Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
369/12.4TBGMR-A.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: EXECUÇÃO
PENHORA
RENDIMENTOS PERIÓDICOS E NÃO PERIÓDICOS
INDEMNIZAÇÃO POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/20/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O art.738.º do actual CPC, deixou de exigir a periodicidade dos rendimentos, contemplando a possibilidade de impenhorabilidade de rendimentos não só periódicos mas também não periódicos, desde que tenham a função alimentícia e de sustento de uma pessoa singular.
II - O assento tónico a ter agora em consideração, como critério da função da prestação a que o executado tem direito, é o de assegurar a subsistência do executado.
III - O que é decisivo é, portanto, a função da prestação e não a sua periodicidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório

A executada AA deduziu incidente de oposição à penhora por apenso à execução em que são exequentes EMP01... e EMP02..., visando o levantamento da penhora sobre a quantia de € 8.333,33 apreendida no saldo da conta no Banco 1... de que é titular, alegando que a mesma era impenhorável, por provir de indemnização por acidente de viação.
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Notificada a exequente EMP01... veio contestar, alegando, em suma, que, atento o valor da indemnização recebida, o limite máximo da impenhorabilidade e os valores entretanto igualmente creditados na conta, a oposição deve improceder.
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II- Objecto do recurso

Não se conformando com essa decisão, veio a executada interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - Foi proferida decisão a julgar improcedente a oposição à penhora deduzida pela então Executada, não podendo esta última conformar-se com aquela, uma vez que, sempre salvo o devido e muito respeito que nos merece, mal andou o Tribunal recorrido na interpretação dos factos e aplicação do direito;
2.ª - Tendo sempre em linha de conta a matéria de facto dada como provada e não provada – a qual, por brevidade, aqui se dá por integrada e reproduzida para todos os efeitos legais – importa atentar na própria letra da Lei, isto é, no preceituado no artigo 738.º, n.º 1 e 3 do CPC;
3.ª - Estatui o n.º 1, do referido artigo 738.º do CPC que “São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”, mais preceituando o seu n.º 3 que “A impenhorabilidade prescrita no n.º 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional”;
4.ª - Perante o conflito entre o direito que assiste ao credor em ver realizado o seu direito de crédito e o direito dos beneficiários de indemnização por causa de acidentes – entre outros – em receberem um rendimento/valor que lhes garanta uma sobrevivência condigna, optou o legislador pelo sacrifício do direito do credor, na medida do necessário ou mesmo de forma integral, como acontece no caso das indemnizações resultantes dos acidentes de trabalho;
5.ª - E na senda desse entendimento, já o nosso Tribunal Constitucional veio a declarar a inconstitucionalidade do preceituado nos n.ºs 1 e 2 do artigo 824.º do anterior CPC, por considerar que tais disposições violavam o Princípio da Dignidade Humana subjacente ao Princípio do Estado de Direito, consagrados na nossa Lei Fundamental;
6.ª - Posto isto, e atendendo à expressão legal “à data de cada apreensão” constante do n.º 3, do artigo 738.º CPC, facilmente se constata que este apenas se aplica quando estão em causa prestações periódicas, o que manifestamente não é o caso, pois a indemnização paga à Recorrente por força do acidente de viação de que foi vítima foi paga na totalidade e de uma só vez;
7.ª - Pensar o contrário, considerando também nestes casos operada a limitação de três salários mínimos à data de cada apreensão seria, de forma perfeitamente enviusada, desconsiderar a natureza e a finalidade da indemnização que lhe foi atribuída pela seguradora;
8.ª - Por outro lado, e embora resulte do artigo 11.º do Código Civil (doravante designado por CC) que “As normas excepcionais não comportam aplicação analógica (…)”, tal não invalida que admitam uma “(…) interpretação extensiva”, o que se compreende, atento que se existe uma regra geral e uma excepção normativa a esta mesma regra, será esta última a ser aplicada às questões particulares que pretendeu abranger;
