Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
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| Relator: | MANUELA ESPADANEIRA LOPES | ||
| Descritores: | INSOLVÊNCIA APREENSÃO DE BENS VENDA COMUNHÃO CONJUNGAL BENS COMUNS | ||
| Nº do Documento: | RL | ||
| Data do Acordão: | 11/11/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Texto Parcial: | N | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
| Sumário: | Sumário (elaborado pela relatora). I- No processo de insolvência, a decisão quanto à escolha da modalidade da venda e condições da mesma é cometida ao administrador da insolvência. II- Por força do disposto no artº 164º, nº2, do CIRE, o mesmo apenas tem que ouvir o credor com garantia real sobre o bem a alienar acerca da modalidade da venda e informá-lo do valor base fixado, não tendo que notificar o devedor insolvente, nem a ex-cônjuge do mesmo, acerca das condições da venda. III- Apresentada proposta de aquisição do imóvel após o encerramento do leilão electrónico, a mesma é extemporânea e não obsta à celebração da escritura de compra e venda com o proponente que apresentou a proposta mais elevada no decurso do leilão. IV- A comunhão conjugal patrimonial caracteriza-se como um direito uno sobre a massa de bens que integram o património do casal, o qual pertence, simultaneamente e em bloco, aos dois cônjuges, sendo qualquer deles titular do direito único sobre ela e permanece com tal natureza, não só durante, mas também após a dissolução do casamento, até à partilha subsequente. V- Enquanto não for realizada a partilha entre os cônjuges (ou ex-cônjuges), está vedada a possibilidade de cada um deles sozinho alienar ou onerar bens comuns ou de qualquer quota ideal sobre tais bens. VI- Deste modo, a declaração de insolvência de um dos mesmos implica a apreensão de todos os bens do insolvente e não apenas do direito correspondente a metade sobre cada um dos bens do (ou do dissolvido) casal. | ||
| Decisão Texto Parcial: | |||
| Decisão Texto Integral: | Acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa: I-RELATÓRIO B… A…, divorciado, apresentou-se à insolvência, a qual veio a ser declarada por sentença proferida em 17/11/2021. Foi apreendido para a insolvência o Prédio urbano sito na Rua … , descrito sob o n.º …, na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de …, Freguesia … O prédio em causa encontra-se inscrito na referida Conservatória a favor do insolvente e de M… C…, enquanto casados. No dia 03-02-2022, a Requerente foi notificada pelo(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência: “(…) na qualidade ex-cônjuge do Insolvente, e contitular da meação do prédio (…) com o valor patrimonial 121.365,46€, (…) da penhora e apreensão do identificado imóvel, com expressa advertência de que o mesmo fica à ordem deste Processo de Insolvência até que se proceda à respetiva venda. Poderá, querendo deduzir reclamação no prazo de 10 dias a contar da assinatura do aviso de receção, visando a separação dos bens artigo 141º, nº 1, alínea b) do CIRE.” O Administrador da Insolvência registou a declaração de insolvência sobre o imóvel e em 26/10/2023 juntou aos autos “certidão de encerramento do leilão eletrónico em que houve proposta superior ao valor mínimo, mas inferior ao valor base da venda os 233.000,00€, no valor de 207.080,20€.” Em 21-11-2023, M… C… juntou ao apenso de liquidação autos procuração outorgada pela própria a favor da Sra Dra P… S… Em 11-03-2024, foi junta aos autos de insolvência proposta apresentada por C… – Actividades Hoteleiras, Unipessoal, Lda, para compra do imóvel apreendido na insolvência pelo valor de € 210 000,00. Em 07-05-2024, o Administrador da Insolvência apresentou requerimento no apenso de liquidação, no qual declarou: “(…) tendo em consideração o requerimento apresentado pela mandatária da ex-companheira do insolvente nos autos principais no passado dia 11.03.2024, não irá ter em conta a