbio que serve de título executivo na ação principal, por apenso à qual foram deduzidos os embargos de executado, está a ser suscitada pela primeira vez. Os embargos de executado são completamente omissos sobre a questão da inobservância do Art. 1143.º do C.C. relativamente aos contratos de incentivo à atividade comercial que foram juntos pelo exequente como documentos n.º 1 e n.º 3 com o requerimento inicial executivo.
Em segundo lugar, a questão da indeterminação da obrigação avalizada, com alegada violação do Art. 280.º n.º 1 do C.C., também é uma questão nova, que não foi suscitadas nesses termos na petição inicial de embargos de executado, embora aí se tivesse defendido que a “livrança” dada à execução não garantia as obrigações emergentes do segundo contrato, celebrado em dezembro de 2022 (v.g. artigos 53.º a 62.º da petição - cfr. “Requerimento (Início de Processo)” de 11-03-2024 – Ref.ª n.º 14950909 - p.e.).
A sentença, em conformidade, não se debruçou sobre semelhantes questões, cingindo a sua apreciação ao título executivo apresentado, que era efetivamente apenas uma letra de câmbio, mas decidiu explicitamente que essa letra só legitimava o preenchimento e garantia o pagamento do primeiro contrato, celebrado em setembro de 2022, excluindo assim a garantia do aval relativamente às obrigações emergentes do contrato de dezembro de 2022, com a consequente redução da obrigação exequenda ao valor de €289.359,00.
Seja como for, o facto destas questões só terem sido suscitadas, nesses termos e pela primeira vez, nas alegações de recurso, não invalida a constatação de que foram alegadas nulidades de negócios jurídicos que, nos termos da lei, são de conhecimento oficioso (cfr. Art.s 280.º, 220.º e 1143.º “ex vi” Art. 286.º do C.C.). Pelo que, por força do Art. 608.º n.º 2 “in fine”, aqui aplicável por força do Art. 663.º n.º 2 do C.P.C., não poderemos deixar de nos pronunciar sobre elas, já que foram erigidas como temas da apelação que foram objeto de oportuno exercício do contraditório pela contraparte.
Assim, quanto à validade formal do “Contrato de Incentivo à Atividade Comercial”, datado de 26 de setembro de 2022, podemos constar que o mesmo não constitui um verdadeiro contrato de mútuo, tal como o mesmo vem definido e regulado nos Art.s 1142.º e ss. do C.C..
O contrato de mútuo é definido no Art. 1142.º do C.C. como aquele pelo qual uma das partes empresta à outra, dinheiro ou outra coisa fungível, ficando esta última obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
Trata-se, portanto, nos termos da letra da lei, de um contrato real quoad constitutionem, que exige a tradição da coisa mutuada para a constituição do próprio contrato.
É na mesma medida também um contrato unilateral, pois dele emerge apenas uma obrigação principal, a cargo do mutuário, que consiste na restituição da coisa mutuada, nas condições convencionadas.
Como referiam Pires de Lima e Antunes Varela (in “Código Civil Anotado”, vol. II, 4.ª Ed. Revista e atualizada, pág.s 761 a 762): «O mútuo é, de sua natureza, um contrato real, no sentido de que só se completa pela entrega (empréstimo) da coisa. É o que resulta deste artigo 1142.º. A solução defendida por Vaz Serra (Notas acerca do contrato de mútuo, na Ver. Leg. Jur. Ano 93.º pág.s 65 e segs), da admissibilidade de mútuo consensual, como figura intermédia entre a promessa de mútuo, sujeito ao regime dos artigos 410.º e seguintes, e o mútuo real, não apresenta para o comércio jurídico qualquer interesse prático. Ou se empresta a coisa, ou se promete emprestá-la. No primeiro caso, há um contrato de mútuo; no segundo, um contrato-promessa».
Menezes Leitão (in “Direito das Obrigações - Vol. III – Contratos Em Especial”, 3.ª Ed. Pág. 392), discutindo a questão do mútuo consensual, também escreve: «A tese do cariz consensual do contrato de mútuo contradiz claramente o disposto na nossa lei, que o qualifica como um contrato real quoad constitutionem e não prevê qualquer obrigação de entrega das coisas que constituem o seu objeto. Efetivamente, a definição do mútuo, constante do art. 1142º é idêntica às definições de outros contratos reais quoad constitutionem, como a parceria pecuária (art. 1121º), o comodato (art. 1129º), e o depósito (art. 1185º), afastando-se das fórmulas definitórias dos contratos consensuais, onde se prevê uma obrigação de entrega, como a compra e venda (arts. 874º e 879º b)) e a locação (arts. 1022º e 1031ºb)). As qualificações jurídicas podem ser afastadas pelo intérprete, mas não quando delas resulte a aplicação de determinado regime, como é aqui o caso. (…) O mútuo é assim claramente entre nós um contrato real quoad constitutionem, exigindo a tradição das coisas mutuadas para a sua constituição. Essa tradição não tem, no entanto, que corresponder a uma entrega material das coisas mutuadas, podendo considerar-se suficiente que o mutuante atribua ao mutuário a disponibilidade jurídica das quantias mutuadas, como sucederá, por exemplo, se a soma for creditada na conta-corrente do mutuário». (No mesmo sentido escreve também Santos Justo in “Manual de Contratos Civis”, pág. 357).
