Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ROSÁLIA CUNHA | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO INDEMNIZAÇÃO DANOS PRIMEIRA AÇÃO AÇÃO POSTERIOR CASO JULGADO CAUSA DE PEDIR COMPLEXA LITISPENDÊNCIA | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 11/04/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
Sumário: | I - O caso julgado é uma exceção dilatória que pressupõe a repetição de uma causa depois de a causa anterior ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior. II – A exceção do caso julgado é imposta por três tipos de razões: - Por razões de economia processual, dada a existência de uma relação jurídica já previamente apreciada por decisão definitiva, sendo inútil, por redundante, a prolação de uma decisão que reproduza ou confirme a decisão anterior; - Por razões de salvaguarda do prestígio dos tribunais, evitando a possibilidade de decisões contraditórias; - Por razões de concretização dos valores da certeza e segurança jurídicas ínsitos ao Estado de Direito constitucionalmente consagrado. III - Nas ações cuja causa de pedir é complexa um mesmo acontecimento histórico pode permitir a existência de mais do que uma ação, entre os mesmos sujeitos, sem que ocorra uma situação de litispendência ou de caso julgado, desde que a causa de pedir e o pedido não sejam coincidentes. IV – Assim, é possível instaurar uma segunda ação relativa a um acidente de viação que já foi objeto de apreciação numa ação anterior desde que na segunda ação apenas sejam peticionados danos que não foram pedidos na ação primitiva, pois nesta hipótese não há coincidência de causa de pedir e de pedidos e, por isso, não existe a possibilidade de o tribunal, na segunda ação, reproduzir ou contrariar a decisão proferida na primeira ação, situação que com o caso de julgado se pretende evitar. V – Só nas situações em que a lei faz impender sobre uma parte um determinado ónus processual é possível afirmar que, uma vez incumprido tal ónus, fica precludida a possibilidade de posteriormente vir a ter lugar a prática do ato. VI - A circunstância de a autora na primeira ação não ter invocado e peticionado indemnização por todos os danos que sofreu decorrentes do acidente de viação de que foi vítima não obstaculiza que numa ação posterior venha invocar outros danos decorrentes desse mesmo acidente pois quanto a si não ocorre qualquer efeito preclusivo, dada a sua não sujeição a qualquer ónus processual de alegação. VII - Estando em causa critérios de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, sendo que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica. VIII – No caso de indemnização por danos não patrimoniais deve ainda atender-se à natureza mista de reparação do dano e punição que caracteriza tal indemnização. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães: RELATÓRIO V. L. intentou a presente ação declarativa de processo comum contra SEGURADORAS .... S.A. pedindo a condenação da ré no pagamento de uma indemnização a título de dano biológico, dano patrimonial decorrente de perdas salariais só agora reclamadas e dano não patrimonial, acrescida de juros de mora a contar da citação. Como fundamento dos seus pedidos alega, em síntese, que foi vítima de um acidente de viação causado pelo condutor de um veículo que se encontrava seguro na ré no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel. A dinâmica desse acidente já foi decidida por sentença transitada em julgado, proferida no processo que correu termos sob o nº 1677/18.6 T8GMR, no âmbito do qual a autora foi parcialmente ressarcida dos danos sofridos, tendo, porém, ficado por peticionar e ressarcir o dano biológico, que aqui reclama, bem como perdas salariais subsequentes às atribuídas naquela ação e parte do dano não patrimonial. * Regularmente citada, a ré apresentou contestação na qual invocou a exceção de caso julgado face à sentença, já transitada em julgado, proferida no processo que correu termos sob o nº 1677/18.6 T8GMR, com a consequente absolvição da instância.Impugnou ainda parte da factualidade alegada pela autora. * Foi fixado à causa o valor de € 69 261,48.* Foi proferido despacho saneador que, relativamente à exceção de caso julgado: a) julgou improcedente tal exceção, quanto ao que venha a ser considerado dano biológico, nas vertentes patrimonial e não patrimonial, considerando que o que não houver sido peticionado e decidido na anterior ação pode sê-lo nesta; b) relegou para final o conhecimento dessa exceção na parte relativa às perdas salariais, outras despesas e demais danos peticionados. * Definiu-se o objeto do processo e procedeu-se à seleção dos temas de prova. * Procedeu-se a julgamento e a final foi proferida sentença que considerou não se verificar a exceção de caso julgado quanto aos valores peticionados e terminou com o seguinte teor decisório:“Pelo exposto, vai a presente acção julgada parcialmente procedente e, consequentemente, a ré SEGURADORAS ..., S.A. condenada a pagar à autora V. L. a quantia de € 62.298,23 (sessenta e dois mil, duzentos e noventa e oito euros e vinte e três cêntimos). Sobre a quantia de € 4.458,23 (quatro mil, quatrocentos e cinquenta e oito euros e vinte e três cêntimos) vencer-se-ão juros de mora à taxa civil, contados desde a citação da ré até integral pagamento. Sobre a restante quantia vencer-se-ão juros de mora à taxa civil desde a notificação da presente sentença até integral pagamento. Não há lugar a condenação por litigância de má-fé. Custas na proporção do decaimento – art. 527º, nº 1, do CPC -, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia a autora.” * A ré não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:“1. O despacho saneador, com data de 15/01/2020, julgou improcedente a excepção de caso julgado arguida pela Recorrente, em sede de contestação, sob o fundamento de subsistirem danos não peticionados na acção primitiva, e que o poderiam ainda ser, nos presentes autos. Porquanto se considera existir identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir, pelo presente recurso pugna-se pela absolvição da Recorrente da instância, devendo a excepção arguida ser julgada procedente, em cumprimento do disposto nos artigos 576.º, n.os 1 e 2, 577.º, al. i), 580.º e 581.º do CPC. 2. Sem prescindir, por mera cautela de patrocínio, considera-se que o Tribunal a quo errou na fixação da indemnização agora atribuída à Recorrida. 3. Tendo a excepção de caso julgado sido julgada improcedente em sede de despacho saneador, e não admitindo recurso autónomo, o recurso tem lugar aquando do recurso da decisão final, ao abrigo do disposto nos artigos 644.º, n.os 1 e 3, e 629.º, n.