proposta apresentada, por extemporânea, uma vez que o anúncio de venda foi efetuado no e-leilões, comunicado atempadamente o seu resultado aos credores e sem oposição por parte dos mesmos.” Em 06-07-2024, M… C… apresentou requerimento do apenso de liquidação, invocando a nulidade da venda judicial, sustentando que, apesar de haver nos autos proposta superior, e antes que o Tribunal se pronunciasse sobre a sua aceitação ou não e tendo a requerente, co-proprietária do imóvel, aceite expressamente tal proposta superior, o Administrador da Insolvência vendeu o imóvel por valor inferior. Ainda que se entenda que tal decisão não prejudica os credores, porque o valor da venda, apesar de mais baixo, cobre o valor das dívidas em cobrança, tal valor de venda prejudica em muito a requerente, que se vê privada de casa onde habita e de obter maior valor pela sua meação na venda. Por outro lado, o AI não estava mandatado pela requerente para proceder à venda da sua meação em seu nome. O primeiro proponente tinha que ser informado da nova proposta para se pronunciar no sentido se a cobria ou se desistia da venda. O Sr. Administrador da Insolvência não deixou que tal acontecesse, em completa violação dos mais básicos ditames de Direito e de Justiça, prejudicando em muito a requerente. Não foram os credores notificados para se pronunciar sobre a referida proposta mais alta e não existe despacho do Tribunal acerca dessa proposta, pelo que a escritura é nula. Foi cumprido o contraditório e pelo Administrador Judicial nada foi dito. Em 16.06.2025 foi proferido despacho, julgando improcedente a nulidade invocada. * Inconformada a ex-cônjuge do insolvente interpôs recurso, apresentando as seguintes CONCLUSÕES: 1. Entrou em Março de 2024, requerimento nos autos principais, com proposta mais alta do que a obtida em leilão, 2. sem que houvesse pronúncia dos credores sobre essa proposta e apesar das insistências da recorrente para que a venda não fosse feita pela proposta mais baixa, 3. o AI procedeu à venda. 4. A recorrente arguiu a nulidade da mesma, porquanto foi feita sem que houvesse pronúncia sobre a referida proposta, quer por parte dos credores, quer por parte do tribunal. 5. A recorrente é dona de metade do imóvel vendido, o qual constitui a sua morada/habitação própria permanente. 6. A venda feita nestes termos é nula de acordo com as disposições do artigo 195º do CPC, pois sem que fossem dirimidas as questões pendentes e que influenciavam a decisão da causa, não podia ter sido realizada. 7. Foi também violada a disposição do artigo 159º do CIRE, pois o AI apenas poderia ter vendido a metade do imóvel pertencente ao insolvente, não a metade da recorrente, que sempre cumpriu as suas obrigações com o Banco Montepio Geral. 8. Foi violada a disposição do artigo 839.º n.º1 alienas c) e d) do CPC, na medida em que a recorrente, dona de ½ do imovel se opôs à venda naqueles moldes. 9. foram violadas as disposições do artigo 163.º e 164.º, n.º 1 e 3, do CIRE. 10. Violado foi assim o princípio da Administração da Justiça, negada a tutela jurisdicional efectiva dos direitos da recorrente, que, apelando aos poderes de fiscalização do juiz sobre o AI, vê indeferida a sua pretensão e violado o seu direito à protecção do seu património e da casa de morada de família. 11. O que colide frontalmente com o proclamado pelo artigo 20.º n.º 1 e 5 da Constituição da República Portuguesa, que estabelece a qualquer cidadão o direito a ver protegidos os seus interesses pelos tribunais, obtendo em processo célere decisão sobre as causas que lhes são submetidas. 12. ao escudar-se em critérios formalistas, o Tribunal a quo deixou de se pronunciar sobre as supra citadas questões suscitadas pela requerente nos autos. 13. o acto do Sr AI (venda do imóvel) trata-se de aquilo que o CIRE chama de “acto de especial relevo” pelo que deveria ter sido escrutinado pelo Tribunal, 14. não o sendo, o despacho recorrido é nulo por omissão de pronúncia. 