Mas outros há que entendem que a entrega da coisa mutuada não teria a função de elemento constitutivo do contrato, sendo um mero ato executivo que poderia não ser contemporâneo à celebração do negócio (Vide: Castro Mendes in “Teoria Geral do Direito Civil”, Vol. II, 1985 (1979), pág. 309 a 310). Havendo também quem considere que é admissível o mútuo meramente consensual, ao lado do mútuo real e da promessa de mútuo (neste sentido: Vaz Serra in R.L.J. n.º 93, pág. 65 a 69; Mota Pinto in “Cessão da Posição Contratual”, pág. 13 e ss. em nota e “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 398 a 399; e Menezes Cordeiro in “Tratado de Direito Civil I – Parte Geral, Tomo I”, 2.ª Ed., pág. 314).
Mas mesmo Menezes Cordeiro, um dos principais autores que defendem a autonomia conceptual do mútuo consensual, parece reconhecer que o contrato de mútuo regulado no Código Civil é um contrato real quoad constitutionem (in “Tratado de Direito Civil” – Vol. XII – pág. 233).
Na mesma linha, Carlos Ferreira de Almeida (in “Contratos II – Conteúdo. Contratos de Troca”, 2012, 3.ª Ed., pág. 137), reconhece que o tipo social regulado no Código Civil comtempla apenas a modalidade real quoad constitutionem, embora ressalve que hoje já ninguém conteste a admissibilidade duma modalidade consensual de mútuo, em que o mutuante se obriga a entregar o capital, numa ou mais prestações.
Assim, o contrato de mútuo, tal como definido no Código Civil, é um contrato unilateral, pois a entrega da quantia mutuada não é uma prestação autónoma, fazendo parte da génese constitutiva do contrato, dele só nascendo obrigações para o mutuário, designadamente a de restituição do valor mutuado.
A possibilidade de existir um contrato de mútuo meramente consensual, ou seja em que a entrega seja estabelecida como uma mera obrigação do mutuante, não está afastada no quadro da autonomia privada e da liberdade de estipulação (Art. 405.º do C.C.), mas isso não depõe quanto à conclusão de que contrato de mútuo regulado no Código Civil ser um contrato real quoad constitutionem e, por isso, não há regulação típica para uma obrigação de entrega autónoma.
É isso que vem sendo sustentado pela grande maioria da doutrina, com base não só na raiz histórica desse contrato (vide: A. Santos Justo in “Manual de Contratos Civis – Vertente Romana e Portuguesa”, pág. 357 e ss.), mas também em fundadas razões de necessidade certeza e segurança jurídica (neste sentido, entre outros: Pires de Lima e Antunes Varela in “Código Civil Anotado”, Vol. II, pág. 761 a 762; Galvão Telles in “Manual dos Contratos”, pág.s 464 a 465; e Menezes Leitão in “Direito das Obrigações – Vol. III - Contratos em Especial”, 3.ª Ed. pág.s 388 a 394).
No caso dos autos, o que resulta da cláusula primeira do contrato de 26 de setembro de 2022 é que «1.1. A PRIMEIRA OUTORGANTE [ou seja, a embargada] na presente data compromete-se a mutuar á sociedade “SI LDA”, a quantia de €300,000,00». Logo, dos termos do convencionado, a exequente-embargada ainda não havia entregue àquela sociedade a quantia prometida mutuar e, consequentemente, não estamos perante um contrato de mútuo, tal como definido no Art. 1142.º do C.C., mas perante uma mera promessa de mútuo.
Ora, a promessa de mútuo não está subordinada à regra de forma do Art. 1143.º do C.C., mas sim à do Art. 410.º n.º 1 do C.C., que exceciona explicitamente a aplicação das regras de forma do contrato prometido ao contrato-promessa. Sendo certo que, nos termos do n.º 2 do Art. 410.º do C.C. se estabelece ainda que, se o contrato prometido estiver sujeito por lei a documento autêntico ou particular, só valerá se constar de documento assinado pelas partes que se vinculam, consoante a promessa seja unilateral ou bilateral.
Ora, o mútuo de valor superior a €25.000,00 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado (cfr. Art. 1143.º do C.C.). Logo o compromisso de mútuo, por força do Art. 410.º n.º 2 do C.C., pode ser formalizado por escrito assinado por ambas as partes. Sendo que, no caso, foi observada essa formalidade legal através do documento que foi junto com o n.º 1 com o requerimento inicial executivo, não existindo, nessa medida, qualquer vício de forma do contrato em menção.
Sem prejuízo, a quantia de €300.000,00, prometida entregar nos termos desse contrato, veio efetivamente a ser entregue pela embargada à sociedade “SI, Lda.”, encontrando-se provado que por conta dessa dívida foram pagos à exequente-embargada a quantia de €65.000,00 (cfr. facto provado N).
