Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
119/22.7T8CSC.L1-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
CONTRATO MISTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO PRINCIPAL E PROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO SUBORDINADA
Sumário: Sendo celebrado um contrato de arrendamento, coincidente com um contrato promessa de compra e venda do mesmo imóvel, mediante o qual as partes acordaram em descontar todas as rendas pagas no preço final a pagar pelo promitente-comprador, estamos perante um contrato misto, onde o contrato promessa de compra e venda se assume como preponderante e o contrato de arrendamento instrumental àquele, pelo que deve ser aplicável o regime legal do primeiro.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
AA e
BB
interpuseram a presente acção comum, contra
CC,
peticionando:
Nestes termos e nos demais de Direito sempre com o douto suprimento de V. Ex.a, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, em sequência dela, ser a R. condenada a:
1) Reconhecer a caducidade do contrato de arrendamento.
2) Desocupar o locado.
3) Indemnizar os AA. pagando a quantia de 1000 euros de indemnização (2x 500 euros do valor da renda) desde junho de 2021 até entrega efetiva do locado, que se computa nesta data em 7.000 euros.
Alegaram em suma que que são donos e legítimos proprietários da fração autónoma designada pela letra “D”, correspondente ao terceiro piso (primeiro andar, lado direito), com uma garagem no primeiro piso (cave), do prédio urbano destinado a habitação e afeto ao regime de propriedade horizontal, sito na Rua 1, e que em 22.07.2011 assinaram com a Requerida CC, documento particular que denominaram de “Contrato-Promessa de Compra e Venda ”, por intermédio do qual acordaram na compra e venda da supra referida fração pelo prazo de € 185.000,00 euros, sendo € 7.800,00 euros a título de sinal e princípio de pagamento e o remanescente do preço, ou seja, a quantia de € 177.200,00 euros, será paga no ato de assinatura da referida escritura pública, a qual deveria ter lugar no prazo de 12 meses após a assinatura do contrato promessa, por forma a conseguir que a Ré transferisse o dinheiro da compra de Angola para Portugal.
Alegaram também que na mesma data da assinatura do contrato-promessa, em 22.07.2011, assinaram documento particular que denominaram de “Contrato de Arrendamento Urbano Habitacional Com Fins Especiais Transitórios e Prazo Certo” por intermédio do qual deram de arrendamento à Ré, pela renda mensal de € 500,00 euros, que a Ré aceitou, a fração autónoma objeto do contrato-promessa, com início em 01.08.2011 e fim em 30.07.2012, mais convencionando que o mesmo não seria objeto de renovação, seja que título for, sendo a renda paga abatida ao valor final a ser pago no ato da outorga da escritura de compra e venda, sendo na data da assinatura entregue € 1.000,00 euros, a título de pagamento das primeiras duas rendas referentes aos meses de agosto e setembro.
Mais alegaram em que não tendo sido possível à Ré efetuar a escritura no final do prazo convencionado, os Autores assinaram em 01.08.2012 documento particular denominado “Aditamento a contrato de arrendamento urbano habitacional com fms especiais transitórios e prazo certo”, por intermédio do qual acordaram que o contrato de arrendamento anteriormente celebrado terminaria em 30.07.2013, para permitir à Ré a transferência do dinheiro de Angola para Portugal, não sendo o contrato objeto de renovação, seja a que título for, passando ainda a renda mensal a ser de € 650,00 euros, sendo € 150,00 euros abatidos ao valor final a ser pago no ato da escritura de compra e venda.
Alegaram ainda que tendo chegado ao final do prazo de 30.07.2013, sem que a Ré tenha providenciado pela marcação da escritura, os Autores continuaram em conversações com a Ré com vista a que esta pudesse adquirir o imóvel, até que esta informou que não se encontrava em condições de conseguir concluir a compra do imóvel, declarando que apenas aceitaria abandonar o locado contra o pagamento de € 30.000 euros.
Concluíram alegando que face ao decurso do prazo e à não intenção da Ré de celebrar o contrato de compra e venda, os Autores procederam à realização de notificação judicial avulsa, que se efetivou em 25.04.2021, por intermédio do qual solicitaram à Ré que desocupasse o local, o que não sucedeu até à presente data, motivo pelo qual deverá ser declarar a caducidade do contrato de arrendamento, devendo a Ré ser condenada a desocupar o imóvel e proceder ao pagamento das quantias devidas a título de indemnização pela ocupação indevida do imóvel, e que são equivalentes ao valor da renda, desde junho de 2021 e até efetivo e integral pagamento.
A Ré apresentou contestação, onde alegou que o contrato de arrendamento celebrado, uma vez que se destinava à habitação permanente da Ré e não tinha uma finalidade transitória, não poderia ser celebrado por prazo inferior a cinco anos, nos termos da redação do art. 1095.° do Cód.Civil em vigor à data. Nesse sentido, mais alegou que após a celebração do contrato a Ré inscreveu os seus filhos escolas da área e passou a indicar a morada dos autos como sua habitação para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa, passando a pagar os consumos de água e eletricidade.
Mais alegou ainda, mesmo que se entenda que o contrato tenha caducado pelo decurso do prazo em 2013, tendo os Autores continuado a receber a renda até à presente data, numa duração de tempo não inferior a dez anos e seis meses, deve considerar-se que o contrato se renovou em contrato habitacional com prazo certo, assim improcedendo a pretensão dos Autores, motivo pelo qual deverá ser absolvida do pedido.
