Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
| Processo: |
| ||
| Relator: | SUSANA MESQUITA GONÇALVES | ||
| Descritores: | COMPETÊNCIA INTERNACIONAL AÇÃO DE DIVÓRCIO REGULAMENTO (UE) 1111/2019 DE 25 DE JUNHO | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/20/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | PROCEDENTE | ||
| Sumário: | Sumário (elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil): I - O Regulamento (UE) 1111/2019, de 25 de junho, aplica-se diretamente na ordem jurídica portuguesa e é vinculativo para os tribunais portugueses, pelo que a aferição da competência internacional dos tribunais portugueses para preparar e julgar ações de divórcio deve ser feita à luz dos critérios nele previstos e não à luz da legislação processual civil interna. II - O Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25 de junho, tem um âmbito de aplicação espacial universal, o que significa que ele não se limita a regular, apenas, situações conexas com Estados-Membros, mas qualquer situação, tenha ou não alguma ligação relevante com a UE. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados: * I. Relatório: B (…), indicando ter domicílio nas (…) Sintra, instaurou a presente ação de divórcio sem consentimento contra J (…), indicando que o mesmo tem morada conhecida na Rua (…) Estoril, pedindo que seja decretado o divórcio entre a Autora e o Réu com fundamento no disposto no artigo 1781º, alínea d), do CC. Alega, em síntese, o seguinte: - Autora e Réu dividem as suas vidas entre Sintra (Portugal) e Nova Iorque (Estados Unidos da América); - Perante a Autoridade Tributária, a Autora é, presentemente, residente fiscal e tem domicílio em Portugal continental desde longa data; - A última declaração de IRS apresentada pela Autora data de 2022 e, também ali, confirmou a sua residência em Portugal, oscilando, ainda, com a sua residência em Nova Iorque, em concreto, na (…), Estados Unidos da América; - De momento, a Autora encontra-se em recuperação em Nova Iorque, pretendendo regressar a Portugal assim que estiver em condições físicas para o fazer e a sua situação com o Réu se der por juridicamente concluída; - A Autora e o Réu contraíram casamento civil, sob o regime imperativo da separação de bens, sem convenção antenupcial, na Conservatória do Registo Civil de (…), em 27 de Novembro de 1996; - Cerca de 1 ano após ter sido contraído o casamento, o Réu alterou o comportamento que evidenciava até então com a Autora, passando a agredi-la física e psicologicamente com regularidade; - O último incidente desta natureza verificou-se a 20/04/2024, quando a Autora voltou a ser agredida e teve de ser internada no Hospital CUF …; - Por ter tido, uma vez mais, a sua saúde e a sua vida em risco, a Autora denunciou o Réu ao Ministério Público, tendo sido aberto o inquérito com o Processo n.º (…), e que corre termos no Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de (…), do Tribunal Judicial da Comarca de (…); - Desde essa data (20/04/2024) que a Autora e o Réu se encontram separados, não tendo havido reconciliação entre ambos. * Regularmente citado o Réu apresentou contestação, arguindo a exceção de incompetência internacional deste Tribunal. Para o efeito, alega: - Autora e Réu não têm residência em Portugal, residindo há mais de 10 anos nos Estados Unidos da América, sendo ambos cidadãos americanos (o Réu com dupla nacionalidade); - A Autora, nos últimos 15 anos, veio a Portugal uma única vez, no mês de março de 2024, para uma festa de família, apenas permanecendo neste país por mais tempo devido a um inesperado internamento hospitalar; - A Autora invoca que tem residência nas (…), Sintra, sendo tal invocação uma farsa, pois nessa morada está alojada uma unidade hoteleira que a Autora arrendou a terceiros; - A única ligação que a Autora tem com a Autoridade Tributária em Portugal será a da obrigatoriedade de apresentar declaração de rendimentos pelo facto de receber o valor das referidas rendas. * A Autora respondeu à referida exceção, dizendo: - Do auto de interrogatório de arguido de 08.07.2024 resulta que o Réu declarou ao Tribunal que reside alternadamente entre os Estados Unidos e Portugal; - Da procuração outorgada pelo Réu e que acompanha a contestação é possível aferir que o próprio Réu admite que, pelo menos a 07.05.2024, tinha residência na “Avenida (…) Lisboa”. - Assim, sem conceder, ainda que se pudesse admitir que a Autora não tem residência em Portugal, a competência internacional dos Tribunais portugueses para o caso em apreço estaria sempre assegurada pelo facto de o Réu ter residência em Portugal; - Finalmente, ainda que assim não se entendesse, considerando a presença frequente do Réu em Portugal, bem como o facto de ter nacionalidade portuguesa, poder-se-á pugnar pelo entendimento jurisprudencial que conclui sobre as residências alternadas. * Em 19.05.2025 foi proferido despacho saneador, no qual se conheceu da exceção de incompetência internacional dos Tribunais portugueses para a apreciação e decisão da causa, aqui se reproduzindo o respetivo segmento decisório: “(…) Pelo exposto, julgo procedente a exceção arguida, declarando a incompetência absoluta deste Tribunal para a apreciação e decisão da causa, por infração das regras de competência internacional, e, em consequência, absolvo o réu da instância (…)”. * Não se conformando com o teor dessa decisão, a Autora dela veio recorrer, formulando as seguintes conclusões: “(…) III. Conclusões A. O Tribunal a quo não deveria ter dado como provado os factos 3, 5 e 6 da matéria de facto dada como provada, face a toda a prova produzida, designadamente, a que decorre dos documentos juntos aos autos pelas partes e face à correta aplicação do disposto no artigo 82.