Aliás, segundo o exequente alegou no artigo 1.º do requerimento inicial executivo, os €300.000,00 ainda foram entregues no dia 26/09/2022 (cfr. “Requerimento Executivo - Anexo com indicação de bens à penhora” de 30-09-2023 – Ref.ª n.º 24150713 – p.e.).
Assim sendo, houve uma entrega de facto de €300.000,00, com obrigação de restituição pela devedora, que objetivamente se traduziu na celebração efetiva dum “mútuo de facto”, relativamente ao qual não foi observada a forma legal prevista no Art. 1143.º do C.C., já que o exequente invocou que fez essa entrega, mas não juntou qualquer prova da formalização desse contrato, para além do documento que juntou como documento n.º 1, que apenas é formalmente válido como promessa de mútuo.
Também se pode sustentar que a entrega dos €300.000,00, na sequência da celebração do contrato de incentivo à atividade comercial de 26 de setembro de 2022, mais não é que a mera execução da promessa de mútuo, não se traduzindo numa relação contratual autónoma. Caso em que, a conclusão será sempre a mesma: objetivamente o contrato assim formalizado e executado não observou a forma legal do Art. 1143.º do C.C..
A consequência legal da inobservância da forma legal do contrato de mútuo estabelecida no Art. 1143.º do C.C. é a nulidade do contrato (cfr. Art. 220.º do C.C.). Vício que, como já vimos, é de conhecimento oficioso (cfr. Art. 286.º do C.C.).
Ocorre que a consequência legal dessa nulidade não é a inexistência da obrigação de restituição da quantia mutuada, mas sim que a mutuária fica obrigada a restituir tudo aquilo que recebeu (cfr. Art. 289.º n.º 1 do C.C.). Portanto, continua obrigada a devolver €300.000,00, deduzidos dos €65.000,00 que a exequente já recebeu por conta dessa concreta dívida (cfr. facto provado N).
A dívida deve assim ficar restrita à obrigação restituição do valor de €235.000,00, sendo que a invalidade formal do mútuo compreende necessariamente as convenções acessórias relacionadas com o prazo ou os juros contratualizados. Ou seja, a devedora não pode invocar em seu benefício o prazo estabelecido para cumprimento da obrigação de restituição da quantias mutuada, sendo que a credora também não pode exigir o pagamento de juros convencionados a taxa diversa da estabelecida na lei, nem exigir qualquer tipo de sanção que tivesse sido convencionada pela mora ou incumprimento definitivo. Respeitando-se assim o velho brocado latino, segundo o qual: “accessorium sequitur principale”.
No entanto, a nulidade do contrato de mútuo não determina como consequência necessária a invalidade do ato de entrega da letra de câmbio em branco, devidamente aceite pela devedora e avalizada pelo embargante. Nem invalida o pacto de preenchimento, que consta da promessa de mútuo resultante do “Contrato de Incentivo à Atividade Comercial”, datado de 26 de setembro de 2022, o qual, enquanto promessa, era formalmente válido, como vimos.
Por outras palavras, se em cumprimento dessa promessa de mútuo o promitente mutuante entrega efetivamente a quantia prometida, a obrigação de restituição daí resultante para a devedora, quer se funde no incumprimento definitivo de contrato de mútuo válido, quer se funde na exigência de restituição do indevido em consequência de o contrato de mútuo ser inválido por razões de forma, não invalida a existência duma obrigação de pagamento por parte dessa devedora.
Nesta segunda hipótese, essa dívida pode perfeitamente ser titulada por letra de câmbio que foi entregue com a função de garantir as responsabilidades que resultariam para as partes do futuro cumprimento da promessa de mútuo, sem que se possa concluir que houve violação da convenção executiva pressuposta na relação jurídica cartular contratada.
Á obrigação cartular, traduzida na emissão de letra de câmbio, tanto pode servir como causa uma obrigação de pagamento de quantia certa emergente de contrato válido, como uma obrigação de pagamento de quantia certa decorrente das consequências legais do reconhecimento da invalidade desse contrato. O que importa é que a obrigação exista.
Trata-se do reconhecimento duma das características típicas dos títulos de crédito e das obrigações cambiárias: a abstração.
O negócio cambiário é abstrato, porque pode preencher uma diversidade de funções económico-jurídicas, não tendo uma causa própria legalmente tipificada. Funciona, portanto, independentemente da sua causa, porque é um modelo em que pode ser moldado a qualquer substância (vide, a propósito: Ferrer Correia in “Lições de Direito Comercial”, Lex, pág. 437).
Nessa medida, porque a letra foi entregue em branco e com pacto de preenchimento, desde que este último seja respeitado e a obrigação subjacente se compreenda dentro do âmbito das responsabilidades para as quais a letra de câmbio foi entregue, o título de crédito poderá ser completado pelo credor, por forma a que dele constem todos os elementos objetivos necessários (v.g. Art. 2.º da L.U.L.L.).
Evidentemente que, nomeadamente quanto ao valor da dívida, se o credor preencher a letra de câmbio por montante superior ao efetivamente devido por força da relação creditória subjacente, esse excesso deverá ser reduzido, pela aplicação supletiva da regra prevista no Art. 292.º do C.C., caso estejamos, como é o caso, no domínio das relações imediatas (cfr. Art. 17.º “in fine” da L.U.L.L.).