Os Autores responderam, dando conta que a vontade das partes foi que o contrato de arrendamento vigorasse por prazo transitório, nos termos do art. 1095.°, n.° 3 do CPC, com vista a permitir à Ré o tempo necessário para transferir o dinheiro de Angola, pois o interesse subjacente sempre foi o de permitir a aquisição do imóvel e não o de celebrar um contrato de arrendamento por cinco anos, sendo que no que diz respeito à convolação, a mesma não ocorreu sendo o pagamento da quantia equivalente à renda uma obrigação legal decorrente do art. 1045.° do Cód.Civil, motivo pelo qual a exceção invocada deverá improceder.
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Procedeu-se à elaboração de despacho saneador, com fixação do objeto do litígio e temas da prova e admissão dos meios de prova.
Realizada audiência final, foi proferida sentença, em 25/10/2024 , com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto e decidindo, o Tribunal julga a presente ação parcialmente procedente provada, e em consequência:
A) RECONHECE a caducidade do contrato misto celebrado entre as partes, com efeitos à data de 25.04.2021, mais condenando a Ré a entregar o locado aos Autores, livre de pessoas e bens após o trânsito em julgado da presente sentença; e
B) ABSOLVE a Ré do pedido de condenação na quantia de € 7.000,00 euros, de indemnização por mora na restituição do locado;
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Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1ª) À matéria de facto provada devem ser aditados os pontos:
3-A
O contrato promessa de compra e venda, assinado em 22-07-2011, tinha estipulado o prazo de um ano, para a realização do contrato prometido;
5-A
Na data da celebração do contrato de arrendamento, a ré / arrendatária já estava em Portugal há cerca de 15 anos;
(Conforme alegado pela R. na contestação e depoimento de DD, registado em 119-22.7T8CSC_2024-05-20_10-10-20
(...) a esposa estava em Portugal há 15 anos;
(após 00:03:01)
A situação dela estava regularizada com autorização de residência, não a nacionalidade, que veio depois (...) eu vi a casa antes porque mandaram fotos, pois que estava em Angola, mandaram fotografias (...) a casa estava vazia Adv. - A mobília que estavam a usar é vossa?
Test. - É tudo nosso;
Adv. - E os seus filhos?
Test. - Os meus filhos também estavam cá, nasceram cá. - Todos nasceram cá? - Todos Adv. - Frequentaram a escola na zona?
Test. - Sim, senhor;
Adv. E a Imobiliária sabia disso? 
Test. Sim, sabia (...) a minha esposa foi com as crianças para mudar para lá e a imobiliária acompanhou;
Adv. Todos os meses pagam renda)
Test. - Eu transfiro o dinheiro através de Angola, para a conta da EE e ela faz o pagamento; ou à mãe (...) eu transfiro o dinheiro. Não há nenhuma renda em falta; Depoimento da testemunha - EE, registado em 119- 22.7T8CSC_2024-05-20_10-04-05
Após 00:01:00, referiu:
(...) nasci em Portugal (...) vim para a casa com 15 anos (...) onde me mantenho até hoje;
Adv. - A mobília que lá está é vossa?
Test. - Sim. (...) A factura da electricidade está em nome da minha mãe, mas a da água está em nome da dona da casa;
Adv. - Veio para ali com que idade?
Test. - Para esta casa?
Adv. - Sim.
Test. - Vim com 15 anos.
Adv. - Estudou ali?
Test. - No primeiro ano não consegui vaga, mas no ano seguinte e depois estudei sempre alí.
Adv. - E os seus irmãos?
Test. - O meu irmão mais novo foi a mesma coisa; mas depois conseguiu logo vaga; a do meio só estudou lá 3 anos, ela depois foi logo para Londres.
5-B
A fração que os locadores arrendaram à locatária estava devoluta e sem alguma mobília;
conforme transcrição supra e alegado na contestação em 10 e segts;
5-C
Toda a mobília utilizada pela locatária e seu agregado na fração era e é dela (locatária);
Conforme transcrição supra e alegado na contestação em 10 e sgts;
5-D
Os filhos da locatária frequentaram a escola próxima do locado;
5-E
O contrato de arrendamento teve a vigência estipulado para o dia 01-08-2011, e o términus para o dia 31-07-2013; 
2ª). Em Agosto de 2012, após a renovação dos contratos, ocorreu alteração legislativa que revogou o n° 3 do art° 1095 do CC (Lei 31/2012, de 14 agostos), que deixou de prever os contratos especiais e com fins transitórios;
3ª). Terminado o prazo do contrato de arrendamento, em 31-07-2013, e continuando, como continuou a Ré a residir no locado com o seu agregado, continuando a pagar as rendas (conforme facto provado n° 18), e não sendo por culpa ou impedimento seu que o contrato não foi redigido a escrito, necessariamente que nasceu um contrato habitacional entre os AA e a R.;
4ª). Situação e relação locatícia desde 31-07-2011 (data da vigência do contrato inicial), que se acentuou em 01-08-2012 (data da alteração do contrato de arrendamento), com aumento da renda para 500,00€ mês, e que se consubstanciou até Abril de 2021 (data da NJA);
5ª). Os anos e tempo da relação locatícia até à data da NJA (9 anos e 9 meses), configura 4 vezes mais o prazo legal (2 anos) estipulado pela Lei 13/2019 (que vigorou até 2017) e próximo do dobro imposto pela Lei 43/2017 (5 anos), ultrapassando, largamente, as referências anteriores pela data da entrada da PI em Tribunal (12-01-2022);
6ª). Sendo um dos propósitos da Lei 13/2019 de 12Fevereiro, como decorre do introito da mesma “estabelecer medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade”, necessariamente que a situação da arrendatária, Ré e aqui recorrente, no locado há 13 anos, não pode ser enquadrada no típico ou atípico contrato « com fins especiais e transitórios», sobre os quais está subjacente a curta periodicidade, mas antes, ao regime do contrato a termo, com cumprimento de prazo de oposição para denúncia ou revogação, o que não ocorreu, pois que em 25-04-2021, foi notificada para em 30 desocupar o locado.
