Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2862/11.7TBFUN-S.L1-1
Relator: PAULA CARDOSO
Descritores: INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO
MASSA INSOLVENTE
ENTREGA DE IMÓVEL
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/11/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I- Os recursos interpostos em processo de insolvência, incluindo incidentes e apensos, têm efeito devolutivo, nos termos do art.º 14.º n.º 5 do CIRE, não podendo ser fixado efeito suspensivo ao recurso interposto da decisão que determina a entrega de um imóvel apreendido para a massa insolvente ao AI, por quem viu já reconhecido o seu crédito garantido por direito de retenção em sentença de verificação e graduação de créditos, à luz da al. b) do n.º 3 do art.º 647.º do CPC, pois que aquela decisão de entrega não respeita a qualquer discussão de posse ou propriedade do aludido imóvel nos termos preconizados no aludido preceito legal.
II- A crescente “privatização” do processo de insolvência - centrada nos poderes do AI, figura nuclear do processo insolvencial, e nos credores, detentores de larga margem de atuação na defesa dos seus interesses - restringe e confina o juiz ao papel de garante da legalidade e, assim, da verificação do cumprimento da lei ao longo do processo, processo que deve acompanhar de forma atenta, sensibilizando os interessados no cumprimento dos seus deveres e ditames legais, solicitando informações ao AI (58.º do CIRE), podendo, no limite, destituir o AI se ocorrer justa causa para o efeito (56.º do CIRE).
III- Não impedindo a lei que a venda de um imóvel possa ser feita no estado físico e jurídico em que se encontra, desde que tal situação seja dada a conhecer ao comprador, de forma a que nenhum vício possa depois afetar a venda que vier a realizar-se, a decisão assim tomada pelo AI, com a unânime concordância da Comissão de Credores, de se proceder à venda do imóvel apreendido, sem que se proceda à realização de quaisquer diligências registrais, prévias à venda, não está ferida de ilegalidade que justifique a intervenção do juiz ou que o obrigue a dar instruções ao AI no sentido pugnado pela Recorrente.
IV- Padece de absoluta falta de fundamentação o despacho que determina a notificação da entrega da moradia apreendida nos autos ao AI, pela depositária da mesma, sem nada motivar ou justificar tal decisão de entrega e sem apreciar os fundamentos invocados pela Recorrente para obstar à mesma.
V- Tal nulidade, por absoluta falta de fundamentação, à luz da al. b) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC, não impede, contudo, reunindo os autos os elementos necessários ao efeito, que seja apreciada a invocada ilegalidade substancial da decisão assim tomada, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 665.º n.º 1 do CPC.
VI- O direito de retenção de que beneficia a Recorrente releva apenas para efeitos de reclamação, graduação e satisfação do seu crédito, não autorizando de forma alguma a manutenção da detenção da moradia que ocupa ao abrigo daquele direito.
VII- Assumindo a Recorrente a qualidade de depositária da moradia, por força do disposto no art.º 756.º n.º 1 al. c) do CPC, tal não obsta à entrega da mesma ao AI, assim que o mesmo o solicite, pois que as regras legais que regem a sua atuação como depositária têm que ser sempre compatibilizadas com as regras próprias do CIRE e o regime particular da insolvência, constituindo, seja como for, obrigação do depositário entregar a casa de que é retentora assim que tal lhe for pedido pelo AI, como decorre da própria noção de depósito prevista no art.º 1185.º do CC.
VIII- Nada justificando que, decorridos 14 anos sobre a deliberação de liquidação do ativo em assembleia de credores, a mesma ainda não se tenha concretizado, mantendo-se a Recorrente, credora nos autos, ainda que titular de um direito de retenção, na detenção da moradia apreendida, obstando à sua entrega e assim dificultando a sua venda em detrimento da célere satisfação dos interesses dos demais credores, quando aquele direito, de que é beneficiária, como direito de garantia que é, apenas lhe atribui uma preferência no pagamento, preferência essa já atendida na sentença de graduação de créditos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I-/ Relatório:
1. No âmbito dos presentes autos, em que são insolventes AA e BB, veio a credora CC, com demais sinais nos autos, por requerimentos de 08/09 e 20/10 de 2023 (no apenso K – liquidação) requerer que fosse determinado, junto do Sr. AI, a prática dos atos necessários à correção/atualização/harmonização dos dados registrais e cadastrais/matriciais dos bens imóveis correspondentes às verbas n.º 1 e n.º 2 do auto de apreensão, de modo a que a moradia edificada sobre os mesmos constitua um único prédio urbano, devidamente inscrito na matriz predial urbana e descrito no registo predial como tal, englobando a área de terreno do prédio rústico descrito na CRP do Funchal sob o número ..., que deverá ser anexado ao prédio urbano descrito na CRP do Funchal sob o número ..., devendo então este último, como prédio, a ser o único bem a colocar em venda judicial.
Para o efeito alega, no essencial, que tomou conhecimento que a Câmara Municipal do Funchal emitiu autorização de utilização da moradia apreendida nestes autos, a qual ocupa o prédio urbano, localizado no sítio do ..., freguesia de São Gonçalo, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na CRP do Funchal sob o número ..., e a área correspondente ao prédio rústico, localizado no sítio da Bica de Pau, freguesia de São Gonçalo, concelho do Funchal, inscrito na matriz predial sob a parte do artigo … da Secção P e descrito na CRP do Funchal sob o número ..., ambos apreendidos para a massa insolvente. Defende que dos elementos registrais resulta que a moradia se encontra edificada, unicamente, sobre o prédio urbano correspondente à verba n.º 1 do auto de apreensão, e não também sobre prédio rústico correspondente à verba n.º 2, do que decorre desconformidade entre a realidade física do mesmo e os correspondentes dados cadastrais / matriciais e registrais, defendendo que da regularização em causa resultaria uma automática valorização da moradia em sede de venda judicial.
2. O Sr. Administrador da Insolvência pronunciou-se sobre o requerido, defendendo, no essencial, que a moradia está devidamente legalizada, conforme caderneta urbana e informação predial e que o aludido artigo …-P foi suprimido por força da divisão administrativa levada a cabo através do processo de reclamação administrativa 0057/04/0298, nada havendo assim a corrigir, podendo as diligências de liquidação prosseguir.
3. Entretanto, no processo principal de insolvência, a Recorrente, por requerimento de 04/11/2023, solicitou, entre outros, a suspensão de toda e qualquer diligência de venda do Imóvel que se encontre em curso, até ao proferimento de decisão definitiva quanto às questões acima suscitadas, pedindo também a destituição do AI.
4. Suspensa a venda, os credores Magnetiprovide Unipessoal Lda., Novo Banco SA, e Sandalgreen Assets, S.A., tomaram posição, em requerimentos de 22/11, 23/11 e 24/11/2023, no sentido de prosseguimento da liquidação, nos termos propostos pelo Sr. Administrador, tendo os dois últimos solicitado que a Recorrente desocupasse o imóvel e o entregasse à Massa Insolvente.