Por outro lado, quanto ao aval, o Art. 32.º da L.U.L.L. estabelece que:
«O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada.
«A sua obrigação mantém-se, mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma».
O que significa que a obrigação do avalista mede-se pela extensão da obrigação do avalizado, mas não é desta subsidiária, nem acessória. O avalista responde pela dívida solidariamente, sem benefício de excussão prévia, podendo responder independentemente de o devedor principal ter sido demandado e mesmo que a obrigação subjacente ao crédito seja nula (vide, a propósito: Carolina Cunha in “Manual de Letras e Livranças”, 2016, págs. 38 a 43; Ferrer Correia in “Lições de Direito Comercial”, Lex, págs. 526 a 527; e Pinto Furtado in “Títulos de Crédito”, pág.s 153 a 160).
Importa ter em consideração que a ressalva constante da parte final do 2.º parágrafo do Art.. 32.º da L.U.L.L. atrás transcrito, tem sido interpretada de forma restritiva. Não é qualquer vício de forma da obrigação garantida pelo aval que pode determinar a não manutenção da obrigação do avalista. Os vícios de forma relevantes para a exclusão da responsabilidade do avalista são apenas aqueles que resultem de requisitos de validade extrínseca da própria obrigação cambiária.
Como explica Ferrer Correia (in Ob. Loc. Cit., pág. 526): «Esta fórmula [“nula por qualquer razão que não seja um vício de forma”] é aqui manifestamente empregada no seu sentido jurídico comum, importando referência às condições de forma externa do ato de onde emerge a obrigação cambiária garantida, isto é, aos requisitos da validade extrínseca desta obrigação. / Como todas as menções essenciais da declaração de vontade da pessoa que cria ou emite a letra – o sacador – são requisitos desta, condições de que depende a existência da própria letra, não é possível conceber, quanto à obrigação do sacador, nulidade por vício de forma que não comprometa ao mesmo tempo a eficácia cambiária do título» (No mesmo sentido: Pinto Coelho in “Lições de Direito Comercial”, vol. 2.º. págs. 37 e ss.).
Neste contexto, no acórdão do STJ de 22/2/1979 (in BMJ 284.º - pág. 250) explicita-se de forma bem clara que o vício de forma a que se reporta o Art. 32.º da L.U.L.L. é o que, respeitando aos requisitos externos da obrigação cambiária do aceite, se torna percetível pela simples inspeção do título. Portanto, não releva para o caso a invalidade formal do contrato de mútuo subjacente à emissão da letra de câmbio como causa de extinção da garantia da obrigação pelo embargante enquanto avalista (cfr. Art. 32.º da L.U.L.L.). Nesse caso, a sua obrigação mantém-se independentemente da validade da obrigação subjacente garantida.
Seja como for, como a obrigação de restituição, no caso concreto, objetivamente apenas poderia ser exigível relativamente ao montante de €235.000,00, por consequência da nulidade, por razões de forma, do contrato de mútuo (cfr. Art. 289.º n.º 1 do C.C.), a letra não poderia ser preenchida por valor superior. Assim, se a devedora principal, subscritora do aceite, apenas seria responsável pelo pagamento de €235.000,00, o avalista apenas responderá pelo pagamento desse valor.
Acresce ainda que essa obrigação de restituição era exigível pelo credor a todo o tempo, mas como o seu vencimento estava dependente de interpelação (cfr. Art. 805.º n.º 1 do C.C.), tal apenas ocorreu com a citação para a ação executiva principal, como foi decidido na sentença recorrida. Pelo que, só a partir de então podem ser contabilizados juros de mora e apenas à taxa legal aplicável às obrigações civis (cfr. Art. 559.º do C.C.).
Passando agora à questão da indeterminação da obrigação avalizada, estabelece o Art. 280.º n.º 1 do C.C. que é nulo o negócio jurídico cujo objeto é indeterminável.
Ora, o negócio jurídico concretamente celebrado, que obriga o embargante a responder pela obrigação da devedora principal, é o aval.
Conforme explicita Carolina Cunha (in “Manual de Letras e Livranças”, 2016, pág. 38): «A declaração de aval corresponde a um negócio jurídico unilateral através do qual o avalista assume a obrigação de garantir o pagamento de uma letra (art. 30.ºI)». Por outro lado, como vimos, nos termos do Art. 32.º da L.U.L.L. o avalista responde da mesma maneira que a pessoa por si afiançada, independentemente da validade da obrigação por si garantida, sendo certo que depois fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra a favor de quem deu o aval e contra os obrigados por ela.
Deste modo, a determinação da obrigação do avalista é delimitada pela literalidade das obrigações constantes do título de crédito, tal como elas se mostrem definidas para o devedor “afiançado”.
No caso, o problema da determinação da obrigação do avalista, tal como suscitada na motivação do recurso, está apenas ligado à consideração de o embargante ser avalista numa relação cartular identificada pelas partes como uma livrança, quando de facto não existe qualquer livrança.