7a). Pedido “desocupação do locado”, que estribou [NJA e petito da PI], tem por base a caducidade do contrato de arrendamento celebrado em vigor desde 01-08-2011, alterado em 2012, com aumento da renda para 650,00€, passando 500,00€ a ser alocados «exclusivamente de renda» e 150,00€ para abater ao valor da compra;
8a). Não é de atender que 2 contratos (CPCV e arrendamento habitacional com fins especiais e transitórios), configuram um “contrato misto” na linha do que a douta Sentença considerou, pois que os contratos não têm a mesma periodicidade.
9a). O contrato de compra e venda, atendendo ao clausulado contratual terminaria a 21-07-2013;
10a). O contrato de arrendamento, estaria previsto terminar em 31-07-2013, cuja base legal (n° 3 do art° 1095 do CC), em vigor ao tempo da alteração contratual (01-08-2012), foi revogada passados poucos dias, pela Lei 31/2012, de 14-08, deixando tal norma de existir;
11a). Deixando de haver norma, o contrato não terminou, mas, antes, convolou-se em contrato de arrendamento habitacional, quanto mais que os proprietários (que lhes soube muito bem receber as rendas e valores em tempo de crise, limitações impostas aquando da presença da «TROICA» em Portugal) não alegaram a caducidade ou invocaram a resolução, até à data da NJA (25-04-2021);
12a). Não pode haver contrato misto ou existindo a interligação entre os contratos, a tal terminaria na data em que o primeiro contrato terminar e, no caso terminou. No caso dos autos, e conforme posição dos AA. e Sentença recorrida, o contrato de arrendamento terminou (31-072013), 9 dias depois do CPCV (21-07-2013).
13a). Impor-se que o contrato com fim posterior (31-07-2013) termina em data anterior (21-07-2013), sem motivo justificativo, válido ou sequer apresentado), ou que o contrato com fim anterior (21-07-2013) tem uma extensão (9 dias), para terminar no dia em que o de fim posterior terminaria (31-07-2013), configura a violação do direito à autonomia privada das partes, viola o principio da Segurança Jurídica e Proteção da Confiança dos Cidadãos, da equidade, com implicação no direito fundamental à habitação.
14a). A Ré entende, com o devido respeito e que é muito, que o contrato de arredamento habitacional para fins especiais e transitórios se convolou em contrato habitacional «puro»;
15a). No caso de se entender pela não convolação, em 01-08-2013, necessariamente nasceu um novo vínculo contratual decorrente do pagamento mensal da renda pela inquilina aos senhorios, que as receberam (reconhecidas em 18, dos factos provados), não podendo a falta de forma ser imputada à inquilina;
16a). A Jurisprudência invocada na douta sentença recorrida não tem aplicação ao caso dos presentes autos cujos factos, tempo e base legal, com o devido respeito, abarcam e solicitam interpretação e aplicação própria;
17a). A sentença de que se recorre viola, além de outros, o disposto nos art° 607°/5 do CPC, art°s, 12°, 1080°, 1094°, 1095° do CC (na redação da Lei 6/2006, Lei 31/2012 e 13/2019), do CC, com vista aos art°s 2° e 65° da CRP.
*
Os autores apresentaram recurso subordinado, rematando com as seguintes conclusões:
I. Decidiu o Tribunal "a quo" declarar improcedente o pedido de condenação da Ré na indemnização pela mora na restituição do locado, considerando aplicável, ao caso, o disposto no art.1045.°, n.°1, do CC.
II. Sufraga-se, na sentença, o entendimento de que a indemnização pela mora prevista no n.°2 do art.1045.° do CC, apenas se mostra exigível, nos casos em que o locatário vê judicialmente declarada a resolução ou reconhecida a caducidade, quando este não proceda à entrega do locado após o trânsito em julgado da decisão.
III. Contudo, a indemnização prevista no artigo 1045.°, n.°2, do CC, mostra-se exigível sempre que a omissão na entrega do locado se afigure uma falta voluntária e culposa, censurável, do ponto de vista ético-jurídico (o que, salvo melhor opinião, não acontece apenas a partir do momento em que decorre o trânsito em julgado da sentença que decrete a resolução ou reconheça a caducidade) e que depende, sempre, de uma análise casuística.
IV. In casu, o contrato caducou a 25.04.2021, como resulta reconhecido pela Douta Sentença proferida pelo Tribunal "a quo".
V. A Ré ficou, então, constituída na obrigação de restituir a coisa locada, como resulta da alínea j) do art.1038.° do CC.
VI. Todavia, tendo sido concedido pelos Autores, à ré, um prazo de 30 dias após a notificação judicial avulsa para entrega do locado, estamos em crer que a mesma se constituiu em mora a partir de 25.05.2021, nos termos do art.1045.°, n.°2 e 804.°, n.°2, do CC.
VII. O Tribunal "a quo" deu por provado que a Ré exigiu aos Autores o valor de 30.000€ para abandonar o locado, altura em que estes decidiram procurar advogado e interpelá-la, por via de notificação judicial avulsa (cf. factos elencados na matéria provada sob os n°s15 e 16).
VIII. A Ré sabia que não tinha qualquer título legitimo para permanecer no locado, mas recusou-se a abandoná-lo, sem qualquer causa justificativa legitima.