º, n.º 1, do Código Civil, do Regulamento (EU) n.º 1111/2019, de 25 de Junho, e do artigo 19.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária. B. O Tribunal a quo considerou, através do facto 3, que, a 12.03.2024, Autora e Réu mantinham residência na morada em (…) Estados Unidos da América, onde viviam juntos, o que, embora seja parcialmente verdade, exclui que ambos tivessem residências alternadas entre Portugal e os Estados Unidos da América. C. Com efeito, resulta evidente da prova documental carreada nos autos pela Autora e, também, pelo réu, que ambos também residem nas (…) Sintra, Portugal, tendo as indicações de domicílios em Lisboa e no Estoril, pelo réu, se justificado com o processo crime a correr termos no processo (…). D. Este facto, sim, é o único que resulta das declarações de IRS apresentadas pela Autora, das procurações outorgadas pelo réu, das certidões emitidas pelo Juízo de Instrução Criminal de (…), das declarações do réu no auto de interrogatório de 08.07.2024 no processo n.º (…) e por outros documentos apresentados pelas partes e evidências de senso comum, como o tempo passado em Portugal pela Autora e pelo réu na sua última permanência em Portugal (39 dias seguidos acompanhados de um internamento). E. Assim, o que o ponto 3 dos factos provados devia ter dado por assente era “Autora e réu são residentes fiscais em Portugal até, pelo menos, 02.08.2024, e assumem ser residentes em território nacional”. F. O Tribunal a quo considerou, também, sob o facto provado 5 que a Autora veio a Portugal uma única vez, em Março de 2024, e que o fez para estar presente numa festa de família, apenas tendo prolongado a sua permanência no país devido a um internamento hospitalar. G. O internamento hospitalar da Autora só se verificou 39 dias após ter chegado a Portugal, a 12.03.2024, não tendo ambos data prevista de regresso aos Estados Unidos da América, pelo que não é crível que uma viagem cujo único propósito seria, excecionalmente, participar numa festa de família, tivesse uma permanência tão duradoura e sem fim à vista. A Autora esteve temporariamente ausente de Portugal por desaconselhamento médico para realizar viagens, mas retomou a permanência em Portugal, também onde tem domicílio, assim que lhe foi fisicamente possível. H. Considerando que o casal chegou a Portugal em 12.03.2024 e que participou no batizado da neta de ambos a 16.03.2024, não é crível que passados 34 dias desde o evento o casal ainda se encontrava em Portugal para participar na “festa de família”. Deste modo, perante a ausência de passagens aéreas de regresso aos Estados Unidos da América e perante um hiato temporal de 34 dias até ao internamento da Recorrente, não é verdade que esta só tenha permanecido em Portugal por ter sido internada em estabelecimento hospitalar, uma vez que encontrava-se aqui a residir. I. É forçada e desfasada de senso comum a interpretação no sentido de que a permanência voluntária do casal por, pelo menos, 39 dias foi motivada exclusivamente com a intenção de participarem num batizado realizado 4 dias após a chegada de ambos. J. É, assim, claro que o casal, embora tenha domicílio nos Estados Unidos da América, também tem domicílio em Portugal e demonstra-o através da presença em território nacional e da manutenção dos laços a território nacional, onde a Autora tem casa própria, onde ambos participam em eventos e permanecem durante períodos de tempo indeterminados e onde ambos apresentam as suas declarações de rendimentos e se apresentam como residentes em território nacional perante a Autoridade Tributária. K. A relação entre Recorrente e Recorrido só foi interrompida, em definitivo, com o incidente de violência doméstica, situação que colocou o último numa posição de alterar o seu local de residência – o que, aliás, fez, com as moradas em Lisboa e no Estoril que indicou e que não são meramente circunstanciais para efeitos processuais. Aliás, tanto não são circunstanciais que o Recorrido foi citado pessoalmente na morada no Estoril que indicou no processo de violência doméstica. L. Todos estes elementos são, por si, suficientes para atestar que o casal tem residências alternadas entre os Estados Unidos da América e Portugal, cumprindo-se, deste modo, o estabelecido no n.º 1 do artigo 82.º do Código Civil. M. Assim, o que o ponto 5 dos factos provados devia ter dado por assente era “A Autora, após ausência excecional no ano civil de 2023, retomou as deslocações a Portugal a 12.03.2024, tendo aqui permanecido, voluntária e intencionalmente, por, pelo menos, 39 dias, período ao qual se seguiu um internamento hospitalar inesperado”. N. O Tribunal a quo não valorou a procuração junta aos autos pelo réu na qual o mesmo indicou residir em Lisboa, nem documento onde se afirma que a Recorrente tem casa de férias em Portugal, da mesma forma que não considerou o auto de interrogatório do réu na qualidade de arguido no processo n.º (…), a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de (…), no qual declarou que “reside alternadamente entre os Estados Unidos e Portugal”, nem a certidão do Tribunal onde este indicou residir no Estoril, onde, aliás, foi citado pessoalmente. Também não valorou uma publicação do réu na sua conta pessoal de Instagram, onde consta uma procuração na qual se deu como residente nas “(…), em Sintra”. O. O Réu não pode (i) assumir perante a Autoridade Tributária portuguesa que a sua residência habitual com a Autora é em Sintra e apresentar declarações fiscais como residente habitual em Portugal; (ii) assumir perante a justiça criminal portuguesa – como o fez quando foi interrogado no processo n.