Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2549/22.5T8CSC.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CONDOMÍNIO
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA
SEGURADORA
DEVER DE VIGILÂNCIA
CULPA DO LESADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: Sumário:
I - O Condomínio, enquanto conjunto de condóminos, tem todo o interesse em provocar a intervenção acessória das seguradoras da responsabilidade civil dos condóminos para acautelar o direito de regresso deles contra as seguradoras pelo prejuízo que lhes cause a perda da demanda.
II - A existência de um patamar privado com acesso público com um desnível de 50 a 60 cm de altura relativamente ao piso público é um perigo para qualquer pessoa que esteja nesse patamar e como tal tinha que ter uma protecção/ /guarda nas partes que dessem para o piso público com pelo menos 85 cm de altura a contar do piso do patamar.
III – O Condomínio que nada fez para prevenir a concretização desse perigo para terceiros, como lhe impunha o dever geral de prevenção de perigos inerente ao dever de vigiar a sua coisa é responsável pelos danos derivados da queda desde o patamar pela autora (arts. 483, 486 e 493/1 do CC).
IV – A culpa da lesada foi de 50%, pelo que a indemnização deve ser reduzida nessa medida (art. 570/1 do CC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

MS intentou uma acção comum contra o Condomínio do prédio sito na Rua J, pedindo a condenação deste a pagar-lhe 15.413,54€
Alegou para tanto, em síntese, que no dia 02/08/2019, estava a ver uma montra nas traseiras do edifício do Condomínio com o seu marido, em cima do passeio único que dá acesso a esta montra, com uma altura de 56 cm do chão, o qual não é muito largo e não tem qualquer protecção, quando, ao virar-se para sair do local, caiu para o chão; o Condomínio, ao não construir uma vedação ou sinalizar de forma visível a altura e o limite daquele passeio, não autuou de forma a evitar lesões em outrem, não actuando com a diligência própria de um pai de família, constituindo tal conduta uma omissão ilícita geradora de responsabilidade civil, a qual é geradora da obrigação de indemnizar; em consequência dessa queda, sofreu danos, patrimoniais e não patrimoniais, que pretende ver indemnizados com os valores pedidos, sendo de 10.000€ para os não patrimoniais (onde incluiu o dano biológico).
O Condomínio contestou, impugnando: a queda não ocorreu como o descrito, mas deveu-se à conduta da autora, que ao invés de utilizar as várias escadas existentes e que conhecia para aceder à rua, ao invés, optou por “saltar” o patamar mais alto, tendo sido a sua conduta negligente e não cautelosa face às limitações próprias da idade, que lhe determinou a queda e as lesões sofridas; o prédio está devidamente licenciado do ponto de vista urbanístico, não sendo invocada a violação de qualquer norma urbanística sobre a altura de um patamar, que, consistindo na violação de um interesse alheio, possa justificar a verificação por omissão da responsabilidade por facto ilícito, e nessa medida determinar a obrigação de indemnizar; impugna também o nexo de causalidade com os danos invocados e os danos; conclui pela sua absolvição do pedido.
O Condomínio pretendeu provocar a intervenção acessória das seguradoras dos condóminos (invoca o art. 322/1 do CPC), mas tal foi-lhe liminarmente indeferido, com o fundamento de que o réu era o condomínio, representado pelo seu administrador e por isso os condóminos não eram parte na acção, pelo que não cumpria estar a citar as referidas companhias de seguros, ao abrigo de contratos que aqueles tenham celebrado a título individual. O Condomínio recorreu do indeferimento, mas o Tribunal da Relação de Lisboa não admitiu o recurso por a decisão ser irrecorrível (art. 322/2 do CPC).
Realizada a audiência final, foi proferida sentença condenando o Condomínio a pagar à autora 12.330,68€ (80% do pedido), absolvendo-o do remanescente do valor do pedido.
O Condomínio recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por outra que o absolva – impugnando parte da decisão da matéria de facto e a condenação no pedido.
A autora contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
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Questões a decidir: se a matéria de facto deve ser alternada e o Condomínio ser absolvido do pedido ou pelo menos se deve ser condenado em percentagem inferior.
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Foram dados como provados os seguintes factos, para já apenas com referência ao acidente [o facto 4i foi aditado em consequência da decisão da impugnação da matéria de facto]:
1\ No dia 02/08/2019, pelas 16h, a autora, de 73 anos de idade estava a ver uma montra de uma loja nas traseiras do prédio do condomínio, em cima do patamar, único que dá acesso a essa montra, com o seu marido de 94 anos.