IX. E se ali permaneceu por tantos anos, foi porque ia alimentando os autores de constantes promessas quanto à celebração da escritura (cf. ponto de facto n.°10 e 11), até assumir, em março de 2021, que não tinha condições de a celebrar (cf. ponto de facto provado sob o n.°12).
X. Do acervo factual, resulta, quanto a nós, evidente, que a não entrega do locado em prazo constitui, in casu, uma omissão voluntária e culposa.
XI. Assim, ao decidir pela absolvição da Ré no pagamento da indemnização pela mora na entrega do locado, o Tribunal "a quo" violou o disposto no n.°2, do artigo 1045.°, bem como no art.804.°, n.°2 - ambos do CC.
XII. Pelo que se impõe a revogação deste segmento decisório e a sua substituição por outro, que declare procedente o pedido de indemnização, aos AA., do dobro do valor da renda desde junho de 2021 até à entrega efetiva do locado.
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A ré respondeu, com as seguintes conclusões:
1) As doutas conclusões (I. a XII.), apresentada pelos AA., cotejadas com o pedido (procedência do pedido), e objecto do Recurso “ Indemnizar os AA., pagando a quantia de 1000 euros de indemnização (2 x 500€ do valor da renda) desde junho de 2021 até entrega efetiva do locado, que se computa nesta data em 7.000.”, em caso de procedência do recurso da Ré, seriam / são incompatíveis nos pedidos e direito aplicável ao caso concreto.
2) O reconhecimento do valor indemnizatório (2x500,00€), relacionado com a não entrega do locado só seria viável de apreciação e julgamento, em recurso independente e não subordinado.
3) Não tendo os AA. Apelado, por recurso independente, na parte em que não obtiveram vencimento, o pedido ora apresentado não pode obter provimento, além do mais, por incompatibilidade dos pedidos, com repercussão em errada aplicação do direito, com violação de Lei, desde logo, entre outros, os artºs. 633º do CPC e artº 1023º e 1045 do CC.
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Os recursos foram admitidos como sendo de apelação, com subida de imediato, nos autos e efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
A impugnação da matéria de facto.
A alegada convolação do contrato de arrendamento.
A aplicação do regime previsto no art. 1045º do Código Civil.
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III. Os factos
Receberam-se da 1ª instância os seguintes factos provados:
1.1. Dos articulados:
1. Mostra-se inscrita em nome de AA e BB, a propriedade da fração autônoma designada pela letra “D”, correspondente ao terceiro piso (primeiro andar, lado direito), com uma garagem no primeiro piso (cave), do prédio urbano destinado a habitação e afeto ao regime de propriedade horizontal, sito na Rua 1, freguesia de São Domingos de Rana, concelho de Cascais, inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia, sob o artigo ..... e descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Cascais, sob o n.° ......., da referida freguesia, tendo o referido edifício licença de utilização sob o n.°779.
2. Em 22.07.2011 por documento particular denominado “contrato promessa de compra e venda”, os autores acordaram com CC, ora Ré, a venda da fração aludida em 1) pelo preço de € 185.000,00 euros, prestando a quantia de € 7.800.00 a título de sinal, sendo o remanescente do preço, isto é, a quantia de € 177.200.00 euros, que poderá ser deduzida de eventuais reforços de sinais, paga no ato da escritura, cuja marcação ficará a cargo da Ré, devendo ser celebrada no prazo máximo de 12 (doze) meses após a assinatura do presente contrato.
3. A Ré alegou, contudo, que o dinheiro para a compra estava em Angola e precisava de um período não inferior a 1 ano para o conseguir ir transferindo para Portugal.
4. Pelo que na mesma data de 22.07.2011, os Autores, como primeiros outorgantes e a Ré, como segunda outorgante, por documento particular que denominaram de “arrendamento urbano habitacional com fins especiais transitórios e prazo certo” acordaram no arrendamento da fração aludida em 1) pelo prazo de um ano, com início em 01.08.2011 e termo em 30.07.2012, não renovável, seja a que título for, mais acordando, na parte relevante para o caso concreto, que aqui se dá por reproduzida, as seguintes cláusulas:
“Cláusula terceira
A fração arrendada destina-se a habitação da segunda outorgante enquanto não se mostrar concluída a transação definitiva devido a motivos profissionais para Portugal de forma a concluir o processo de aquisição do imóvel, não lhe podendo ser dado qualquer outro uso sem autorização escrita da representada dos Primeiros Outorgantes.
Cláusula quarta
1. O valor da renda mensal é de € 500,00 (quinhentos euros), a qual não será
atualizada.
2. Com a assinatura do presente contrato a inquilina entrega à senhoria o valor total de € 1.000,00 (mil euros), a título de pagamento das duas primeiras rendas referentes aos meses de agosto e setembro.
3. A renda acima mencionada será abatida ao valor final a ser pago na outorga da escritura de compra e venda, mencionada na alínea b) dos considerandos. (...) ”.
5. Através do acordo aludido em 4) os Autores efetuaram a tradição material do imóvel objeto do contrato-promessa.
6. Findo o prazo contratual a ré alegou que ainda não estava em condições de efetuar a escritura, o que justificou com maiores restrições impostas pelo governo angolano à saída de dinheiro do país.