º 2, al. a), do CPC – Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/06/2019 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/05/2015. 4. Existe uma manifesta correspondência entre os danos – patrimoniais e não patrimoniais – peticionados e, subsequentemente, julgados, quer na acção primitiva, quer nos presentes autos, que nos leva a concluir por uma duplicidade de indeminizações pelo mesmo dano. 5. Conforme determina o artigo 5.º, n.º 3, do CPC, não está o Tribunal sujeito ao enquadramento jurídico trazido pelas partes, contudo, está sim impedido de alterar a causa de pedir, porquanto meramente poderá servir-se dos factos articulados pelas partes – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01/07/2008, processo n.º 181/04.4TBSRE.C1, disponível em www.dgsi.pt. 6. No que ao exame pericial concerne – pelo qual o Tribunal a quo fundou, sobretudo, a sua convicção – impunha-se à Recorrida requerer a sua realização no âmbito da acção primitiva, atento o disposto no artigo 342.º, n.º 1, do CC. 7. No entanto, não tendo sido igualmente ordenado oficiosamente pelo Tribunal, ao abrigo do principio do inquisitório, julgamos que não foi o exame pericial considerado pertinente. 8. Os danos não patrimoniais da Recorrida vão ao encontro, essencialmente, das dificuldades de locomoção, dor e alterações estéticas que lhe advieram do acidente, e que a acompanharão para o resto da sua vida. No entanto, tais danos foram já valorados e ressarcidos em sede de acção primitiva, pelo que, não comportando um novo circunstancialismo, não se impõe um novo ressarcimento pela Recorrente – Cfr. Acórdão do Tribunal de Relação do Porto com data de 09/12/2020 e Acórdão do Tribunal da Relação do Porto com data de 15/05/2018. 9. Se assim fosse, de cada vez que a Recorrida fosse submetida a novo procedimento cirúrgico/tratamento ser-lhe-ia lícito intentar nova acção contra a Recorrente. 10. Nesse sentido, o Tribunal a quo recusa o ressarcimento da «cirurgia de extracção de material de osteossíntese, artroscopia ao tornozelo direito com resolução de conflito anterior artro-fibrose», por não a considerar um dano futuro, ao abrigo do disposto no artigo 594.º do CC, embora reconheça, e imponha, o ressarcimento da «cirurgia artroscópica do tornozelo», à qual a Recorrida se submeteu após o trânsito em julgado da acção primitiva, o que nos leva a concluir por uma dualidade de parâmetros para situações idênticas. 11. Em bom rigor, deveria a Recorrida, em sede de acção primitiva, ter invocado a necessidade de intervenções/tratamentos futuros que, a serem dados como provados pelo Tribunal, seriam relegados para liquidação de sentença, sujeitando-se, neste momento, ao princípio da auto-responsabilidade das partes, inerente ao princípio dispositivo, «sofrendo» as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência/inépcia na condução do processo, que faz a seu próprio risco. 12. Os danos patrimoniais vão, igualmente, ao encontro dos já valorados e ressarcidos em sede de acção primitiva, mormente as perdas salariais – na medida em que não se reconhece o ressarcimento das perdas subsequentes ao trânsito em julgado da acção primitiva ou que não tenham sido peticionadas a par das demais – e as despesas havidas pela Recorrida, sob pena de uma responsabilização ad aeternum da Recorrente. 13. O dano biológico, porquanto classificado pelo Tribunal a quo como sendo dano patrimonial, deve ser havido como ressarcido no âmbito na acção primitiva, porquanto já foi arbitrada uma indemnização a esse título, razão pela qual, toda e qualquer pronúncia após o trânsito em julgado da acção primitiva sempre será ofensiva do caso julgado. 14. Perante o descontentamento da Recorrida com a decisão proferida no âmbito da acção primitiva, a título do valor arbitrado, sempre poderia ter recorrido da decisão para o Tribunal da Relação. 15. Em alternativa, incumbia-lhe, no âmbito da acção primitiva, invocar os danos no decurso da acção, por via de articulado superveniente, alteração da causa de pedir ou ampliação do pedido. 16. Atento o trânsito em julgado da decisão proferida no âmbito da acção primitiva, formou-se caso julgado material, cujos efeitos têm força obrigatória dentro e fora do processo, ao abrigo do disposto no artigo 619.º do CPC, impossibilitando a alteração do direito concreto aplicável à relação material objecto do litígio, sob pena de violação da força e autoridade do caso julgado – Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/11/2015. 17. Efectivamente, qualquer decisão posterior à previamente tomada, sempre será ofensiva do Princípio da Segurança Jurídica, enquanto Princípio basilar do Estado de Direito Democrático. 18. Termos em que, a Recorrente não subscreve a decisão recorrida, designadamente a improcedência da excepção de caso julgado arguida, sob o fundamento de que a sua responsabilidade foi já julgada, resultando na sua condenação, em valor já ressarcido à Recorrida. 19. Assim, impõe-se a absolvição da Recorrida da instância, porquanto os danos peticionados têm correspondência com os julgados em sede de acção primitiva – tríplice do caso julgado –, sendo que, assim não entendendo, sempre deveriam ter sido alegados e provados nessa sede. 20. Porquanto foi já arbitrada uma indemnização à Recorrida a título de danos não patrimoniais, no âmbito da acção primitiva, não se compreende o fundamento pelo qual foi atribuído novo valor, dado que não estamos perante novos danos, ou o agravamento dos pré-existentes, meramente uma melhor compreensão, atento o exame pericial realizado. 21. Em virtude do acidente ficou a Recorrida a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 10 pontos, não operando uma diminuição dos seus proventos, meramente uma alteração do posto de trabalho, sem que tenha havido interferência no vencimento auferido. 22. Reconhecendo o direito á indemnização pelo dano biológico, e não existindo perda de capacidade de ganho, não poderia o Tribunal socorrer-se de uma fórmula de cálculo aritmético, ainda que com uma redução de ¼, devendo o quantum indemnizatório ser fixado segundo os juízos de equidade, sob o princípio regulativo da proporcionalidade – Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/10/2019. 23. Assim, sendo o défice funcional da Recorrida compatível com o exercício da sua actividade profissional, cujo posto de trabalho agora atribuído lhe é mais confortável, não acarretando esforços complementares, impunha-se um juízo de equidade – Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06/12/2017. 