5. A Recorrente pronunciou-se em 06/12/2023, pugnando pelo indeferimento do requerido, em face do seu direito de retenção, reconhecido por sentença de 19/12/2011, já transitada em julgado, proferida no processo n.º 529/11.5TCFUN, que correu termos nas Varas de Competência Mista do Funchal e que passou a constituir o apenso H destes autos.
6. Por despacho proferido então em 10/02/2025, nos aludidos autos de insolvência, o tribunal recorrido apreciou o solicitado em 3, e determinou fosse aberta conclusão no apenso K (liquidação) para apreciação dos requerimentos aludidos em 1.
7. Em 21/03/2025, no apenso de liquidação, o Administrador Judicial requereu então a junção aos autos da ata da reunião realizada no dia 19/03/2025, entre o AI e a Comissão de Credores, que teve como objetivo a análise dos pedidos formulados pela credora CC, onde foi aceite, por unanimidade, as propostas por si apresentadas no sentido de:
a) Por não existir fundamento que impeça verdadeiramente o prosseguimento da liquidação do ativo, que se requeira autorização para a realização da venda do imóvel apreendido.
b) Ser deferida pelo Tribunal a entrega voluntária do imóvel, no prazo máximo de um mês, a fim de a massa insolvente poder liquidar o bem sem constrangimentos.
c) Ao abrigo do artigo 164.º, n. º1 do CIRE, a venda ser realizada na modalidade de venda em leilão, através da plataforma E-leilões, com indicação de que o bem é vendido no estado físico e jurídico em que se encontra.
8. E, em 25/03/2025, reiterou fosse autorizada a realização da venda do imóvel apreendido, através de anúncio a publicar na plataforma E-Leilões, com a indicação de que o bem é vendido no estado físico e jurídico em que se encontra e que fosse deferida a entrega voluntária do imóvel, no prazo máximo de um mês, a fim de a massa insolvente poder liquidar o bem sem constrangimentos, sendo que se tal não ocorresse, fosse desde já deferida a tomada de posse coerciva.
9. Em face da posição assim manifestada pelos credores, a Recorrente pugnou pelo solicitado nos requerimentos apresentados em 08/09/2023 e 19/10/2023, disponibilizando-se, em 03/04/2025, para: (i) praticar todas as diligências necessárias à correção da desconformidade matricial / registal da Moradia junto das autoridades competentes, (ii) suportar quaisquer emolumentos ou taxas que sejam devidas pelos atos referidos no ponto anterior, por conta da massa insolvente, sub-rogando-se no respetivo crédito sobre a massa insolvente, a ser liquidado em sede de pagamento de dívidas da massa insolvente, e (iii) prestar contas ao Sr. A.I. e ao douto Tribunal quanto a todos os atos e pagamentos efetuados ao abrigo dos pontos anteriores.
10. Os credores Sandalgreen Assets, S.A., Ares Lusitani Stc SA., e Oitante, S.A. manifestaram-se pela improcedência do pretendido, posição também assumida pelo Sr. Administrador da Insolvência, tendo a primeira, Presidente da Comissão de Credores e Credora Reclamante Habilitada, solicitado que o tribunal atendesse ao facto de os autos serem de natureza urgente e já se delongarem desde 2011, argumentando que a liquidação do ativo está pendente somente por conta das cíclicas manobras dilatórias por parte da Recorrente que não pretende desocupar um imóvel que não é seu e ocupa há mais de uma década em detrimento da massa e seus credores, prejudicando-os, urgindo, pois, a colocação em venda do imóvel, no estado físico e jurídico que se encontra, devendo a Recorrente proceder à entrega do dito imóvel, e ser condenada, entre outros, a pagar à massa uma renda mensal pelo período de utilização exclusiva.
11. Foi então proferido despacho (apenas sobre os requerimentos aludidos em 1 e 9) que culminou com o seguinte dispositivo:
“Em conformidade com o vindo de expor,
- indefere-se o peticionado pela credora nos requerimentos apresentados em 8.9.2023 (ref. 5394999), 20.10.2023 (ref. 5461211) e 3.04.2025 (ref.51900625);
- determina-se a notificação do Sr. Administrador para proceder à venda do imóvel apreendido para a massa insolvente nos termos que entender convenientes.
Para o efeito,
- notifique CC para, no prazo de 30 (trina) dias proceder à entrega ao Sr. Administrador do imóvel apreendido para a massa insolvente.”
12. Não se conformando com a mesma, dela recorreu a aludida credora, terminando a apelação com as conclusões que aqui se sintetizam:
I. Deve ser ficado efeito suspensivo ao recurso interposto, dado que a Recorrente tem a sua habitação efetiva na moradia em causa nos autos, onde vive juntamente com os seus seis filhos, que estão sob a sua dependência e guarda exclusiva, à luz do art.º 647.º n.º 3, alínea b), do CPC.
II. Os prédios, rústico e urbano, foram constituídos por operação de loteamento, titulada pelo alvará n.º 14/74 de 26/04, ficando o urbano com área de 1.200 m2 e o rústico com área de 530 m2, ocupando a moradia, que ali foi edificada, partes de ambos os aludidos prédios.
III. A Câmara Municipal do Funchal aprovou, em 2/6/2008, um aditamento ao referido alvará, nos termos do qual: (i) foi extraída do prédio rústico uma parcela de terreno com 302M2 e incorporada no urbano, que ficou assim com a área de 1.502 m2; (ii) foi cedida à Câmara Municipal do Funchal a parcela remanescente, de 228 m2, do rústico, que assim deixou de existir.
IV. Tais alterações estão sujeitas a registo obrigatório, por força do consagrado nos artigos 1.º, 2.º n.º 1 al. a) e 8.º-A n.º 1 al. a) do CRP, por influírem na configuração substancial dos imóveis, o que se impõe, com destaque para o prédio urbano, porquanto esse passou a ser o único a constar do auto de apreensão e a ser, por isso, submetido a venda judicial.
V. A ausência de inscrição das referidas alterações em sede de registo poderá configurar uma nulidade, nos termos do artigo 16.º, alínea c), do CRP, ou, ainda que assim não se entendesse, uma inexatidão do registo prevista no artigo 18.º do CRP, o que corrobora o interesse público subjacente a essas correções.
VI. Correções que se impõe ao Sr. A.I. e ao Tribunal a quo, nos termos do artigo 13.º n.º 1, alíneas c), do CIMI, tanto mais que a tributação em IMI será calculada com base nessa área nos termos do artigo 38.º do CIMI.
VII. O facto de o prédio urbano surgir na matriz predial com uma área (1.200 m2) inferior à real (1.502 m2) significa que o IMI sobre o referido imóvel tem sido, e continuará a ser, calculado por um valor inferior, com os consequentes prejuízos para o erário público, assim se impondo a correção, obrigação que incumbe primariamente ao Sr. A.I., nos termos do disposto no artigo 26.º da LGT, por o mesmo assumir a qualidade de liquidatário judicial do património dos Insolventes.
VIII. Acresce que a dita correção aumentaria o respetivo valor de venda, assim se impondo também ao AI, com vista à maximização da satisfação dos créditos sobre a insolvência (e desde logo para a Recorrente, enquanto titular de um crédito garantido por direito de retenção sobre esse imóvel) competindo ao juiz desempenhar um papel ativo na fiscalização da atuação do Sr. A.I., em especial quanto àqueles atos de liquidação que possam prejudicar os interesses dos credores, assim se impondo, ao abrigo do poder de fiscalização previsto no artigo 58.º do CIRE, para determinar a prática, pelo Sr. A.I., de todas as diligências que se revelem necessárias para a correção e harmonização do registo predial e da matriz atinente ao prédio urbano.