Mais propriamente, a alegada indeterminação da obrigação assenta na insuficiência da alegação pela exequente da relação jurídica subjacente, em violação do princípio do dispositivo, para assim se concluir que a relação subjacente era indeterminável, pelo menos parcialmente, o que implicaria a invalidade da relação cartular e do aval, nos termos do Art. 280.º n.º 1 do C.C..
Mas, como o devido respeito, no quadro estrito e formal do título de crédito, a obrigação de garantia de pagamento é determinável e foi determinada pela sentença recorrida.
Da letra de câmbio consta um “aceite”, subscrito pela sociedade devedora, e a declaração clara e formal de que, na data de vencimento, pagaria determinada quantia, por essa única via de letra, à exequente.
Inequivocamente que o embargante-executado quis avalizar a obrigação dessa sociedade devedora, da qual era sócio e gerente, garantindo desse modo o pagamento da letra (cfr. Art. 30.º, primeiro parágrafo, e Art. 32.º, também primeiro parágrafo, da L.U.L.L.).
Realce-se que o embargante também assinou, embora na qualidade de sócio gerente da sociedade devedora, o contrato de incentivo à atividade comercial de 26 de setembro de 2022 (cfr. “Docs. 3 e 4 [Outro]” de 20-05-2024 – Ref.ª n.º 15232402 - p.e., junto com a contestação aos embargos).
É certo que a letra de câmbio foi entregue em branco, embora previamente aceite pela sociedade devedora e avalizada pelos seus sócios gerentes, mas agora já se mostra preenchida pela exequente relativamente a todos os elementos objetivos e necessários (v.g. Art. 2.º da L.U.L.L.).
É verdade que houve excesso na indicação do montante em dívida por que esse título foi preenchido. Mas, decorre da matéria de facto que esse excesso resultou, desde logo da circunstância de a credora ter resolvido incluir no mesmo título obrigações que emergiam de dois contratos diferentes, sendo certo que, quanto ao segundo contrato também teria na sua posse uma outra letra de câmbio, que não preencheu. Ora, esse concreto abuso do pacto de preenchimento (v.g. cláusula nova, 9.1., al. a) do contrato de 26 de setembro de 2022), foi corrigido na sentença recorrida, reduzindo a dívida do aceite à obrigação efetivamente garantida por esse concreto título, o que é permitido nos termos do Art. 292.º do C.C..
No entanto, por força da nulidade de forma do contrato de mútuo subjacente à letra de câmbio, é nosso entendimento, que o valor por que esse título foi preenchido deveria ser reduzido a €235.000,00, a que acresceriam juros de mora, á taxa legal (cfr. Art.s 804.º, 805.º n.º 1, 806.º e 559.º do C.C. e Portaria n.º 291/2003 de 8/4) contados da data da citação para os termos da ação executiva.
Pelo que, corrigido devidamente esse excesso, reduzindo obrigação de pagamento ao valor efetivamente devido por força das responsabilidades emergentes da celebração de contrato, que objetivamente era formalmente inválido, mas porque essas responsabilidades ainda se compreendiam no quadro que legitimava o preenchimento desse título, tal como decorre do pacto constante da cláusula nona do contrato de incentivo à atividade comercial de 26 de fevereiro de 2022, entendemos que deixa de se verificar abuso de preenchimento e a obrigação fica assim perfeitamente determinada, não havendo qualquer violação ao disposto no Art. 280.º n.º 1 do C.C..
Insistir no erro de qualificação jurídica do título, como causa de indeterminação da obrigação, afigura-se-nos completamente despropositado no contexto desta ação.
É verdade que se poderia colocar a questão em termos de “pretensa” ambiguidade da declaração de aval constante da letra de câmbio, porquanto a assinatura do embargante, aqui Recorrente, está por baixo da declaração «Bom por aval à firma subscritora» (figura típica das livranças) e não «Bom por aval ao aceitante».
Diga-se que esta vertente da questão, que se pode relacionar vagamente com a “indeterminação da obrigação”, não foi suscitada nestes precisos termos nas alegações de recurso, ainda que toda a apelação gire sempre à volta do argumento de que foi alegada uma “livrança” como título executivo e no contrato de incentivo à atividade comercial era mencionada uma “livrança” e não uma “letra de câmbio”.
De facto, o Recorrente parece que se pretende relevar um “erro” na conformação da relação jurídica cartular efetivamente querida pelas partes, sendo evidente que são distintas as configurações jurídicas específicas das relações emergentes da subscrição duma livrança relativamente às da emissão duma letra de câmbio, o que acaba por ter repercussões no regime do aval.
Ora, no caso concreto, é inequívoco que o título executivo é uma letra de câmbio, como já tivemos oportunidade de demonstrar, apesar de as partes terem identificado esse título como livrança, quer nos articulados, quer do clausulado do contrato de onde constava a menção à sua entrega e à autorização do seu preenchimento.