15. E, é nula a venda assim realizada em violação das normais legais supra referidas. Termina peticionando que seja declarada a nulidade do despacho recorrido, por não se ter pronunciado acerca das questões suscitadas pela recorrente, ou, substituído por outro que decrete a nulidade da venda efectuada pelo Sr AI, por violação dos artigos 159.º, 163.º e 164º, nº3, do CIRE, concatenados com os artigos 195.º e 839º, nº1, c) e d) do CPC. * Não foram apresentadas Contra-Alegações. * O recurso foi admitido, a subir imediatamente e em separado. * Foram colhidos os vistos das Exmªs Adjuntas. * II– OBJECTO DO RECURSO É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido. Assim, em face das conclusões apresentadas pela apelante, importa decidir se a decisão da 1ª instância enferma de erro de julgamento ao ter sido indeferida a nulidade da venda invocada pela mesma. * III – FUNDAMENTAÇÃO A) De Facto No despacho sob recurso, foi considerada como provada a seguinte factualidade, a qual não foi objecto de impugnação: 1. Em 17-11-2021, foi declarada a insolvência do Requerente Devedor B… A…, divorciado de M… C… 2. Foi apreendido o Prédio descrito sob o n.º …, na Conservatória do Registo Civil, Predial, Comercial e Automóveis de …, Freguesia … 3. Consta do registo: AP. 955 de 2009/12/18 – Aquisição a favor de B… A… e de M… C…, casados no regime de Comunhão de adquiridos; AP. 956 de 2009/12/18 10:47:25 UTC - Hipoteca Voluntária a favor da CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL Montante Máximo Assegurado: 209.958,40 Euros; AP. 957 de 2009/12/18 10:47:25 UTC - Hipoteca Voluntária a favor da CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL Montante Máximo Assegurado: 45.361,14 Euros; 4. Foram declarados verificados créditos: “ARES LUSITANI STC S.A. € 15 152.00 comum CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL € 30 142.90 garantido, contrato mútuo com hipoteca nº 275270001355 € 141 069.99 garantido, contrato mútuo com hipoteca nº 275210003040 € 19 712.72 comum TELEFAC INTERNACIONAL-SOC. IMPORT. E DISTRIB., LDA. € 13 000.00 comum V.2 Graduação especial Graduo os referidos créditos, relativamente ao prédio apreendido: - 1º lugar: créditos, garantidos por hipoteca, da Caixa Económica Montepio Geral; - 2º lugar: créditos comuns, na sua proporção;”. 5. Foi declarado extinto, pelo pagamento, o crédito da sociedade ARES. 6. A Requerente é condevedora dos créditos da CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL. 7. No dia 03-02-2022, a ora Requerente foi notificada pelo(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência: “(…) na qualidade ex-cônjuge do Insolvente, e contitular da meação do prédio (…) com o valor patrimonial 121.365,46€, (…) vem o signatário, nos termos previstos nos artigos 141º, nº 1, alínea b) e 144º, nº 1 do CIRE, artigos 719º, nº 1 e 740º, nº 1 do Código de Processo Civil aplicáveis ex vi artigos 17º, 149º, nº 1 e 150º, nº 1 do CIRE, da penhora e apreensão do identificado imóvel, com expressa advertência de que o mesmo fica à ordem deste Processo de Insolvência até que se proceda à respetiva venda. Poderá, querendo deduzir reclamação no prazo de 10 dias a contar da assinatura do aviso de receção, visando a separação dos bens artigo 141º, nº 1, alínea b) do CIRE.” – acto de 17-03- 2022, principal. 8. Nada sobrevindo aos autos, o(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência registou a declaração de insolvência sobre o imóvel. 9. O valor patrimonial tributário do prédio apreendido, € 121 365,46, foi determinado no ano de 2018. 10. O(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência juntou “certidão de encerramento do leilão eletrónico em que houve proposta superior ao valor mínimo, mas inferior ao valor base da venda os 233.000,00€, no valor de 207.080,20€.” 11. O encerramento do leilão ocorreu em 25-10-2023 11:11. 12. A Requerente juntou procuração aos autos em 23-11-2023. 