9.ª - E a verdade é que a indemnização de € 20.500,00 recebida pela Apelante em virtude do acidente de viação de que foi vítima é em tudo similar à indemnização que a mesma receberia caso o acidente que protagonizou à vinda do trabalho tivesse sido enquadrado no foro laboral;
10.ª - Convenhamos que a indemnização que recebeu e foi penhorada à ordem da execução aqui sub judice, sempre se destinou a compensar as perdas salariais que sofreu, associadas à incapacidade física de que ficou a padecer, a ressarcir o dano biológico, enquanto diminuição psico-somática e funcional da Apelante, com repercussão na sua vida pessoal e profissional e, concomitantemente, da eventual privação para o exercício de futuras actividades profissionais;
11.ª - A única diferença apenas reside no facto de, no caso dos acidentes de trabalho, existir uma normal especial, mais concretamente o artigo 78.º, da Lei n.º 98/2009, de 04/09, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 83/2021, de 6/12;
12.ª - A indemnização recebida pela Recorrente destinou-se a compensá-la pelos danos presente e futuros sofridos e não a um pagamento, na perspectiva de um acréscimo financeiro a título de ganho ou benefício patrimonial, padecendo, assim, a sentença recorrida de vários vícios;
13.ª - Se bem entendemos, o Tribunal a quo tendo considerado aplicável o estatuído no n.º 1, do artigo 738.º do CPC, entendeu que, do mesmo modo, a situação se subsumia ao preceituado no n.º 3 do mesmo normativo, o que não é correcto, pois como já se disse, este último apenas é aplicável quando estão em causa prestações periódicas;
14.ª - Sufragando o entendimento vindo de referir e considerando que desde o recebimento da indemnização de € 20.500,00 a Apelante movimentou a conta bancária e que a mesma tinha outros rendimentos, a Meritíssima Juíza a quo decidiu julgar o incidente aqui em crise improcedente, mas o certo é que Tribunal recorrido, além de saber que o montante da indemnização ascendeu a € 20.500,00, também conhecia que na data do crédito da mesma na conta bancária da Recorrente, aí existia um saldo de apenas € 14,90;
15.ª - Ou seja, o Tribunal a quo tinha plena consciência de que do saldo da conta da Apelante, isto é, do total de € 20.514,90, apenas € 14,90 eram dinheiros próprios e € 20.500,00 eram respeitantes à indemnização (€14,90 de saldo + € 20.514,90 referentes ao montante indemnizatório) = €20.514,90), pelo que, desde logo, se lhe assistiam dúvidas que à data da penhora, isto é, em 04 de Setembro de 2023, os valores existentes na conta bancária em causa seriam, na sua totalidade, referentes à indemnização, podia, uma vez que tinha na sua posse elementos suficientes para o fazer, determinar de imediato o valor da indemnização que indevida e ilegalmente foi penhorado à Apelante pelos Recorridos;
16.ª - Aplicando o n.º 1, do artigo 738.º do CPC, os Recorridos apenas poderiam penhorar 1/3 dos ditos € 20.500,00, isto é, € 6.833,33 (€ 20.500,00 x 1/3), o que significa que se o montante efectiva e reconhecidamente penhorado à Apelante ascendeu a € 11.740,00, sempre este excedeu o legalmente permitido em € 4.906,67 (€ 11.740,00 - € 6.833,33), o que desde já se invoca para todos os efeitos legais, devendo tal valor ilegitimamente penhorado ser devolvido à Recorrente;
17.ª - Por seu turno, se o Tribunal recorrido entendesse, como entendeu, que o momento para apurar o montante existente na conta bancária que correspondia à indemnização recebida era o momento em que a penhora se concretizou, isto é, 4 de Setembro de 2023, não podia, sem mais e por essa razão, julgar a oposição à penhora deduzida pela então Executada improcedente, devendo, nesse caso, os autos ter seguido para julgamento;
18.ª - E mesmo que em sede de audiência de discussão e julgamento não se apurasse com exactidão o montante em questão, ou seja, o valor constante da conta bancária do Apelante que, no momento da efectivação da penhora correspondia à indemnização relativa ao acidente sofrido, sempre a Meritíssima Juíza a quo podia decidir que os autos prosseguissem com o incidente de liquidação (artigos 358.º e seguintes do CPC);
