Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | LUÍS FILIPE LAMEIRAS | ||
| Descritores: | REGULAMENTO (CE) N.º 864/2007 (ROMA II) OBRIGAÇÕES EXTRACONTRATUAIS LUGAR DO DANO NORMA DE CONFLITOS | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/18/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | Sumário: I – Na interpretação da norma de conflitos do artigo 4º, nº 1, do Regulamento (CE) nº 864/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Julho de 2007, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II»), considera-se como lugar onde ocorre o dano aquele onde o lesado vê afectado o bem jurídico, ou o direito, juridicamente tutelados. II – O lugar que é palco do acontecimento, que é embrião do dano, mas onde ainda se não detecta qualquer sombra deste, que só vem a emergir e suceder num outro lugar, está excluído como elemento dessa conexão; sendo este segundo o da ocorrência do dano. III – Mas se, no lugar que é palco do acontecimento, e se desencadeia o processo causal, a vítima logo suporta as vicissitudes nefastas da ocorrência e lesões consequentes, é nele que se considera ter ocorrido o dano; ainda que este se venha, depois e noutro lugar, a intensificar ou a desenvolver-se. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa: I – Relatório I. A instância da acção. 1. P---, residente em Espinho, propôs uma acção declarativa contra A--- SA, com sede em Espanha, a pedir a condenação da ré a pagar-lhe 52.974,46 € e de uma quantia a liquidar, com juros desde a citação (28.3.2024). Em síntese, argumentou que no dia 22 de Agosto de 2021 participou em actividade marítimo-turística na playa América, em Nigran, na Espanha, e que nessa participação foi projectada, caiu desamparada e foi atingida no olho esquerdo, com sangramento no nariz e perturbações na visão. Foi assistida em centro de saúde, em Vigo. No regresso a Portugal, os padecimentos acentuaram-se. Aqui, consultou especialistas. Diagnosticou patologias. Ficou afectada emocionalmente. A vida social e profissional foi atingida. Realizou cirurgia, em Outubro de 2022. Suporta um dano moral, que avalia em 50.000,00 €. As sequelas irão agravar-se; mas o reflexo dessa quebra não é ainda determinável. Gastou em consultas e tratamentos 2.974,46 €. A ré é transmissária da responsabilidade por via de contrato de seguro. 2. A ré foi citada (4.9.2024). Contestou a acção para dizer; desde logo, que a lei aplicável à responsabilidade extracontratual é a espanhola; e que, portanto, em face do prazo prescricional nesta fixado, de um ano, o direito da autora está prescrito. Depois, que há perturbação pela cobertura da apólice. Por fim, impugnando a generalidade dos factos da petição inicial. Em qualquer caso, deve ser absolvida do pedido. 3. A autora respondeu (21.11.2024). Os danos que sofreu materializaram-se em Portugal; a lei material aplicável é a portuguesa. Por outro lado; em 27.2.2023, a ré assumiu a responsabilidade; reconheceu o direito da autora; logo, interrompeu a prescrição. E desencadeou a intervenção principal do segurado da ré. 4. A intervenção foi admitida; e o chamado foi citado. 5. O tribunal a quo proferiu saneador-sentença (26.5.2025). Em síntese, e para o que aqui mais importa, enquadrou o Regulamento CE nº 864/07, de 11 de Julho (Roma II), para concluir que, de acordo com o seu artigo 4º, nº 1, é aplicável o direito material espanhol, que fixa a prescrição de um ano; donde, por conseguinte, « tendo o acidente ocorrido em 22 de Agosto de 2021, não existindo qualquer outro facto interruptivo da prescrição, que não tenha sido a propositura desta acção, e tendo esta sido intentada em 28/03/2024, (…) há muito que o prazo de prescrição de 1 ano ocorreu ». II. A instância da apelação. 