13. Em 11-03-2024, foi junta aos autos proposta para compra do imóvel apreendido na insolvência no montante de € 210 000,00. 14. Declarou o(a) Sr.(ª) Administrador(a) da Insolvência aos autos: “(…) tendo em consideração o requerimento apresentado pela mandatária da ex-companheira do insolvente nos autos principais no passado dia 11.03.2024, não irá ter em conta a proposta apresentada, por extemporânea, uma vez que o anúncio de venda foi efetuado no e-leilões, comunicado atempadamente o seu resultado aos credores e sem oposição por parte dos mesmos.” – 07-05-2024, apenso de liquidação. 15. Pendeu inventário para separação de meações, requerido por M… C… 16. Foi relacionado o passivo titulado pela CAIXA ECONÓMICA MONTEPIO GERAL. 17. O inventário foi declarado extinto por inutilidade após declaração de insolvência. * B) O Direito «O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.» – art. 1º, nº1, do CIRE. É um processo especial, o qual, quanto à sua natureza, pode ser considerado misto, com uma fase marcadamente declarativa (até à declaração de insolvência) e outra claramente executiva (após a declaração de insolvência com liquidação de todo o património do devedor que integra a massa insolvente para satisfação dos credores ou através da aprovação de um plano de insolvência). Nos termos do nº1 do art. 17º do CIRE, o processo de insolvência é regido pelas regras deste código e, subsidiariamente pelo Código de Processo Civil, «em tudo o que não contrarie as disposições do presente código.». A liquidação do activo insere-se, claramente na fase “executiva” do processo de insolvência e está orientada directamente para a finalidade principal deste processo: conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores. Nos termos do disposto no nº1 do art. 164º do CIRE, a alienação dos bens compreendidos na massa insolvente é feita, designadamente, por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo, embora preferencialmente por venda em leilão electrónico. Como resulta do já citado artigo 17º, as normas do CPC apenas se aplicam se não houver norma contrária a essa aplicação no CIRE. Começou a apelante por sustentar que, em Março de 2024, foi apresentado requerimento nos autos principais, com proposta mais alta para aquisição do imóvel apreendido do que a obtida em leilão. O Administrador da Insolvência procedeu à venda sem que houvesse pronúncia dos credores sobre essa proposta. Diz que, contrariamente ao que entendeu o tribunal a quo, o facto de a venda ter sido realizada sem que houvesse pronúncia sobre a referida proposta, quer por parte dos credores, quer por parte do tribunal, implica a nulidade da mesma nos termos do disposto no artigo 195.º do C.P.Civil. Dispõe este artigo: “Regras gerais sobre a nulidade dos atos 1 - Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa. 2 - Quando um ato tenha de ser anulado, anulam-se também os termos subsequentes que dele dependam absolutamente; a nulidade de uma parte do ato não prejudica as outras partes que dela sejam independentes. 3 - Se o vício de que o ato sofre impedir a produção de determinado efeito, não se têm como necessariamente prejudicados os efeitos para cuja produção o ato se mostre idóneo.” No que respeita à venda em processo executivo, estabelece o art. 812º do CPC: «1 - Quando a lei não disponha diversamente, a decisão sobre a venda cabe ao agente de execução, ouvidos o exequente, o executado e os credores com garantia sobre os bens a vender. 2 - A decisão tem como objeto: a) A modalidade da venda, relativamente a todos ou a cada categoria de bens penhorados; b) O valor base dos bens a vender; c) A eventual formação de lotes, com vista à venda em conjunto de bens penhorados. 3 - O valor de base dos bens imóveis corresponde ao maior dos seguintes valores: a) Valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efetuada há menos de seis anos; b) Valor de mercado. 