24. Termos em que, se discorda dos valores arbitrados à Recorrida a título de indemnização, quer porque ofensivos do caso julgado, quer porque manifestamente excessivos – Cfr. Acórdão do Tribunal de Relação do Porto com data de 09/12/2020 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça com data de 29/10/2019.” Termina pedindo que a sentença recorrida seja revogada e substituída por decisão que absolva a recorrente da instância ou, caso assim não se entenda, que o valor arbitrado à recorrida a título de indemnização, no montante global de € 62 298,23, seja revisto, porque manifestamente excessivo. * A autora contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo formulado as seguintes conclusões:“1ª A decisão recorrida não merece o mais ténue reparo, nem mesmo aqueles que, indevida e injustificadamente, lhe são dirigidos pela recorrente com o presente recurso. 2ª Levanta a recorrente no presente recurso três questões relacionadas com a decisão aqui em crise, a saber: a) – caso julgado; b) – compensação do dano não patrimonial e c) – dano biológico arbitrado à recorrida. 3ª Antes de tudo impõe-se dizer à recorrente que não é o comportamento da recorrida ao intentar duas acções distintas que “entope” os Tribunais; e certa e seguramente que a recorrente deveria ser a última a ter atirado essa pedra à recorrida, tanto mais que a recorrente é amplamente conhecida pela sua volumosa litigância em juízo. 4ª E não peticionou, como a recorrente bem sabe pois esteve presente nas duas lides, nesta segunda demanda aquilo que tinha já sido peticionado na primeira das acções judiciais, a que correu termos pelo J3 do Juízo Local Cível de Guimarães, sob o nº 1667/18.6T8GMR e cuja decisão transitou já em julgado. 5ª Impunha-se, como a recorrida teve oportunidade de referir na sua petição inicial, que fosse intentada nova acção cível com vista à sua justa e completa indemnização, sob pena de, por parca alegação nos autos acabados de identificar, permanecerem para sempre graves e importantes danos por indemnizar. 6ª Assim, e quanto à primeira das “questões”, o caso julgado não carece essa alegação de qualquer fundamento. Com efeito, e como se referiu no corpo destas contra-alegações, existe identidade de sujeitos (que ocupam até a mesma posição processual nas duas demandas) e identidade da causa de pedir (o atropelamento de que foi vítima a recorrida). Não existe, até pela simples leitura de uma e outra petição inicial, a mínima identidade de pedidos; se existisse – e não existe – dúvidas não teríamos inicialmente em não intentar a presente lide; ou ainda que as tivéssemos, bem sabíamos que não passaria no crivo da Meritíssima Juíza a quo que já nos habituou às suas doutas e justas decisões. 7ª Por isso, e por muito que a recorrente disserte nas suas doutas alegações a este respeito, nem por cansaço consegue atingir o seu objectivo, qual seja o de negar o óbvio, o que está, perdoando-nos a expressão, aos olhos de ver. 8ª Jamais existe na presente lide qualquer identidade de pedidos; veja-se, até, o cuidado que a Meritíssima Juíza a quo colocou aquando do arbitramento das diversas parcelas de indemnização. Teve sempre o cuidado, como decorre cristalinamente da douta decisão em crise, em fazer referência que esses danos que estava a mandar indemnizar não tinham sido peticionados na anterior acção cível. 9ª Por outro lado, e no que tange à compensação pelo dano não patrimonial, igualmente inexiste qualquer fundamento e/ou facto que imponha decisão diversa da aqui em crise. 10ª Com efeito, deixa a recorrente no ar que a quantia a este título arbitrada à recorrida na decisão recorrida peca por excesso, quando somada àquela que lhe foi arbitrada na outra acção cível que intentou contra a aqui recorrente. Porém, é a própria recorrente que trás aos autos exemplos de doutos acórdãos que reforçam a ideia de que a quantia global de 32.000,00 € arbitrada no total à recorrida é absolutamente consentânea com a Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores. 11ª Não deixa de ser curioso que a recorrente não se tenha indignado e, por isso, recorrido, com a decisão dos primeiros autos (os identificados na conclusão 4ª supra) que arbitrou à aqui recorrida e ali demandante a quantia de 17.000,00 €, permitindo que essa decisão acabasse por transitar em julgado, como já foi dado nota nos presentes autos. 12ª Conformou-se com essa decisão – que poderia até reputar-se de excessiva atenta a matéria de facto que tinha sido alegada e que resultou provada – cuidando, certamente, que a indemnização ali devida à recorrida se ficaria por ali. 13ª Porém, e para não tornar penosas estas conclusões, remete-se, nesta parte, para o corpo das presentes contra alegações no que tange a tudo quanto resultou absolutamente demonstrado quanto às lesões sofridas pela recorrida em consequência do acidente dos autos, e bem assim quanto às graves sequelas e demais implicações que dessa lesões decorrem, o que, por si só, permitem concluir com segurança e certeza que a quantia global de 32.000,00 € se computa de absolutamente justa e adequada à sua função. 14ª Quanto ao dano patrimonial, mormente na vertente de dano biológico, começa a recorrente por dizer que a recorrida – por força do acidente dos autos – acabou por passar a exercer o seu trabalho de forma mais confortável!!! Só se nos apraz dizer: Valha-nos Santo Ivo!!! 15ª Para se perceber o conforto da mudança de funções no seu posto de trabalho, vejamos o significado das anteriores e actuais funções: - brunideira é a mulher que passa a roupa a ferro; - embaladeira é aquela que embala mercadorias destinadas ao comércio. Ou seja, uma e outra actividade são de cariz braçal e implicam, ambas, permanecer por toda uma jornada de trabalho na posição ortostática. Daí que não seja minimamente entendível a expressão, e quase regozijo, da recorrente ao afirmar que a recorrida tem agora uma actividade “mais confortável”. Confortável será o remanso de um qualquer gabinete de trabalho, devidamente climatizado...! 16ª E nem mesmo o facto de não resultar para a recorrida qualquer perda de salário, ainda assim – e como é Jurisprudência maioritária – não está dispensada a recorrente – como lesante – de indemnizar a recorrida a título de dano biológico na vertente patrimonial. 17ª Por isso, a este respeito, e atendendo até à forma e modo como a Meritíssima Juíza a quo procedeu ao seu cálculo, não merece a quantia encontrada de 42.480,00 € o mais ténue reparo. 18ª Não pode a recorrida deixar, finalmente, de referir que a recorrente que não certamente aquele que lhe dirá o que deveria ou não ter feito. Não deveria ter sido a recorrente a interpor recurso da primeira das decisões por descontentamento? É que descontente parece agora estar a recorrente por ter desvalorizado – e mal – as lesões da recorrida e a possibilidade certa e segura de que aquela dispunha para ser total e completamente indemnizada por todos os seus prejuízos, ou seja, a presente demanda!!! 