Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1305/22.5T9ALM.L1-5
Relator: RUI COELHO
Descritores: INSTRUÇÃO
JUIZ DE INSTRUÇÃO
FACTOS
CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
BURLA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/18/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I - A instrução é uma fase judicial prévia ao julgamento, desprovida de actividade investigatória. Não cumpre ao Juiz de Instrução Criminal investigar aquilo que eventualmente não tenha sido investigado pelo Ministério Público enquanto titular do inquérito, mas sim, e apenas, proceder à comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público de acusar ou arquivar o processo, finda a fase de investigação.
II – O Tribunal de Instrução Criminal está tematicamente vinculado aos factos alegados pois estes definem o objecto do processo durante aquela fase, assim se garantindo o respeito pelo princípio da estrutura acusatória do processo penal enquanto garantia de defesa consagrada no art.º 32.º/5 da Constituição da República Portuguesa.
III – Neste caso, a falta de alegação de factos que traduzam que os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, impede a demonstração da consciência da ilicitude.
IV - Estando em causa o crime de burla deverá resultar dos factos um propósito inicial de enriquecimento ilegítimo, ou seja, anterior ou pelo menos contemporâneo do comportamento enganador ou astucioso imputado.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes Desembargadores da 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
No Juízo de Instrução Criminal de Almada do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi proferido despacho, com o seguinte teor decisório:
« Assim, e como supra referido, tendo em conta que o requerimento para abertura da instrução formulado pelos assistentes não contém os requisitos de uma acusação, não é o mesmo admissível já que nunca poderá levar à pronúncia válida dos arguidos (que, diga-se em abono da verdade, também não se encontram inequívoca e cabalmente identificados no RAI – veja-se que relativamente ao arguido AA, se alude a “eventual participação no esquema fraudulento”).
Esta omissão torna, necessariamente o requerimento de abertura de instrução manifestamente infundado sendo, em consequência, necessária a sua rejeição, por inadmissibilidade legal da instrução, nos termos e para os efeitos do artigo 287.º, nº 3, do Código de Processo Penal, o que se decide. »
- do recurso -
Inconformados, recorreram os Assistentes formulando as seguintes conclusões:
1. « Com relevância, cumpre salientar que, o Tribunal a quo proferiu douto Despacho de indeferimento do Requerimento de Abertura de Instrução sob censura por entender que o mesmo era omisso em relação ao elemento subjetivo do dolo do crime de burla qualificada;
2. Porém, com o devido respeito, que é muito, não assiste qualquer razão ao Tribunal a quo, porquanto o preenchimento dos elementos subjetivos do dolo do referido crime resulta da própria narração dos factos;
3. Ora, como recorda a Venerada Relação de Guimarães “[é] do conhecimento geral, do senso e experiência comum, que os elementos volitivo e cognitivo do dolo emanam, na generalidade dos casos, da mera descrição do iter criminis do arguido, ou seja, da narração da ação típica que lhe é objetivamente imputada
(…).” (sublinhado e negrito nosso) – o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de dia 9 de janeiro de 2017;
4. Sendo que os nossos Venerandos Tribunais Superiores têm entendido como suficiente a expressão dos elementos subjetivos do dolo ainda que imperfeitamente, nesse sentido Vide, por exemplo, o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23 de maio de 2022;
5. Entende o Tribunal a quo que a Recorrente não alegou factos que demonstrem o elemento volitivo do dolo em relação ao crime de burla qualificada;
6. Atendendo ao critério da “normalidade, da compreensão de toda a acção criminosa, objectivada em outros factos de onde a mesma se retira, com a naturalidade que ela representa” (utilizado pela jurisprudência para aferir da presença desses elementos, Vide, por exemplo, o citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de abril de 2009) é manifesto que se encontra preenchido;
7. Tanto que o elemento volitivo do dolo corresponde a “uma vontade dirigida à sua realização”, explicando que “(…) por vezes uma tal direcção de vontade é claramente manifestada, configurando os casos chamados de dolo directo, outras vezes ela é menos clara e suscita dificuldades apreciáveis, quando o agente parte para a realização do facto tendo-o representado como meramente possível.”, cf. FIGUEIREDO DIAS, op. Cit., p. 366;