2\ O prédio em causa encontra-se ladeado a sul por acessos com duas e três escadas.
3\ O patamar que dá acesso à montra lateral da loja em causa tem a largura de 70 cm a 1m e tem uma altura de 50 a 60 cm em relação à via pública, não dispondo de qualquer vedação ou protecção contra quedas.
4\ Depois de ver a montra da autora e quando se ia a virar para sair daquele local, a autora caiu do referido patamar para a via pública.
4i\ A autora já se tinha deslocado mais vezes ao local dos factos, anteriormente, para visualizar aquela montra, e sabia que o patamar em causa não tinha vedação/grade/corrimão/barras de apoio.
5\ A data do acidente, a autora padecia de glaucoma, tendo falta de acuidade visual.
6\ Após a queda, a autora não se conseguiu levantar, carecendo de receber assistência hospitalar no Hospital de C.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
Decorre dos artigos 639 e 640 do CPC que os recorrente que querem impugnar a decisão da matéria de facto têm obrigatoriamente de especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
A primeira especificação tem de constar das conclusões do recurso e as outras têm de constar, pelo menos, do corpo das alegações.
O Condomínio, sem qualquer sistematização, refere, nas conclusões de recurso, uma série de pontos de facto que no seu entender estão provados e que não constam como tal nos factos dados como provados pela sentença e, no corpo das alegações, em relação a alguns deles, indica os concretos meios de prova.
Vão-se aproveitar todos os pontos de facto que constam das conclusões como factos que o Condomínio entende como provados, em relação aos quais no corpo das alegações indica meios de prova concretos, ficando rejeitado tudo o mais.
Note-se antecipadamente que a autora não disse nada quanto aos elementos de prova que foram alegados em concreto pelo Condomínio.
Diz o Condomínio:
8/ O patamar em questão é parte integrante do prédio desde a sua construção.
9/ A propriedade horizontal foi constituída em 24/06/1968 conforme documento 4 junto com a contestação.
10/ Isto significa que, pelo menos, desde 24/06/1968 que o patamar em questão se encontra na lateral do prédio, conforme resulta do depoimento das testemunhas L, J e O.
Só em relação a 9 é que consta a indicação de um concreto meio de prova, que é o doc.4 da contestação. Já a indicação do depoimento das testemunhas é inócua, porque não indica com exactidão as passagens da gravação dos respectivos depoimentos em que se funda o seu recurso (art. 640/2-a do CPC).
O doc. 4 é uma fotocópia não certificada de uma descrição predial da qual apenas se retira, no que a estes factos importa, que o prédio existe desde a data referida, não tendo, como é óbvio, qualquer referência ao patamar.
Assim, apenas se poderia aditar que a propriedade horizontal foi constituída em 24/06/1968, como facto instrumental. Mas este facto, só por si, não tem relevo. Tê-lo-ia se ficasse provado o que o Condomínio diz de seguida, em 11, mas, adiante-se, não o fez, como se vai ver de seguida. Pelo que não se adita o facto.
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Diz o Condomínio:
11/ Resulta ainda do depoimento das referidas testemunhas, residentes/proprietários do prédio do Condomínio há largos anos, nunca ter existido naquele patamar, nem nos patamares com escadas, qualquer queda/acidente.
Não é indicada qualquer passagem de qualquer depoimento, pelo que é irrelevante, isto, e tudo o mais que se segue, que era dependente disto.
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Diz o Condomínio:
20/ A autora afirmou que já se tinha deslocado ao local dos factos, anteriormente, para visualizar aquela montra, conforme minuto 13:20 a 14:30 das declarações de parte.
21/ A autora conhecia o local.
[…]
29/ Quando questionada se era a primeira vez que se deslocava àquela loja, a autora hesitantemente respondeu que “não (…) já lá tenho ido mais vezes” (minuto 13:20 a 13:30)
30/ Refere ainda a autora no seu depoimento que os prédios vizinhos, “um bocadinho mais à frente, do outro lado, já têm gradeamento” (minuto 6:38 a 6:59).
31/ É forçoso concluir que a autora conhece bem a área onde se encontra o prédio do Condomínio e que sabia que o mesmo não tinha vedação/grade/corrimão/barras de apoio.
Ouvidas as passagens das declarações de parte, a autora diz de facto o que o Condomínio lhe aponta e disso pode-se concluir com o Condomínio faz.