1. A autora não se conformou; e recorreu. As conclusões da sua alegação permitem desenhar assim o objecto do recurso. i. O acidente ocorreu em Espanha e como sua consequência directa a autora sofreu danos que se produziram todos, sem excepção, em Portugal. ii. O artigo 4º, nº 1, do Regulamento 846/2007 de 11 de Julho, estabelece que a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco, é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que lhe deu origem. iii. A lei aplicável ao caso só pode ser o Código Civil português. iv. O prazo de prescrição é de três anos; o acidente ocorreu no dia 22 de Agosto de 2021; e a ré reconheceu o direito da autora em comunicação de 11 de Outubro de 2023. v. O facto interruptivo inutiliza o tempo decorrido e faz iniciar novo prazo; e a ré foi citada em 4 de Setembro de 2024. vi. Mesmo entendendo aplicável a lei espanhola, era de atentar no reconhecimento de 11 de Outubro de 2023; e de desencadear o seguimento da acção. A autora juntou ainda às alegações documento contendo emails trocados (entre 26.12.2022 e 11.10.2023) e com o objectivo de certificar o reconhecimento da ré. 2. A ré respondeu. No essencial para dizer; o elemento de conexão relevante opera em Espanha e é a lei espanhola a aplicável; cursou o prazo prescricional de um ano; não operou qualquer tipo de reconhecimento. Em qualquer dos casos; não deve ser admitida a junção do documento. 3. As questões decidendas. 3.1. O assunto de base colocado à consideração do tribunal ad quem centra-se em saber se o saneador-sentença recorrido foi, por alguma maneira, precipitado; e se, ao invés, se impunha dar seguimento à instância declaratória, carente ainda de escrutínio fáctico com relevo para um julgamento de mérito consciencioso. 3.2. Para o efeito é instrumental conhecer (como temas centrais da controvérsia): (1.º). qual a interpretação a dar ao artigo 4º, nº 1, do Regulamento (CE), nº 864/2007, de 11 de Julho (Roma II); (2.º). onde ocorreu, no caso, o dano relevante para efeitos dessa disposição; (3.º). qual o direito material aplicável à hipótese, o português ou o espanhol; (4.º). o impacto de um virtual reconhecimento do direito da autora; (5.º). se o direito da autora já não pode ser reclamado, por estar prescrito. Conexamente, importa clarificar a questão da junção do documento, pela autora e apelante, às alegações. II – Fundamentos 1. A junção de documento às alegações. A apelante apresentou ex novo, em fase de recurso, um documento em vista de certificar o reconhecimento do seu direito por banda da seguradora ré. O documento retrata emails trocados entre 26.12.2022 e 11.10.2023. O regime da junção potestativa de documentos às alegações mostra-se previsto no artigo 651º, nº 1, do Código de Processo Civil; sendo admitida, ora no quadro das excepções contempladas no artigo 425º (hipótese de impossibilidade), ora quando se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. Em qualquer dos casos, é sempre uma junção que visa condicionar o julgamento do recurso. O (novo) documento (que é um meio de prova) há-de ter a virtualidade de reverter a decisão recorrida; esta, que só foi proferida ante o seu desconhecimento. No caso, a apelante assume-se credora de responsabilidade extracontratual. Invoca o evento danoso, ocorrido em Espanha, em 22.8.2021. E propõe a acção judicial, em 28.3.2024. A apelada suscita a prescrição do direito, de um ano, com base na lei espanhola. A apelante indica a lei portuguesa, a prescrição de três anos e o reconhecimento interruptivo, em 27.2.2023. Já, nas alegações de recurso, altera a data da interrupção para 11.10.2023. A sentença recorrida opta pela lei espanhola, explicita a inexistência de qualquer facto interruptivo; e conclui pela operacionalidade da prescrição. A apelante não pode ter sido surpreendida pela ilação, que a sentença contém, de que não houve facto interruptivo algum. Na economia da decisão recorrida, o prazo prescricional, estabelecido pela lei espanhola, conhece o seu termo a quo no dia da ocorrência do evento, em Espanha, no dia 22.8.2021; portanto, um prazo que se finou no dia 22.8.2022. A prescrição não opera oficiosamente e foi invocada pela apelada. Qualquer das datas interruptivas trazidas pela apelante, 27.2 ou 11.10.2023, já se posicionava para além do termo ad quem da prescrição. E igualmente assim qualquer das comunicações retratadas no documento junto; a primeira das quais com data de 26.12.2022. Por outro lado; assumido como aplicável a lei portuguesa, com uma prescrição de três anos, igualmente a junção é inconsequente; aqui então porque perfeitamente desnecessária ao julgamento da apelação. O termo ad quem nesse contexto esgota-se a 22.8.2024; e com a regra do artigo 323º, nº 2, do Código Civil português, a interrupção accionou cinco dias depois de 28.3.2024, portanto muito dentro ainda de um prazo em curso e sem necessidade da invocação de reconhecimento interruptivo. Em síntese; não opera causa válida que permita a junção do documento. 