19.ª - À guisa de conclusão, apraz-nos dizer que a decisão que reflectiria a verdadeira justiça, passava por considerar o momento de recebimento da indemnização e o montante da mesma, dando-se como impenhorável 2/3 desse montante que, como se viu, se cifra em € 13.666,67 (€ 20.500,00 – 1/3);
20.ª - Do mesmo modo, o Tribunal recorrido ao dar como não provado que a Executada auferia um rendimento médio mensal correspondentes ao salário mínimo nacional, teria, forçosamente, e em face dos dados constantes dos autos, que dar como provado que o rendimento médio mensal auferido pela Executada não ultrapassava o salário mínimo nacional, pois só assim se compreende a notificação que lhe foi efectuada em 6 de Novembro de 2023, a que coube a referência ...97, para que viesse aos autos esclarecer e documentar o seu rendimento mensal relativo aos meses de Julho, Agosto e Setembro de 2023;
21.ª - Em cumprimento desse douto despacho, a Apelante tirou print do seu site da Autoridade Tributária, relativo às facturas que emitiu entre Janeiro e Outubro de 2023 (uma vez que só aufere rendimentos de categoria B), de onde resulta que auferiu nesse período o montante de € 5.568,80;
22.ª - E eram só estes dados documentais que o Tribunal a quo possuía para aferir se o rendimento médio mensal recebido pela então Executada era inferior, igual, ou superior ao salário mínimo nacional;
23.ª - Em face do vindo de alegar, é nosso entendimento que a douta decisão ora sob recurso padece de alguns dos vícios que se encontram elencados nas alíneas b), c) e d), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC;
24.ª - A decisão ora em causa decidiu julgar improcedente o incidente de oposição à penhora sem especificar os factos de forma suficientemente clara que lhe serviram de base, pois se atentarmos aos factos elencados na matéria de facto dada como provada, outra decisão não se esperaria do que a oposição ser julgada procedente, com a única particularidade de a parte impenhorável da indemnização - 2/3 - recebida pela Recorrente ser calculada sobre o montante total da mesma, ou seja, € 20.500,00;
25.ª - Não se consegue extrair dos fundamentos de facto e/ou de direito a razão que esteve na base do decidido, pois a motivação de facto constante da decisão aqui sub judice não é de modo algum suficiente para que se decida do modo que se decidiu, padecendo, assim, a decisão recorrida da nulidade prevista na alínea b), do n.º 1, do artigo 615.º do CPC;
26.ª - Por outro lado, também se verifica o vício previsto na alínea c), do n.º 1, do já referido artigo 615.º do CPC, pelo menos pelo facto de no âmbito da aplicação do direito constante da decisão se ter aludido, como se disse, aos n.ºs 1 e 3 do citado artigo 738.º do CPC, o que cria, pelo menos, uma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível;
27.ª - Analisando a sentença recorrida, não se torna possível compreender se o Tribunal a quo entendeu ser aplicável o n.º 1 do artigo 738.º, apenas o n.º 3 desse mesmo preceito legal, ou, até, ambos, pese embora continuemos a entender que no concreto caso em apreço o referido n.º 3 não tenha aplicação, pois em momento algum é tomada uma posição clara e objectiva a este respeito;
28.ª - A decisão aqui em recurso violou, assim e pelo menos, o disposto no n.º 1, do artigo 738.º do CPC, 1.º da Constituição da República Portuguesa e as alíneas b) e c), do n.º 1, do artigo 615.º do mesmo diploma legal, o que aqui se invoca para todos os efeitos legais.
Termos em que, sempre com o mui douto suprimento de V.ªs Ex.ªs, deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ordenada a restituição à Recorrente da quantia de, pelo menos, €4.906,67, assim se fazendo a melhor e costumada JUSTIÇA!
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A exequente apresentou as suas contra-alegações pugnando para que seja negado provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida, prosseguindo os autos os seus normais termos, até final, assim se fazendo a costumada Justiça!