º (…) – que reside em Lisboa (na morada que indicou e que se foi confirmada pelo JIC de (…) na peça ora junta ao presente processo); e (iii) apresentar à justiça de família e menores portuguesa uma procuração onde indica uma morada em Lisboa como sendo a do seu domicílio, mas que depois nega ser o seu domicílio. P. O réu não pode socorrer-se do facto de ter residências alternadas para escolher aquela que mais lhe convém em função de cada situação concreta, pelo que não pode aproveitar-se de o casal ter uma das suas residências nos EUA para afirmar que, por questão de conveniência no presente processo de divórcio, afinal, reside exclusivamente nos EUA! Q. O Réu faz um uso abusivo do estatuto do casal, semeando a confusão junto do Tribunal a quo sobre a sua residência alternada e selecionando habilmente o local do seu domicílio em função das suas conveniências: para efeitos fiscais, é-lhe conveniente ser dado como residente em Portugal; para efeitos criminais e para afastar o perigo de fuga, é-lhe conveniente ser dado como residente em Portugal; para efeitos civis e do presente caso de divórcio, é-lhe conveniente ser dado como residente nos EUA. R. Assim, o que o ponto 6 dos factos provados devia ter “Em contexto hospitalar, fiscal, social e judicial, a Autora e o réu informam as instituições que têm residência nos Estados Unidos da América e em Portugal”. S. Corrigindo estes erros, de facto e de direito, com as redações propostas supra nas conclusões E., M. e R., respetivamente, e dando como provado o único facto dado como não provado no douto despacho saneador, subsumindo, depois, a matéria de facto assim resultante às disposições legais em vigor, maxime aos citados artigos 82.º, n.º 1, do Código Civil; e ao Regulamento (EU) n.º 1111/2019, de 25 de Junho, e ao artigo 19.º, n.º 1, da Lei Geral Tributária e, em consequência, revogando o douto despacho saneador recorrido e substituindo-o por Acórdão que declare o Tribunal Judicial da Comarca de (…) – Juízo de Família e Menores de (…) como internacional e territorialmente competente e dando, desta forma, prosseguimento aos autos, farão V. Exas, como sempre, a já costumada JUSTIÇA”. * O Réu apresentou contra-alegações. * O recurso foi corretamente admitido, com o efeito e modo de subida adequados. * II. Questões a Decidir: Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante apenas CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são as seguintes: - Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto; - Da exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses. * III. Fundamentação de Facto: Na decisão recorrida foram considerados como provados os seguintes factos, assinalando-se a negrito os que se encontram impugnados: “1. A autora tem dupla nacionalidade, britânica e americana; 2. O réu tem dupla nacionalidade, portuguesa e norte americana. 3. A 12 de Março de 2024, autora e réu mantinham residência na morada em (…) Estados Unidos da América, onde viviam juntos. 4. O réu mantinha até tal data deslocações a Portugal, em períodos e com regularidade concretamente não apurados, permanecendo em local concretamente não apurado nessas deslocações. 5. A Autora nos últimos anos veio a Portugal uma única vez, no último mês de Março (2024), tendo-se deslocado a Portugal para uma festa de família, apenas permanecendo neste país por mais tempo devido a um inesperado internamento hospitalar; 6. A autora indicou então como sua morada junto da instituição hospitalar a referida em 1. 7. O réu passou a estar sujeito, na sequência de interrogatório judicial de arguido detido a que foi sujeito no âmbito do procedimento criminal nº (…), em 8 de Maio de 2024, às seguintes medidas de coação: - Proibição de contactos por qualquer meio com a vítima B (…); - Proibição de permanecer, no estabelecimento hospitalar em que a mesma se encontre, sendo atualmente o Hospital CUF …, mas que poderá ser outro conforme as necessidades de assistência da vítima; - Proibição de permanecer na residência que a vítima vier a ocupar quando tiver alta hospitalar ou de dela se aproximar, a menos de 1 km, com recurso a meios técnicos de controlo à distância 8. Mediante decisão de 8 de Julho de 2024, o réu passou a estar sujeito à medida de coação de Proibição de se ausentar para o estrangeiro, procedendo à entrega dos seus passaportes”. * Na decisão recorrida foi dado como não provado o seguinte facto, que se mostra impugnado: “Autora e réu mantinham também residência, de forma oscilante, na morada (…), Sintra”. * IV. Mérito do Recurso: - Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto. Para a impugnação da matéria de facto deve a parte observar os requisitos legais previstos no artigo 640º do CPC, incluindo a formulação de conclusões, pois são estas que delimitam o objeto do recurso. Preceitua o citado artigo 640º, do CPC: “1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 – O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636º.” Sobre essa norma pronunciou-se, entre outros, o Acórdão do STJ de 30.11.2023, processo 556/21.4T8PNF.