No contexto deste evidente, e repetido, equívoco, verificamos que no verso da letra de câmbio constam as assinaturas dos avalistas por baixo dos dizeres manuscritos «Bom por aval à firma subscritora». Ocorre que, nas letras de câmbio os declarantes principais intervenientes são tecnicamente identificados como “sacador” (v.g. Art. 1.º n.º 8 da L.U.L.L.), “sacado” (v.g. Art. 1.º n.º 3 da L.U.L.L.)) e/ou “aceitante” (v.g. Art. 21.º da L.U.L.L.). Não há propriamente “subscritor”, que é uma figura jurídica mais ligada à livrança (v.g. Art. 75.º n.º 7 da L.U.L.L.). Pelo que, poderia legitimamente perguntar-se a favor de quem foi efetivamente prestado o aval?
Acresce que, neste contexto, o Supremo Tribunal de Justiça produziu um assento, datado de 1 de fevereiro de 1966 (Publicado no Diário do Governo n.º 44/1966, Série I de 1966-02-22, páginas 265 – 266, acessível no sítio: https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-doutrinario/491676), nos termos do qual se fixou a seguinte jurisprudência: «Mesmo no domínio das relações imediatas o aval que não indique o avalizado é sempre prestado a favor do sacador».
Este assento, até por ser original e não replicável em mais nenhum outro país subescritor dessa convenção (cfr. Abel Delgado in “Lei Uniforme das Letras e Livranças”, pág. 191), poderia levar à interpretação de que, mesmo nas relações imediatas, não é possível fazer prova da pessoa a favor da qual o aval foi prestado em situações de dúvida, porque prevaleceria a regra de que o aval é a favor do sacador. No entanto, não tem sido esse o entendimento seguido, nomeadamente pelo próprio Supremo Tribunal de Justiça.
De facto, este antigo assento deve ser interpretado de forma restritiva, no sentido de que, por ele se pretende apenas aplicar a literalidade da regra consagrada no §4 do Art. 31.º da L.U.L.L..
Efetivamente, dispõe essa parte do preceito que: «O aval deve indicar a pessoa por quem se dá. Na falta de indicação, entender-se-á ser pelo sacador».
Ou seja, a jurisprudência fixada no assento do STJ de 1 de fevereiro de 1966 vai no sentido de, quando não houver nenhuma indicação expressa na letra de câmbio da pessoa a favor da qual o aval é prestado, mesmo nas relações imediatas, prevalece objetivamente a regra segundo a qual se deve entender que o aval é prestado a favor do sacador, não sendo possível prova de facto contrário.
Sucede que, no caso concreto, o aval é formalmente prestado a favor da “firma subscritora”. Portanto, foi identificada a pessoa a favor da qual se pretendia prestar o aval, só que em termos um pouco ambíguos, dado que nas letras de câmbio, tecnicamente, não existe a figura do “subscritor”.
Veja-se que, num caso semelhante ao dos presentes autos, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de maio de 1999 (Proc. n.º 99B379 – Relator: Sousa Inês, disponível para consulta em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:1999:99B379.0D?search=A2tSl-fXh2CAO5KbvBI ), ficou consignado no respetivo sumário que: «I- Não se indicar por quem se dá o aval não é a mesma coisa que proceder a essa indicação de forma que venha a revelar-se equivoca. II- Neste último caso, há que interpretar as declarações dos dados avales, em ordem a alcançar o respetivo sentido que possa relevar juridicamente».
No caso concreto decidido por este citado acórdão também estavam em causa letras de câmbio em que no verso de cada um desses títulos, constavam assinaturas sob a expressão “dou o meu aval à firma subscritora”, tendo o Supremo Tribunal dito a este respeito o seguinte:
«De harmonia com o disposto no artº 31º IV da L.U.L.L.: "O aval deve indicar a pessoa por quem se dá. Na falta de indicação, entender-se-á pelo sacador".
«Este preceito legal foi objeto de Assento de 1 de Fevereiro de 1966, publicado no Boletim nº 154, pág.s. 131 e ss, que assim reza: "Mesmo no domínio das relações imediatas o aval que não indique o avalizado é sempre prestado a favor do sacador".
«O comando que dimana do segundo período do citado artº 31º IV e deste assento não é convocável para a solução da presente lide.
«É que a respetiva provisão só cabe, como expressa e vincadamente dizem a Lei e o assento, na falta de indicação acerca da pessoa por quem se deu o aval.
«Ora, na espécie, os avalistas indicaram por quem deram o aval visto que declararam: "Dou o meu aval à firma subscritora".
«A propósito, escreveu Vaz Serra, in Rev. de Leg. e de Jur., ano 111º, pág. 142, haver que atender a que o artº 31º, IV, da L.U.L.L. só é aplicável quando o aval não indique a pessoa do avalizado, e que a indicação dessa pessoa não tem que ser feita expressis verbis, podendo concluir-se de circunstâncias que com toda a probabilidade revelem quem é a pessoa avalizada, nos termos do artº 217º do Cód. Civil.
«Na espécie o que acontece é que as palavras utilizadas pelos avalistas em ordem a identificar o avalizado ("firma subscritora") são equivocas.
«Na verdade, na espécie, quer o sacador, quer o aceitante, são sociedades comerciais e, por isto, segundo a linguagem corrente, pretensamente jurídica, um e outro podem ser designados por "firma".
«Igualmente equívoca é a palavra "subscritora".
«Subscritor pode significar simplesmente aquele que assina um documento.