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Admitido o recurso, foram colhidos os vistos legais.
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III- O Direito

Como resulta do disposto nos art..ºs 608.º, nº. 2, ex vi do artº. 663.º, n.º 2, 635.º, nº. 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso. 
Assim, face às conclusões das alegações de recurso, a questão a apreciar passa por apurar se a decisão proferida padece de nulidade, passando pela interpretação sobre a aplicação do disposto no art. 738.º, n.ºs 1 e 3, do Cód. Proc. Civil.
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Fundamentos de facto

Factos provados

a) Nos presentes autos foi apreendida, em 4/9/2023, a quantia de € 11.740,00 existente no saldo de conta da executada no Banco 1... (IBAN  ...05);--
b) No dia 7/8/2023 a conta referida em a) apresentava um saldo positivo de €: 14,90;--
c) No dia 8/8/2023 foi creditada na conta referida em a) a quantia de €: 20.500, proveniente de indemnização paga à executada pela Companhia de Seguros EMP03..., S.A. em virtude dos danos que esta sofreu, pela circunstância de ter sido vítima de um acidente de viação ocorrido em 22/10/2022;----
d) A executada aufere rendimentos provenientes de prestações de serviços em valores variáveis;---
e) A quantia de € 6.000,00 do valor total pago à Executada a título de indemnização, respeita a danos futuros;--
f) Desde a data em que o montante correspondente à indemnização entrou na conta bancaria (em 08.08.2023) até à data de 31.08.2023, foram creditados na conta referida em a) vários valores, num total de 3.933,50 €;--
g) Nos meses de fevereiro, março e julho de 2023, a Oponente auferiu, pelo menos, as quantias de 1.129,00 €, 900,00 € e 1.379,00€.---
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Factos não provados

1) Na altura em que essa penhora foi efectuada, a Executada tinha na sua conta bancária a quantia de € 12.500,00, que correspondiam na sua totalidade ao remanescente da indemnização recebida por força do acidente de viação acima melhor identificado;--
2) A Executada aufere um rendimento médio mensal que corresponde ao salário mínimo nacional.--
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Fundamentação jurídica

Considerando que a recorrente apresenta toda uma série de argumentos por forma a concluir pela nulidade da sentença com base no disposto nas als. b), c) e d), do n.º 1, do art. 615.º, do Cód. Proc. Civil, cumpre apreciar e decidir sobre os vícios previstos nesse preceito, correspondentes a casos de irregularidades ou ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adoptado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia) — als. a) a e) do n.º 1 do art.º 615 do CPC.
Especificamente, quanto à nulidade prevista na alínea b), desse preceito, diz-se que a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Corresponde, assim, à sanção pelo desrespeito do disposto no art. 154º, nº 1 do mesmo diploma legal que estabelece que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”, o qual assenta no princípio constitucional da obrigatoriedade de fundamentação de todas as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente (art. 205.º, n.º 1 da CRP).
Mas, como refere Teixeira de Sousa “apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão (...); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão” [In “Estudos sobre o Processo Civil”, pg. 221], tal como Lebre de Freitas, “há nulidade quando falte em absoluto indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação” [In CPC, pg. 297].
Relativamente à concreta nulidade prevista na alínea c) do n.º 1 do art.º 615.º do C.P.C., exige-se, para a sua verificação, a oposição entre a decisão e os fundamentos em que assenta ou que ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
A sentença enfermará deste vício se na fundamentação o juiz seguir uma determinada linha de raciocínio, que aponta para uma determinada conclusão, mas acaba por decidir em sentido oposto ou, pelo menos, divergente, remetendo-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos.
Como escrevem Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, “Dos Recursos”, Quid Júris, pág. 117: “A observação da realidade judiciária mostra que é vulgar a arguição da nulidade da decisão … E a verdade é que por vezes se torna difícil distinguir o error in judicando – o erro na apreciação da matéria de facto ou na determinação e interpretação da norma jurídica aplicável – e o error in procedendo, como é aquele que está na origem da decisão”.