Assim, como factos instrumentais, desfavoráveis à autora, deve ser aditado que a autora já se tinha deslocado mais vezes ao local dos factos, anteriormente, para visualizar aquela montra, e sabia que o patamar em causa não tinha vedação/grade/corrimão/barras de apoio.
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Diz o Condomínio:
22/ À data dos factos, a autora encontrava-se em tratamentos oncológicos, mais concretamente, radioterapia, facto que o tribunal a quo deu, mal, como não relevante para a decisão. “Foi também mencionado pela autora em declarações de parte que à data dos factos, estaria em tratamento de radioterapia no IPO, o que também foi confirmado pelo filho, porém, uma vez que tal condição não interferia na marcha ou locomoção, não se nos afigurou relevante para a decisão da matéria de facto e logo não foi aditado”, cf. motivação da fundamentação da sentença, página 6.
23/ É de conhecimento geral que, os pacientes durante os tratamentos oncológicos, estão mais vulneráveis, debilitados e em constante fadiga/fraqueza.
24/ É inevitável e inegável que os tratamentos oncológicos provocam nos pacientes efeitos secundários nefastos, especialmente fraqueza, que irremediavelmente afecta não só a marcha, como também a percepção da realidade do paciente.
25/ O facto de estar a fazer tratamentos de radioterapia faz com que, a autora, tenha de ter um maior cuidado no seu dia-a-dia, a todos os níveis.
26/ Andou muito mal o tribunal a quo ao desconsiderar e não aditar este facto como relevante para a decisão da matéria de facto.
O tribunal recorrido aceita que o facto, referido em 22, está provado, e indica o meio de prova de tal, mas considera-o irrelevante. O Condomínio considera-o relevante porque quer retirar dele outros factos através das regras da experiência comum das coisas.
Mas, ao contrário do que é pressuposto pelo Condomínio, não se pode afirmar alguma coisa, necessariamente certa, em termos gerais, sobre as capacidades físicas de alguém com 74 anos de idade que esteja a ser sujeito a tratamentos de radioterapia no IPO, porque (i) aquela idade não traduz, por si só, o estado funcional ou físico de uma pessoa: existem pessoas de 74 anos com excelente condição física e outras com limitações significativas, independentemente de tratamentos oncológicos, e não se sabe em que categoria caberia a autora; (ii) o impacto da radioterapia depende muito da região tratada e do volume irradiado, que nos autos não se sabe quais sejam; (iii) as radioterapias podem ir de alguns dias a várias semanas, com doses distintas, o que influencia o grau de fadiga e de outros efeitos secundários, e no caso não se sabe a duração e as doses aplicadas; (iv) as condições de saúde pré-existentes podem alterar significativamente a capacidade física e não se sabe quais eram; (v) a radioterapia pode causar fadiga e fraqueza, mas a intensidade desses sintomas varia muito entre indivíduos, e não se sabe o que é que se passou no caso. Ou seja, se se pode dizer, em termos gerais, que é comum haver alguma fadiga ou diminuição temporária da capacidade física, o grau e a evolução dependem de muitos factores específicos e no caso não se sabe nada sobre estes.
Pelo que, o facto em causa é, realmente, irrelevante, e não se adita.
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Diz o Condomínio:
32/ Conforme resulta da prova junta nos autos, mais concretamente, o doc.2 junto com a contestação, existe um vaso de grandes proporções que bloqueia parcialmente o acesso à plataforma.
33/ Mesmo com uma passagem mais reduzida para a montra, a autora decidiu, conscientemente, seguir em frente e ir para o patamar com o seu marido, que à data dos factos tinha 91 anos.
Para o facto indicado em 32, o Condomínio indica um meio de prova. Desse meio de prova consta que a captura da fotografia é de Agosto de 2022, três anos depois dos factos. Trata-se de uma fotografia do google street view. Com a ferramenta “ver mais datas” constata-se que neste momento, em 08/11/2025, existem mais 4 fotografias, num total de 5. Uma de 01/2010, sem vaso. Outra, de Out2019, com vaso. Outra de Nov2020 com vaso. Em suma, a fotografia não prova que em Agosto de 2019 existisse o vaso. Pode lá ter sido colocado em Out2019 depois dos factos destes autos. Para o que consta de 33, o Condomínio não indica qualquer suporte probatório. Assim, não se aditam estes factos.
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Em suma, da impugnação da decisão de facto resulta o aditamento apenas do facto (4i\): A autora já se tinha deslocado mais vezes ao local dos factos, anteriormente, para visualizar aquela montra, e sabia que o patamar em causa não tinha vedação/grade/corrimão/barras de apoio.