2. O Regulamento (CE) nº 864/2007, de 11 de Julho (Roma II). A hipótese convoca conexões plurilocalizadas, em Espanha e em Portugal, e com essa envolvência cria a necessidade de encontrar o direito material a chamar; o que se empreende por normas de conflitos; que, no concreto, e por modo consensual, se mostram contempladas no Regulamento nº 864/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais («Roma II»). Em matéria de responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco, fixa assim o artigo 4º, nº 1, desse regulamento: « (…) a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em acto lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indirectas desse facto » Para a interpretação desta norma, vem sendo buscado apoio no considerando com o nº (17), no regulamento, que diz assim: « A lei aplicável deverá ser determinada com base no local onde ocorreu o dano, independentemente do país ou países onde possam ocorrer as consequências indirectas do mesmo. Assim sendo, em caso de danos não patrimoniais ou patrimoniais, o país onde os danos ocorrem deverá ser o país em que o dano tenha sido infligido, respectivamente, à pessoa ou ao património » Sobressai, então, do considerando, como local significante da « ocorrência do dano » o do lugar « em que o dano tenha sido infligido »; e não tanto o do lugar onde o dano se tenha vindo, depois, a (melhor) revelar, e / ou a aprofundar e intensificar. É uma forma de concretização da lex loci delicti comissi (Anabela Susana de Sousa Gonçalves, “A responsabilidade civil extracontratual […], Scientia Iuridica, tomo LXI, nº 329); pensada (sobretudo) a respeito de (reais) casos de desligamento – ou melhor, de deslocalização –, no confronto entre o (mero) local do acontecimento e (distinto e efectivo) local do dano; e onde a opção é a de dar uma superior relevância a este último elemento conectivo. É a cisão da conduta causal neste seu confronto com o despertar do dano que dá sentido à prioridade; certo que a habitual coincidência espacial desses elementos permite mitigar as perplexidades, e dúvidas, que se lhe possam associar. O objectivo é, por conseguinte, o de que o lugar da lesão ou lugar do dano haja de ser aquele onde o lesado viu atingido o seu direito, juridicamente tutelado (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 1.4.2014, proc.º nº 1061/12.5TVLSB.L1.S1, e da Relação de Lisboa de 29.10.2015, proc.º nº 2691/13.3TCLRS.L1-2). E se assim logo aconteceu no lugar onde germinou (se desencadeou) o processo causal, há-de ser este o lugar de eleição, o da conexão relevante; ainda que noutro os danos e prejuízos se tenham desenvolvido e reforçado. Mas já se, apenas o local é palco do acontecimento original, que está no germe do dano, mas ainda sem sombra deste, que apenas vem a emergir e suceder num outro lugar, então, há-de ser este outro o da eleição e conexão relevante. Elemento de conexão é do local onde aconteceu a afectação do bem jurídico. Independentemente do local onde essa afectação veio a ser melhor reconhecida e concretizada; e se desenvolveu ou se fortaleceu. 