4 - Em relação aos bens não referidos no número anterior, o agente de execução fixa o seu valor de base de acordo com o valor de mercado. 5 - Nos casos da alínea b) do n.º 3 e do número anterior, o agente de execução pode promover as diligências necessárias à fixação do valor do bem de acordo com o valor de mercado, quando o considere vantajoso ou algum dos interessados o pretenda. 6 - A decisão é notificada pelo agente de execução ao exequente, ao executado e aos credores reclamantes de créditos com garantia sobre os bens a vender, preferencialmente por meios eletrónicos. 7 - Se o executado, o exequente ou um credor reclamante discordar da decisão, cabe ao juiz decidir; da decisão deste não há recurso.» Em processo executivo singular devem ser ouvidos o exequente, o executado e os credores com garantia sobre os bens a vender. No que concerne ao processo de insolvência, estabelece o art. 55º, n.º 1, do CIRE, que são funções da competência do administrador, entre outras: “a) Preparar o pagamento das dívidas do insolvente à custa das quantias em dinheiro existentes na massa insolvente, designadamente das que constituem produto da alienação, que lhe incumbe promover, dos bens que a integram”. Nos termos do disposto no n.º 5 do mesmo artigo: “Ao administrador da insolvência compete ainda prestar oportunamente à comissão de credores e ao tribunal todas as informações necessárias sobre a administração e a liquidação da massa insolvente. Por sua vez, estabelece o artº 164º do mesmo Código: “1- O administrador da insolvência escolhe a modalidade da alienação dos bens, podendo optar por qualquer das que são admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente. 2- O credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projetada a entidade determinada. (…)” Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 3ª edição, Quid Juris, págs. 616 e 617: “… a decisão quanto à escolha é cometida, em exclusivo, ao administrador da insolvência, segundo o seu critério e tendo em conta o que entenda ser mais conveniente para os interesses dos credores…” Esta opção do legislador tem várias consequências, uma delas “a decisão (do Administrador da Insolvência) não ser censurável através de qualquer tipo de impugnação, perante os outros órgãos ou perante o juiz.” O Administrador da Insolvência não está, porém, impedido de, por sua própria iniciativa, solicitar a colaboração da comissão de credores ou da própria assembleia, podendo fazê-lo “em termos meramente consultivos e, nessa eventualidade, não está sujeito a seguir a orientação definida.” E prosseguem estes autores “Curiosamente, por virtude da primeira parte do n.º 2 – o qual, todavia, acolhe especificamente, em sede de processo de insolvência, o que já está consagrado, no processo executivo comum, pelo nº1 do art. 812º do CPC – o administrador deve sempre ouvir previamente os credores com garantia real sobre os bens a alienar acerca do meio pelo qual devem ser vendidos. (…) Mas o facto de o nº2 limitar a audição ao credor com garantia real afasta a necessidade de auscultar o devedor insolvente, que decorreria da aplicação subsidiária do dito nº1 do art. 812º, legitimado pelo art. 17º do CIRE (sobre estes pontos, e no sentido propugnado, podem ver-se os Acs. da Rel. de Guim., de 15/Set/2011, no processo 4771/07.5TBBCL-H-G1, e de 28/Jul/2008, no processo 1566/08.2).” E percebe-se que assim seja: Por um lado, a finalidade subjacente ao regime estatuído no art.º 164.º é apenas a tutela do direito de crédito e por outro, aquando da realização da venda, o insolvente já tem conhecimento que bens lhe foram apreendidos e que os mesmos terão que ser vendidos pelo Administrador da Insolvência. É ónus do insolvente acompanhar o estado da liquidação e adoptar os procedimentos entendidos por convenientes. Todavia, estando em causa alienações que constituam actos de especial relevo, dispõe o artigo 161º do CIRE: “1 - Depende do consentimento da comissão de credores, ou, se esta não existir, da assembleia de credores, a prática de actos jurídicos que assumam especial relevo para o processo de insolvência. 