8. Atendendo-se a todo o iter criminis descrito no Requerimento de Abertura de Instrução dos Recorrentes e à luz do referido critério de normalidade, é manifesto que alguém que induz outra pessoa a celebrar um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel, garantindo a sua entrega apesar de atrasos e falta de transparência, e que, posteriormente, vende a terceiros o lote de terreno onde a construção estava a ser realizada, sem consentimento, consolidando o dano ao alienar também a moradia e se apropriando dos valores pagos, age com intenção de enganar. Tal conduta causou um prejuízo de €50.000,00, além de outros gastos, e demonstra, no mínimo, a percepção da possibilidade de concretização do dano;
9. Ora, podendo o elemento volitivo do dolo emanar “(…) da factualidade alegada no requerimento de abertura da instrução, quando nele se descrevem ações voluntárias e conscientes por parte do arguido” (sublinhado e negrito nosso), cf. o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de dia 9 de janeiro de 2017;
10. É manifesto que a factualidade referida expressa comportamentos voluntários e conscientes dos arguidos;
11. Em conformidade, deve-se considerar que os Recorrentes alegaram factos que preenchem o elemento volitivo do dolo dos Arguidos na prática do crime de Burla qualificada;
12. Por outro lado, quanto ao elemento intelectual do dolo do crime de Burla qualificada este também resulta da narração dos factos;
13. Tem-se entendido que o elemento intelectual “(…) consiste na representação pelo agente de todos os elementos que integram o facto ilícito – o tipo objetivo de ilícito – e na consciência de que esse facto é ilícito e a sua prática censurável” – In, o citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de janeiro de 2014;
14. Quanto ao conhecimento dos elementos de facto que integram o tipo objetivo de ilícito, é manifesto que atendendo ao critério de normalidade na atividade criminosa, que alguém que quem prometer vender uma moradia a outrem e recebe valores de adjudicação e depois, sem informar os promitentes-compradores vende a moradia a terceiros e deixa de comunicar com os primeiros e nem sequer devolve os valores pagos, tem conhecimento de toda a factualidade típica;
15. Quanto ao conhecimento da ilicitude ou ilegitimidade da prática, nas palavras do citado Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de dia 9 de janeiro de 2017 aplicáveis ao presente caso, o conhecimento da ilicitude “(…) resulta da imputação ao arguido de condutas a que qualquer cidadão, com um mínimo de integração social, associa um caráter proibido e de reprovação social.” (sublinhado e negrito nosso);
16. Ora, sendo manifesto que que qualquer cidadão tem conhecimento que que a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou - fazendo os assistentes acreditar que a moradia estava a ser construída e que justificavam as entregas sucessivas de dinheiro -, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial consubstancia crime, ou, no mínimo, é proibido e socialmente reprovável, é manifesto que se encontra também preenchido o requisito da consciência da ilicitude do elemento intelectual do dolo;
17. Assim, resulta da factualidade inscrita no Requerimento de Abertura de Instrução factos que preenchem o elemento intelectual do dolo;
18. Não se vislumbra, portanto, razão para entender que a factualidade descrita no Requerimento de Abertura de Instrução dos Recorrentes não preenche o elemento volitivo do dolo;
19. Em qualquer caso, conforme entende o Ilustre Doutor PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE que “[o] juiz deve mandar completar o requerimento se nele faltarem algum ou alguns elementos que deviam constar”, devendo para o efeito fixar um prazo para este aperfeiçoamento. Consubstanciado a sua não conceção “(…) uma mera irregularidade, uma vez que não se trata de acto obrigatório do processo.”, cf. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, op. Cit., p. 755, anotação n.º 7 ao Artigo 287.º do C.P.P.;
20. Entendendo igualmente a Veneranda Relação do Porto que “[d]eve ser formulado convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução (RAI) de modo a que dele possa ficar a constar (…) uma forma mais clara e rigorosa da imputada actuação voluntária e consciente, relativa ao elemento subjecto do crime imputado.” – In, o citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto do dia 13 de janeiro de 2016;
21. Em razão do exposto, entendendo o Tribunal que os Recorrentes poderiam ter expressado melhor os factos que preenchem os elementos subjetivos do dolo, deveria o juiz antes ter proferido Despacho de aperfeiçoamento, ao invés de proferir Despacho de indeferimento;
22. Não o tendo feito, a verdade, é que o Tribunal a quo está a restringir injustificadamente o direito constitucionalmente consagrado dos Recorrentes de participar, enquanto Assistentes, no processo penal, cf. artigo 32.º, n.º 7 da C.R.P.;
23. Por estes motivos e salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo, ao entender que os Recorrentes não se expressaram da melhor forma, deveria ter fixado um prazo para esta apresentar requerimento de abertura de instrução aperfeiçoado;