«Mas pode também referir aquele que assume uma obrigação; e, neste sentido, não poderá esquecer-se que para o comum das pessoas, entre o sacador e o aceitante de uma letra de câmbio, aquele que assume a obrigação é o aceitante.
«Aliás, em matéria de livranças, título que o comum das pessoas não distingue das letras, subscritor é a pessoa que passa a livrança e se responsabiliza pelo respetivo pagamento da mesma forma que o aceitante de uma letra.
«E subscritor pode significar aquele que adquire ações ou obrigações de uma sociedade comercial.
«Ora, não se indicar por quem se dá o aval não é a mesma coisa que proceder a essa indicação de forma que se venha a revelar equívoca. Por isto, não se subscreve o entendimento que foi seguido no Acórdão deste Tribunal de 5 de Fevereiro de 1998, no Boletim nº 474, pág. 500, invocado na alegação.
«Há, assim, que interpretar as declarações dos dadores dos avales em ordem a alcançar o respetivo sentido que possa relevar juridicamente.
«Aqui chegados, há que recordar - depois de se ter afastado a aplicação do artº 31º IV da L.U.L.L. e o Assento de 1 de Fevereiro de 1996 - que, na espécie, as letras continuam no domínio das relações jurídicas imediatas entre sacadora, sacada-aceitante e avalistas e que, neste domínio, não há que aplicar as regras próprias dos títulos de crédito visto não estar em causa a circulação de boa fé dos títulos.
«Por isto, neste domínio das relações jurídicas imediatas, estabelecer, de harmonia com as circunstâncias, por qual das duas sociedades os embargantes deram o aval constitui, antes do mais, matéria de facto, como em hipótese semelhante este Tribunal decidiu mediante Acórdão de 12 de Março de 1974 (Abel de Campos), com aplauso de Vaz Serra, in Rev. de Leg. e de Jur., ano 108º, pág. 73 a 80.
«É certo que este Tribunal pode exercer censura sobre o resultado interpretativo a que se chegue sempre que, tratando-se de caso previsto no artº 236º, nº1, do Cód. Civil, esse resultado não coincida com um sentido que o declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, não pudesse deduzir do comportamento do declarante, como este Tribunal vem, mediante a mais recente jurisprudência, vincando (cfr. Acórdão de 28 de Novembro de 1996 - Miranda Gusmão - no Boletim nº 461, pág. 390).
«Nomeadamente, deverá ter-se em atenção que o declaratário normal a que se refere o artº 236º, nº1, do Cód. Civil, é, acima de tudo, a pessoa razoável, o participante honesto do comércio jurídico, como lembrou este Tribunal no Acórdão de 10 de Dezembro de 1996 (Fernandes Magalhães), no Boletim nº 462, pág. 412.
«Isto posto, a conclusão a que as instâncias chegaram, a de o aval ter sido dado pela aceitante, não merece censura, à luz dos ensinamentos que acabam de se expor, nomeadamente atendendo a que os avalistas são sócios da aceitante. O participante honesto e razoável do comércio jurídico, perante as circunstâncias que as instâncias consideraram, não deixará de entender que o aval foi dado pela aceitante.
«Assim se conclui que o Acórdão recorrido, ao afastar a aplicação à espécie do disposto no artº 31º IV da L.U.L.L. e do Assento de 1 de Fevereiro de 1966 e, a seguir, ao estabelecer que os avales foram dados à aceitante, não ofendeu a Lei.
«A idêntico resultado chegou recentemente este Tribunal, ainda que trilhando caminho algo diverso, no caso julgado pelo Acórdão de 14 de Outubro de 1997 (Costa Soares), no Boletim nº 470, pág. 637 a 647». (sublinhados nossos).
Realçamos ainda neste contexto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de dezembro de 1997 (Proc. n.º 97B702, Relator: Lúcio Teixeira, disponível em www.dgsi.pt), do qual consta o seguinte sumário: «I - O artigo 31 da LULL não exige que se "identifique" a pessoa a favor de quem se presta o aval; o que esse normativo impõe é que se "indique" a pessoa por quem se dá. II - No aval dado ao aceitante não rege a presunção da última parte do artigo 31 da LULL, interpretado pelo Assento do STJ de 1 de Fevereiro de 1966. III - A expressão "subscritor" embora consagrada legalmente para as "Livranças" - artigo 78 da LULL - é também uma expressão de uso corrente para designar nas letras o "aceitante". IV - De acordo com os usos do comércio, uma letra de garantia cria-se para operar, pelo menos, quando se atingir o montante monetário que se quis proteger. (…)».
Também não podemos deixar de pôr em evidência o sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de outubro de 1997 (Processo n.º 224/97 - 2.ª Secção Relator: Costa Soares – disponível em https://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=6095&codarea=1 ), que reza assim: «I - O aval participa da literalidade - característica esta que é essencial à letra de câmbio e postula, afinal, aquele formalismo - e sendo, como é, uma operação cambiária, acaba por ser também um ato estritamente formal.
II - A declaração de vontade dos obrigados cambiáreis não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento - a letra e o 'aval ao subscritor' dela constante.