3. O lugar onde ocorreu o dano da apelante. O saneador-sentença recorrido apontou com clareza que « no caso, foi em Espanha que ocorreram as lesões da autora, as consequências directas do evento imputado ao segurado da ré ». E com acerto, do nosso ponto de vista. À luz da interpretação deixada, do artigo 4º, nº 1, do regulamento, numa hipótese como a do caso concreto, não pode deixar de se entender que o lugar onde ocorre o dano é aquele onde a vítima suporta as directas consequências do acontecimento lesivo. Quer dizer; aquele onde ao lesado se impõem logo as vicissitudes da ocorrência, afinal aquelas de onde germinam todas as quebras (patrimoniais; não patrimoniais) que mais tarde se concretizam (e até desenvolvem). Como consta do alegado na petição inicial, foi na playa América, em Nigran, na Espanha, que a apelante, ao participar na actividade marítimo-turística, foi atingida no olho esquerdo, com sangramento no nariz e perturbações na visão (por motivo do acto de ter sido projectada e cair desamparada); ainda nesse país tendo sido assistida acerca dessas (danosas) afectações. Foi, portanto, aí, em Espanha, e para o efeito, o local da ocorrência do seu dano. 4. O direito material aplicável – o código português ou o código espanhol? A sentença retira a consequência, que é inevitável – aplica-se a lei espanhola. E obviamente que bem. A hipótese plurilocalizada – já que é evidente que a apelante, residente na cidade de Espinho, em Portugal, após o seu regresso, teve de suportar a consolidação da lesão física que a atingiu (na playa América, em Espanha) – é, uma vez encontrado o ponto de conexão subsistente como critério, facilmente resolúvel. Tendo ocorrido o dano (com o sentido jurídico atribuído) no país vizinho, é a lei substantiva deste país que deve ser convocada, em todos os seus ângulos, e em matéria de responsabilidade civil aquiliana ou extracontratual. 5. O reconhecimento do direito pela apelada. O assunto fica, em bom rigor, prejudicado, desde que a lei espanhola se aplique. O Código Civil espanhol (aprovado por Real Decreto de 24 de Julho de 1889), no seu artigo 1968º-2.º, estabelece a prescrição no prazo de um ano, a contar do conhecimento do lesado, para as obrigações que decorram de culpa ou negligência. Como antes se indicou, a ocorrência teve lugar em 22.8.2021. Portanto, o prazo de um ano mostrava-se esgotado no dia 22.8.2022. No quadro do código espanhol, valem como situações interruptivas da prescrição a da interposição da acção ou a de qualquer acto de reconhecimento da dívida pelo seu responsável (artigo 1973º do Código Civil espanhol). A interrupção do prazo só pode obviamente acontecer quando ele ainda corra. Se o curso já se finou, se o prazo se completou, já se não concebe o seu reinício. O reconhecimento do direito, pela apelada, que a apelante começa por indicar para 27.2.2023 (na contestação), e que, agora (no recurso), vem redireccionar para 11.10.2023, bem como, que, no documento junto (às alegações), consta com data inicial de 26.12.2022, é, por isso, e, em qualquer dos casos, inconsequente. Mesmo reconhecida virtualidade interruptiva ao acto, tendo em conta qualquer uma das várias datas em causa, não se lhe permite detectar a eficácia jurídica desejada. 6. A prescrição do direito da apelante. A acção foi interposta pela apelante no dia 28.3.2024. O curso do prazo de um ano, fixado no artigo 1968º-2.º da lei substantiva civil espanhola, esgotara-se no dia 22.8.2022. O direito mostrava-se prescrito à data da propositura da acção. A prescrição tem por efeito o enfraquecimento do direito. Completado o prazo, e invocada a excepção de direito material, o vínculo que o atinja perde a sua dimensão de exigibilidade, designadamente a de via judicial. A consequência é a absolvição do pedido, como bem se decidiu por sentença. O julgamento de mérito não podia ser outro; e foi, portanto, oportuno. Improcedendo, no seu todo, as conclusões do recurso deduzido. III – Decisão Em face do exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em: 1.º; julgar inconsequente a junção de documento, pela apelante, às alegações; 2.º; julgar improcedente a apelação interposta e, por consequência, confirmar na íntegra o saneador-sentença proferido pelo tribunal a quo. As custas devidas pelo recurso são encargo integral da apelante (a autora da acção), que nele tem um total decaimento (artigo 607º, nº 6, do Cód. Proc. Civil). Lisboa, 18 de Novembro de 2025 Luís Filipe Brites Lameiras Alexandra de Castro Rocha Edgar Taborda Lopes |