No mesmo sentido o Ac. do S. T. J. de 30/9/2010, Proc. n.º 341/08.9TCGMR.G1.S2, in www.dgsi.pt, refere que “o erro de julgamento (error in judicando) resulta de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error júris), para que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa”.
Porque assim é, as nulidades da decisão, são vícios intrínsecos da própria decisão, deficiências da estrutura da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável. Nesta última situação, o tribunal fundamenta a decisão, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito (cf. Ac. RC de 15.4.08, Proc.1351/05.3TBCBR.C1).
Já segundo o disposto no art. 615.º, n.º 1 al. d) do CPC, é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
A previsão deste art. 615.º, n.º 1, al. d) está em consonância com o comando do n.º 2 do art. 608.º do mesmo Código, em que se prescreve que «O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Considera a recorrente que a decisão padece dos vícios enunciados nas als. b), c) e d), do art. 615.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, porquanto entende que não foram suficientemente especificados de forma clara os factos que serviram de base à decisão sobre o incidente de oposição à penhora e que, com base nesses factos, se teria de julgar procedente tal incidente e não improcedente.
Por outro lado, considera que ao ter-se atendido simultaneamente ao que se especifica nos n.ºs 1 e 3, do art. 738.º, do mesmo diploma, se incorreu em ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível, atendendo a que defende que o seu n.º 3 não é aplicável ao caso.
Já por forma a consubstanciar as razões que permitiriam o enquadramento do caso na al. d), do n.º 1, do art. 615.º, do Cód. Proc. Civil, não se consegue percepcionar, nas conclusões das alegações da recorrente, qual o concreto vício de que enferma o decidido susceptível de integrar uma das suas causas, por não expressamente apontada e identificada.
Começando pela factualidade dada como provada e não provada, constata-se que o tribunal a quo especificou exactamente qual a situação real e concreta verificada nos autos, mencionando o valor e data da apreensão do saldo bancário, montante depositado a título de indemnização, quantias auferidas pela executada de valor variável e respectivos montantes que constam do extracto bancário como tendo sido aí depositados e, consequentemente, o que se deu como não provado, decorrente do que se pode até apurar dos factos apurados.
Depois, na própria motivação, especificou-se quais os fundamentos e razões que levaram o tribunal a quo a dar como provada e não provada a elencada matéria factual.
Daqui decorre que não há falta de fundamentação factual ou qualquer outro vício a esse título que consubstancie a nulidade invocada.
Já o não se concordar com o decidido a título factual, caso não resultasse de um inconformismo sem fundamento, prender-se-ia quando muito com um erro de julgamento a ser alicerçado nos termos do disposto no art. 640.º, do Cód. Proc. Civil, que, por não fazer parte do objecto de recurso, não pode ser conhecido, por falta, para além do mais, do específico erro alegadamente cometido.
Já quanto ao erro de decisão quanto à integração e interpretação dos factos no direito aplicado, constata-se que o tribunal a quo se limitou a transcrever o que consta do disposto nos n.º 1 e 3, do art. 738.º, do Cód. Proc. Civil, e a concluir não se ter apurado que ‘o valor depositado à data da penhora correspondesse na íntegra ao valor da indemnização’ e bem assim que ‘a oponente tinha e tem outro rendimentos, que assumem frequentemente valores superiores ao rendimento mínimo mensal garantido’, concluindo, assim, serem parcialmente penhoráveis.
Depois, após se ter concluído não se poder fazer corresponder o valor penhorado ao dos danos futuros e que a afectação das condições de vida da executada não constitui fundamento para oposição à penhora, julgou-se o incidente improcedente.
Do exposto retira-se que, apesar de parca argumentação quanto ao direito aplicável, é possível retirar-se que a decisão proferida entendeu não se considerarem verificados os pressupostos de redução do valor penhorado, por se ter julgado não se ter provado os requisitos que implicavam a redução desse valor.
Assim, não se verifica qualquer oposição entre a decisão e os fundamentos em que assenta ou que ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Diferente é já não se concordar com o decidido.