IX. Sendo a eventual interpretação das disposições do artigo 58.º do CIRE e do artigo 12.º n.º 2 do EAJ, que vá no sentido de não ser admissível a sindicância, ou fiscalização, judicial do mérito de atos do Sr. A.I. que sejam aptos a influir sobre o valor de venda dos ativos e, consequentemente, sobre o grau de satisfação dos credores, sempre seria manifestamente inconstitucional por violação, nomeadamente, da garantias de tutela jurisdicional efetiva e do princípio do processo equitativo, previstos respetivamente no n.º 1 e n.º 4 do artigo 20.º da CRP, o que desde já se argui expressamente.
X. A decisão recorrida, na parte em que se nega a determinar as referidas correções do registo e da matriz predial, não colhe qualquer apoio no disposto no artigo 833.º n.º 6 do CPC, porquanto esse preceito tem a sua aplicação restrita a casos de falta de licença de utilização / construção – que neste caso não está em falta – e apenas às modalidades de venda por negociação particular e venda direta – que neste caso não serão adotadas, atenta a preferência do Sr. A.I. pela venda em leilão eletrónico.
XI. Fica demonstrado que a decisão recorrida incorreu num manifesto erro de julgamento, fruto da preterição de normas legais imperativas, devendo, nesta parte, ser revogada e substituída por outra que determine a prática, pelo Sr. A.I., dos atos necessários à harmonização entre situação substancial e descrição predial e inscrições matriciais, mormente, do prédio urbano – o que desde já se requer.
XII. Acresce que, a ordem de entrega / desocupação da moradia, expressa na última parte do despacho agora impugnado, em deferimento dos requerimentos de 23/11/2023 e 24/11/2023, dos credores Novo Banco e Sandalgreen Asset Solutions, sem que a mesma tenha qualquer motivação, de facto ou de Direito, incorre, nesta parte, em violação do dever de fundamentação das decisões judiciais, que é tão mais grave por implicar o desalojamento da Recorrente e do seu agregado familiar num prazo curtíssimo e incompatível com a procura de uma nova habitação.
XIII. Por conseguinte, a decisão recorrida, neste ponto, é nula, nos termos do artigo 615.º n.º 1, alínea b), do CPC, aplicável ex vi do artigo 17.º do CIRE – o que desde já se argui para todos os efeitos, sem prejuízo da demonstração da ilegalidade substancial da decisão tomada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 665.º n.º 1 do CPC.
XIV. O crédito sobre a insolvência da Recorrente tem origem em incumprimento definitivo, judicialmente reconhecido, de um contrato-promessa de compra e venda, como decorre da sentença de 19/12/2011 (apenso H destes autos) e sentença de verificação e graduação de créditos de 3/3/2014 (apenso C), o que, nos termos do  artigo 756.º n.º 1, alínea c), do CPC, aplicável por força do artigo 150.º n. 1 do CIRE, determina, imperativamente, que a Recorrente é depositária legal da moradia, estando-lhe assegurado o direito a ocupar efetivamente o imóvel e a recusar qualquer exigência de entrega do mesmo, pelo menos, até que se concretize a respetiva venda judicial.
XV. Ocupação a que também tem direito por força do disposto no artigo 671.º, alínea b), do Código Civil, a contrario (aplicável ex vi do artigo 759.º n.º 3 do mesmo código), padecendo assim a decisão recorrida de um manifesto erro, fruto da preterição de regras legais imperativas, com destaque para o art.º 756.º n.º 1, alínea c), do CPC, ex vi do artigo 150.º do CIRE e para o artigo 671.º, alínea b), do Código Civil,
Nestes termos, requer a V. Exas. julgue o presente recurso procedente, por provado e juridicamente fundado, e consequentemente:
i) revoguem o despacho recorrido, com fundamento em error in judicando, substituindo-o por Acórdão que determine a prática, pelo Sr. A.I., de todas as diligências necessárias à harmonização entre situação substancial e a situação registral e matricial do prédio urbano, bem como, eventualmente, do prédio rústico;
ii) declarem a nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação da decisão de entrega da moradia no prazo de 30 dias, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea b), do CPC, aplicável ex vi do artigo 17.º do CIRE;
e, em qualquer dos casos,
iii) determinem que a Recorrente não é obrigada a entregar a moradia, pelo menos, até que se concretize a venda judicial da mesma, ao abrigo do direito de retenção que lhe assiste, bem como da sua qualidade de depositária do imóvel.
Assim se fazendo a costumada Justiça!
13. Em contra-alegações, a credora hipotecária Magnetiprovide Unipessoal Lda., pugnou pela improcedência da apelação e confirmação da sentença recorrida, defendendo, em suma:
(i) que a insolvência foi decretada por sentença proferida em 05 de setembro de 2011 e que volvidos quase 14 anos, ainda não foi possível ao Sr. Administrador de Insolvência, proceder à liquidação dos bens imóveis apreendidos por força das entropias suscitadas pela Recorrente, o que fez com que os Credores e o Sr. Administrador dirigissem diversos requerimentos aos autos para que houvesse tomada de posse da moradia, nenhuma justificação legal havendo para que o efeito do recurso intentado tenha efeito suspensivo;
(ii) que foi remetida missiva à Recorrente para proceder à entrega do imóvel livre de pessoas e bens, o que esta não fez, não tendo também requerido a aplicação do disposto no art.º 756.º, n.º 1, f) do Código de Processo Civil, que confere a possibilidade de constituir o Credor titular do direito de retenção como fiel depositário do imóvel apreendido até à concretização da venda no âmbito da liquidação do ativo da massa insolvente;
(iii) que seja como for, argumenta ainda, o facto de à Recorrente ter sido reconhecido um crédito por conta do seu direito de retenção, não lhe confere direito de não entregar o bem apreendido, ou impedir a sua venda judicial, é-lhe assegurado apenas o direito de ser pago com preferência sobre o produto da venda, na qualidade de credora garantida do insolvente AA.
(iv) A atuação da Recorrente não pode deixar de ser interpretada como abusiva e lesiva dos interesses dos Credores da Insolvência, uma vez que tem impedido o prosseguimento das diligências de liquidação de forma reiterada, sendo certo que suportar os custos inerentes à correção das irregularidades registais e matriciais dos prédios, correspondentes à Verba n.º 1 e Verba n.º2, é manifestamente lesivo dos direitos dos credores da insolvência, que iriam continuar sem ser ressarcidos dos seus créditos por tempo indeterminado e com uma redução significativa do montante a receber, pois os referidos custos seriam suportados pelas receitas da massa insolvente.
14. Foi então admitido o recurso interposto, como apelação, com subida imediata, em separado e efeito suspensivo, nos termos do disposto nos artigos 14.º, n.º 5 do CIRE, 627.º n.º 2, 631.º, 638.º n.ºs 1, 639.º e 647.º, n.º 3, al. b) do CPC, ex vi art.º 17.º do CIRE.
15. Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, foram então colhidos os vistos legais, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II-/ Questões a decidir:
Estando o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, tal como decorre dos arts.º 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam assim à apreciação deste Tribunal consistem em:

(i) Aferir do efeito do recurso intentado;
(ii) aferir se foi omitido pelo juiz o dever de fiscalização dos atos do AI, com violação do consagrado no art.º 58.º do CIRE, no que respeita à decisão de venda sem a prévia correção das apontadas irregularidades registais e matriciais dos prédios apreendidos para a massa insolvente;
(iii) aferir da inconstitucionalidade do juízo subjacente ao despacho recorrido, por alegada violação do disposto nos art.º 20.º n.ºs 1 e 4 da CRP;
(iv) aferir da invocada nulidade da ordem de entrega e desocupação da moradia dos autos;
(v) aferir da ilegalidade substancial da decisão tomada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 665.º n.º 1 do CPC.

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III-/ Fundamentação de facto:
Atentos os elementos que constam dos autos, encontram-se provados, com interesse para a decisão a proferir, os factos que constam do relatório que antecede e cujo teor se dá por reproduzido.

Importando também considerar que:

(i) Em sede de assembleia de credores, realizada em 14/10/2011, no âmbito do processo de insolvência de AA, foi deliberado o prosseguimento dos autos para liquidação do ativo.

(ii) Estão apensos aos autos de insolvência (apenso H), ação que correu termos, sob o n.º de processo 529/11.5TCFUN, nas Varas de Competência Mista do Funchal, intentado por RN, contra AA e mulher, BB, onde foi proferida sentença em 19/12/2011, transitada em julgado, com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, decido julgar a ação totalmente procedente e, consequentemente:
(i) declaro verificado o incumprimento por parte dos Réus relativamente ao contrato promessa de compra e venda de 30/5/2008 (com aditamentos de 20/2/2009), da moradia construída ao abrigo dos alvarás de obras de construção n.º 94/2004, e n.º 79/2006, emitidos pela Câmara Municipal do Funchal, respetivamente, em 3/9/2004 e 24/10/2006, nos dois seguintes prédios, de que os Réus são donos, conforme certidões permanentes com os códigos PL-0509-68068- 220306-048994 e PA-0509-72987-220306-000065: um lote de terreno para construção urbana, sito em ..., freguesia de S. Gonçalo, Funchal, Madeira, com a área de 1200 metros quadrados, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob a ficha número .../19980303;
um rústico, sito em Bica de Pau, freguesia de S. Gonçalo, Funchal, Madeira, com a área de 530 metros quadrados, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …, secção P (parte), descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob a ficha número .../20040727;
(ii) condeno os Réus a pagarem ao Autor uma indemnização por virtude desse incumprimento, igual ao dobro do sinal por si prestado em execução do contrato promessa referido em (i), ou seja, três milhões e quinze mil euros.
(iii) condeno os Réus a pagarem os juros que se vencerem sobre a quantia referida em (ii), desde a citação até efetivo pagamento;
(iv) reconheço e declaro que o Autor é titular do direito de retenção sobre a moradia identificada em (i), por ter havido tradição e dela ser possuidor, até lhe ser paga a indemnização que lhe é devida pelos Réus, pelo incumprimento do contrato promessa em causa, com os respetivos juros.
Custas a cargo dos Réus».

(iii) Por apenso ao processo de insolvência de AA (apenso N), foi proferida decisão, em 03/05/2018, que julgou procedente por provada a habilitação deduzida e, consequentemente, julgou CC habilitada em substituição do credor RN para ocupar o lugar deste nos aludidos autos de insolvência, nomeadamente no Apenso de reclamação de créditos.

(iv) Por sentença proferida em 14/10/2023, no âmbito dos autos de insolvência, de AA (apenso C), foi julgado garantido por direito de retenção o crédito referido em 4.1.1, A), de RN, sobre as Verbas 1. e 2., ali se consignando que na eventualidade do produto da venda dos imóveis não ser suficiente para satisfazer o crédito do reclamante, o saldo remanescente seria incluído entre os créditos comuns que são satisfeitos à custa do produto da venda das Verbas 3 e 4 (cfr. artigo 174.º, n.º 1, 2.ª parte, do CIRE).

(v) No âmbito do apenso de apreensão de bens (apenso B) foi junto aos autos, em 18/05/2023, um auto de apreensão retificado, admitido por despacho de 24/05/2023, nos seguintes termos:
«Verba 1.
Prédio urbano, (terreno destinado a construção), ao sítio do ..., freguesia de São Gonçalo, concelho do Funchal, com a área de 1.200 metros quadrados, a confrontar a Norte com a Estrada Particular, a sul com a Estrada da Camacha e ... e outro, a Leste com Zeyhreus & Companhia e Oeste com a Estrada Particular, inscrito na matriz predial urbana respetiva sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número .../19980303. Valor (valor tributável) ………………………………………….. 220.060,00 €
Verba 2.
Prédio rústico, ao sítio da Bica de Pau, freguesia de São Gonçalo, concelho do Funchal com a área de 530 metros quadrados, a confrontar a Norte com …, a Sul com a Estrada da Camacha, a Leste com … e a Oeste com ..., inscrito na matriz predial respetiva sob a parte do artigo … da Secção P e descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número .../20040727. Valor (valor tributável) …………………………………………………. 35.000,00 €».

(VI) Das versões atualizadas de cadernetas prediais e certidões do registo predial juntas aos autos, resulta já a edificação de uma moradia de rés do chão, 1º andar, garagem, piscina e logradouro, com a área total de 1200 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal sob o número .../19980303.


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IV-/ Do efeito do recurso:
No que concerne ao efeito do recurso intentado, alegou a Recorrente que tem a sua habitação efetiva na moradia cuja ordem de entrega recebeu, onde vive juntamente com os seus seis filhos, que estão sob a sua dependência e guarda exclusiva, e que a sua posição jurídica, enquanto promitente-compradora e, cumulativamente, titular de direito de retenção sobre o aludido imóvel, obriga a que, na interpretação literal do artigo 647.º n.º 3, alínea b), do CPC, seja fixado ao presente recurso o efeito suspensivo aí previsto.
Em contra-alegações, a Recorrida argumentou ser destituído de qualquer fundamento de facto ou de direito, a atribuição de efeito suspensivo ao recurso apresentado, em face do caráter urgente dos autos de insolvência, como resulta do art.º 9.º do CIRE, sendo certo que, nos autos, decorreram já quase 15 anos desde que foi deliberado, por unanimidade, pelos credores presentes na assembleia de credores realizada a 14/10/2011, e judicialmente determinado, que os autos prosseguissem para liquidação.
A Mmª Juíza a quo fixou ao recurso efeito suspensivo à luz do convocado preceito legal (647.º n.º 3 al. b) do CPC).
Da aplicação conjugada do disposto nos arts.º 641.º, n.º 5 e 652.º, n.º 1, alínea a), do CPC, aplicáveis ex vi do art.º 17.º, n.º 1 do CIRE, resulta que a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância, incidindo sobre o requerimento de interposição de recurso, não vincula este tribunal da Relação que pode alterar o efeito fixado.