7. Em 01.08.2012 os Autores e a Ré por intermédio de documento particular denominado “aditamento ao contrato de arrendamento urbano habitacional com fins especiais e transitórios e prazo certo" acordaram em realizar alterações no contrato de arrendamento aludido em 4) mas acordando na parte relevante para o caso concreto:
“Cláusula Primeira
1. Os contraentes acordam em dilatar o prazo de duração do contrato de arrendamento.
2. Os contratantes acordam em alterar o valor da renda convencionado.
3. As partes acordam ainda alterar o valor da renda afeto aos reforços de sinal.
4. Em conformidade, a Cláusula Primeira, Segunda e Quarta do contrato promessa de compra e venda referido no Considerando Primeiro supra passa a ter a seguinte redação:
“(…)
Cláusula segunda
a) O presente contrato de arrendamento tem início a 01 de agosto de 2011 e termo a 30 de julho de 2013, não sendo objeto de renovação, seja a que título for; b (...)
Cláusula quarta
1. O valor da renda mensal é de 650.00 (seiscentos e cinquenta euros), o qual não será atualizado.
2. Revogado
3. Dos € 650 (seiscentos e cinquenta euros) entregues todos os meses a título de pagamento de renda, € 150 (cento e cinquenta euros) serão abatidos ao valor final a ser pago na outorga da escritura de compra e venda, mencionada na alínea b) dos considerandos. (...)
8. Em conformidade, na mesma data, foi o contrato-promessa prorrogado em 12 meses.
9. A Ré não procedeu à marcação de escritura após o fim do prazo do aditamento.
10. Ao longo dos últimos anos, os Autores e o companheiro da ré, Sr. ..., tiveram diversas reuniões, em Portugal e em Angola (onde este vive e o Autor. trabalha), com constantes promessas de celebração da escritura, por parte destes que nunca se realizaram.
11. No entanto, foram essas constantes promessas que permitiram a tolerância dos Autores no diferimento da desocupação, sempre na esperança de que iria chegar o momento em que seria possível fazer a escritura.
12. Em 06.03.2021, em reunião havida no imóvel, a ré e o Sr. ... transmitiram que não estavam em condições de fazer a escritura.
13. A reunião vem na sequência de outras realizadas no mês anterior, uma com a presença de um terceiro para quem a Ré pretendia passar a posição contratual e que lhe iria pagar 30 mil euros pela transmissão.
14. Os Autores não aceitaram a transmissão levando a que os réus comunicassem que não estavam em condições de realizar o negócio.
15. Ainda assim transmitiram, igualmente, que apenas abandonariam a casa contra o pagamento de 30.000 euros “para darem entrada para outra casa”.
16. Em 25.04.2021, os Autores interpelaram a Ré, por notificação judicial avulsa, exigindo a devolução do imóvel no prazo de 30 dias.
17. Decorrido o prazo dado na NJA, a ré não desocupou o imóvel.
18. A Ré pagou renda aos Autores desde julho de 2011 até março de 2022, que as receberam durante 10 anos e 7 meses.
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Foram ainda considerados não provados, os seguintes factos:
2.1. Da petição inicial:
19. À data da notificação avulsa (25/4/2021) a Ré e o Sr. ..., que ali se encontrava também, reforçaram perante o signatário e a AE que não tinham condições para realizar a escritura, mas só sairiam se recebessem o que já pagaram, aí incluindo o sinal e todas as mensalidades dos 8 anos de permanência.
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A impugnação da matéria de facto.
Dispõe o art. 662º n.º 1 do Código de Processo Civil:
A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Tem sido entendido que, ao abrigo do disposto no citado preceito, a Relação tem os mesmos poderes de apreciação da prova do que a 1ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto.
Donde, deve a Relação apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão e recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido e na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Neste sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 287:
O actual art. 662º representa uma clara evolução no sentido que já antes se anunciava. Como se disse, através dos nºs 1 e 2, als. a) e b), fica claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia.
O Tribunal não está vinculado a optar entre alterar a decisão no sentido pugnado pelo recorrente ou manter a mesma tal como se encontra, antes goza de inteira liberdade para apreciar a prova, respeitando obviamente os mesmos princípios e limites a que a 1ª instância se acha vinculada.
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Sobre o ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, dispõe o art.º 640º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto:
1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.
Assim, os requisitos a observar pelo recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto, são os seguintes:
- A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados;
- A especificação dos meios probatórios que no entender do recorrente imponham uma solução diversa;
- A decisão alternativa que é pretendida.
Por fim, qualquer alteração pretendida pressupõe em comum um pressuposto: a relevância da alteração para o mérito da demanda.
A impugnação de factos que tenham sido considerados provados ou não provados e que não sejam importantes para a decisão da causa, não deve ser apreciada, na medida em que alteração pretendida não é suscetível de interferir na mesma, atenta a inutilidade de tal acto, sendo certo que de acordo com o princípio da limitação dos atos, previsto no art.º 130.º do Código de Processo Civil não é sequer lícita a prática de atos inúteis no processo.
Veja-se o Acórdão do STJ de 17/05/2017 (Fernanda Isabel Pereira), também disponível em www.dgsi.pt:
“O princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo.
Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questão que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.”
E, ainda, os Acórdãos da Relação de Guimarães, de 15/12/2016 (Maria João Matos) e desta Relação de 26/09/2019 (Carlos Castelo Branco), também da citada base de dados:
Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.).
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Neste enquadramento genérico, que flui do texto legal interpretado pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, analisemos a impugnação deduzida.
1ª) À matéria de facto provada devem ser aditados os pontos:
3-A
O contrato promessa de compra e venda, assinado em 22-07-2011, tinha estipulado o prazo de um ano, para a realização do contrato prometido;
Trata-se de matéria que resulta do ponto 2. do elenco de factos provados, pelo que se mostra inútil o seu aditamento.