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, referindo que “Como tem sido enunciado pela jurisprudência deste STJ – ver por todos o ac. de 29.10.2015 no processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1 in dgsi.pt – este regime consagra um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. O ónus primário é integrado pela exigência de concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da especificação dos concretos meios probatórios convocados e da indicação da decisão a proferir, previstas nas als. A), b) e c) do nº1 do citado art.640º, na medida em que têm por função delimitar o objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto. O ónus secundário traduz-se na exigência de indicação das exatas passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na al. a) do nº 2 do mesmo art. 640 tendo por finalidade facilitar a localização dos depoimentos relevantes no suporte técnico que contém a gravação da audiência. De acordo com esta delimitação entende-se que, não sendo consentida a formulação ao recorrente de um convite ao aperfeiçoamento de eventuais deficiências, deverá ter-se atenção se as eventuais irregularidades se situam no cumprimento de um ou outro ónus uma vez que a falta de especificação dos requisitos enunciados no nº1 do referido art. 640º implica a imediata rejeição do recurso na parte infirmada, enquanto a falta ou imprecisão da indicação das passagens da gravação dos depoimentos a que alude o nº 2, al. a) terá como sanção a rejeição apenas quando essa omissão ou inexatidão dificulte, gravemente, o exercício do contraditório pela parte contrária e/ou o exame pelo do tribunal de recurso – vd. Abrantes Geraldes in “ Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2018, 5ª ed. , págs. 169 a 175.” Por seu lado, a respeito do ónus de alegar e formular conclusões, o art.º 639º, n.º 1, do CPC, determina que “O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.” É conhecida a divergência jurisprudencial existente a respeito da aplicação do art.º 640º do CPC e da sua conjugação com o art.º 639º, n.º 1, do mesmo diploma. Face a essa divergência, o STJ, por Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 12/2023 (publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I, de 14.11.2023, com Declaração de Retificação n.º 25/2023), proferido a 17.10.2023, no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, uniformizou a jurisprudência no sentido de que “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”. Nesse Acórdão, a propósito dessa temática, é afirmado, designadamente, o seguinte: “Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso. Quando aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador, chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso, conforme o n.º1, alínea c) do art.º 640, (…). Em sínteses, decorre do art.º 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.” Em face do exposto, conclui-se que da conjugação do disposto nos artigos 639º, n.º 1 e 640º do CPC, resulta que o ónus primário a cargo do recorrente exige que, pelo menos, sejam indicados nas conclusões da alegação do recurso, com precisão, os concretos pontos de facto da sentença que são objeto de impugnação, sem o que não é possível ao Tribunal de recurso sindicar eventuais erros no julgamento da matéria de facto. Já quanto à alínea a), do n.º 2, do art.º 640º do CPC, a mesma consagra, como vimos, um ónus secundário, cujo cumprimento deverá igualmente ser observado sob pena de rejeição do recurso na parte respetiva, mas que não tem de estar refletido nas conclusões recursivas. Nesse sentido, entre outros, veja-se o Acórdão do STJ de 12.04.2024, proferido no processo n.º 823/20.4T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se escreveu: “IV- O ónus do artigo 640.º do CPC não exige que todas as especificações referidas no seu n.º 1 constem das conclusões do recurso, sendo de admitir que as exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 deste artigo, em articulação com o respetivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.” Na presente situação, a Apelante, nas respetivas conclusões, identifica os seguintes pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados: os pontos 3., 5. e 6. do elenco de factos provados, bem como o facto dado como não provado. Identifica a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Identifica igualmente os meios de prova que entende justificarem a decisão por si defendida. Atento o exposto, porque se verificam os pressupostos legalmente exigidos para o efeito, iremos conhecer da impugnação da decisão relativa à matéria de facto. Analisemos, então, cada um desses pontos. Começa a Apelante por impugnar o ponto 3. do elenco de factos provados. É o seguinte o teor desse ponto: “3. A 12 de Março de 2024, autora e réu mantinham residência na morada em (…) Estados Unidos da América, onde viviam juntos”. Defende a Apelante que a redação desse ponto deverá passar a ser a seguinte: “Autora e réu são residentes fiscais em Portugal até, pelo menos, 02.08.2024, e assumem ser residentes em território nacional”. Em defesa da sua posição diz o seguinte: - “O Tribunal a quo considerou, através do facto 3, que, a 12.03.2024, Autora e Réu mantinham residência na morada em (…) Estados Unidos da América, onde viviam juntos, o que, embora seja parcialmente verdade, exclui que ambos tivessem residências alternadas entre Portugal e os Estados Unidos da América” – alínea B) das conclusões recursivas. - “Com efeito, resulta evidente da prova documental carreada nos autos pela Autora e, também, pelo réu, que ambos também residem nas (…) Sintra, Portugal, tendo as indicações de domicílios em Lisboa e no Estoril, pelo réu, se justificado com o processo crime a correr termos no processo (…)” – alínea C) das conclusões recursivas. - “Este facto, sim, é o único que resulta das declarações de IRS apresentadas pela Autora, das procurações outorgadas pelo réu, das certidões emitidas pelo Juízo de Instrução Criminal de (…), das declarações do réu no auto de interrogatório de 08.07.2024 no processo n.