24. Bem, como deveria também ter notificado os Assistentes para procederem ao pagamento da taxa de justiça em falta.
25. Nestes termos, deverá revogar-se o douto Despacho recorrido e substituir-se o mesmo por douto Acórdão que determine a admissibilidade do Requerimento de Abertura de Instrução, ou, caso assim se entenda, subsidiariamente, se atribua prazo aos Recorrentes para aperfeiçoar o Requerimento de Abertura de Instrução.».
- da resposta -
Notificado para tanto, respondeu o Ministério Público concluindo nos seguintes termos:
« 1.º O recurso foi interposto do despacho da Meritíssima Juiz de Instrução, proferido em 3 de março de 2025, que indeferiu o requerimento de abertura de instrução formulado pela assistente, por inadmissibilidade legal.
2.º Alegam, os recorrentes que o requerimento de abertura de instrução por si formulado na qualidade de assistentes, contém todos os requisitos legalmente impostos pelo artº287 do Código de Processo Penal, razão pela qual deveria ter sido admitido, nos termos do disposto nos artº286, 289 e 290 do mesmo diploma legal.
3.º Nos termos do disposto nos artº287 nº2 e 283 nº3 alíneas b) e d) ambos do Código de Processo Penal, o requerimento de abertura de instrução, quando formulado pelo assistente, deverá, à semelhança de uma acusação, conter uma narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena, com indicação das disposições legais aplicáveis.
4.º Quando apresentado pelo assistente, é o requerimento de abertura de instrução que delimita o thema decidendum, sendo ponto fulcral do mesmo a narração dos factos imputados e a indicação das respetivas normas incriminadoras.
5.º O requerimento instrutório deve conter uma descrição factual que permita considerar preenchidos, quer o tipo objetivo, quer o tipo subjetivo dos ilícitos criminais imputados aos arguidos, constituindo motivo bastante de indeferimento do requerimento a omissão de factos que materializem os elementos objetivos e subjetivos das infrações imputadas.
6.º Analisado o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos recorrentes verifica-se que: no mesmo não é indicado o local em que os factos ocorreram; no que respeita aos arguidos, não descreve, em termos factuais, qual a participação/conduta de cada um deles; não alega, factualmente, que factos praticaram cada um dos arguidos que demonstrem a sua intenção, de molde a preencher o elemento subjetivo exigido, mormente, factos que possam demonstrar que o propósito de todos eles foi prévio à celebração do contrato promessa, determinando, desde o início, a vontade dos assistentes e o consequente prejuízo patrimonial.
7.º Não podemos deixar de concordar com o entendimento sufragado pela Meritíssima Juiz de Instrução ao referir que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes é composto por uma narração solta de factos intercalada com considerações jurídicas.
8.º Com efeito, o requerimento de abertura de instrução formulado pelos assistentes/recorrentes não se apresenta como uma acusação em sentido material, não respeita as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo artº287 nº2 do CPP, por nele faltar a descrição da atuação de cada um dos arguidos e a sua contribuição combinada ou singular para o crime praticado.
9.º O requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes/recorrentes não contém, em nosso entender, a identificação de quem fez o quê, com quem e em que circunstâncias de espaço.
10.º No mesmo não são individualizadas as condutas de cada um dos arguidos sobre as quais se lança a suspeita da conduta penalmente censurável.
11.º Com efeito, no mesmo não são descritas as condutas integradoras do ilícito penal que considera ter sido praticado por cada um dos arguidos ou a que título de participação os mesmos atuaram (coautoria, autoria material). No fundo, os factos objetivos que preenchem o tipo legal de crime em causa e a modalidade de comparticipação criminosa.