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Do recurso sobre matéria de direito
A sentença tem a seguinte fundamentação nesta parte relativa à responsabilidade do Condomínio:
A causa de pedir da autora assenta na omissão de colocação de uma vedação num patamar ou de um aviso de sinalização da altura do mesmo, que permitissem dotar o patamar de segurança ou avisar do perigo para a sua utilização.
O art. 483 do Código Civil dispõe que “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”
A previsão legal abrande a violação de direitos subjectivos, aqui se incluindo os direitos sobre bens jurídicos pessoais, como a vida, o corpo, a saúde e outros direitos absolutos, bem como a violação de normas de protecção.
No dizer de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, 16.ª ed., Almedina, pág. 290, estas normas consistem em normas que embora não se possa dizer que atribuem direitos subjectivos, protegem simultaneamente interesses particulares, exigindo-se assim, no dizer do mesmo autor, três pressupostos para o preenchimento da responsabilidade civil: a) a não adopção de um comportamento, definido pela norma; b) O fim da norma seja dirigido à tutela de interesses particulares; c) Exista a verificação de um dano no círculo de interesses tutelado pela normal;
O art. 486 do CC dispõe por sua vez que “As simples omissões dão lugar à obrigação de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou de negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido.”
No dizer de Rui Ataíde, Direito das obrigações, vol. I, Gestlegal, 2022, pág. 319, “a referência do art. 486 aos deveres legais de agir deve ser compreendida segundo os critérios de imputação contemporâneos, em que avultam os deveres no tráfego”, os quais devem considerar-se impostos, ao abrigo da obrigação de controle de “fontes de perigo”, e que contribuem para o crescente alargamento da responsabilidade civil por omissão, ao nível do pressuposto da ilicitude.
Ainda segundo este autor, “a função dogmática fundamental assegurada pelos deveres no tráfego consiste em assegurar a operacionalização da cláusula geral, vigente em Direito Civil, que proíbe a causação de danos negligentes”, devendo a decisão sobre a existência de um dever no tráfego depender da apreciação cumulativa de dois deveres de cuidado, o “cuidado externo”, que assenta na gravidade do perigo e do grau de probabilidade de verificação da lesão danosa, e o “cuidado interno”, que assenta no grau de exigência imposto ao obrigado no sentido de tomada de medidas aptas a evitar o potencial de verificação do dano, o que deverá ser apreciado objectivamente.
No dizer do ac. do STJ de 29/11/2016, proc. 820/07.5TBMCN.P1.S1, “a obrigação legal de agir pode resultar da lei, como nos casos previstos nos art. 492 e 493 do CC, ou de contrato, como dever de cuidado e de prevenção do perigo: a relevância jurídica de condutas omissivas está ligada ao “dever genérico de prevenção do perigo”.
No mesmo sentido, afirmando a existência do referido dever, o ac. do STJ de 24/10/2019, proc. 128/11.1TBMMN.E1.S1, “O princípio geral dos deveres de prevenção de perigo, deveres no tráfego ou deveres de segurança no tráfego determina que quem cria ou controla uma situação de perigo tem de tomar as medidas necessárias, de acordo com as circunstâncias, para a protecção da pessoa e da propriedade de terceiros.”
Deste modo, no caso vertente, as normas convocáveis serão quer a norma geral do art. 483 e 486 do CC, quer a norma especial do art. 493/1 do CC, que prevê a vigilância sobre coisas.
Começando pela norma especial, o art. 493 do CC, dispõe que: “Que quem tiver em seu poder coisa imóvel com dever de a vigiar, responde pelos danos que a coisa causar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.”
O presente preceito consagra uma inversão do ónus da prova, ou seja, uma presunção de culpa, por parte de quem tem em seu poder a coisa, com a obrigação de a vigiar, seja ou não o proprietário da mesma.
Nos casos da vigilância sobre coisas, previstos no art. 493/1 do CC, no dizer de Vaz Serra, Responsabilidade pelos danos causados por coisas ou actividades, BMJ, 85, 1959, pág. 368, a presunção de culpa não se baseia na própria coisa, mas na conduta do homem em relação a ela, com vista a evitar um dano que a coisa não teria causado sem um comportamento indevido do seu guarda.
O mesmo é salientado por Rui Ataíde, Responsabilidade Civil por violação dos deveres no tráfego, Almedina, Teses, 2019, pág.369, quando afirma que não é o perigo da coisa em si considerada, que até pode ser inofensiva, pois o que fundamenta a regra especial de responsabilidade, é “o dever de controlo correspectivo do poder de determinação sobre as coisas que ocupam um certo campo físico e especialmente delimitado.”