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5-A
Na data da celebração do contrato de arrendamento, a ré / arrendatária já estava em Portugal há cerca de 15 anos;
5-B
A fração que os locadores arrendaram à locatária estava devoluta e sem alguma mobília;
5-C
Toda a mobília utilizada pela locatária e seu agregado na fração era e é dela (locatária);
5-D
Os filhos da locatária frequentaram a escola próxima do locado;
Trata-se de matéria irrelevante para o mérito dos autos, pelo que vai indeferido o requerido aditamento.
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5-E
O contrato de arrendamento teve a vigência estipulado para o dia 01-08-2011, e o términus para o dia 31-07-2013;
Consta já da matéria provada a vigência estipulada para o contrato de arrendamento:
4. Pelo que na mesma data de 22.07.2011, os Autores, como primeiros outorgantes e a Ré, como segunda outorgante, por documento particular que denominaram de “arrendamento urbano habitacional com fins especiais transitórios e prazo certo” acordaram no arrendamento da fração aludida em 1) pelo prazo de um ano, com início em 01.08.2011 e termo em 30.07.2012, não renovável, seja a que título for, mais acordando, na parte relevante para o caso concreto, que aqui se dá por reproduzida, as seguintes cláusulas:
(…)
7. Em 01.08.2012 os Autores e a Ré por intermédio de documento particular denominado “aditamento ao contrato de arrendamento urbano habitacional com fins especiais e transitórios e prazo certo" acordaram em realizar alterações no contrato de arrendamento aludido em 4) mas acordando na parte relevante para o caso concreto:
“Cláusula Primeira
1. Os contraentes acordam em dilatar o prazo de duração do contrato de arrendamento.
(..)
4. Em conformidade, a Cláusula Primeira, Segunda e Quarta do contrato promessa de compra e venda referido no Considerando Primeiro supra passa a ter a seguinte redação:
“(…)
Cláusula segunda
a) O presente contrato de arrendamento tem início a 01 de agosto de 2011 e termo a 30 de julho de 2013, não sendo objeto de renovação, seja a que título for; 
Mostra-se, assim, inútil o pretendido aditamento.
Pelo exposto, vai totalmente indeferida a impugnação da matéria de facto.
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IV. O Direito
i. A apelação principal
A apreciação jurídica efectuada pela 1ª instância não nos merece discordância, no que tange a esta pretensão recursória.
Efectivamente, seguimos a tese adoptada pelo Tribunal da Relação do Porto, no Acórdão de 24/9/2020 (José Igreja Matos), disponível em www.dgsi.pt:
I – A união ou coligação de contratos distingue-se claramente dos contratos mistos na medida em que naquela cada um dos contratos conserva a sua individualidade ao passo que neste os diversos elementos contratuais distintos integram-se num processo unitário, incindível de composição de interesses.
II - No âmbito de um contrato de arrendamento coincidente com um contrato promessa de compra e venda de um mesmo imóvel, segundo o qual as partes acordaram em descontar todas as rendas pagas no preço final a pagar pelo promitente-comprador, estarmos perante um contrato misto, mas onde o contrato promessa de compra e venda se assume como preponderante, sendo o contrato de arrendamento instrumental àquele outro.
III. Nestes casos em que o contrato promessa de compra e venda “absorve” o contrato de arrendamento, no sentido de ser predominante, deve ser aplicável o regime legal do primeiro.
Da fundamentação deste aresto, retiremos ainda estes precisos passos:
Porém, a fruição temporária do imóvel com transmissão da posse contra o pagamento de uma renda, naquilo que constitui o núcleo de um contrato de arrendamento, não esgota os contornos do negócio celebrado entre as partes.
É que, no mesmo dia, estas assinaram um outro documento intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda” através do qual o “inquilino” prometia comprar e o “senhorio” prometia vender o mesmo prédio pelo preço fixado em 630.000,00€.
Onde os dois contratos se misturam, de um modo que contamina inevitavelmente a autonomia de cada um deles, é na nota manuscrita, referenciada na sentença recorrida, em que os litigantes acordam em deduzir ao preço da moradia o valor das rendas pagas.
E, neste sentido, resulta claro que o enfoque primordial das partes está na venda do imóvel e não no arrendamento; por isso, as rendas pagas seriam abatidas no preço a pagar, não se adicionavam, por exemplo, a este.
Em termos de enquadramento conceptual, temos que qualquer pessoa, nos limites da lei, tem a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos no Código Civil ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver, podendo ainda reunir no mesmo contrato regras de dois ou mais negócios (art. 405 do Código Civil).
A admissibilidade dos contratos mistos constitui, portanto, uma concretização da regra da liberdade contratual. Por sua vez, “os contratos mistos têm carácter unitário, resultando da fusão de dois ou mais contratos ou de partes de contratos distintos, ou da participação num contrato de aspectos próprios de outro ou de outros. (...) Em qualquer caso há fusão e não simples cúmulo; o contrato misto é um contrato só, não se identificando com a união de contratos…» (Galvão Telles «Manual dos Contratos em Geral», 4ª edição, pag. 469).