12.º In casu, (…) no requerimento de abertura de instrução o assistente não chega a imputar a cada um dos arguidos os atos concretos a que faz referência; faz uma imputação genérica dos mesmos, pretendendo que tal imputação individualizada desses atos venha a resultar da própria instrução. Deste modo, o objeto do processo não está corretamente delimitado nesse requerimento (que, como vimos, desempenha funções em tudo análogas às da acusação). Para que os arguidos pudessem defender-se cabalmente na fase da instrução, necessário se tornaria que conhecessem, antes da eventual pronúncia, os atos concretos que lhe são imputados (não basta uma imputação genérica e indistinta de uma série de atos a uma série de arguidos), não podendo ser eles surpreendidos com tal imputação apenas na pronúncia. E será assim mesmo que possamos estar perante eventuais crimes praticados em coautoria. Essa circunstância não dispensa uma imputação concreta e individualizada de factos, pois esta imputação (que além do mais, faz distinguir a responsabilidade de cada um dos arguidos) será sempre relevante na perspetiva dos direitos de defesa de cada um destes (Acórdão do Tribunal Relação do Porto de 25/06/2013, proferido no processo 57/11.9GAAFE.P1, disponível em www.dgsi.pt).
13.º No caso em apreço, a imputação de factos genérica e indistinta que consta do requerimento de abertura de instrução não permite, sequer, perceber com clareza se estamos perante crime de burla imputado às sociedades, se imputado aos arguidos enquanto pessoas singulares, se a todos os arguidos como coautores.
14.º Conforme referido na decisão recorrida, não cabe ao juiz de instrução a decisão factual a imputar a cada um dos arguidos ou a escolha de entre muitos factos soltos quais aqueles que devem ficar a constar da decisão instrutória.
15.º De tudo o que se expôs supra, resulta claro que o requerimento para abertura de instrução apresentado pelos assistentes não reúne os requisitos impostos pela lei processual penal.
16.º É certo que os assistentes, em cumprimento do disposto no artº287 nº2 do Código de Processo Penal, apresentam as razões da sua discordância em relação ao despacho de arquivamento, com indicação de alguns pontos fácticos que denotam tal discordância.
17.º No entanto, atenta a sua qualidade processual, deveria o requerimento de abertura de instrução por si apresentado respeitar o disposto nas alíneas b) e d) do nº3 do artº283 do Código de Processo Penal, aplicável por força do disposto no artº287 nº2 2ª parte do mesmo diploma legal, o que não sucede no caso concreto.
18.º Quanto à invocada irregularidade e aplicação do regime previsto no artº123 nº2 do CPP, sempre se dirá que isso equivaleria à possibilidade de aperfeiçoamento do requerimento.
19.º Ora, a lei processual penal não prevê qualquer convite ao assistente para aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução.
20.º Sobre esta matéria veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência através do Acórdão 7/2005, através do qual decidiu: Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art.º287º, n.º2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido.
21.º In casu, uma vez que do requerimento de abertura de instrução apresentado não consta a narração concretizada da factualidade consubstanciadora dos elementos objetivos dos tipos legais imputados aos arguidos, não há lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento, configurando a situação uma inadmissibilidade da instrução, o que conduz à sua rejeição.».
Admitido o recurso, foi determinada a sua subida imediata, nos autos e com efeito devolutivo.
Neste Tribunal da Relação de Lisboa foram os autos ao Ministério Público tendo sido emitido parecer no sentido da improcedência do recurso e manutenção do despacho recorrido.
Cumprido o disposto no art.º 417.º/2 do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer pelos Assistentes mantendo a opinião de sustento do recurso, e pelo BB que aderiu aos termos do parecer e da resposta.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre decidir.
OBJECTO DO RECURSO
Nos termos do art.º 412.º do Código de Processo Penal, e de acordo com a jurisprudência há muito assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação por si apresentada. Não obstante, «É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito» [Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 7/95, Supremo Tribunal de Justiça, in D.R., I-A, de 28.12.1995].
Desta forma, tendo presentes tais conclusões, são a única questão a decidir é a de saber se o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelos Assistentes cumpre com os requisitos legais que se lhe exigem e, como tal, deveria ter sido admitido ordenando-se a abertura da fase instrutória.
FUNDAMENTAÇÃO
Importa ter presente que a Instrução requerida surge na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público. Estamos, pois, a navegar nas águas definidas pelo art.º 287.º/2 do Código de Processo Penal.
Compulsado o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado pelos Assistentes do mesmo retiramos, a título de descrição dos factos, a seguinte matéria, ainda que espalhada de forma não sistematizada:
« - Em ... de 2018, os Assistentes contrataram a sociedade ..., para a prospecção de imóveis para aquisição.
- Foi-lhes apresentado um lote de terreno situado na ..., propriedade da sociedade ..., acompanhado da proposta de aquisição de uma moradia a ser construída nesse local.