19ª E que dizer quanto ao “conselho” da recorrente no que tange a um eventual articulado superveniente na primeira lide (a já supra identificada)? Com base em quê poderia a ali demandante e aqui recorrida enveredar com um articulado superveniente? Com humildade – mas com toda a certeza jurídica – desconhece a recorrida o seu legal fundamento...!” * O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.* Foram colhidos os vistos legais.OBJETO DO RECURSO Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso. Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras. Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes. Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes: I – saber se se verifica a exceção de caso julgado face à decisão proferida na ação nº1677/18.6T8GM, com a consequente absolvição a ré da instância; II – na hipótese negativa, saber se a decisão definitiva da ação nº1677/18.6T8GMR precludiu o direito de a autora deduzir quaisquer outros pedidos com fundamento no acidente de viação já apreciado naqueles autos; III – em caso de resposta negativa à anterior questão, saber se as indemnizações arbitradas a título de danos não patrimoniais e de dano biológico são excessivas e, sendo-o, em que medida devem ser fixadas. FUNDAMENTAÇÃO FUNDAMENTOS DE FACTO Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos: 1) No dia 05.03.2017, pelas 19.10 horas, a autora caminhava pela berma da Rua …, em Guimarães. 2) Quando pretendia atravessar a referida rua, olhou para ambos os sentidos de trânsito e iniciou a travessia de uma passadeira ali existente. 3) No final da passadeira, prestes a chegar ao lado direito, considerando o sentido Guimarães/Taipas, foi atropelada pelo veículo ligeiro de passageiros com a matrícula MN, pertencente a M. J. e conduzido por M. F.. 4) O tempo estava chuvoso. 5) O veículo MN seguia no sentido Guimarães/Taipas. 6) A ora autora intentou ação declarativa comum que correu termos sob o nº 1677/18.6 T8GMR, tendo-lhe sido fixadas, por sentença proferida em 09.01.2019 e transitada em julgado no dia 13.02.2019, as seguintes parcelas indemnizatórias, que a ora ré foi condenada a pagar: a. € 3.213,04 a título de perdas salariais pelo período compreendido entre 5 de Março de 2017 e 25 de Janeiro de 2018; b. € 17.000,00 a título de danos não patrimoniais, por referência aos seguintes factos, que aí se provaram: i. Em consequência do acidente, a autora sofreu uma fractura-luxação em quatro sítios do pé, bem como fractura do pilião tibial e do maléolo peroneal, tendo sido internada no CHAA e submetida a uma intervenção cirúrgica para realização de uma osteotaxia com fixadores externos no tornozelo direito, tendo tido alta para o domicílio em 10.03.2017, deambulando com canadianas. ii. Após alta, esteve um mês com fixador externo, um mês com gesso até à coxa e outro com gesso até ao joelho. iii. Em 12.07.2017 foi submetida, no Hospital de …, a artroscopia do tornozelo para exérese de corpos livres intraarticulares advenientes da 1ª cirurgia e redução cirúrgica e osteossíntese com placa, tendo permanecido internada durante 2 dias; iv. Entre 01.08.2017 e 11.01.2018 a autora frequentou 96 sessões de fisioterapia; v. No dia 25.01.2018 os serviços médicos da ré concederam alta definitiva à autora; vi. Em 05.03.2017 a autora desempenhava as funções de engomadora/brunideira, auferindo o salário mínimo nacional; vii. Em 12.02.2018 a autora apresentava dor, rigidez e edema do tornozelo direito; viii. Por causa das sequelas a autora não consegue estar muito tempo em pé e sente dificuldades em caminhar. 7) No âmbito da sentença referida em 5), foram dados como não provados, e, por conseguinte, considerados não atendíveis no cálculo da indemnização, os seguintes factos, que a autora aí alegava para fundar a sua pretensão indemnizatória: a. Que a autora tenha estado 5 meses acamada por causa das dores que sentia; b. Que a autora fosse uma pessoa extremamente activa, que gostasse de desempenhar determinadas tarefas e praticar desporto; c. Que a autora tenha engordado 15 kg por causa do gesso e de ter estado acamada. d. Que desde o acidente que a autora sofra alterações constantes de humor, irritabilidade fácil e insónias, tendo ficado assustada em andar na rua sozinha, bem como em fazer a travessia de qualquer via. e. Que a autora não aufira qualquer salário desde Dezembro de 2017. 8) Em 22.10.2018, na sequência de artralgia do tornozelo direito progressiva e incapacitante, a autora foi submetida a intervenção cirúrgica artroscópica do tornozelo (shaving articular e resolução de conflitos anterior e antero-interno), no Hospital da …, Póvoa do Varzim. 9) No dia 23.10.2018 teve alta e regressou a casa, estando, na convalescença, com mais constrangimentos na deambulação. 10) Na sequência dessa cirurgia, realizou novo tratamento fisiátrico na Clínica de Reabilitação …, Ld.ª. 11) Entre os dias 05.03.2017 e 27.03.2018 e os dias 22.10.2018 e 30.11.2018, a autora esteve impossibilitada de trabalhar. 12) A autora tem claudicação ligeira à direita, mais evidente na marcha continuada, sente dificuldades acrescidas ao subir/descer escadas e/ou na marcha em pisos irregulares, não consegue correr e saltar e tem dificuldades acrescidas ao vergar-se e ao acocorar-se. 13) Atualmente, a autora mantém a mesma entidade patronal, tendo pedido adaptação do posto de trabalho por não suportar estar de pé, parada, longos períodos de tempo. 14) Na sequência da adaptação do posto de trabalho, a autora passou a ser embaladeira. 15) Em ambas as funções recebeu e recebe o salário correspondente à RMMG. 16) Entre a data do evento e a consolidação das lesões a autora sofreu um quantum doloris de grau 5 numa escala de 7 graus de gravidade crescente. 17) Por causa do atropelamento, a autora ficou com sequelas que lhe determinam um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 10 pontos. 18) As sequelas e o défice funcional são compatíveis com o exercício da sua actividade, mas implicam esforços suplementares. 19) O dano estético permanente que sofreu é de grau 3, numa escala de 7 graus de gravidade crescente. 20) A repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer que sofreu é de grau 2, numa escala de 7 graus de gravidade crescente. 21) A autora continuará a carecer de tratamentos de fisioterapia de manutenção, duas a três vezes por ano, para controlo da dor, do edema e para a otimização de ganhos funcionais, a definir em função da evolução clínica. 22) A autora deverá usar continuamente meia elástica AD2, ad aeternum, bem como drenagem linfática manual, sob supervisão médica. 23) Por causa do atropelamento, a autora despendeu € 605,60 em honorários médicos, taxas moderadoras e meios de diagnóstico. 