Nesta perspectiva importa, pois, apurar se ocorreu uma incorrecta interpretação e integração dos factos no direito aplicável de forma mais detalhada e analítica.
Como se sabe, a acção executiva visa assegurar ao credor a satisfação da prestação que o devedor não cumpriu voluntariamente, seja através do produto da venda executiva de bens ou direitos patrimoniais daquele devedor ou da realização, por terceiro devedor, em favor da execução, da prestação (artºs 10.º, n.º 4, do CPC e 817.º do Código Civil).
Contudo, a penhora pressupõe uma adequação entre meios e fins, o que significa que não devem ser penhorados mais bens do que os necessários para a satisfação da pretensão exequenda.
Assim, a agressão do património do executado só é permitida numa medida que seja adequada e necessária para a satisfação da pretensão do exequente, o que impõe a indispensável ponderação dos interesses do exequente na realização da prestação e do executado na salvaguarda do seu património. Essa ponderação conduz a que a natural e indispensável prevalência dos interesses do exequente não pode fundamentar uma completa indiferença pelos do executado, dado que a posição jurídica do credor, embora prevalecente, não pode ser considerada absoluta – cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, págs. 641 e 642, e Acção Executiva Singular, Lisboa, Lex, 1998, págs. 33 e 34.
A impugnação da penhora fundamenta-se num vício que afecta esse acto e, caso seja julgada procedente, importa o levantamento, no todo ou em parte, dessa penhora, pelo que a oposição à penhora constitui um incidente da execução e baseia-se sempre num fundamento que releva da violação dos limites objectivos desse acto (art.º 784.º, n.º 1, al. a), do Cód. Proc. Civil).
Constitui regra geral do cumprimento das obrigações e da sua execução coerciva a responsabilidade patrimonial geral do devedor (art.735.º/1 do CPC), sem prejuízo dos regimes especialmente estabelecidos em consequência da separação e patrimónios (art.601.º do CC).
Excepções a esta regra geral são as previsões que estabelecem impenhorabilidades absolutas, impenhorabilidades relativas ou impenhorabilidades parciais (arts.736.º, 737.º, 738.º e 739.º do CPC).
Normas estas que estão sujeitas a regras de interpretação do julgador (art.9.º do CC) e que não devem cingir-se à sua letra mas devem reconstituir o pensamento legislativo, tendo em conta, sobretudo, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
Tais normas excepcionais, em particular, não comportam aplicação analógica e admitem apenas interpretação extensiva (art.11.º do CC).
Ora, examinando a evolução da letra da lei entre o regime de impenhorabilidade parcial do Código de Processo Civil de 1961, na redação introduzida pelo DL n.º 38/2003, de 8 de Março, e o regime da impenhorabilidade parcial do Código de Processo Civil de 2013, aprovado pela Lei n.º.41/2013, de 26 de Junho, verifica-se que há segmentos mantidos e segmentos alterados, quanto aos rendimentos beneficiados com o mesmo e quanto aos seus limites.
O art. 824.º do CPC de 1961, na redação introduzida pelo DL nº38/2003, de 8 de Março, previa:
"1 - São impenhoráveis:
a) Dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado;
b) Dois terços das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante.
2- A impenhorabilidade prescrita no número anterior tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos, o montante ao salário mínimo nacional".
Como observava Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, em Código de Processo Civil Anotado, vol 3,º, Coimbra, 2003, anotação ao artigo 824.º: “Trata-se, pois, em ambos os casos, de prestações periódicas, em princípio destinadas a proporcionar a satisfação das necessidades do executado. Não estão, designadamente, abrangidas as indemnizações por acidente pagas por uma só vez ou fraccionadas, mas só as que dão lugar, como é regra nos acidentes de trabalho, a prestações periódicas ou de trato sucessivo (…). Por isso, o preceito não abrange as regalias sociais, subsídio, prestações de indemnização por acidentes de trabalho e produto da sua aplicação, cuja concessão seja independente de qualquer periodicidade” (pág. 357).
Já o art.738.º do CPC de 2013, na redacção introduzida pela Lei nº41/2013, de 26 de Junho, passou a prever:
"1 - São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado.