- A ... de ... de 2018, foi celebrado um contrato – promessa de compra e venda entre os Assistentes e a ..., com o pagamento de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) a título de sinal e a garantia de entrega da moradia até ...de 2019.
2. Durante o período de execução do contrato, os Assistentes observaram atrasos na obra e falta de transparência na execução do projecto. Apesar disso, foram repetidamente assegurados pelos arguidos de que o imóvel seria entregue nos termos acordados.
3. No entanto, em ... de 2019, o lote de terreno foi alienado pela ... à sociedade ..., sem conhecimento ou consentimento dos Assistentes, frustando assim a possibilidade de cumprimento do contrato-promessa de compra e venda.
4. Apesar de repetidas tentativas para resolver a questão, os Assistentes viram-se lesados nos seus direitos, perdendo não só a quantia de € 50.000,00 paga a título de sinal, mas também os valores despendidos em serviços acessórios (designadamente € 8.765,00 (oito mil setecentos e sessenta e cinco euros) por serviços de prospeção e pela concretização de um furo de água).
5. Em ... de 2021, a moradia foi concluída e vendida a terceiros, consolidando o prejuízo irreversível dos Assistentes.
- A sociedade ... não era proprietária do lote de terreno à data da celebração do contrato-promessa de compra e venda e, ainda assim, ocultou essa informação aos Assistentes;
- Durante o período contratual, transmitiram o imóvel a terceiros, impossibilitando o cumprimento do contrato-promessa de compra e venda;
- Os Assistentes foram reiteradamente assegurados pelos arguidos da execução do contrato, mesmo quando já era evidente que tal não seria possível, o que demonstra um comportamento premeditado e manipulador.
- À data da celebração do contrato-promessa , a sociedade ..., não possuia capacidade financeira para cumprir as obrigações contratadas, facto confessado pelo próprio arguido CC.
- Tal incapacidade financeira inicial demonstra que a sociedade ... actuou com dolo antecedente, celebrando o contrato com intenção fraudulenta, uma vez que sabia, desde o início , que não poderia entregar o imóvel prometido.
- A transmissão do lote para a sociedade ..., sem qualquer comunicação aos Assistentes e sem resguardar os seus direitos contratuais, constitui uma manobra ardilosa para frustar o cumprimento do contrato-promessa de compra e venda.
A ocultação da alienação do lote e a continuidade das falsas garantias são indicadores claros de que os arguidos actuaram de forma dolosa e astuciosa, com o intuito de obter vantagem patrimonial à custa dos Assistentes.
Os danos sofridos pelos Assistentes ultrapassam o mero incumprimento civil, configurando um prejuízo penalmente relevante. Não só foi perdido o sinal de € 50.000,00, mas também os valores gastos em serviços acessórios, totalizando um prejuízo de € 58.765,00 »
Perante este registo factual, fundamentou o Juiz de Instrução Criminal a sua decisão com os seguintes argumentos:
« Inconformados com o despacho de arquivamento proferido nos autos, vieram os assistentes (liquidando apenas uma taxa de justiça, quando eram devidas duas já que ambos requereram a abertura de instrução) requerer abertura de instrução alegando vários motivos de discordância relativos ao despacho de arquivamento proferido nos autos e pretendendo que, a final, seja proferido despacho de pronúncia.
No seu RAI, iniciam com uma contextualização factual; efectuam após a “subsunção jurídica dos factos ao crime de burla qualificada”; alegam no ponto 2.2 vários factos que entendem demonstrar a “conduta dolosa e astuciosa”; alegam, após o que, na sua opinião, representa o prejuízo patrimonial relevante; prosseguem, no ponto 2.4 com “a contradição entre os depoimentos e os elementos probatórios”; em seguida, ponto 2.5, arguem “da gravidade e da relevância criminal dos factos”; no ponto 3, alegam a “fundamentação jurídica” e, por fim, no ponto 4, “dos actos instrutórios”.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art. 286.º, nºs 1 e 2 do CPP, a instrução tem carácter facultativo e visa a comprovação judicial da decisão do Ministério Público de acusar ou não acusar, sendo dirigida pelo Juiz segundo o princípio da investigação, que não se limitará, em vista da pronúncia, ao material probatório que lhe seja apresentado pela acusação e pela defesa, mas deve antes, se para tal achar razão, instruir autonomamente o facto em apreciação, (Figueiredo Dias, Para uma Reforma Global do Processo Penal, p. 38).