O regime aplicável aos contratos mistos tem sido elaborado pela jurisprudência e pela doutrina e depende do nexo que interceda, no caso concreto, entre os vários tipos contratuais que integram o negócio misto. Quando um tipo se sobrepõe ao outro ou aos outros, aplica-se o regime do tipo contratual predominante, que absorve os demais (vide, por todos, Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, 2ª ed., pp. 223 ss. e Galvão Telles, Manual dos contratos em geral, pp. 384 ss.). A este propósito, Inocêncio Galvão Telles refere a existência de duas teorias doutrinárias a aplicar casuisticamente: a da absorção e a da combinação. De acordo com a primeira teoria enunciada, deve individualizar-se no contrato misto a parte preponderante, que lhe imprime carácter, e enquadrá-lo no tipo a que assim fundamentalmente pertence, salvas as modalidades diferenciais derivadas da presença de elementos estranhos. Em conformidade com a segunda, a regulamentação do contrato misto resultará da combinada aplicação dos preceitos pertinentes aos vários tipos em que o contrato se inspira (Direito das Obrigações, 7.ª edição, Coimbra Editora, pág. 86). Ora, face ao breve enquadramento dogmático do “contrato misto”, julgamos que o acordo celebrado entre as partes, em discussão nestes autos, se enquadra na figura doutrinária em apreço e que, como vimos, a parte dominante nada tem a ver com o arrendamento mas sim com a promessa de venda; demonstra-o o facto de que, cada uma das rendas pagas, seria integralmente abatida ao preço final da venda do imóvel, fim principal do acordo único das partes ainda que consubstanciado em dois escritos distintos.
Caso os contratos fossem integralmente cumpridos, em bom rigor, o suposto “inquilino” não pagaria qualquer renda mas apenas o preço estipulado “ab initio” para a venda do imóvel que contratou adquirir; o arrendamento nunca teria a contrapartida da renda paga pelo inquilino.
Donde, o contrato promessa de compra e venda “absorve” o contrato de arrendamento no sentido de que aquele predomina e, portanto, deve ser o regime legal a ele atinente o aplicável.
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No caso em concreto, resulta evidente estarmos perante a mesma situação,, apreciada no aresto citado, dada a factualidade provada, quanto à relação entre o contrato promessa de compra e venda e o contrato de arrendamento, celebrados na mesma data, sobre o mesmo imóvel.
A redação do próprio contrato de arrendamento, que refere expressamente aquele outro contrato promessa e a circunstância de ter sido acordada a futura dedução das rendas pagas no preço final do contrato de compra e venda prometido, afasta qualquer dúvida.
Não se demonstrando, de igual modo, que as partes, em algum ponto, tenham acordado a «convolação» do contrato de arrendamento ou, ainda menos, que tal «convolação» opere por força da Lei.
Estamos perante um contrato misto, mas onde o contrato promessa de compra e venda se assume como preponderante, sendo o contrato de arrendamento instrumental àquele outro.
Assim sendo, o litígio deve ser dirimido no âmbito do incumprimento do contrato promessa de compra e venda, arredando-se a possibilidade de convolação, contratual ou legal, do contrato de arrendamento em prazo certo, como pretendido pela ré.
Concordando integralmente com a conclusão expressiva a que chegou o julgador de 1ª instância:
Assim, entre os dois contratos celebrados, existe não só uma conexão externa e temporal, pois ambos os contratos foram celebrados no mesmo dia, como se verifica também uma conexão interna ou funcional na medida em que a convenção de imputação das rendas acima mencionada, permite concluir que apesar de terem sido celebrados em documento distinto, os referidos contratos não têm uma individualidade separada, sendo um único contrato, que integra uma única composição de interesses, num esquema econômico unitário.
E
Por conseguinte, somos por considerar que o presente contrato misto de promessa de compra e venda e arrendamento, cessou por caducidade na parte referente à fruição da fração, quando a Ré não celebrou o contrato definitivo após a notificação judicial avulsa em 25.04.2021.
Improcedendo, naturalmente, a apelação principal, interposta pela ré.
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ii) Da apelação subordinada
Interpuseram os autores recurso subordinado, divergindo quanto ao segmento dispositivo, que julgou improcedente o seguinte pedido:
3) Indemnizar os AA. pagando a quantia de 1000 euros de indemnização (2x 500 euros do valor da renda) desde junho de 2021 até entrega efetiva do locado, que se computa nesta data em 7.000 euros.
Antes do mais, nenhuma impossibilidade processual inexiste relativamente à interposição deste recurso subordinado, na medida em que o art. 633º do Código Processo Civil apenas faz depender a admissibilidade da pretensão recursória subordinada à perda subjectiva na lide.
Ou seja, resulta claro do nº 1 do citado preceito que, perante uma decisão desfavorável, qualquer das partes pode interpor recurso independente ou subordinado.
Não se exigindo qualquer «compatibilidade» entre o recurso principal interposto pela ré e o recurso subordinado interposto pelos autores, ao contrário do invocado pela ré nas suas contra-alegações.
Apreciando o mérito deste recurso.
A mora na restituição do locado, a partir de Junho de 2021, consequencia efectivamente a obrigação de pagamento do dobro da renda estipulada por cada mês ou fracção que decorrer até à restituição, nos termos do disposto no art. 1045º do Código Civil, que, sob a epígrafe Indemnização pelo atraso na restituição da coisa, dispõe:
1. Se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar até ao momento da restituição a renda ou aluguer que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida.
2. Logo, porém, que o locatário se constitua em mora, a indemnização é elevada ao dobro.
A lei estabeleceu uma indemnização a forfait numa linha de algum modo proteccionista do arrendatário, mas também com o propósito de evitar a litigiosidade acrescida que sempre resultaria da determinação do apuramento do valor locativo do imóvel ocupado, como se decidiu no Acórdão desta Relação de 4/5/2006 (Salazar Casanova), disponível em www.dgsi.pt.
Continuando a citação deste aresto, A não ser assim, podia dar-se o caso de o locador, não obstante a ocupação, não receber qualquer indemnização por se provar, por exemplo, que o imóvel não seria arrendado, dadas as difíceis condições de mercado existentes no local, ou então receber indemnização inferior à renda que o locatário suportava por se provar que o valor locativo era afinal menor do que a renda suportada pelo arrendatário.