No caso vertente, atento os factos 2 e 3 verifica-se que o prédio propriedade do condomínio encontra-se ladeado a sul por acessos com duas e três escadas, e o patamar que dá acesso à montra lateral da loja em causa tem a largura de 70 cm a 1m e tem uma altura de 50 a 60 cm em relação à via pública, não dispondo de qualquer vedação ou protecção contra quedas.
Ora, atentas as características do patamar, verifica-se numa perspectiva de dever de cuidado externo que a sua utilização não é isenta de riscos de queda sendo que qualquer queda para a via pública, face à altura do mesmo é apto a causar danos, sendo nesta medida irrelevante estar a referida construção ou não de acordo com o regime geral de edificações urbanas, na medida em que o dever de cuidado deve ser observado em relação a qualquer construção, esteja ou não regularizada do ponto de vista urbanístico, pois as normas urbanísticas não tutelam interesses particulares.
Deste modo, impunha-se ao Condomínio no controle de riscos decorrentes da utilização do patamar, um dever de cuidado interno de não só alertar, eventualmente com um aviso, da existência de perigo de queda, que avisasse os utilizadores do risco a que se poderiam submeter, como também de colocação de um corrimão que pudesse obstar a uma queda provocada por um eventual desequilíbrio do utilizador.
Logo, ao não o ter feito, ao não ter cumprido quer o dever de cuidado interno, quer o dever de cuidado externo, o Condomínio praticou uma omissão ilícita, violando o dever de vigilância a que estava adstrito enquanto e que lhe é censurável a título de culpa, por negligência, não logrando elidir a presunção de culpa que sobre o mesmo recaía (art. 493/1 do CC), sendo que ainda que não existisse essa presunção, também se mostraria demonstrado a omissão por violação do dever de cuidado interno e externo próprio dos deveres do tráfego (artigos 483 e 486 CC).
Com efeito, e voltando ao caso concreto, no dizer de Rui Ataíde, Responsabilidade…, citada, páginas 368, 369, 373, “os deveres de cuidado legalmente impostos ao vigilante tanto se propõem prevenir factores intrínsecos como extrínsecos”, entre os quais se incluem o risco de queda dos utilizadores.
No dizer do sobredito autor, tem sido bastante ampla “a aplicação do regime especial de responsabilidade dos vigilantes a coisas em si inofensivas, como acidentes com balizas mal fixadas em campos de futebol, quedas de pessoas que escorregam em pavimentos molhados ou pegajosos de bancos, supermercados ou outras superfícies comerciais, tombos de árvores e ramos, quedas em escadas desgastadas, não iluminadas ou com degraus desnivelados, utentes que escorregam no piso molhado dos hospitais, tropeções em passeios em mau estado de manutenção, neve que se acumula nos telhados, folhas que vão obstruindo os esgotos, clientes que escorregam em chuveiros de hotel sem tapetes de borracha ou inundações derivadas de a mangueira de uma máquina de lavar não estar ligada ao cano de esgoto.”
O Condomínio diz o seguinte contra isto [transcrevem-se as conclusões das alegações, já expurgadas de algumas referências a factos não provados e a ilações de factos não provados, com simplificações e evitando algumas das repetições]:
C\ O prédio do Condomínio encontra-se devidamente licenciado, cumprindo todas as normas urbanísticas e civilísticas necessárias para a construção, utilização e constituição em propriedade horizontal.
D\ Não existe qualquer invocação ou comprovação de violação de qualquer norma ou instrumento de gestão territorial que obrigue à colocação de sinalização ou vedação no caso, pelo que não existe violação de qualquer norma geradora de responsabilidade para o Condomínio.
J\ Considerando que o patamar não representa uma fonte de perigo, o Condomínio nunca colocou qualquer sinalização ou vedação/grade/ /corrimão/barras de apoio no patamar.
K\ Se o patamar em questão possuísse escadas, tal como os outros patamares circundantes ao prédio do Condomínio, o resultado dos acontecimentos de 02/08/2019 teriam sido exactamente os mesmos, considerando que a autora não iria conseguir recuperar do desequilíbrio em que se encontrava naquele momento.
L\ A queda da autora poderia ter ocorrido em qualquer área circundante do prédio com escadas e o resultado seria exactamente o mesmo.