Vejamos então, dado que ambas as partes se pronunciaram já sobre o efeito a atribuir ao recurso interposto.

Estabelece o art.º 14.º, n.º 5, do CIRE o regime regra de subida dos recursos no processo de insolvência «Os recursos sobem imediatamente, em separado e com efeito devolutivo».
De igual forma, o efeito regra do recurso de apelação na lei processual civil é o efeito meramente devolutivo, como decorre do art.º 647.º, n.º 1, do CPC, que, todavia pode ser afastada se, ao que ao caso interessa, o recurso for interposto «Da decisão que ponha termo ao processo nas ações referidas nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 629.º e nas que respeitem à posse ou à propriedade de casa de habitação», altura em que será fixado efeito suspensivo ao recurso.
Revertendo aos autos, temos por certo que tal normativo não tem aqui qualquer aplicação.
Por um lado, e como vimos, o art.º 14.º do CIRE contém norma própria em matéria de recursos, cujos n.ºs 2 a 6 se aplicam a todos os recursos interpostos no processo ou em qualquer dos seus apensos, norma que, por ser especial, poderia, só por si, afastar o estatuído pelo art.º 647.º do CPC, na medida em que o n.º 1 do art.º 17º do CIRE, determina que o processo de insolvência é regido pelas regras do CIRE e só, subsidiariamente pelo CPC, «em tudo o que não contrarie as disposições do presente código». Por ser assim, o recurso em apreciação sempre teria que ter efeito devolutivo.
Por outro lado, e mesmo que assim não fosse, no caso dos autos não se verifica a hipótese tipificada na alínea b) do n.º 3 do art.º 647.º do CPC, pois não estamos perante qualquer ação das ali previstas nem estamos perante uma decisão em que se discuta a “posse ou propriedade de casa de habitação”. Com efeito, o que está em causa nos autos é saber se o direito de retenção que foi reconhecido à Recorrente, já acolhido na sentença de verificação e graduação de créditos proferida nos autos, obsta a que a mesma possa ser obrigada a entregar a moradia que ocupa - construída sobre as verbas apreendidas nos autos para a massa insolvente - ao AI com vista à sua venda. Não estamos a discutir a posse ou a propriedade da casa, mas sim, e apenas, se o direito da retentora, como depositária da mesma, pode obstar à ordem de entrega.
Donde, e sem mais, altera-se o efeito do recurso interposto, que passa a ser meramente devolutivo.

*
V-/ Do mérito do recurso:
Entrando agora na apreciação do mérito do recurso, apreciemos, separadamente, cada uma das questões suscitadas pela apelante ao insurgir-se contra a decisão recorrida.

(i) Do pedido de correção das irregularidades registais e matriciais, da invocada violação do art.º 58.º do CIRE e da alegada inconstitucionalidade (pontos II e III das questões a decidir):
Para apreciar a presente questão, estando nós perante um processo de insolvência, que reveste a natureza de execução universal (art.º 1.º n.º 1 do CIRE) e visa dar pagamento aos diferentes credores através de todo o património do devedor, cumpre-nos desde logo atentar que, realizada que seja a apreensão de todos os bens, nos termos consignados nos arts.º 149.º e 150.º do CIRE, ao administrador da insolvência, e apenas a si, incumbe então proceder à sua alienação, tendo em atenção o disposto no art.º 164.º do mesmo código.
Nesta matéria, importa ter também presente que, no Estatuto do Administrador Judicial (redação da Lei nº 9/2022 de 11/01), no seu art.º 2.º, é consignado que «O administrador judicial é a pessoa incumbida (…) da gestão ou liquidação da massa insolvente no âmbito do processo de insolvência, sendo competente para a realização de todos os atos que lhe são cometidos pelo presente estatuto e pela lei».
Sendo o AI um órgão da insolvência, sobre si impedem os poderes de administração da massa insolvente, e, dentro deles, os de proceder, com prontidão, à apreensão e venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, o que é, desde logo, determinado pela sentença insolvencial (artigos 36.º, n.º 1, al. g), 55.º, n.º 1, al. a), 149.º, 150.º e 158.º, n.º 1, todos do CIRE).
A liquidação assume-se assim como uma das tarefas legalmente cometidas ao administrador de insolvência, que a exerce com a cooperação e sob a fiscalização da comissão de credores, se existir (art.º 68º, n.º 1), da assembleia de credores (arts.º 79.º e 80.º) e sob a fiscalização do juiz, o qual pode, a todo o tempo, exigir ao administrador que preste informações sobre qualquer assunto ou que apresente relatório da atividade desenvolvida e do estado da administração ou liquidação (art.º 58.º).
Sobre os poderes de fiscalização do art.º 58.º, Alexandre Soveral Martins (Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, 4.ª edição, página 344) diz-nos que «….  se estende a toda a atividade do administrador da insolvência e, portanto, desde que se inicia até que termina…».
Não obstante estar sujeito à aludida fiscalização, a liquidação do ativo é da competência do administrador da insolvência, o qual, no âmbito do procedimento para venda, está apenas limitado ao dever de audição prévia do credor com garantia real sobre o bem objeto da venda, nos termos previstos pelo art.º 164.º, n.º 1 e 2, ou da comissão ou da assembleia de credores nos termos previstos pelo art.º 161º.
Nas palavras de Catarina Serra (Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 3ª edição, pág. 83), compreende-se que assim seja pois «Quanto ao juiz e às funções que desempenha, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas adotou um novo entendimento. Deu, numa palavra, início ao processo de desjudicialização. O juiz limita-se a intervir nas fases verdadeiramente jurisdicionais, ou seja, nas fases de declaração de insolvência, da homologação do plano de insolvência e da verificação e da graduação de créditos…», tudo isto se inserindo num objetivo que é claramente assumido pelo legislador no ponto 10 do preâmbulo do DL 53/2004, de 18/03, que aprovou o CIRE, onde se refere que «… a afirmação da supremacia dos credores no processo de insolvência é acompanhada da intensificação da desjudicialização do processo».
A crescente “privatização”, do processo de insolvência - centrada nos poderes do AI, figura nuclear do processo insolvencial, e nos credores, com a larga margem de atuação que detém na defesa dos seus interesses, pois que, afinal, são os grandes interessados na prossecução do papel fundamental da insolvência - restringe e confina o juiz ao papel de garante da legalidade, da verificação do cumprimento da lei ao longo do processo, processo que deve acompanhar de forma atenta, solicitando informações ao AI, sensibilizando os interessados no cumprimento dos seus deveres e ditames legais, podendo, no limite, destituir o AI se ocorrer justa causa para o efeito (56.º do CIRE).
Sem esquecer que foi opção legislativa a desjudicialização do processo, reforçada, como se alude no preâmbulo da lei (ponto 10 acima convocado), com o desaparecimento da possibilidade de impugnar junto do juiz as deliberações da comissão de credores (que podem, não obstante, ser revogadas pela assembleia de credores), e os atos do AI (sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa), estamos certos que a intervenção do juiz apenas se justifica quando está em causa um alegado vício processual, a preterição de algum formalismo, e apenas se relevante para o fim da causa, a atribuição ou negação de um direito não conforme com a lei, nada mais exigindo a intervenção do juiz sob pena de, a não ser assim, se invadir a esfera de atuação do AI.