24) Por causa das lesões que sofreu e das cirurgias a que se submeteu, a autora suportou despesas medicamentosas no valor de € 52,35. 25) A autora nasceu em - de Junho de 1980. 26) Com a cirurgia realizada em Outubro de 2019, em consequência do sinistro, a autora despendeu € 2.000,00. 27) Em tratamentos de viscossuplementação unilateral efectuados na Clínica …, a autora despendeu € 300,00. 28) A cirurgia para retirada do material de osteossíntese tem um custo de € 3.950,00. 29) O referido em 8) a 22) provoca tristeza, angústia e mau estar à autora. 30) Através da apólice ……..23, a ré aceitou ver transferida para si a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo com a matrícula MN. * Foram considerados não provados os seguintes factos: a) que a autora tenha despendido € 11,50 em transportes por causa dos tratamentos a que teve de sujeitar-se. b) Que a autora vá ser submetida a nova intervenção cirúrgica com vista à extracção de material de osteossíntese. c) Que, a mais do referido em 11), a autora tenha ficado outros períodos de tempo sem trabalhar. d) Que a autora tenha deixado de frequentar a praia ou a piscina por causa das sequelas de que padece. FUNDAMENTOS DE DIREITO Cumpre apreciar e decidir. I – Exceção de caso julgado relativamente à ação nº1677/18.6T8GM A ré considera que se verifica a exceção de caso julgado face à decisão transitada em julgado proferida no processo nº1677/18.6T8GM no qual a autora deduziu pedido indemnizatório com base no mesmo acidente de viação que invoca nos presentes autos. Sobre a exceção de caso julgado foram proferidas duas decisões nos presentes autos: uma em sede de despacho saneador, outra em sede de decisão final. No despacho saneador partiu-se do pressuposto de que a propositura da ação anterior não era impeditiva de a autora, em nova ação, invocando o mesmo acidente de viação, pedir danos que não tinha peticionado na ação anterior e, na sequência deste entendimento, decidiu-se: a) relativamente ao dano biológico, nas suas vertentes patrimonial e não patrimonial, que não se verifica a exceção de caso julgado porque este dano não foi pedido nem apreciado na ação nº1677/18.6T8GM; b) quanto às perdas salariais, despesas e demais danos peticionados relegou-se o conhecimento da exceção para a sentença final. Na sentença, com base no pressuposto assumido no saneador e atrás referido: a) foi fixada uma indemnização no valor de € 15 000 por danos não patrimoniais que se entendeu que não foram considerados na decisão do processo nº1677/18.6T8GM; b) foi fixada uma indemnização no valor de € 2 957 por danos patrimoniais que se entendeu que não foram considerados na decisão do processo nº1677/18.6T8GM; c) foi fixada uma indemnização de € 1 501,23 referente a perdas salariais (já deduzido o valor recebido da Segurança Social) por danos patrimoniais que se entendeu que não foram considerados na decisão do processo nº1677/18.6T8GM; d) foi fixada uma indemnização de € 42 840 referente ao dano biológico na vertente patrimonial. A ré recorre de ambas as decisões proferidas sobre o caso julgado, ou seja, recorre do despacho saneador e da sentença. Considera que “existe uma manifesta correspondência entre os danos – patrimoniais e não patrimoniais – peticionados e, subsequentemente, julgados, quer na acção primitiva, quer nos presentes autos, que (...) leva a concluir por uma duplicidade de indeminizações pelo mesmo dano”. Vejamos, então, se, no caso concreto, ocorre, ou não, a exceção de caso julgado face ao decidido na ação nº1677/18.6T8GM. O caso julgado é uma exceção dilatória (art 577º, al. i), do Código de Processo Civil (1)), que pressupõe a repetição de uma causa depois de a causa anterior ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário e que tem por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (art. 580º). Repete-se uma ação quando se propõe ação idêntica quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir, considerando-se que há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, há identidade de pedido quando nas ações se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico (art. 581º). Assim, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele (art. 619º). Trata-se do efeito de caso julgado material: a definição dada à relação controvertida não pode ser alterada em qualquer nova ação pois o caso fica julgado e torna-se incontestável. “Esse efeito é ditado por razões de certeza ou segurança jurídica e de prestígio dos tribunais; a instabilidade jurídica seria verdadeiramente intolerável se não pudesse sequer confiar-se nos direitos que uma sentença reconheceu” (Acórdão do STJ, de 26.2.2019, relator Pinto de Almeida, in www.dgsi.pt). O caso julgado, na sua vertente negativa, constitui exceção dilatória e, no plano constitucional, o seu fundamento é o princípio da segurança jurídica, ínsito ao Estado de Direito consagrado no art. 2.º da Constituição Portuguesa (cf. Rui Pinto, in Exceção e Autoridade de Caso Julgado – Algumas Notas Provisórias, Julgar On Line, novembro de 2018). Como tal, a exceção de caso julgado tem o efeito negativo de inadmissibilidade da segunda ação, impedindo qualquer decisão futura de mérito; na segunda ação, o juiz deve abster-se de conhecer do mérito da causa, absolvendo o réu da instância (art. 576º nº 2). O efeito negativo tem por destinatário os tribunais, apresenta natureza processual e leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objeto processual, mediante a exclusão de poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão (cf. Rui Pinto, ob. cit). Destarte, em jeito de conclusão e de forma esquemática, pode dizer-se que a exceção do caso julgado é imposta por três tipos de razões: I - Por razões de economia processual, dada a existência de uma relação jurídica já previamente apreciada por decisão definitiva, sendo inútil, por redundante, a prolação de uma decisão que reproduza ou confirme a decisão anterior; II - Por razões de salvaguarda do prestígio dos tribunais, evitando a possibilidade de decisões contraditórias; III - Por razões de concretização dos valores da certeza e segurança jurídicas ínsitos ao Estado de Direito constitucionalmente consagrado. Como entendido no Acórdão do STJ, de 20.6.2012, Relator Sampaio Gomes (in www.dgsi.pt) “quanto ao âmbito objetivo do caso julgado – seus limites objetivos – e que respeita à determinação do quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal, tem vindo a ser sustentado maioritariamente, na esteira da doutrina defendida por Vaz Serra (R.L.J. 110º/232), que a força do caso julgado não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita, antes se estende à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, tudo isto (...) em nome