º (…) e por outros documentos apresentados pelas partes e evidências de senso comum, como o tempo passado em Portugal pela Autora e pelo réu na sua última permanência em Portugal (39 dias seguidos acompanhados de um internamento)” – alínea D) das conclusões recursivas. Face ao alegado, cumpre começar por esclarecer que a Apelante não questiona que em 12 de março de 2024 Autora e Réu mantinham residência em (…) Estados Unidos da América. O que a Apelante afirma é que Autora e Réu também tinham residência em Portugal, residindo alternadamente em Portugal e nos Estados Unidos da América. Analisemos. Com a petição inicial foi junta uma certidão emitida pelo Serviço de Finanças de Sintra-1, datada de 31.07.2024, na qual é declarado que a Autora tem o seu domicílio fiscal nas (…), Sintra. Com esse articulado foi igualmente junto um comprovativo de entrega, em 15.06.2022, de uma Declaração Modelo 3 de IRS relativa ao ano de 2021, da qual consta que Autora e Réu têm “residência fiscal” no “Continente” e são declarados “rendimentos prediais” da Autora provenientes de contrato de arrendamento. Em 15.11.2024, a Direção Geral das Contribuições e Impostos veio informar sobre a existência de declaração de recibos de rendas relativos a agosto, setembro e outubro de 2021, referentes a um contrato de arrendamento que tem por objeto o prédio sito nas (…), no qual figura como senhoria a aqui Autora (e que a Apelante, no corpo das alegações, admite ser o prédio no qual afirma residir em Portugal). Em 25.03.2025 a Autora juntou aos autos dois comprovativos de entrega da Declaração Modelo 3 de IRS, o apresentado em 2022, já acima mencionado, e outro apresentado em 2018, referente ao ano de 2017, do qual consta que Autora e Réu têm “residência fiscal” no “Continente”. Perante tais elementos, e sem esquecer que o conceito de “domicílio” é um conceito jurídico definido nos artigos 82º e ss. do CC, é possível concluir que perante a Autoridade Tributária e Aduaneira a Autora, pelo menos até à data da petição, declarou ter morada nas (…), Sintra e que o Réu, até pelo menos 2022, declarou perante a mesma entidade ter morada em Portugal. Quanto à afirmação da Apelante de que Autora e Réu “assumem ser residentes em território nacional”, a mesma é conclusiva. Os elementos que constam dos autos e que relevam para se aferir se Autora e Réu se assumem ou não como residentes em território nacional (para além dos que acima já se assinalaram), são os seguintes, os quais devem integrar o elenco de factos provados: - O Réu foi citado, mediante contacto pessoal, na Rua (…), no Estoril; - Na contestação o Réu indicou como sua morada a Rua (…), no Estoril; - Com a contestação o Réu procedeu à junção de procuração na qual consta que tem residência na Avenida (…), em Lisboa; - No processo de inquérito n.º (…) do Juízo de Instrução Criminal de (…) a morada que consta como sendo a correspondente ao domicílio do Réu é a Rua (…), no Estoril; - A morada que consta do referido processo de inquérito como sendo a da Autora é (…) Estados Unidos da América; - A morada que consta no “Hospital CUF” como sendo a da Autora é (…) Estados Unidos da América. Aqui chegados, na parcial procedência da impugnação, adita-se ao elenco de factos provados os seguintes pontos, com a seguinte redação: - Perante a Autoridade Tributária e Aduaneira, a Autora, pelo menos até à data da petição, declarou ter morada nas (…), Sintra e o Réu, até pelo menos 2022, declarou perante a mesma entidade ter morada em Portugal; - O Réu foi citado, mediante contacto pessoal, na Rua (…), no Estoril; - Na contestação o Réu indicou como sua morada a Rua (…), no Estoril; - Com a contestação o Réu procedeu à junção de procuração na qual consta que tem residência na Avenida (…), em Lisboa; - No processo de inquérito n.º (…) do Juízo de Instrução Criminal de (…) a morada que consta como sendo a correspondente ao domicílio do Réu é a Rua (…), no Estoril; - A morada que consta do referido processo de inquérito como sendo a da Autora é (…) Estados Unidos da América; - A morada que consta no “Hospital CUF” como sendo a da Autora é (…) Estados Unidos da América. Impugna igualmente a Apelante o ponto 5. do elenco de factos provados. É o seguinte o teor desse ponto: “5. A Autora nos últimos anos veio a Portugal uma única vez, no último mês de Março (2024), tendo-se deslocado a Portugal para uma festa de família, apenas permanecendo neste país por mais tempo devido a um inesperado internamento hospitalar”. Defende a Apelante que a redação desse ponto deverá passar a ser a seguinte: “A Autora, após ausência excecional no ano civil de 2023, retomou as deslocações a Portugal a 12.03.2024, tendo aqui permanecido, voluntária e intencionalmente, por, pelo menos, 39 dias, período ao qual se seguiu um internamento hospitalar inesperado”. Para o efeito alega o seguinte: “O internamento hospitalar da Autora só se verificou 39 dias após ter chegado a Portugal, a 12.03.2024, não tendo ambos data prevista de regresso aos Estados Unidos da América, pelo que não é crível que uma viagem cujo único propósito seria, excecionalmente, participar numa festa de família, tivesse uma permanência tão duradoura e sem fim à vista. A Autora esteve temporariamente ausente de Portugal por desaconselhamento médico para realizar viagens, mas retomou a permanência em Portugal, também onde tem domicílio, assim que lhe foi fisicamente possível” – alínea G) das conclusões recursivas. “Considerando que o casal chegou a Portugal em 12.03.2024 e que participou no batizado da neta de ambos a 16.03.2024, não é crível que passados 34 dias desde o evento o casal ainda se encontrava em Portugal para participar na “festa de família”. Deste modo, perante a ausência de passagens aéreas de regresso aos Estados Unidos da América e perante um hiato temporal de 34 dias até ao