Sendo requerida a instrução pelo assistente, o requerimento de abertura de instrução deve conter uma descrição dos factos, que em seu entender, constituem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, e sobre os quais pretende que o Juiz de Instrução Criminal se pronuncie, no sentido de os mesmos se terem por suficientemente indiciados ou não e o respectivo enquadramento jurídico-penal, sendo certo que são tais factos, que limitam e constituem o objecto da instrução.
Assim, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente apenas será admissível nos casos referidos no art. 287º, nº 1, al. b) CPP devendo, ainda, obedecer aos requisitos referidos nos arts. 283.º, nº 3, als. b) e d) e 287º, nº 2 CPP.
Nos termos do art. 287.º, n.º 2 do CPP, embora o requerimento de abertura de instrução não esteja sujeito a formalidades especiais deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou ao despacho de arquivamento, sendo aplicável ao requerimento do assistente, o disposto no art. 283.º, n.º 3, alíneas b) (narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, designadamente quanto às circunstâncias de tempo, lugar e modo de actuação que se enquadre em ilícito penal) e d) (indicação das disposições legais aplicáveis).
Deve, pois, o requerimento de abertura de instrução da assistente, conter uma descrição dos factos, que em seu entender, constituem os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, e sobre os quais pretende que o Juiz de Instrução Criminal se pronuncie, no sentido de os mesmos se terem por suficientemente indiciados ou não e o respectivo enquadramento jurídico-penal, sendo certo que são tais factos, que limitam e constituem o objecto da instrução.
No caso vertente e como consta do despacho de fls. 397 e seguintes o MP determinou o arquivamento dos autos pelos fundamentos ali vertidos.
Analisando o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos assistentes, e sem prejuízo da omissão de liquidação da taxa devida, verifica-se que o requerimento apresentado invoca, nos seus muitos artigos, as razões de discordância dos assistentes quanto ao entendimento do Ministério Público e que se mostra plasmado no despacho de arquivamento.
Contudo, em relação ao crime imputado falta um facto absolutamente essencial para que, havendo indícios da sua prática, fosse possível levar os arguidos a julgamento: a consciência da ilicitude.
Ao longo do todos os factos soltos alegados pelos assistentes falta a alegação do facto: os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Essa menção não é inócua e é absolutamente fundamental para que o RAI, que deve constituir uma verdadeira acusação, possa ser tido em consideração. Pois que de nada serve dizer que os arguidos sabiam que lesavam os assistentes ou que queriam, com astúcia, obter uma vantagem patrimonial se não se afirmar igualmente que os arguidos sabiam que as suas actuações eram proibidas pela lei penal e susceptível de aplicação de uma pena, pois nisto, reside a consciência da ilicitude de índole penal.
Conforme muito bem explanado no Acórdão da Relação de Guimarães de 19-06-2017, disponível em www.dgsi.pt, “I) A alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Ao contrário, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através da descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde à necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo da culpa, o qual, segundo as modernas conceções dogmáticas da teoria do crime, defendidas entre nós por Figueiredo Dias, constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo, ao passo que na conceção tradicional não se distinguia entre os elementos do tipo e os elementos do tipo de culpa. II) Na acusação deduzida nos autos, a assistente limita-se a alegar, em termos de factos relativos ao preenchimento dos elementos subjetivos, que ao dirigir-lhe as palavras filha da puta e pretendia a arguida atingir a assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu. Esta articulação contém factos que integram o elemento volitivo do dolo (direto) e do elemento intelectual do dolo. Já em relação aos elementos integrantes da consciência da ilicitude (elemento emocional), habitualmente traduzido na expressão de que o arguido atuou sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, ou por qualquer outra que comporte o respetivo conteúdo, a acusação omite toda e qualquer referência”.
E, apesar do citado acórdão visar uma acusação particular ela tem mutatis mutandis total aplicação ao RAI apresentado pela assistente na medida em que este RAI vai ter de assumir a forma de uma acusação caso se verifiquem os indícios suficientes para levar os arguidos a julgamento.