Por conseguinte, e aqui chegados, não vemos que a decisão tomada pelo AI, devidamente escrutinada e acompanhada pela Comissão de Credores, possa ser, no caso de que aqui cuidamos, sindicada pelo tribunal.
Com efeito, a decisão de se proceder à venda dos bens apreendidos para a massa insolvente, no estado físico e jurídico em que se os mesmos se encontram (ou seja, com a moradia ali implantada), sem que se proceda à realização de quaisquer diligências de harmonização, prévias à venda, não está, propriamente, ferida de ilegalidade que justifique a intervenção do juiz ou que o obrigue a dar instruções ao AI no sentido pugnado pela Recorrente.
A lei não impede, na verdade, que a venda possa ser assim feita. Desde que, evidentemente, tal situação seja dada conhecer ao comprador, de forma a que nenhum vício possa depois afetar a venda que vier a realizar-se.
Na verdade, da conjugação do disposto nos artigos 817.º e 837.º do CPC e 19.º da Portaria n.º 282/2013, de 29/08, que regulam os requisitos formais dos anúncios de venda, no que concerne à venda em leilão eletrónico, resulta apenas que os mesmos devem conter uma descrição concreta das características do bem a vender, sempre com vista a que, no rigor da declaração, os potenciais interessados possam tomar uma decisão conscienciosa e esclarecida.
Ora, no despacho recorrido, tal ficou acautelado, podendo ali ler-se que «Descendo à situação que apreciamos vemos que, resulta dos autos que os dois prédios aqui em causa alteraram materialmente a sua configuração, tendo em conta que nos mesmos foi implantada uma moradia que abrange os dois prédios, sem que a realidade jurídico/registral tenha sido atualizada. Admite-se, é certo, que a atualização dos registos poderá beneficiar a venda, no entanto, essa atualização não se apresenta exigível para que a venda do bem aqui em causa, pertencente ao Insolvente, se concretize. Repare-se que, o Sr. Administrador já manifestou nos autos a sua decisão quanto à venda, pelo que não incumbe ao Tribunal ordenar que sejam realizadas quaisquer outras diligências. Salienta-se, contudo, que a existência de desconformidade entre as características do imóvel, objeto da venda e a descrição que do mesmo será feita no respetivo anúncio, confere ao comprador o direito a deduzir pretensão de anulação da venda, nos termos enunciados no art.º 838º do CPCivil. Assim sendo, muito embora possa proceder de imediato à venda do bem apreendido no estado em que se encontra, o Sr. Administrador da Insolvência deverá fazer constar no anúncio de venda, de forma clara e expressa, a descrição exata da situação física da moradia e a exata situação registral/cadastral da mesma, com menção à necessidade de o comprador proceder à atualização do registo em conformidade com a situação real do prédio. Com base nos fundamentos supra expostos, sem perder de vista, muito particularmente, a decisão quanto à venda já tomada pelo Sr. Administrador, secundada pela Comissão de Credores, e, independentemente da posição agora assumida pela credora, de se disponibilizar a realizar as diligências que menciona no seu requerimento, impõe-se indeferir o por si peticionado» (sublinhado nosso).
O acerto do assim decidido não é, pois, beliscado pela argumentação da apelação.
A obrigatoriedade do registo das alterações em causa, de forma a fazer coincidir a materialidade física com a registral (arts.º 1.º, 2.º n.º 1 al. a) e 8.º-A n.º 1 al. a) do CRP) não impede a venda, fazendo recair sobre o comprador esse ónus, caso assim as partes o acordem, à luz do princípio da liberdade contratual, e o facto de tal alteração poder aumentar o valor do bem a vender entronca na esfera dos poderes do AI e da Comissão de Credores, nada tendo que ver com a legalidade do ato em si.
Foi opção do legislador, como vimos, e reiteramos, ater os poderes de fiscalização do juiz a questões de legalidade, e não vemos que a interpretação das disposições conjugados do artigo 58.º do CIRE e do artigo 12.º n.º 2 do EAJ possa obrigar a diferente atuação (exigir ao AI que, previamente à venda, proceda às alterações registrais do imóvel a vender) ou, não o permitindo (podendo a vendar opera-se no estado em que o imóvel se encontra), estar tal decisão, e juízo nela feito, ferido de qualquer inconstitucionalidade.
Não se olvide que, nos autos, se por um lado, a comissão de credores e do AI entenderam que a venda do imóvel, nos termos propostos e acordados, se justifica no quadro atual, considerando que  a insolvência foi decretada há cerca de 14 anos e ainda não foi possível proceder-se à liquidação dos bens imóveis apreendidos, sendo assim manifestamente lesivo dos direitos dos credores da insolvência ter ainda que esperar mais tempo para receber e suportar os custos associados às pretendidas atualizações registais, por outro lado, a Recorrente entende que essas alterações implicariam um aumento e valorização do imóvel apreendido. Ora, se na verdade tal factualidade não está sequer demonstrada nos autos, nada se concretizando quanto a possíveis custos registrais e sua influência no valor do imóvel no mercado, certo é que o tempo corre sem que os credores possam receber pelos créditos há já muito verificados e reconhecidos nos autos. Não é a primeira vez, nem será certamente a última, que a decisão de um administrador de insolvência não agrada a algum dos credores, mas tal não inviabiliza a decisão tomada nos autos pelo AI, com a unanimidade da Comissão de Credores, nem a opinião divergente da Recorrente justifica uma atuação do tribunal para a alterar, muito menos por se entender que, do ponto de vista económico, outra decisão poderia ser mais acertada. Não foi esse, de forma alguma, o entendimento do legislador, ao regular a liquidação de bens no âmbito insolvencial.

E tal entendimento não é de moldes a ser julgado inconstitucional, por violação do artigo 20.º, n.º 4, da CRP (que determina que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo) tanto mais que o tribunal não se demitiu das suas funções de fiscalização; pelo contrário, apreciou a questão e entendeu que a decisão do AI com o acordo da Comissão e Credores não é ilegal, não podendo ser imposto ao mesmo as determinações que apenas a credora entende serem justificadas, não restringindo a leitura feita do art.º 58.º do CIRE, quaisquer direitos, liberdades e garantias dos credores.