2 - Na qualificação de um acto como de especial relevo atende-se aos riscos envolvidos e às suas repercussões sobre a tramitação ulterior do processo, às perspectivas de satisfação dos credores da insolvência e à susceptibilidade de recuperação da empresa. 3 - Constituem, designadamente, actos de especial relevo: a) A venda da empresa, de estabelecimentos ou da totalidade das existências; b) A alienação de bens necessários à continuação da exploração da empresa, anteriormente ao respectivo encerramento; c) A alienação de participações noutras sociedades destinadas a garantir o estabelecimento com estas de uma relação duradoura; d) A aquisição de imóveis; e) A celebração de novos contratos de execução duradoura; f) A assunção de obrigações de terceiros e a constituição de garantias; g) A alienação de qualquer bem da empresa por preço igual ou superior a (euro) 10000 e que represente, pelo menos, 10% do valor da massa insolvente, tal como existente à data da declaração da insolvência, salvo se se tratar de bens do activo circulante ou for fácil a sua substituição por outro da mesma natureza. 4 - A intenção de efectuar alienações que constituam actos de especial relevo por negociação particular bem como a identidade do adquirente e todas as demais condições do negócio deverão ser comunicadas não só à comissão de credores, se existir, como ao devedor, com a antecedência mínima de 15 dias relativamente à data da transacção”. Dos normativos aplicáveis não resulta a obrigação de notificação da contitular do imóvel apreendido para se pronunciar sobre a venda a ter lugar na modalidade de leilão electrónico, sendo certo que tal obrigação de audição também não existe relativamente ao devedor. A venda dos bens penhorados ou que integram a massa insolvente por meio de leilão electrónico é o meio preferencial de venda quer no processo executivo em geral, quer no de insolvência em sede de liquidação da massa insolvente e relativamente a tal venda estabelece o art. 837º do CPC, que esta será regulamentada por portaria do membro do Governo responsável pela área da justiça (nº 1); que à mesma é aplicável, em sede de publicitação, com as devidas adaptações, o disposto nos nºs 2 a 4 do art. 817º (nº 2) e que àquela se aplicam as regras relativas à venda em estabelecimento de leilão, em tudo o que não estiver regulado na portaria referida no n.º 1 (nº 2). A portaria a que alude o n.º 1 supra referido é a Portaria nº 282/2013, de 29/08, com as sucessivas alterações que foram sendo introduzidas, sendo a última versão a que resulta da Portaria n.º 239/2020, de 12/10, a qual entrou em vigor em 13 de Outubro de 2020 (cfr. art. 3º desta mesma Portaria). O artº 20º da Portaria nº 282/2013 estabelece que a venda em leilão electrónico é “a modalidade de venda de bens penhorados que se processa em plataforma eletrónica acessível na Internet, concebida especificamente para permitir a licitação dos bens a vender em processo de execução, nos termos definidos na presente portaria e nas regras do sistema que venham a ser aprovadas pela entidade gestora da plataforma e homologadas pelo membro do governo responsável pela área da justiça”. O art. 21º dessa Portaria estabelece as regras gerais a que obedece a venda por leilão electrónico, estatuindo o nº 2 deste artigo que: “o dia e hora de abertura e de termo de cada leilão eletrónico são estabelecidos pela entidade gestora da plataforma eletrónica, pelo menos, com cinco dias de antecedência face ao seu início”. O art. 23º dispõe que: “as ofertas de licitação para aquisição dos bens em leilão são introduzidas na plataforma a que se refere o art. 20º, entre o momento de abertura do leilão e o dia designado na plataforma eletrónica referida no artigo anterior para o seu termo” (n.