No caso dos autos, não se pode considerar que o requerimento de abertura de instrução apresentado esteja em conformidade com o disposto no art. 287.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3, alíneas b) e d) e, bem assim, que constitua uma “acusação alternativa“ susceptível de delimitar o objecto do processo e a actividade cognitiva do Tribunal, não cabendo, ao Juiz de Instrução, em primeira linha, a descrição factual a imputar a um ou mais arguidos, ou a escolha de entre os muitos factos soltos alegados no RAI quais aqueles que devem ficar a constar da acusação. Muito menos poderá o Juiz de Instrução, acrescentar que os arguidos sabiam que as suas actuações eram proibidas pela lei penal e susceptível de aplicação de uma pena, pois nisto, reside a consciência da ilicitude de índole penal, sob pena de a decisão instrutória a proferir violar necessariamente o disposto nos art. 303º e 309º, ambos do CPPenal ( Ac. RC 5/9/99, CJ T.4, p. 99 e Ac. RL 9/2/2000, CJ T.1, p. 153, Ac. RL 3/7/2003, CJ T. IV, p. 127 ).
Efectivamente, não compete ao juiz de instrução compulsar o requerimento de abertura da instrução, escolher factos dispersos do requerimento, acrescentar-lhe outros dele não constantes e que são fundamentais para integrar um tipo penal e, em seguida enumerar os mesmos, de modo a poder pronunciar o arguido pelos referidos crimes, pois, se assim fosse, estar-se-ia a transferir para o Juiz o exercício da ação penal. O que violaria a estrutura acusatória do processo penal.
Ora, se a instrução, no caso concreto dos autos, visa avaliar da existência de indícios suficientes para submeter os arguidos a julgamento pelos crimes imputados pelos assistentes, esses indícios terão de se verificar em relação a todos os elementos, objectivos e subjectivos, dos respectivos tipos legais em discussão. Sob pena de não se poder concluir pela imputabilidade dos crimes aos arguidos. Ou seja, de nada serve realizar-se uma instrução com vista a apurar indícios da prática de crimes se, mesmo existindo tais indícios, o RAI dos assistentes, que terá de servir de acusação que delimita o objecto em discussão, não contiver todos os elementos integrantes dos respectivos tipos legais em causa. Repare-se que a situação é de toda idêntica a uma acusação que, sendo submetida a despacho preliminar por parte do Tribunal de Julgamento, se mostra “manifestamente infundada” nos do artº 311º do Código de Processo Penal.
Por outro lado, verificando-se que o requerimento de abertura de instrução não obedece aos requisitos previstos no art. 287.º, n.º 2 do CPP, este não deve ser objecto de despacho de aperfeiçoamento, dado que tal entendimento permitiria um alargamento do prazo peremptório da apresentação do referido requerimento, com evidente prejuízo para as garantias de defesa do arguido, as quais prevalecem sobre os direitos decorrentes da posição processual de assistente ( cfr. Acórdão de fixação de Jurisprudência nº 7/2005, DR. I Série A de 4/11/2005).
Nos termos do art. 287.º, n.º 3 do CPP “o requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.
Como ensina o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 07-03-2017, processo nº 65/14.8GBVVC.E1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, “escreve Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 16ª ed., pág. 629., «a rejeição por inadmissibilidade legal de instrução inclui os casos em que aos factos não corresponde infracção criminal (falta de tipicidade), de haver obstáculo que impede o procedimento criminal e de haver obstáculo à abertura da instrução, v. g. ilegitimidade do requerente (caso do MP) ou inadmissibilidade legal de instrução ( v.g. casos dos crimes particulares e de alguns processos especiais)».
A propósito, ensina também Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, pág. 134: «O requerimento do assistente tem de conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta ou a falta ou inimputabilidade do arguido, porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta de pressupostos de objecto, de arguido. Faltando no processo o seu objecto ou o arguido o processo é inexistente. Se, porém, em lugar de inexistência ocorrer apenas a nulidade da acusação, nos termos do artº 283º, já não será caso de inadmissibilidade legal da instrução, tanto que a nulidade da acusação não é de conhecimento oficioso, tem de ser arguida». E termina o despacho com os parágrafos decisórios já acima transcritos.
Nos termos do art.º 286.º Código de Processo Penal, a instrução surge consagrada como uma fase judicial prévia ao julgamento, desprovida de actividade investigatória. Ou seja, não cumpre ao Juiz de Instrução Criminal investigar aquilo que eventualmente não tenha sido investigado pelo Ministério Público enquanto titular do inquérito, mas sim, e apenas, proceder à comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público de acusar ou arquivar o processo, finda a fase de investigação.