da economia processual, do prestígio das instituições judiciárias e da estabilidade e certeza das relações jurídicas’ (Acórdão do S.T.J. de 10/7/97 in C.J. S.T.J., V, II, 165).” Na verdade, “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga – art. 621º do CPC –, entendendo-se que a aferição dos limites e eficácia do caso julgado postula a interpretação do conteúdo da sentença, com relevo para os fundamentos que se apresentem como antecedentes lógicos necessários à decisão que, como esta, devem considerar-se abrangidos por aquele” (Acórdão do STJ, de 26.2.2019, relator Pinto de Almeida, in www.dgsi.pt). Sublinha ainda Teixeira de Sousa (in Estudos sobre o Novo Processo Civil, págs. 578-579) que “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”. Para efeitos de aferição da exceção de caso julgado estabelece o art. 581º, nº 4, que há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Existem ações cuja causa de pedir é complexa. Nesta categoria enquadram-se precisamente as ações de responsabilidade civil emergente de acidente de viação pois as mesmas pressupõem a existência de um facto humano voluntário, ilícito e culposo, que seja produtor de um dano e que entre este e aquele ocorra uma relação de causalidade adequada. Nas ações cuja causa de pedir é complexa um mesmo acontecimento histórico pode permitir a existência de mais do que uma ação, entre os mesmos sujeitos, sem que ocorra uma situação de litispendência ou de caso julgado, desde que a causa de pedir e o pedido não sejam coincidentes. Neste mesmo sentido, sumariou-se no acórdão do STJ, de 13.5.2004, Relator Ferreira Girão, (in www.dgsi.pt) que “uma vez que a vertente dos prejuízos - a par do acidente e da culpa/risco -- faz parte integrante da causa de pedir (complexa) das acções indemnizatórias por acidente viação, não há identidade da causa de pedir (e, consequentemente, do pedido) entre duas acções sobre o mesmo acidente, mas em que os prejuízos alegados (e pedidos) não coincidem (sublinhado nosso). E, na fundamentação, refere o aludido aresto de forma mais desenvolvida que “nas acções de indemnização por acidente de viação - como é o caso das duas acções em confronto - a causa de pedir é complexa, integrada não só pelo acidente e pela culpa (ou pelo risco), mas também pelos prejuízos, alegados e peticionados. Por conseguinte, constituindo os danos uma vertente integradora da causa de pedir nesta espécie de acções, se não houver coincidência, como efectivamente não há, entre os prejuízos alegados e peticionados numa e noutra acção, falha a referida tríplice identidade, pressuposto legalmente exigido para a procedência da excepção dilatória do caso julgado.” Ora, no caso dos autos, é precisamente sobre este pressuposto que assentam as decisões proferidas quanto à exceção de caso julgado e que concluem pela sua não verificação: os danos que a autora peticiona nesta ação são distintos dos danos que peticionou na ação nº1677/18.6T8GM, inexistindo, por isso, identidade de causa de pedir e de pedidos. Esta conclusão genérica e feita em abstrato é absolutamente correta estando alinhada e em consonância com o entendimento que perfilhamos conforme temos vindo a explicitar, pelo que desde que se possa afirmar que os concretos danos peticionados nas duas ações são diferentes, não existe efetivamente caso julgado, matéria que passaremos de seguida a abordar. Na ação nº1677/18.6T8GM foram fixadas à autora duas parcelas indemnizatórias: a) € 3 213,04 a título de perdas salariais de 5.3.2017 a 25.1.2018; b) € 17 000 a título de danos não patrimoniais relativamente às situações descritas em i a viii, da al. b), do facto provado 6. Resulta assim do confronto do facto provado 6 com a sentença impugnada que: - a sentença proferida no processo nº1677/18.6T8GM e que fixou a indemnização por danos não patrimoniais em € 17 000 basou-se nos factos descritos i a viii, da al. b), do facto provado 6, ao passo que a sentença recorrida que fixou a indemnização por danos não patrimoniais em € 15 000 se baseou nos factos descritos em 8 a 12, 16 a 22 e 29. Como tal, os factos das duas ações não são coincidentes quanto a esta matéria. - a sentença proferida no processo nº1677/18.6T8GM fixou a indemnização em € 3 213,04 a título de perdas salariais de 5.3.2017 a 25.1.2018 e basou-se nos factos descritos v e vi, da al. b), do facto provado 6, ao passo que a sentença recorrida que fixou a indemnização de € 1 501,23 referente a perdas salariais teve em consideração o período de 25.1.2018 a 27.3.2018 e de 22.10.2018 a 30.11.2018. Portanto, os factos não são coincidentes pois a sentença recorrida considerou um período temporal posterior ao que foi considerado no processo nº1677/18.6T8GM. - a sentença proferida no processo nº1677/18.6T8GM não atribuiu indemnização por danos patrimoniais, para além das perdas salariais já analisadas, fixação que só ocorreu na presente ação com a atribuição de indemnização, a esse título, no valor de € 2 957 com base nos factos 23, 24, 26 e 27. - a sentença proferida no processo nº1677/18.6T8GM não atribuiu indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial, fixação que só ocorreu na presente ação com a atribuição de indemnização, a esse título, no valor de € 42 840. Resulta deste confronto que na presente ação não foi pedida e concedida indemnização por nenhum dos danos que já havia sido pedido e concedido na ação nº1677/18.6T8GM. Bem pelo contrário, e ao invés do defendido pela recorrente, não existe uma correspondência entre os danos – patrimoniais e não patrimoniais – peticionados nas duas ações nem uma duplicidade de indemnizações pelo mesmo dano. Dada a não ocorrência de coincidência entre a causa de pedir e os pedidos formulados nestes autos e na ação nº1677/18.6T8GM, não existe a possibilidade de o tribunal, na segunda ação, reproduzir ou contrariar a decisão proferida na primeira ação, situação que com o caso de julgado se pretende evitar, razão pela qual não se verifica tal exceção, conforme decidido na sentença recorrida, a qual não merece reparo. Deste modo, considera-se que, no caso em apreço, não se verifica a exceção dilatória de caso julgado, improcedendo esta questão recursória. II – Preclusão do direito de a autora deduzir quaisquer outros pedidos com fundamento no acidente de viação já apreciado na ação nº1677/18.6T8GMR Questão distinta e diversa da de inexistência da exceção de caso julgado, embora com ela conexionada, consiste em saber se a autora estava obrigada a peticionar na ação nº1677/18.6T8GMR todos os danos decorrentes do acidente de viação de que foi vítima, sob pena de preclusão do direito de o poder fazer posteriormente. Questão esta a que a recorrente vai fazendo alusões esparsas ao longo