Dir-se-á, portanto, que o artigo 1045º do Código Civil tem em vista a indemnização correspondente ao valor de uso do prédio, que fixa a forfait, impedindo o locupletamento à custa alheia por parte do arrendatário e, por isso, é-lhe indiferente a questão de saber se o locador, com o prosseguimento da ocupação causada pela não restituição do locatário, acaba por beneficiar ou sofre prejuízo.
Por outro lado, a indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada prevista no art. 1045 do Cód. Civil, abrange todos os danos resultantes desse atraso e, em princípio, está limitado pelo critério consignado nesse preceito, com exclusão das regras gerais dos art. 562º e seguintes do mesmo Código, como decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 8/7/2003 (Afonso Correia), disponível na mesma base de dados.
Continuando nesta decisão do Alto Tribunal: Trata-se de verdadeira obrigação de indemnização ("a título de indemnização") pelo incumprimento do dever de restituição da coisa locada e a circunstância de a lei prever um critério especial para a fixação do seu montante, baseado na renda, é incompatível com a aplicação das regras gerais previstas nos art. 562º e seguintes do Código Civil.
O princípio da igualdade das partes exclui que o senhorio possa fazer a prova de dano superior, uma vez que o locatário também não é admitido a provar um dano inferior.
(…) do confronto com a lei anterior, onde se previa a responsabilidade do locatário "por perdas e danos" (art.ºs 1616º do Cód. Civil de 1876 e 25º do Dec. nº 5411, de 17-4-1919), ou seja, em conformidade com os princípios gerais sobre indemnização, resulta que o legislador, com o cit. artº 1045, quis consagrar solução diversa e mais restritiva.
A solução pode não ser porventura a mais rigorosa mas tem alguma razoabilidade: a indemnização baseia-se em montante que estava estipulado pelas partes; qualquer delas fica desonerada da prova dos danos efectivos; e está de harmonia com certa protecção tradicionalmente concedida ao arrendatário.
Ainda do Supremo Tribunal, veja-se o Acórdão de 27/4/2005 (Fernandes de Magalhães), na mesma base de dados : a razão de ser da norma do art.º 1045º C. Civ. é a de que o extinto contrato continua, apesar de tudo, a ser o referencial de equilíbrio entre as prestações da relação de liquidação.
E isso com base na ideia de que a renda, tendo resultado da auto-regulação das partes, representa, em regra, o justo valor do lucro cessante derivado da indisponibilidade da coisa locada.
Esta interpretação do art. 1045º, no sentido de excluir a responsabilidade do locatário por indemnização superior ao valor das rendas ou em dobro, no caso de mora no cumprimento de obrigação de entrega do prédio, foi submetida ao escrutínio do Tribunal Constitucional, por assim se não garantir “o direito do senhorio à indemnização dos prejuízos nos termos gerais de direito, revertendo em desfavor do senhorio as consequências da mora imputável ao locatário, mesmo que a título de culpa grave ou grosseira, sempre que o montante dos danos exceda o dobro do valor da renda praticada na vigência do contrato”.
Porém, o Tribunal Constitucional, no seu Ac. nº 648/99 (Fernanda Palma) de 24/11/1999 (publicado in DR, II Série, nº 46 de 24/2/2000, pág. 3751) não encontrou nessa interpretação qualquer mácula de inconstitucionalidade: não ofendia nem o direito de propriedade consagrado no art. 62º nem o princípio da confiança do art. 2º, ambos da Constituição. E também não afrontava, de forma intolerável, o princípio da igualdade, antes colhia apoio na tutela do direito à habitação, justificativo de uma diferenciação em relação às situações gerais de responsabilidade civil.
Temos, pois, que o artigo 1045º do Código Civil, ao prever a indemnização pelo atraso na restituição da coisa locada, limitou o cálculo da indemnização pelo critério consignado nesse preceito, com exclusão das regras gerais dos artigos 562º e seguintes do Código Civil.
O valor dos prejuízos está imperativamente fixado por lei, a forfait.
Os prejuízos efectivos podem – é certo - ser maiores ou menores do que o valor indemnizatório fixado naquele art. 1045º.
Todavia, não pode o locador, com base apenas na violação do dever de restituição que a lei impõe ao locatário, findo o contrato, ressarcir-se de danos superiores, tal como também não pode o locatário alegar que o locador não auferiria o valor da renda ou aluguer estipulados.
Daí a procedência do pedido de condenação da ré no pagamento aos autores do montante correspondente ao dobro da renda estipulada por cada mês que decorrer entre Junho de 2021 até à restituição efectiva.
Deduzido, claro está, do montante que a ré tenha pago a título de rendas, vencidas no período subsequente a essa data.
Daí a procedência do recurso subordinado.
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V. A decisão
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na improcedência da apelação principal e na procedência da apelação subordinada:
a) revogar a alínea B) do dispositivo da sentença recorrida,
b) condenar a ré a pagar aos autores o montante correspondente ao dobro da renda estipulada por cada mês que decorrer entre Junho de 2021 e a restituição efectiva do imóvel, deduzido do montante que a ré tenha pago a título de rendas, no período subsequente a essa data e
c) mantendo, no restante, a sentença recorrida.
Custas pela ré, em ambas as instâncias.
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Lisboa e Tribunal da Relação, 20 de Novembro de 2025
Nuno Lopes Ribeiro
Maria Teresa F. Mascarenhas Garcia
António Santos