º 1); “só podem ser aceites ofertas de valor igual ou superior ao valor base da licitação de cada bem a vender e, de entre estas, é escolhida, a proposta cuja oferta corresponde ao maior dos valores de qualquer das ofertas anteriormente inseridas no sistema para essa venda” (n.º 2); que “as ofertas uma vez introduzidas no sistema, não podem ser retiradas” (n.º 3). O resultado do leilão é disponibilizado no sítio da Internet de acesso ao público a que se refere o n.º 1 do art. 21º - artº 24 e o artigo 25º determina que “à falta de pagamento do preço no prazo legal é aplicável o disposto no art. 825º do CPC, devendo as condições de pagamento ser definidas nas regras do sistema”. Lê-se no art. 26º da mesma Portaria que “compete ao agente de execução a decisão de adjudicação dos bens” Por sua vez, as regras do sistema e que identificam a entidade gestora da plataforma a que alude o art. 21º, n.º 1 da Portaria, constam do Despacho n.º 1264/2015, de 09/11, da Ministra da Justiça, em que se define como entidade gestora da plataforma em que se processa a venda por leilão eletrónico a Câmara dos Solicitadores. Lê-se no art. 2º, n.º 1, al. a) desse despacho que, para efeitos das regras nele previstas, entende-se por adjudicação “a decisão tomada no âmbito do processo de execução pelo agente de execução, que decida a venda de um bem ou conjunto dos bens integrados num lote, a um utente que apresentou a licitação mais elevada, depois de ter depositado o preço e demonstrado o cumprimento das obrigações” e o artº 8º, n.º 10, do mesmo Despacho estabelece que: “no prazo de dez dias contados da certificação da conclusão do leilão, o agente de execução titular do processo deve dar cumprimento a toda a tramitação necessária para que a proposta se considere aceite e o bem seja adjudicado ao proponente, nos termos previstos para a venda por propostas em carta fechada”. Conforme resulta da certidão de encerramento do leilão junta ao apenso de liquidação em 26-10-2023, o leilão realizado nos autos de insolvência encerrou em 25-10-2023, às 11.11h, ou seja, quando foi junta aos autos a proposta para compra do imóvel apreendido na insolvência pelo valor de € 210.000,00 – em 11-03-2024 -, já há muito havia encerrado o leilão relativo à venda do imóvel. O facto de ainda não ter sido outorgada a respectiva escritura pública de compra e venda em nada releva para afastar a intempestividade da “proposta” apresentada, proposta essa que tão pouco foi efectuada de acordo com os trâmites estabelecidos na lei e que supra ficaram referidos. Deste modo, contrariamente ao que sustentou a recorrente, o facto de o Administrador da Insolvência ter outorgado a escritura de compra e venda sem que os credores se tivessem pronunciado relativamente à “proposta” apresentada por C… Actividades Hoteleiras, Unipessoal, Lda, não se traduz em qualquer nulidade ou irregularidade que possa influir no exame ou na decisão da causa. Invocou ainda a mesma que foi violado o disposto no artigo 159.º do CIRE, pois apenas poderia ter sido vendido o direito a metade do imóvel pertencente ao insolvente e não também a sua “metade” no imóvel. Pela natureza da comunhão conjugal, o património comum é objecto de um direito único de propriedade titulado por ambos os cônjuges e que, por isso, se diz colectivo. Contrariamente ao que sucede na compropriedade, o direito dos cônjuges sobre o património comum não tem como objecto uma quota ideal ou a metade de cada um dos bens que o integram, mas sim todo o património, em bloco, estando por isso vedada aos cônjuges a possibilidade de, cada um, alienar ou onerar bens ou parte especificada de bens comuns, ou de qualquer quota ideal sobre os mesmos. Daqui resulta a inexistência jurídica do direito da recorrente a metade do imóvel. A admissibilidade legal da apreensão de bens que integram o património comum conjugal decorre da previsão legal da possibilidade de separação da meação nos bens comuns. Conforme prevê o art. 141º, nº 