III - O carácter estritamente formal e a característica da literalidade - à qual se poderá acrescentar a da incorporação do direito no título - conduzem a que, em matéria de obrigações cambiárias interessa mais o que foi exarado do que, propriamente, o que efetivamente fora estipulado ou já existia entre as partes. IV - Uma letra em que o aval não indique o nome do avalizado funciona como meio de prova de que esse aval foi prestado a favor do sacador (art.º 31, n.º 4, da LULL). Quem tiver aposto nestes termos a sua assinatura é avalista do sacador qualquer que tenha sido a sua intenção, havendo aqui, portanto, uma presunção juris et de jure no sentido apontado, podendo mesmo ver-se nela uma regra imperativa legal. V - A doutrina do art.º 31 da LULL tem tão-só em vista os casos em que a simples assinatura do dador do aval está aposta na face anterior da letra, pois se estiver no verso, ou seja, na parte posterior da letra, então valerá como um endosso nos termos do art.º 13, in fine da LULL. VI - Mesmo que no verso de uma letra conste uma assinatura sem qualquer outra menção, se se verificar que a mesma não pode ser de um endossante cabe ao tribunal apreciar se ela corresponde à obrigação de um avalista. VII - Nada pode justificar que, no domínio das relações imediatas, tenha forçosamente de valer como dado pelo sacador o aval que não indique a pessoa por quem é dado, pois, nesse domínio, não há que aplicar as regras próprias dos títulos de crédito, visto não haver aí que proteger a circulação de boa fé do título mediante essas regras. VIII - Compreende-se que, em relação a terceiros adquirentes de boa fé, tenha de se aplicar a presunção juris et de jure de que o aval foi prestado pelo sacador, dado que esses terceiros, tendo adquirido a letra confiados nisso, devem ser protegidos nessa sua confiança. IX - Mas, nas relações imediatas (nestas compreendidas, as relações com terceiros de má fé), não há terceiros de boa fé a proteger e, portanto, a presunção de que o aval foi prestado pelo sacador pode ser ilidida por prova em contrário. X - Então, se se prova que o aval foi dado pelo aceitante e não pelo sacador, este, quando tenha pago a letra, pode demandar cambiariamente o avalista. XI - A doutrina fixada no Assento de 1 de Fevereiro de 1966 não tem hoje aplicação no domínio das relações imediatas. XII - Ficando o n.º 4 do art.º 34 da LULL sem a força da fixação da prova que lhe conferia o referido Assento no domínio das relações imediatas, desaparece então, e consequentemente, o poder de sindicância do STJ sobre a matéria de facto dada como assente nas instâncias, poder esse que lhe era conferido pelos art.ºs 722, n.º 1, e 729, n.º 2, do CPC».
Subscrevendo-se este entendimento e aplicando-o ao caso concreto, não se pode deixar de concluir doutro modo que não seja que a declaração formal de aval “à firma subscritora” só pode ser interpretada como tendo sido estabelecida a favor da sociedade devedora de que os avalistas eram sócios gerentes.
Aliás, tal decorre, complementarmente, do “contrato de incentivo à atividade comercial”, de 26 de setembro de 2022, pois o propósito da entrega do título de crédito, aí erroneamente identificado como “livrança”, traduzia claramente a intenção das partes em titular o eventual crédito emergente desse compromisso de mútuo, através do reconhecimento da dívida correspondente e da assunção da obrigação de garantes dessa dívida pelos sócios gerentes da sociedade devedora principal, na qualidade de avalistas. Pelo que, também neste sentido não existe indeterminação da obrigação de avalista por parte do embargante, não havendo violação do disposto no Art. 280.º do C.C..
Em conclusão, procede, apenas parcialmente, um dos fundamentos em que o Recorrente assenta a presente apelação, relacionado com a invalidade formal da relação jurídica subjacente à emissão da letra de câmbio, mas cujas consequências finais são diversas, em extensão, das pretendidas ver reconhecer.
Em conformidade, improcedem as conclusões apresentadas em sentido diverso do exposto, devendo a sentença recorrida ser alterada na sua parte dispositiva por forma a determinar o prosseguimento da execução apenas para pagamento da quantia de €235.000,00, acrescida de juros legais a contar da data de vencimento dessa obrigação, ocorrida por força da citação (cfr. Art. 805.º n.º 1 do C.C.).
Quanto às custas, são elas da responsabilidade do Recorrente e da Recorrida, na proporção do respetivo decaimento (cfr. Art. 527.º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.).
*
V- DECISÃO
Por todo o exposto, acorda-se julgar a apelação parcialmente procedente, por provada, alterando a sentença na sua parte dispositiva, mantendo-se a decisão de determinar a prossecução da execução, mas reduzindo-se o valor da dívida exequenda a €235.000,00, a que acrescem os juros moratórios, à taxa legal, vencidos desde a data da citação do embargante e até integral pagamento.
- Custas pelo Apelante e pela Apelada, na proporção do respetivo decaimento (Art. 527º n.º 1 do C.P.C.).
*
Lisboa, 18 de novembro de 2025
Carlos Oliveira
Luís Lameiras
Paulo Ramos de Faria