Não vemos assim qualquer erro de julgamento nem qualquer juízo de inconstitucionalidade subjacente à decisão tomada, que aqui se confirma, assim naufragando nesta parte a apelação interposta.

*

(ii) Da invocada nulidade da ordem de entrega / desocupação da moradia e da ilegalidade substancial da decisão tomada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 665.º n.º 1 do CPC (pontos IV e V das questões a decidir):
Nesta segunda linha de questões suscitadas pela apelante em sede recursiva, principiamos pela invocada nulidade da decisão de entrega do imóvel por parte da Recorrente, sem qualquer fundamentação, quer de facto, quer de direito, que a sustente, o que, alega, deve ser sancionado com a nulidade da decisão judicial, nos termos do disposto no artigo 615.º n.º 1, alínea b), do CPC, aplicável ex vi do artigo 17.º do CIRE.

Apreciando.
Como é consensual na doutrina e na jurisprudência, as nulidades taxativamente enumeradas no artigo 615.º do CPC prendem-se com a violação de regras de estrutura das decisões proferidas pelo julgador (sejam elas sentenças, sejam elas despachos, por aplicação do artigo 613.º do CPC), reportando-se assim a vícios formais das decisões proferidas, que não contendem com o seu mérito, não se confundindo com um qualquer erro de julgamento.
A Recorrente, alegando a falta de fundamentação de facto e de direito, imputa ao segmento recorrido o vício previsto na segunda parte da al. b) do nº 1 do artigo 615.º do CPC, que assim determina «A sentença é nula quando «…. b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».
Como vemos, o vício aqui previsto é o da falta de fundamentação, de facto ou de direito de uma decisão, o que apela assim ao princípio geral do dever de fundamentação previsto pelo art.º 154.º, nº 1 do CPC, nos termos do qual as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. Fundamentação que, em sede de elaboração de sentença, é depois concretizado nos nºs 2 e 3 do art.º 607.º do CPC, que determina que o juiz deve fundamentar a sentença através da discriminação dos factos que considera provados, com a indicação, interpretação e aplicação das normas jurídicas aplicáveis, concluindo depois pela decisão final.
Conforme decorre unanimemente da doutrina e da jurisprudência importa então distinguir entre a falta absoluta de fundamentação e a fundamentação deficiente, insuficiente ou mesmo errada, pois que apenas a primeira é sancionada pela lei com o vício da nulidade. De facto, é jurisprudência assente que só a falta absoluta de motivação – e não a sua imperfeição ou incompletude – constitui fundamento para a nulidade a que se refere artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC. Com efeito, já o Prof. Alberto dos Reis (no Código de Processo Civil Anotado Vol. V, pág. 140), dizia que só a falta absoluta de motivação constitui nulidade e que insuficiência ou mediocridade da motivação afeta o valor doutrinal da sentença, mas não produz nulidade.

No caso de que aqui cuidamos, tal nulidade ressalta de forma evidente da decisão em crise.
Na verdade, e desde logo, decorre dos autos, que por requerimentos de 23/11/2023 e 24/11/2023, respetivamente, os credores Novo Banco e Sandalgreen Asset Solutions, pediram a entrega da moradia ao AI com vista à concretização da sua venda, tendo a Recorrente, em requerimento 6/11/2023, invocado, entre outros argumentos, para obstar à requerida entrega, até à efetivação da sua venda, a qualidade de depositária da moradia, legalmente estabelecida pelo artigo 756.º n.º 1, alínea c), do CPC, aplicável ex vi artigo 150.º do CIRE.
Também o AI, em 21/03/2025 e 25/03/2025, requereu que fosse deferida pelo Tribunal a entrega voluntária do imóvel, no prazo máximo de um mês, a fim de a massa insolvente poder liquidar o bem sem constrangimentos.
Sem que tivesse propriamente apreciado os argumentos e as questões colocadas, o Tribunal a quo limitou-se, no final do despacho em crise, a ordenar a notificação da Recorrente «…. para, no prazo de 30 (trinta) dias proceder à entrega ao Sr. Administrador do imóvel apreendido para a massa insolvente».
O Tribunal a quo nada disse/motivou ou justificou a decisão de ordenar a entrega da moradia pela Recorrente, em momento prévio e independentemente da concretização da venda judicial do aludido imóvel.
Tal nulidade, por absoluta falta de fundamentação, não impede, contudo, reunindo os autos os elementos necessários ao efeito, que entremos agora na apreciação da alegada ilegalidade substancial da decisão assim tomada, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 665.º n.º 1 do CPC, que permite que, não obstante a nulidade em causa, a Relação aprecie as questões suscitadas, sempre que para isso disponha dos elementos necessários.
Neste enquadramento, argumenta então a Recorrente, que sendo depositária legal da moradia em causa nos autos, nos termos do  artigo 756.º n.º 1, alínea c), do CPC, aplicável por força do artigo 150.º n.º 1 do CIRE - onde, alega, tem a sua habitação efetiva, ali vivendo juntamente com os seus seis filhos, que estão sob a sua dependência e guarda exclusiva - está-lhe assegurado o direito a ocupar efetivamente o imóvel e a recusar qualquer exigência de entrega do mesmo, pelo menos, até que se concretize a respetiva venda judicial. Por conseguinte, alega, a decisão recorrida padece de um manifesto erro, fruto da preterição de regras legais imperativas, com destaque para o art.º 756.º n.º 1, alínea c), do CPC, ex vi do artigo 150.º do CIRE e para o artigo 671.º, alínea b), do Código Civil.

Vejamos se assim é.

Determina o artigo 149.º n.º 1 do CIRE que, proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão (…) de todos os bens integrantes da massa insolvente, estipulando, ao que ao caso agora interessa, o artigo 150.º do mesmo código, no seu n.º 1, que «1. O poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados (…)».
Da leitura dos aludidos preceitos resulta assim que o AI deve, desde logo, encetar as diligências que repute necessárias para apreender os bens do devedor que deverão integrar a massa insolvente, providenciando pela sua efetiva entrega.
Exceciona, contudo, o convocado artigo 150.º do CIRE, como decorre do texto legal, no seu n.º 1, o estabelecido no artigo 756.º do CPC, que, no que ao caso agora interessa, estipula, no seu n.º 1 al. c) que «É constituído depositário dos bens o agente de execução ou, nos casos em que as diligências de execução são realizadas por oficial de justiça, pessoa por este designada, salvo se o exequente consentir que seja depositário o próprio executado ou outra pessoa designada pelo agente de execução ou ocorrer alguma das seguintes circunstâncias: c) O bem ser objeto de direito de retenção, em consequência de incumprimento contratual judicialmente verificado, caso em que é depositário o retentor (…)».
Estamos em crer que o facto de a lei determinar que o retentor é nomeado depositário de um imóvel, por força de um incumprimento contratual judicialmente verificado, tal como o exige a lei, não obstaculiza, só por si, como pretende a Recorrente, a entrega do aludido imóvel ao AI e que o direito de retenção sobre esse imóvel possa conferir à mesma o direito de não o entregar até estar concretizada a venda.