1, al. b), do CIRE, a lei confere ao cônjuge não devedor a faculdade de pedir a verificação do direito à separação da sua meação, direito que deverá ser exercido por meio de requerimento com pedido de separação da sua meação a apresentar consoante a fase dos autos em que a apreensão foi realizada: ou no prazo designado na sentença para a reclamação de créditos, nos termos do art. 128º; ou, caso este já tenha decorrido ou a apreensão ocorra a menos de 5 dias do seu termo, nos 5 dias posteriores à apreensão através de procedimento especial por apenso ao processo de insolvência, nos termos do art. 144º ou da acção comum para verificação do direito à separação da meação prevista pelo art. 146º, nº 2, do CIRE. A comunhão conjugal patrimonial caracteriza-se como um direito uno sobre a massa de bens que integram o património do casal, com a particularidade de este pertencer, simultaneamente e em bloco, aos dois cônjuges, sendo qualquer deles titular do direito único sobre ela, e permanece com tal natureza, não só durante, mas também após a cessação do casamento, até à partilha subsequente à dissolução matrimonial. No dia 03-02-2022, a ora apelante foi notificada pelo Administrador da Insolvência: “(…) na qualidade ex-cônjuge do Insolvente, e contitular da meação do prédio (…) com o valor patrimonial 121.365,46€, (…), nos termos previstos nos artigos 141º, nº 1, alínea b) e 144º, nº 1 do CIRE, artigos 719º, nº 1 e 740º, nº 1 do Código de Processo Civil aplicáveis ex vi artigos 17º, 149º, nº 1 e 150º, nº 1 do CIRE, da penhora e apreensão do identificado imóvel, com expressa advertência de que o mesmo fica à ordem deste Processo de Insolvência até que se proceda à respetiva venda. Poderá, querendo deduzir reclamação no prazo de 10 dias a contar da assinatura do aviso de receção, visando a separação dos bens artigo 141º, nº 1, alínea b) do CIRE.”. Nada tendo sido requerido pela ex-cônjuge do insolvente, ora, apelante, o Administrador da Insolvência registou a declaração de insolvência sobre o imóvel. Diga-se, ainda, que a ex-mulher do insolvente, ora apelante, é também condevedora dos créditos da Caixa Económica Montepio Geral, credora que viu tais créditos graduados como garantidos para serem pagos pelo produto do imóvel apreendido, por força da hipoteca constituída a seu favor. Não há, assim, fundamento para que a venda seja anulada nos termos do artº 195º do C.P.Civil e tão pouco se pode concluir que a coisa vendida não pertença ao devedor, não procedendo o invocado pela apelante no sentido que a venda devesse ficar sem efeito nos termos das alíneas c) e d) do artigo 839º, nº1, do referido código. Atento o que ficou referido, sendo a “proposta” apresentada nos autos para aquisição do bem pela quantia de € 210.000,00 intempestiva, não podia a mesma ser considerada nos termos invocados pela apelante. Não está em causa qualquer interpretação do artº 163º e 164º, nº3, do CIRE, desconforme com o disposto no artº 20º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa. Este artigo da Lei Fundamental consagra o princípio do acesso ao direito e aos tribunais ao estabelecer que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos. A recorrente, além de ter tido acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos, teve direito a um processo equitativo, não lhe tendo sido negado o direito à acção, exercendo, quando entendeu o contraditório e, não foi vítima de qualquer discriminação ou diferença de tratamento arbitrário. O que se verifica é que a pretensão formulada pela mesma e apreciada pelo tribunal não pode merecer acolhimento. Deve, pois, o recurso ser julgado improcedente. * IV-DECISÃO Em face do exposto acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo o despacho recorrido. Custas: pela apelante – artº 527º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil. Registe e Notifique. Lisboa, 11/11/2025 Manuela Espadaneira Lopes Amélia Sofia Rebelo Fátima Reis Silva |