M\ Não era exigível ao Condomínio a tomada de qualquer cuidado de tráfego naquela zona, em face da ausência de normas violadas.
A autora adere, no essencial, à argumentação do tribunal recorrido, entre o mais dizendo que:
6\ A autora teve uma queda, naquele patamar, e não noutro sítio do prédio (área circundante) e este não tinha nada que a pudesse proteger, a cair daquela altura, a ela autora ou qualquer outra pessoa que ali estivesse, na mesma situação.
9\ Ao não contruir uma vedação ou sinalizar de forma a altura e o limite daquele passeio, o Condomínio não actuou de forma a evitar lesões em outrem, não actuando com a diligencia de própria de um “bom pai de família”, constituindo uma omissão ilícita geradora de responsabilidade civil, a qual é geradora da obrigação de indemnizar.
Apreciação:
Visto que o Condomínio não põe em causa os valores atribuídos aos danos não patrimoniais (10.000€) e patrimoniais (5.413,54€) não se vai discutir esta matéria e, por isso, não interessam os factos relativos a esses danos que, por isso não se transcrevem, tal como não se transcreve a parte da fundamentação de direito respectiva.
Antes de continuar não se deixe de dizer, dada a importância da questão para este tipo de acções, que não se concorda com o indeferimento da provocação da intervenção acessória das seguradoras dos condóminos. É que estes, ao contrário do que se diz no despacho respectivo, são os réus desta acção, debaixo da capa do Condomínio [assim, por exemplo, o ac. do TRL de 20/06/2013, proc. 6942/04.7TJLSB-B.L1-2: (…) II\ “A personalidade judiciária atribuída ao condomínio é meramente formal e, no fundo, os condóminos são partes na causa, debaixo da ‘capa’ do condomínio.” III\ “A sentença proferida contra um condomínio vincula os condóminos, podendo ser executada contra estes.” IV\ “As dívidas são dos condóminos e não do condomínio.” – as aspas, que constam do sumário, remetem para a doutrina respectiva e aquilo que é dito tem sido aceite na jurisprudência, com efeitos práticos, como se pode ver, apenas por exemplo entre muitos outros, em três acórdãos do TRG, de 20/03/2025, 1776/18.4T8CHV-A.G1, de 29/09/2022, 1284/14.2T8VNF-A.G1, e de 11/03/2021, 876/15.7T8BRG-1.G1, e num ac. do TRL de 17/09/2015, proc. 218/15.6TVLSB-B.L1-2]. E como os seguros que os condóminos celebraram cobre a respectiva responsabilidade civil e é esta que está em causa, tinha todo o sentido que o Condomínio, ou seja, o conjunto dos condóminos, chamasse as seguradoras a intervir na acção como auxiliar na defesa, para que os condóminos pudessem acautelar, desde já, o direito de regresso contra elas para serem indemnizados do prejuízo que lhe cause a perda da demanda.
Posto isto,
A existência de um patamar privado com acesso público com um desnível de 50 a 60 cm de altura relativamente ao piso público é um perigo para qualquer pessoa que esteja nesse patamar e como tal tinha que ter uma protecção/guarda nas partes que dessem para o piso público com pelos menos 85 cm de altura a contar do piso do patamar.
É o que se pode extrair do conjunto de normas que se segue, entre muitas outras no mesmo sentido:
No DL 163/2006, de 08/08, que tem por objecto a definição das condições de acessibilidade a satisfazer no projecto e na construção de espaços públicos, equipamentos colectivos e edifícios públicos e habitacionais (art. 1 do DL), prevê-se, no anexo, capítulo 1, relativo à via pública, secção 1.3, relativamente a escadarias na via pública, em 1.3.1(3), que se vencerem desníveis superiores a 0,4 m [40 cm] devem ter corrimãos de ambos os lados ou um duplo corrimão central. E, no capítulo 2, relativo a edifícios e estabelecimentos em geral, secção 2.4 relativo a escadas, no ponto 2.4.3, que os degraus das escadas devem ter (2) uma altura (espelho) não superior a 0,18 m [18 cm] e, no ponto 2.4.8, que as escadas que vencerem desníveis superiores a 0,4 m devem possuir corrimãos de ambos os lados, esclarecendo-se em 2.4.9(1) que a altura dos corrimãos, medida verticalmente entre o focinho dos degraus e o bordo superior do elemento preensível, deve estar compreendida entre 0,85 m e 0,9 m.