Corolário de que ao Juiz de Instrução Criminal está vedada a iniciativa investigatória, é o disposto no art.º 309.º/1 do mesmo código, segundo o qual « A decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução. ».
Ou seja, o Tribunal encarregue da instrução está tematicamente vinculado aos factos alegados pois estes definem o objecto do processo durante aquela fase, assim se garantindo o respeito pelo princípio da estrutura acusatória do processo penal enquanto garantia de defesa consagrada no art.º 32.º/5 da Constituição da República Portuguesa.
Compulsada a decisão recorrida, foi exactamente isso que o Tribunal de Instrução verificou e garantiu.
Nos termos do disposto no art.º 283.º/3 als. b) e d) do Código de Processo Penal, ex vi o já referido art.º 287.º/2, o requerimento de abertura de instrução apresentado por Assistente que queira reverter despacho de arquivamento e levar o Arguido a julgamento, deve conter, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis.
Como bem aponta o Ministério Público na sua resposta, «Não existindo acusação, é o requerimento de abertura de instrução que irá delimitar o thema decidendum, e consequentemente, por força do princípio da vinculação temática, a atividade instrutória do juiz de instrução, equivalendo à acusação, conforme resulta dos artº303, 308 e 309 do Código de Processo Penal». Tal exigência é, sem dúvida, uma garantia de defesa e um corolário da estrutura acusatória do processo penal.
Como resulta da fundamentação do despacho recorrido acima replicada, falta a alegação de que os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei. Argumentam os Assistentes nas suas motivações que a rejeição foi por falta de indicação do dolo. Aquilo que resulta da decisão não é a falta do dolo, mas da consciência da ilicitude.
Insistem os Recorrentes que resulta claramente da factualidade exposta que os elementos subjetivos do dolo se encontram preenchidos, sendo tal bastante para fundamentar ao Requerimento de Abertura de Instrução. Porém, impõe-se maior exigência.
Aponta o Tribunal a quo a necessidade de alegação de os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei, adiante concretizando que falamos da lei penal. Com efeito, não basta querer praticar os actos e alcançar o resultado (dolo), mas é igualmente necessário que o agente tenha presente a proibição daquela conduta à luz da lei penal consciência da ilicitude). Porque, se idealizarmos um cenário hipotético, poderia o agente ter consciência de uma ilicitude diferente, convencido que estivesse que a sua conduta apenas lhe estava vedada pela lei cível, pela natureza obrigacional dos deveres que contratualmente assumira. E isso continuaria a não ser bastante para garantir o preenchimento do tipo subjectivo. Exige-se mais, como o Ministério Público escreve no seu parecer junto deste Tribunal: «estando em causa o crime de burla, afigura-se-nos, salvo melhor opinião, que não se mostra indiciado um propósito inicial de enriquecimento ilegítimo quanto a qualquer dos arguidos, ou seja: anterior ou pelo menos contemporâneo do suposto comportamento enganador ou astucioso determinante do/s acto/s gerador/es de prejuízo. Nisto se traduz a distinção entre um ilícito penal e um mero ilícito civil (contratual) gerador de responsabilidade civil. No primeiro caso, o agente não quer verdadeiramente celebrar o acordo celebrado, age com reserva mental e o negócio surge como meio de atracção da vítima. ».
Ou seja, é necessário garantir que o Tribunal consiga apurar todos os factos que justificam o objecto do processo, o crime imputado. Caso contrário enreda-se o processo num conjunto de insuficiências que, sob pena de nulidade, impedem o Tribunal de fazer justiça.
Finalmente, como bem argumenta na decisão recorrida, quanto ao argumento replicado neste recurso de que o Tribunal a quo deveria ter fixado um prazo para apresentar requerimento de abertura de instrução aperfeiçoado, foi tido em consideração o Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005, de 12.05.2005 [DR 212 SÉRIE I-A, de 2005-11-04], segundo o qual «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».
Estamos, portanto, perante uma situação de inadmissibilidade legal de instrução, pelo que bem decidiu o Tribunal a quo ao rejeitar o Requerimento de Abertura de Instrução nos termos do art.º 287.º/3 do Código de Processo Penal.

DECISÃO
Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa julgar improcedente o presente recurso, mantendo-se inalterada a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes, fixando-se a cada um em 3 UC a respectiva taxa de justiça.

Lisboa, 18.Novembro.2025
Rui Coelho
Alexandra Veiga
Ester Pacheco dos Santos