2 - Para efeitos de apuramento da parte líquida das prestações referidas no número anterior, apenas são considerados os descontos legalmente obrigatórios.
3 - A impenhorabilidade prescrita no n.o 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional.
4 - O disposto nos números anteriores não se aplica quando o crédito exequendo for de alimentos, caso em que é impenhorável a quantia equivalente à totalidade da pensão social do regime não contributivo.
5- Na penhora de dinheiros ou de saldo bancário, é impenhorável o valor global correspondente ao salário mínimo nacional ou, tratando-se de obrigação de alimentos , o previsto no número anterior (…)".
Examinando a exposição de motivos da Lei n.º 41/2013, que aprovou o actual Código de Processo Civil, verifica-se que, em relação à alteração operada no art.738.º do CPC, se veio fixar ‘a regra da impenhorabilidade do montante equivalente a um salário mínimo nacional, quando o executado não tenha outro rendimento e o crédito exequendo não seja de alimentos (se o for, é impenhorável apenas o equivalente à pensão social do regime não contributivo)".
Em ambos os casos, de prestações periódicas, destinam-se, em princípio, a proporcionar a satisfação das necessidades do executado. Não estão, designadamente, abrangidas as indemnizações por acidente pagas por uma só vez ou as fraccionadas, mas só as que dão lugar, como é regra dos acidentes de trabalho, a prestações periódicas ou de trato sucessivo (não confundido com o de prestação dividida ou fraccionada, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, Coimbra, Almedina, 1994, ps.593-594). Por isso, o preceito não abrange as regalias sociais, subsídios, prestações de indemnização por acidente de trabalho e produto da sua aplicação, cuja concessão seja independente de qualquer periodicidade.» - neste sentido Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, volume 3º, Coimbra Editora, 2003, pág.357, em relação ao art.824º do CPC de 1961.
No entanto, o art.738.º do atual CPC, como defende Rui Pinto, in ‘A Ação Executiva’, AAFDL, 2019, págs.490 e 491, reforça que a lei deixou de exigir a periodicidade dos rendimentos, contemplando a possibilidade de impenhorabilidade de rendimentos não só periódicos mas também não periódicos, desde que tenham a função alimentícia e de sustento de uma pessoa singular.
O assento tónico a ter agora em consideração, como critério da função da prestação a que o executado tem direito, visa assegurar a subsistência do executado. “O que é decisivo é, portanto, a função da prestação e não a sua periodicidade”, escreve Rui Pinto, A Acção Executiva, Lisboa, 2018, pág. 491; “o critério que releva é o da natureza dessas prestações e não o facto de as mesmas serem disponibilizadas ao trabalhador de forma integral ou faseada” (Marco Carvalho Gonçalves, “Lições de Processo Executivo”, 4.ª ed., Coimbra, 2020, pág. 330).
Posto isto e transportando agora para o caso concreto, constata-se que não se está em face de uma qualquer prestação atribuída à executada para assegurar a sua subsistência, tendo por base precisamente essa finalidade.
Concretamente, não se alegou e provou esse objectivo e fim, pelo que despiciendo se considera apreciar e analisar a divergência de aplicação, ou não, ao caso dos limites consagrados no n.º 3, do art. 738.º, do Cód. Proc. Civil.
Pois, necessário seria, que o caso se enquadrasse no seu n.º 1, no sentido da função da prestação visar assegurar a subsistência do executado.
Por outro lado, o facto é que não foi penhorado o valor da indemnização pago à executada, mas tão só o saldo da respectiva conta bancária onde esse montante foi depositado e gasto em parte, depois de recebidas outras quantias e movimentada a conta a crédito e débito entre a data do recebimento do montante de 20.500€ até à data da penhora.
Como tal, tem, pois, de improceder o recurso, mantendo-se o decidido.
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IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes da 2.ª secção cível, deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso, mantendo, consequentemente a decisão proferida.
Custas pela recorrentes.
Registe e notifique.
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Guimarães, 20 de Junho de 2024
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária e é assinado electronicamente)