Na Portaria 987/93, relativa às prescrições mínimas de segurança e de saúde nos locais de trabalho, prevê-se, no seu ponto 4, n.º 2, que quando as vias normais ou de emergência apresentarem risco de queda em altura, devem existir resguardos laterais com a altura mínima de 0,9 m.
Na Portaria n.º 53/71, de 03/02, Regulamento geral de segurança e higiene do trabalho nos estabelecimentos industriais, no CAPÍTULO II - Instalação dos estabelecimentos industriais, SECÇÃO I - Edifícios e outras construções, no art. 13-C/5 (Plataformas de trabalho) dispõe-se que todos os lados das plataformas fixas por onde haja perigo de queda livre devem ser protegidos por um guarda-corpos colocado à altura de 0,90 m; tal como também se diz, no art. 10/6 que nas vias de passagem e saídas em que haja perigo de queda livre devem existir resguardos laterais com a altura de 0,90m; no art. 12/2, que as diferenças de nível entre pavimentos e as aberturas nas paredes que apresentem perigo de queda devem ser resguardadas com guarda-corpos resistentes.
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O Condomínio não tem razão quando diz, na conclusão C, que o seu edifício se encontra devidamente licenciado, cumprindo todas as normas urbanísticas e civilísticas necessárias para a construção, utilização e constituição em propriedade horizontal, pois que apenas se admite, como normal, que, estando constituído em propriedade horizontal, se encontre devidamente licenciado, mas já não, necessariamente, que o edifício, ao ser construído, cumprisse todas as normas, nem que assim se tenha mantido depois de construído.
De qualquer modo, o que interessa é que a situação é fonte de perigo para terceiros, o que está pressuposto pelas normas citadas, e o Condomínio nada fez para prevenir a concretização desse perigo, como lhe impunha o dever geral de prevenção de perigos inerente ao dever de vigiar a sua coisa, de que falam os acórdãos e a doutrina citados pela sentença recorrida.
As outras conclusões do Condomínio partem de pressupostos que não estão provados: nada consta quanto ao alegado desequilíbrio e nada permite a conclusão de que se existisse uma protecção em todos os lados do patamar que dão directamente para o piso público a autora caísse à mesma, nem a conclusão de que, com escadas nesses lados, o resultado fosse o mesmo, desde logo porque, dada a altura do patamar, essas escadas teriam corrimãos e teriam degraus, pelo que a queda seria mais improvável e, a ocorrer, ocorreria de outra forma e com outras consequências.
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Quanto à culpa do lesado (art. 570 do CC)
Diz a sentença, nesta parte
Porém, o Condomínio alegou que foi a falta de cuidado da autora, ao decidir ter descido pelo patamar ao invés de ter descido pelas escadas, que foi a causa de produção do dano, existindo aqui culpa do lesado o que excluiria o dever de indemnizar, porém, tal não resultou provado.
Contudo, resultou instrumentalmente provado em 5 que a autora, à data do acidente tinha um glaucoma, fragilidade que produz falta de acuidade visual, o que constitui um factor que, contribuiu para a queda, pois caso tivesse uma visão normal ter-se-ia apercebido da exiguidade do patamar.
Logo a conduta da autora ao subir ao patamar, sofrendo de falta de acuidade visual, não é isenta de reparos, o que constituiu também um factor que influenciou o processo causal, embora não possamos deixar de considerar que a falta de aviso foi condicionante da conduta distraída da autora, a qual podia e devia agido de outro modo, pelo que também agiu culposamente.
Neste sentido e num caso semelhante, o ac. do STJ de 22/05/2018, proc. 1646/11.7TBTNV.E1.S1,“considerando a importância da sinalização na prevenção das quedas e do papel da mesma enquanto persuasora na adopção de comportamentos adequados (meio eficaz de prevenção de quedas), há que considerar a omissão do dever de alerta foi condicionante da conduta distraída do utilizador ao abordar o tapete nas condições que o fez (sem se agarrar ao corrimão com as duas mãos ocupadas com os sacos de compras), como tal, porque prévia à actuação do autor/utilizador, para efeito do art. 570 do CC, há que atribuir aquela a proporção de 60% na produção do acidente.”
Nessa medida, afigura-se ter aqui existido uma concausalidade na produção do dano, o que nos conduz à aplicação do art. 570/1 do CC, o qual dispõe que: “Quando um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída.”
Atento a forma como veio descrito o processo causal vertido nos factos 1, 4 e 5 e a forma residual com que a conduta da autora contribuiu para o acidente, afigura-se-nos que as respectivas culpas deverão ser repartidas na proporção de 80% para o Condomínio e 20% para a autora.