internamento da Recorrente, não é verdade que esta só tenha permanecido em Portugal por ter sido internada em estabelecimento hospitalar, uma vez que encontrava-se aqui a residir” – alínea G) das conclusões recursivas. “É forçada e desfasada de senso comum a interpretação no sentido de que a permanência voluntária do casal por, pelo menos, 39 dias foi motivada exclusivamente com a intenção de participarem num batizado realizado 4 dias após a chegada de ambos” – alínea H) das conclusões recursivas. “É, assim, claro que o casal, embora tenha domicílio nos Estados Unidos da América, também tem domicílio em Portugal e demonstra-o através da presença em território nacional e da manutenção dos laços a território nacional, onde a Autora tem casa própria, onde ambos participam em eventos e permanecem durante períodos de tempo indeterminados e onde ambos apresentam as suas declarações de rendimentos e se apresentam como residentes em território nacional perante a Autoridade Tributária” – alínea I) das conclusões recursivas. Analisemos. Conforme se considerou na decisão recorrida, importa ter presente a informação junta aos autos em 28.03.2025 pelo Sistema de Segurança Interna, relativa aos movimentos de fronteira de Autora e Réu, da qual resultam 3 movimentos de entrada em Portugal por parte do Réu no uso de passaporte americano (19.11.2022, 22.11.2023 e 12.03.2024) e um único movimento por pate da Autora em 12.03.2024. Esse é o único elemento objetivo de que dispomos, sendo que resulta das posições assumidas pelas partes nos autos que as mesmas aceitam que no decurso da deslocação a Portugal ocorrida em 12.03.2024, durante a sua estadia neste país, Autora e Réu participaram num evento familiar e a Autora foi objeto de um internamento hospitalar. Atento o exposto, no que ao ponto 5. do elenco de factos provados se refere, na parcial procedência da impugnação, altera-se a redação do ponto 5. do elenco de factos provados, a qual passa a ser a seguinte: - A Autora nos últimos anos veio a Portugal uma única vez, no último mês de março de 2024, onde participou numa festa de família, tendo sofrido, durante a sua estadia em Portugal, um inesperado internamento hospitalar. Impugna igualmente a Apelante o ponto 6. do elenco de factos provados. É o seguinte o seu teor: “6. A autora indicou então como sua morada junto da instituição hospitalar a referida em 1” (temos por seguro que o ponto em causa enferma de um lapso manifesto, sendo que onde se lê “1” deverá ler-se “3”). Entende a Apelante que o referido ponto deverá passar a ter a seguinte redação: “Em contexto hospitalar, fiscal, social e judicial, a Autora e o réu informam as instituições que têm residência nos Estados Unidos da América e em Portugal”. A factualidade que a Apelante pretende ver introduzida no ponto em análise já se encontra contemplada nas alterações introduzidas na sequência da decisão relativa à impugnação dirigida ao ponto 3. do elenco de factos provados. Assim sendo, considera-se prejudicada a sua análise, devendo apenas proceder-se à retificação do lapso de escrita que acima assinalamos. Assim, a redação do ponto 6. do elenco de factos provados passa a ser a seguinte: - A autora indicou então como sua morada junto da instituição hospitalar a referida em 3. Por fim, a Apelante impugna o único facto dado como não provado, defendendo que o mesmo deverá ser dado como provado. É o seguinte o seu teor: “Autora e réu mantinham também residência, de forma oscilante, na morada (…), Sintra”. Temos por seguro que o facto em causa, aludindo ao conceito de “residência oscilante”, encerra em si uma conclusão que, como tal, não deve integrar o elenco de factos não provados. Atento o exposto, na procedência da impugnação, embora com diferente fundamento, decide-se pela eliminação do ponto em causa. Face a tudo quanto acima ficou dito, na parcial procedência da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o elenco de factos provados passa a ser o seguinte: 1. A autora tem dupla nacionalidade, britânica e americana; 2. O réu tem dupla nacionalidade, portuguesa e norte americana. 3. A 12 de Março de 2024, autora e réu mantinham residência na morada em (…) Estados Unidos da América, onde viviam juntos. 4. Perante a Autoridade Tributária e Aduaneira, a Autora, pelo menos até à data da petição, declarou ter morada nas (…), Sintra e o Réu, até pelo menos 2022, declarou perante a mesma entidade ter morada em Portugal. 5. O Réu foi citado, mediante contacto pessoal, na Rua (…), no Estoril; 6. Na contestação o Réu indicou como sua morada a Rua (…), no Estoril; 7. Com a contestação o Réu procedeu à junção de procuração na qual consta que tem residência na Avenida (…), em Lisboa; 8. No processo de inquérito n.º (…) do Juízo de Instrução Criminal de (…) a morada que consta como sendo a correspondente ao domicílio do Réu é a Rua (…), no Estoril; 9. A morada que consta do referido processo de inquérito como sendo a da Autora é (…) Estados Unidos da América; 10. A morada que consta no “Hospital CUF” como sendo a da Autora é 200 (…) Estados Unidos da América. 11. O réu mantinha até à data referida em 3. deslocações a Portugal, em períodos e com regularidade concretamente não apurados, permanecendo em local concretamente não apurado nessas deslocações. 12. A Autora nos últimos anos veio a Portugal uma única vez, no último mês de março de 2024, onde participou numa festa de família, tendo sofrido, durante a sua estadia em Portugal, um inesperado internamento hospitalar. 13. A autora indicou então como sua morada junto da instituição hospitalar a referida em 3. 