da motivação e que menciona de forma mais concisa na conclusão 11ª onde diz que “em bom rigor, deveria a Recorrida, em sede de acção primitiva, ter invocado a necessidade de intervenções/tratamentos futuros que, a serem dados como provados pelo Tribunal, seriam relegados para liquidação de sentença, sujeitando-se, neste momento, ao princípio da auto-responsabilidade das partes, inerente ao princípio dispositivo, «sofrendo» as consequências jurídicas prejudiciais da sua negligência/inépcia na condução do processo, que faz a seu próprio risco” e na conclusão 19ª onde refere que “impõe-se a absolvição da Recorrida da instância, porquanto os danos peticionados têm correspondência com os julgados em sede de acção primitiva – tríplice do caso julgado –, sendo que, assim não entendendo, sempre deveriam ter sido alegados e provados nessa sede” (sublinhados nossos). A problemática da existência de um efeito preclusivo está estreitamente ligada à existência de um ónus processual. Só nas situações em que a lei faz impender sobre uma parte um determinado ónus processual é possível afirmar que, uma vez incumprido tal ónus, fica precludida a possibilidade de posteriormente vir a ter lugar a prática do ato. Assim, afirma Miguel Teixeira de Sousa (in Preclusão e Caso Julgado, disponível em https://blogippc.blogspot.com) que “a preclusão é sempre correlativa de um ónus da parte: é porque a parte tem o ónus de praticar um acto num certo tempo que a omissão do acto é cominada com a preclusão da sua realização. (...) A preclusão é um fenómeno processual que é correlativo da situação subjectiva processual típica: esta situação é o ónus processual”. Impenderá sobre o autor algum ónus desta natureza cujo incumprimento produza um efeito preclusivo? Rui Pinto, na obra já citada, suscita precisamente esta dúvida questionando se “não se poderá́ opor ao autor um ónus de concentração de todos os fundamentos na dedução de um pedido, evitando-se a multiplicação de ações por outros tantos fundamentos?”. O referido autor soluciona essa dúvida afirmando que “a resposta é negativa: nada na lei portuguesa o determina, nem constitui má fé processual, salvo quando redunda efetivamente nalguma das categorias do artigo 542º”. Esta posição é acompanhada por Abrantes Geraldes e outros (in CPC Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 688), que afirmam que “sobre o autor não incide nenhum ónus de concentração de todas as causas de pedir na ação que proponha.” Com efeito, enquanto para o réu o art. 573º estabelece o princípio da concentração da defesa determinando que toda a defesa deve ser deduzida na contestação e que depois deste articulado só podem ser deduzidas as exceções, incidentes ou meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, para o autor não vigora ónus com idêntica amplitude ou dimensão. “Sobre o autor não incide nenhum ónus de concentração de todas as causas de pedir na ação que proponha. Diversamente, cabe ao réu concentrar todos os meios de defesa na contestação (art. 573º, º 1), não podendo, por efeito da preclusão, invocar em nova ação exceções que deixou de deduzir na ação anterior” (Abrantes Geraldes e outros in ob. cit. pág.688). Ao princípio da concentração da defesa na contestação associa-se, como sua consequência, o princípio da preclusão segundo o qual todos os meios de defesa não invocados na contestação ficam prejudicados e não podem ser invocados mais tarde (neste sentido Paulo Pimenta in Processo Civil Declarativo, 3ª ed., pág. 204). Destarte, o efeito preclusivo define-se e delimita-se em estrita consonância com o ónus de alegação que impende sobre a parte. Se o réu tem o ónus de deduzir todos os meios de defesa na ação já decidida e não o faz, fica precludida a possibilidade de o fazer posteriormente em nova ação. Já quanto ao autor, sobre quem não impende ónus idêntico, pois a lei não lhe impõe que na ação invoque todas as causas de pedir e formule todos os correspondentes pedidos tendentes a alcançar uma pretensão, não ocorre qualquer efeito preclusivo. Como tal, e aplicando estas considerações ao caso concreto ora sub judice, a circunstância de a autora na primeira ação não ter invocado e peticionado indemnização por todos os danos que sofreu decorrentes do acidente de viação de que foi vítima não obstaculiza que numa ação posterior venha invocar outros danos decorrentes desse mesmo acidente pois quanto a si não ocorre qualquer efeito preclusivo, dada a sua não sujeição a qualquer ónus processual de alegação. Do que se expôs resulta que, apesar de a autora não ter peticionado na ação nº1677/18.6T8GMR todos os danos decorrentes do acidente de viação, não fica precludido o direito de o poder fazer nos presentes autos. Por conseguinte, improcede esta questão recursória. III – Redução das indemnizações arbitradas a título de danos não patrimoniais e de dano biológico e sua fixação A sentença fixou a indemnização por danos não patrimoniais na quantia de € 15 000 e a indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial, na quantia de € 42 840,00, valores que a ré reputa de excessivos e pede que sejam reduzidos para montante que não quantificou. Vejamos, pois, se existe fundamento legal para a pretendida redução dos montantes indemnizatórios arbitrados. Em matéria de obrigação de indemnização o art. 562º, do CC, consagra o princípio geral da reconstituição natural pois quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão (art. 563º, do CC) e o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (art. 564º, do CC). A indemnização devida abrange assim quer os danos emergentes, quer os lucros cessantes, consistindo aqueles numa diminuição efetiva do património e estes na frustração de um ganho. Na fixação da indemnização pode ainda o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (art. 564º, nº 2, do CC). A indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (art. 566º, nº 1, do CC). Nessa hipótese, a indemnização tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (art. 566º, nº 2, do CC). Ou seja, no cálculo da indemnização importa considerar a diferença entre a situação real e hipotética do lesado se o mesmo não tivesse sido atingido pelo facto ilícito. Caso não seja possível averiguar o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (art. 566º, nº 3, do CC). Para além dos danos patrimoniais, deve ainda atender-se na fixação da indemnização, aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º, nº 1, do CC), sendo o montante desta indemnização fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (arts. 496º, nº 4 e 494º, do CC). * Traçado o quadro normativo que deve presidir à fixação da indemnização, revertamos agora ao caso concreto.A) Indemnização por danos