O Condomínio diz o seguinte contra isto:
R\ A autora conhecia o local dos factos e já se tinha deslocado várias vezes para visualizar aquela montra.
X\ A autora sofria, à data dos factos, de glaucoma ocular, doença esta que afectava a sua visão (cf. facto 5).
Y\Z\ A autora sabia que tinha parca visão em razão do glaucoma ocular e sabia a sua idade e mesmo assim decidiu subir a um patamar que bem conhecia e sabia que não tinha vedação/grade/corrimão/barras de apoio e não tratou de tomar os devidos cuidados para evitar uma queda.
AA\ A actuação negligente da autora fê-la incorrer em lesões.
BB\ Lesões essas que não teriam ocorrido se a autora tivesse tomado os cuidados que lhe eram exigíveis.
CC\ Ou seja, a culpa dos danos é da lesada e, por isso, inexiste obrigação de indemnização, nos termos do artigo 570/1 do CC.
FF\GG\ A autora não contribuiu de forma “residual” para a queda, mas de forma decisiva.
JJ\ A autora, com a sua conduta negligente, é responsável por 100% dos acontecimentos, inexistindo direito a indemnização, à luz do disposto no artigo 570/1 do CC.
KK\ Ou pelo menos a culpa tem que ser imputável à autora em proporção bastante superior a 20%, devendo a indemnização a pagar pelo Condomínio ser reduzida, por aplicação do mesmo artigo 570/1 do CC.
A autora contrapõe (para além da adesão à fundamentação do tribunal):
23\ Não é verdade que a autora tivesse uma conduta negligente, ela é e sempre foi muito cuidadosa quer consigo quer com o marido.
24\ O que originou aquela queda foi a negligência do Condomínio que não vigiou e cuidou de proteger terceiros, num imóvel que é sua pertença.
25\ Quanto à proporção da responsabilidade na produção do evento apesar de se entender que deveria ser atribuída 100% de responsabilidade ao Condomínio, aceita-se a posição da sentença (falta de acuidade visual) mas nos exactos termos da sentença, se não em proporção inferior.
Apreciação:
Face ao aditamento do facto 4i\ por força da decisão da impugnação da matéria de facto, a afirmação da sentença, de que caso a autora tivesse uma visão normal ter-se-ia apercebido da exiguidade do patamar, está agora errada, porque a autora já sabia da exiguidade do patamar, porque já lá tinha ido outras vezes. Por isto mesmo, também não está certa a afirmação da sentença de que a falta de aviso foi condicionante da conduta distraída da autora, para além de que dos factos provados não consta nada quanto ao aviso.
E, em consequência, a sentença não ponderou, na apreciação da culpa da lesada, o facto de que a autora já se tinha deslocado mais vezes ao local dos factos, anteriormente, para visualizar aquela montra, e sabia que o patamar em causa não tinha vedação/grade/corrimão/barras de apoio, estando pois consciente – tal como o Condomínio – do perigo de tal patamar, para mais para alguém com os problemas de visão da autora.
Por falta de consideração deste factor, quer a sentença quer a autora não têm razão em concluir que a contribuição da culpa da lesada para o dano foi residual, mas também o Condomínio não tem razão em concluir que a culpa foi só da autora, já que o conhecimento da situação era igual para ambos os lados.
Assim sendo, altera-se a percentagem de repartição de culpas, para 50% para cada uma das partes.
Pelo que a indemnização tem de ser reduzida para 7.706,77€, sendo 5.000€ pelos danos não patrimoniais e 2.706,77€ para os patrimoniais.
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Custas do recurso:
O Condomínio não queria ter sido condenado em 12.330,68€. Manteve-se a condenação em 7.706,77€, pelo que o seu decaimento foi de 62,50%.
Custas da acção:
A autora queria a condenação do Condomínio em 15.413,54€ e só obteve a condenação em 7.706,77€, pelo que o seu decaimento foi de 50%.
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Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, diminuindo a indemnização a pagar pelo Condomínio à autora para o valor de 7.706,77€ (5.000€ pelos danos não patrimoniais e 2.706,77€ para os patrimoniais).
Custas do recurso, na vertente de custas de parte (não existem outras), pelo Condomínio em 62,50% e pela autora em 37,50%.
Custas da acção, na vertente de custas de parte (não existem outras), pela autora e pelo Condomínio em partes iguais.

Lisboa, 20/11/2025
Pedro Martins
Teresa Bravo
Susana Maria Mesquita Gonçalves