14. O réu passou a estar sujeito, na sequência de interrogatório judicial de arguido detido a que foi sujeito no âmbito do procedimento criminal nº (…), em 8 de maio de 2024, às seguintes medidas de coação: - Proibição de contactos por qualquer meio com a vítima B (…); - Proibição de permanecer, no estabelecimento hospitalar em que a mesma se encontre, sendo atualmente o Hospital CUF …, mas que poderá ser outro conforme as necessidades de assistência da vítima; - Proibição de permanecer na residência que a vítima vier a ocupar quando tiver alta hospitalar ou de dela se aproximar, a menos de 1 km, com recurso a meios técnicos de controlo à distância. 15. Mediante decisão de 8 de Julho de 2024, o réu passou a estar sujeito à medida de coação de proibição de se ausentar para o estrangeiro, procedendo à entrega dos seus passaportes. * - Da exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses. Como vimos, o Tribunal a quo considerou verificada a exceção de incompetência absoluta e absolveu o Réu da instância, por entender que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para a apreciação e decisão da presente causa. Insurge-se a Autora/Apelante contra esse entendimento, pugnando pela competência do Tribunal a quo com base no disposto no Regulamento (EU) n.º 1111/2019, de 25 de Junho. Vejamos. O art.º 59º do CPC, sob a epígrafe “Competência internacional”, estabelece o seguinte: “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.” Conforme resulta do citado normativo, a competência internacional dos tribunais portugueses decorre, em primeira linha, do estabelecido em regulamentos europeus ou outros instrumentos internacionais, os quais prevalecem sobre as regras estabelecidas nos artigos 62º, 63º e 94º do CPC. Em causa nos autos está uma ação de divórcio. Não se vislumbrando a existência, nem tal tendo sido invocado, de qualquer instrumento internacional que vincule simultânea e reciprocamente Portugal e os Estados Unidos da América em sede de competência internacional dos tribunais quanto à matéria em apreço, há que ter em conta as normas jurídicas europeias que vinculam Portugal como Estado-Membro da União Europeia. Assim, cumpre atender ao Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25 de junho, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões, designadamente, em matéria matrimonial, sendo que a presente ação, tendo sido intentada em 02.08.2024, encontra-se abrangida no seu âmbito temporal de aplicação (cfr. art.º 100º, n.º 1, nos termos do qual “O presente regulamento é aplicável apenas às ações judiciais intentadas, aos atos autênticos formalmente exarados e aos acordos registados em 1 de agosto de 2022 ou numa data posterior”). Saliente-se que esse Regulamento se aplica diretamente na ordem jurídica portuguesa e é vinculativo para os tribunais portugueses, nos termos do art.º 8.º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, onde se dispõe que “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. O Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25 de junho, tem um âmbito de aplicação espacial universal, o que significa que ele não se limita a regular, apenas, situações conexas com Estados-Membros, mas qualquer situação, tenha ou não alguma ligação relevante com a UE. Assim, o caso vertente está coberto pelo âmbito espacial deste Regulamento, na medida em que, sendo Portugal um Estado-Membro da UE, a competência internacional dos tribunais nacionais para preparar e julgar a presente ação tem de ser aferida de acordo com as regras de competência internacional consagradas no referido Regulamento e não à luz da legislação processual civil interna. No sentido exposto, entre outros, vejam-se os Acórdãos do STJ de 07.10.2020, processo n.º 4435/19.7T8BRG.G1.S1, da RL de 23.02.2023, processo n.º 4398/21.9T8LSB.L1-8, da RP de 11.07.2018, processo n.º 1933/18.3T8VNG.P1, da RC de 12.09.2023, processo n.º 554/21.8T8SCD-A.C1, da RE de 18.12.2023, processo n.º 816/23.0T8TMR.E1 e da RG de 24.03.2022, processo n.º 1150/21.5T8CHV.G1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Cumpre então analisar se à luz do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25 de junho, os tribunais portugueses são competentes para julgar a presente ação de divórcio. Preliminarmente, cumpre esclarecer que a competência internacional do tribunal deve ser apreciada e decidida em função do pedido e da causa de pedir tal como deduzida na petição inicial (cfr., neste sentido, entre outros, o Acórdão do STJ de 07.03.2019, processo n.º 13688/16.1TBPRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se refere que “a aferição do pressuposto processual da competência, nomeadamente da competência em razão da nacionalidade, deve ser equacionada em função dos contornos da pretensão deduzida tal como se encontra configurada na petição inicial. Se assim é noutros tipos de competência, por maioria de razão o será na competência internacional, uma vez que a respetiva legislação condiciona o exercício da função jurisdicional dos tribunais portugueses e a infração das suas regras determina a incompetência absoluta do tribunal e implica a absolvição do réu da instância [art.ºs 96.º, al. a), 97.º e 99.º, n.º 1, todos do CPC). Assim sendo, constituindo uma condição necessária para que o tribunal se possa pronunciar sobre o mérito da causa através de uma decisão de procedência ou de improcedência, a apreciação desta exceção dilatória terá de ser ajuizada à luz do pedido e da causa de pedir formulados pelo autor na petição inicial”. Feito este esclarecimento e prosseguindo, importa ter presente que sobre a matéria em causa nos autos rege, em primeira linha, o disposto no art.