Senão vejamos.

O direito de retenção, em moldes globais, é a faculdade atribuída ao devedor que está na posse de uma coisa de recusar a sua entrega, retardando-a, como meio de constranger o credor a cumprir uma obrigação em que se acha constituído para com ele. Consiste, pois, em simultâneo, num direito legal de garantia e num meio de coerção (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 7ª ed., Almedina, Coimbra, 2001, p. 578).
O direito de retenção, em particular, consiste no direito conferido ao credor de, tendo em seu poder uma coisa do devedor que lhe devia entregar, se recusar a entregar a mesma, apesar de ela pertencer ao devedor, enquanto este não cumprir. Como resulta do caso específico da al. f) do art.º 755.º do CC, goza desse direito o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º.
Através do exercício desse direito, o credor garante-se quanto à obtenção da satisfação do seu crédito através do valor do bem objeto da garantia. Donde, e como daqui se depreende, o seu interesse visa assegurar o cumprimento do seu crédito e não o gozo dos bens que estão na sua possa, não havendo assim quaisquer dúvidas que o direito de retenção (regulado e previsto no capítulo relativo às garantias especiais das obrigações) não existe para facultar o uso da coisa, mas sim, e apenas, para garantir o pagamento de um crédito.
Por ser assim, e nesta linha de raciocínio, o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 30/09/2019, publicado em juris.stj.pt/ecli, relatado por José Rainho, pronunciando-se precisamente sobre tal temática, assim sumariou «I-O direito de retenção que assiste ao beneficiário de promessa de transmissão de coisa que foi traditada pelo insolvente não impede a apreensão dessa coisa pelo administrador da insolvência nem confere ao beneficiário o direito de a reter ou deter. II- Tal beneficiário goza da garantia conferida pelo direito de retenção, mas os respetivos efeitos resumem-se à prioridade, nos termos da competente decisão de graduação dos créditos, na satisfação do seu crédito», ali afirmando em fundamentação que «… o crédito dos Réus goza da garantia do direito de retenção, mas este direito não autoriza a retenção das frações e a sua ocupação, com a recusa da respetiva entrega ao Administrador da Insolvência».

No caso dos autos, o crédito da Recorrente beneficia de direito de retenção, mostrando-se assim devidamente reconhecido e graduado como tal. Não obstante, e como vimos, a simples invocação do direito de retenção não permite nem legitima a Recorrente a, sem mais, recusar a entrega do bem imóvel ao AI.

Argumenta, contudo, a apelante, que sendo depositária legal do aludido imóvel, nada obsta a que assim se mantenha até à data da sua venda, tanto mais que a venda não está dependente da desocupação prévia do bem, sendo certo que por força do reconhecimento daquele direito de retenção, e por força do disposto no art.º 756.º n.º 1 al. c) do CPC, assumiu a qualidade de depositária da moradia, pois que, nestas situações, como decorre da lei, é o retentor que assume o cargo de depositário, e não o administrador de insolvência.
Em apreciação da questão, diremos então que os deveres gerais do depositário encontram consagração no artigo 1187.º do CC, decorrendo ainda do n.º 1 do art.º 760.º do CPC que incumbe ao mesmo, para além daqueles deveres, o de administrar os bens com a diligência e zelo de um bom pai de família e com a obrigação de prestar contas, incumbindo-lhe, ainda, o dever de apresentação dos bens imposto pelo artigo 771.º, n.º 1 do mesmo código.
Não obstante, quer a aplicação das regras gerais, quer das que regem o depósito judicial de bens penhorados, tal como decorre do acima convocado n.º 1 do art.º 150.º do CIRE, têm sempre que ser compatibilizadas com as regras próprias do CIRE, fazendo-se apelo àquelas normas apenas e quando as mesmas não prejudiquem o regime particular da insolvência (ver CIRE anotado por Carvalho Fernandes e João Labareda, Quid Juris, 3ª edição, pág.569).
Nesse pressuposto, estamos em crer que o facto de a lei determinar que o retentor seja nomeado depositário do imóvel, só por si, como pretende a Recorrente, não obsta à sua entrega ao administrador de insolvência antes de concretizada a venda, mesmo que nele tenha a sua residência estabelecida. Tanto mais que as questões salvaguardas no CIRE prendem-se com a desocupação da casa de habitação por parte do devedor (150.º n.º 5 do CIRE) e, mesmo esta, pode ocorrer em momento anterior à aludida venda. Desde logo, se resultar dos autos que a permanência naquela habitação pode dificultar a venda do imóvel, com os inerentes prejuízos daí resultantes para os credores, pela privação de um aumento patrimonial da massa.
Ora, num caso como o presente, em que a liquidação do ativo foi já deliberada em ata de assembleia de credores de 14/10/2011, protelada por diversas razões, mormente as suscitadas no processo pela aqui Recorrente, sem que os credores ou o AI acompanhassem a sua pretensão ou aderissem às razões por si suscitadas, urge dar rápido e célere andamento à venda da aludida moradia, venda que será, naturalmente, facilitada se se encontrar livre e desocupada, nada justificando que, decorridos cerca de 14 anos, a aludida moradia ainda não tivesse sido entregue ao AI de forma a agilizar a sua venda.
Por ser assim, no caso dos autos, não decorrendo do direito de retenção o direito ao uso do imóvel, o facto de a retentora do mesmo ser depositária legal do bem não impede nem obsta a que o mesmo seja entregue ao AI, assim que este o exige, no cumprimento das suas funções e em benefício dos credores, tanto mais que da própria noção de depósito resulta a ideia da restituição do bem (art.º 1185.º do CC), restituição que deve ter lugar quando o depositante a exigir, constituindo, como tal, obrigação do depositário entregar a casa assim que tal lhe for pedido.

Concluímos, pois, que a apelante não tem o direito de se opor à entrega do imóvel à massa insolvente invocando o direito de retenção e a sua qualidade de depositária legal, pois que aquele direito, como direito de garantia que é, apenas lhe atribui uma preferência no pagamento, preferência essa já atendida na sentença de graduação de créditos, tendo a mesma que entregar o bem assim que tal lhe é exigido.
No contexto insolvencial de cariz liquidatário fere mesmo as mais elementares regras de urgência e celeridade impostas ao processo que a credora, que viu já o seu direito reconhecido por sentença de graduação de créditos, possa obstar à entrega da moradia dos autos, para mais facilmente se colocar a mesma no mercado, agilizando-se uma venda já deliberada no longínquo ano de 2011, continuando a usá-la sem quaisquer vantagens para os restantes credores.
Termos em que se conclui pela improcedência do recurso.
***
VI-/ Decisão:
Perante o exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente a apelação, assim se confirmando o despacho recorrido.
Custas do recurso pela Recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 10/11/2025
Paula Cardoso
Nuno Teixeira
Manuela Espadaneira Lopes