º 3º do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25 de junho, cujo teor se transcreve: “São competentes para decidir das questões relativas ao divórcio, separação ou anulação do casamento, os tribunais do Estado-Membro: a) Em cujo território se situe: i) a residência habitual dos cônjuges, ii) a última residência habitual dos cônjuges, na medida em que um deles ainda aí resida, iii) a residência habitual do requerido, iv) em caso de pedido conjunto, a residência habitual de qualquer dos cônjuges, v) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos um ano imediatamente antes da data do pedido, ou vi) a residência habitual do requerente, se este aí tiver residido pelo menos durante seis meses imediatamente antes do pedido e se for nacional do Estado-Membro em questão; ou b) Da nacionalidade de ambos os cônjuges.” Dos autos, com relevo para a questão a decidir, resulta que a Autora tem dupla nacionalidade, britânica e americana, e que o Réu tem também dupla nacionalidade, portuguesa e americana. Uma vez que apenas o Réu tem nacionalidade portuguesa, resulta desde logo afastada a competência dos tribunais portugueses por aplicação do art.º 3º, b), do citado Regulamento. Importa então analisar se a situação é subsumível a alguma das situações previstas na alínea a) desse mesmo normativo. Recordando que, conforme já acima assinalamos, a competência internacional do tribunal deve ser apreciada e decidida em função do pedido e da causa de pedir tal como deduzida na petição inicial, vemos que na mesma a Autora alega que Autora e Réu dividem as suas vidas entre Portugal e os Estados Unidos da América, oscilando a sua residência entre os dois países. Ainda de acordo com a alegação da Autora, a separação de facto entre Autora e Réu ocorreu em 20.04.2024. Nessa data o casal encontrava-se em Portugal e, desde então, face à medida de coação a que o Réu foi sujeito no âmbito do procedimento criminal n.º (…), este ficou proibido de se ausentar do país. Consta do auto de interrogatório de arguido que integra o referido procedimento criminal (junto com o articulado de resposta à exceção apresentado pela Autora em 31.10.2024) que o Réu afirmou ter residência habitual nos Estados Unidos da América e pretender regressar a esse país. No entanto, em ponto algum o Réu identifica a sua morada nos Estados Unidos da América. E tal seria relevante, tendo em conta que, conforme alega a Autora na petição, o casal se separou. Mais, no seu requerimento de 21.02.2025, a Autora veio alegar que a morada que indicou como sendo a residência do casal nos Estados Unidos da América correspondia a um prédio arrendado que foi, entretanto, entregue ao seu proprietário, o que significa que o Réu está impossibilitado de regressar a essa morada. Pese embora o Réu tenha impugnado a alegação da Autora de que o casal tinha residência alternada nos Estados Unidos da América e em Portugal, a verdade é que os elementos carreados para os autos não permitem infirmar essa alegação. Veja-se que conforme resultou indiciariamente provado, perante a Autoridade Tributária e Aduaneira, a Autora, pelo menos até à data da petição, declarou ter morada em Portugal, nas (…), Sintra (morada essa que corresponde a um prédio que o próprio Réu, no seu requerimento de 21.02.2025, afirma ser propriedade da Autora e estar arrendado a terceiros), sendo que o Réu, até pelo menos 2022, declarou perante a mesma entidade ter morada em Portugal. Por outro lado, após a separação de facto do casal, o Réu, que permaneceu em Portugal, indicou, seja neste processo, seja no processo de inquérito, moradas em Portugal. Neste enquadramento, entendemos que a competência internacional dos tribunais portugueses, tendo por referência a data em que foi proposta a ação, decorre do disposto no art.º 3º, a), ii) e iii), do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25 de junho. Mesmo que assim não se entenda, sempre se poderá concluir pela competência internacional dos tribunais portugueses por aplicação do disposto no art.º 6º, n.º 1, do citado Regulamento. Esse normativo, sob a epígrafe “Competência residual”, estatui que “Sob reserva do n.º 2, se nenhum tribunal de um Estado-Membro for competente nos termos dos artigos 3.º, 4.º e 5.º, a competência é regulada, em cada Estado-Membro, pela lei desse Estado”. Ora, de acordo com o art.º 62º, b), do CPC, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes no caso de “Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram”. Conforme é alegado na petição, a invocada rutura definitiva do casamento que serve de fundamento ao pedido de divórcio que a Autora formula, tem na sua génese, designadamente, o episódio de violência doméstica ocorrido em 20.04.2024 em Portugal e que levou ao seu internamento no Hospital CUF de … e à instauração do processo de inquérito acima assinalado, a correr termos em Portugal. Verifica-se assim o critério de atribuição de competência previsto no citado art.º 62º, b), do CPC, aplicável por força do disposto no art.º 6º, n.º 1, do Regulamento (UE) n.º 1111/2019, de 25 de junho. Aqui chegados, em face de tudo quanto ficou exposto, na procedência do recurso, revoga-se a decisão recorrida, a qual se substitui por outra que declara internacionalmente competentes para os termos da presente ação os tribunais portugueses. * V. Decisão: Pelo exposto, acordam as Juízes que compõem o coletivo desta 2.ª Secção Cível abaixo identificadas em julgar procedente o recurso e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, declarando-se a competência internacional dos tribunais portugueses para os termos da presente ação. Custas pelo Apelado. Registe. Notifique. * Lisboa, 20.11.2025, Susana Mesquita Gonçalves Ana Cristina Clemente Laurinda Gemas |