não patrimoniais A sentença atribuiu à autora, a título de danos não patrimoniais, uma indemnização no valor de € 15 000. No que toca aos danos não patrimoniais, é de salientar, face à factualidade provada, que: - Em 22.10.2018, a autora foi submetida a intervenção cirúrgica artroscópica do tornozelo teve alta no dia seguinte e regressou a casa, estando, na convalescença, com mais constrangimentos na deambulação (factos 8 e 9). - Entre os dias 05.03.2017 e 27.03.2018 e os dias 22.10.2018 e 30.11.2018, a autora esteve impossibilitada de trabalhar (facto 11). - A autora tem claudicação ligeira à direita, sente dificuldades acrescidas ao subir/descer escadas e/ou na marcha em pisos irregulares, não consegue correr e saltar e tem dificuldades acrescidas ao vergar-se e ao acocorar-se e não suporta estar de pé, parada, longos períodos de tempo (factos 12 e 13). - Teve de mudar de posto de trabalho (facto 13). - A autora sofreu um quantum doloris de grau 5 em 7, ficou com sequelas que lhe determinam um défice funcional permanente de 10 pontos, o que implica esforços suplementares na realização da atividade laboral, tem um dano estético permanente de 3 em 7, e uma repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de 2 em 7 (factos 16, 17, 18, 19 e 20). - A autora continuará a carecer de tratamentos de fisioterapia de manutenção, duas a três vezes por ano, para controlo da dor, do edema e para a otimização de ganhos funcionais (facto 21). - A autora deverá usar continuamente meia elástica AD2, ad aeternum, bem como drenagem linfática manual (facto 22). - Esta situação provoca tristeza, angústia e mau estar à autora, a qual, à data do acidente, tinha 36 anos (factos 25 e 29). Dado este conjunto de danos não nos parece minimamente excessiva a fixação de uma indemnização de € 15 000, a qual, face aos critérios supra explanados, se mostra correta, equilibrada e adequada aos danos que a autora sofreu quando tinha apenas 36 anos de idade, os quais a irão acompanhar para o resto da vida e para cuja produção a autora em nada contribuiu, posto que o acidente ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na ré. O valor fixado tem arrimo nos critérios da jurisprudência atual, desta forma estando assegurado quer o princípio da igualdade, quer a justiça relativa. Com efeito, vejam-se, exemplificativamente os seguintes arestos do STJ, (todos disponíveis in www.dgsi.pt): - acórdão de 5.12.2017, relativamente a um lesado de 35 anos, que teve uma quantum doloris de 4 em 7, considerou adequada uma indemnização de € 20 000 a título de danos não patrimoniais; - acórdão de 16.6.2016, relativamente a um lesado de 40 anos, que teve uma quantum doloris de 4 em 7, considerou adequada uma indemnização de € 20 000 a título de danos não patrimoniais. Acresce que, estando em causa critérios de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, sendo que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica. Esta afirmação assume maior relevância a propósito da indemnização por danos não patrimoniais posto que a mesma não se destina obviamente a repor as coisas no estado anterior, mas tão só a dar ao lesado uma compensação pelo dano sofrido, proporcionando-lhe situação ou momentos de prazer e alegria que neutralizem, quanto possível, a intensidade da dor física ou psíquica sofrida (Vaz Serra, BMJ 278º, 182). Finalmente, como é assinalado no Acórdão do STJ, de 9.9.2014, Relator Fernandes do Vale (in www.dgsi.pt) deverá ainda ter-se em consideração a natureza mista de reparação do dano e punição que caracteriza a indemnização por danos não patrimoniais, a qual é assinalada por diversos autores citados no referido aresto, designadamente: - pelo Prof. Menezes Cordeiro que ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança, aliás, de qualquer indemnização”; - pelo Prof. Galvão Telles que sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma «pena privada», estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”. - pelo Prof. Menezes Leitão que destaca a índole ressarcitória/punitiva da reparação por danos morais, quando escreve: “assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, de forma a desagravá-la do comportamento do lesante”; - pelo Prof. Pinto Monteiro, o qual sustenta que a obrigação de indemnizar é “uma sanção pelo dano provocado”, um “castigo”, uma “pena para o lesante”. Atendendo a todas as considerações que se acabaram de expor e, em síntese, considera-se adequada, proporcional, justificada e equitativa a fixação da indemnização em € 15 000 para ressarcir os danos não patrimoniais sofridos pela autora, não se justificando a sua redução nos termos pretendidos pela recorrente. Consequentemente, a apelação improcede nesta parte. * B) Indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonialA sentença atribuiu à autora, a título de dano biológico, na vertente patrimonial, uma indemnização no valor de € 42 840. O dano biológico consiste numa lesão corporal que afeta a integridade físico-psíquica do lesado e que implica uma perda da plenitude das suas capacidades pessoais. É um dano complexo posto que, traduzindo-se na ofensa da saúde e integridade física, tem repercussões quer a nível patrimonial, quer a nível não patrimonial. No que respeita às consequências patrimoniais, tal dano pode implicar uma concreta perda de rendimentos, como ocorrerá nas situações em que o lesado deixou de auferir um determinado montante pecuniário durante o período de tempo em que esteve incapacitado para exercer a sua atividade profissional. Porém, independentemente da concreta perda de rendimentos, o dano biológico, enquanto défice funcional de que passou a padecer o lesado no plano específico das atividades profissionais, tem ainda uma dupla repercussão pois, por um lado, implica um esforço acrescido que o lesado terá que despender para compensar tal défice, de modo a prosseguir uma atividade laboral e, por outro lado, implica uma limitação de oportunidades profissionais pois “o lesado vê diminuída a amplitude ou o leque das atividades laborais que pode perspectivar exercer plenamente no futuro, ficando – por via da perda de capacidades funcionais- necessariamente condicionado e «acantonado» no exercício de actividades menos exigentes – o que naturalmente limita de forma relevante as suas potencialidades no mercado do trabalho (facto particularmente atendível numa organização económica que crescentemente apela à precariedade e à necessidade de mudança e reconversão na profissão exercida, a todo o momento susceptível de mutação ao longo da vida do trabalhador)” (cf. Acórdão do STJ, de 21.1.2016, relator Lopes do Rego, in www.dgsi.pt). Na verdade, a força de trabalho de uma pessoa é um bem capaz de propiciar rendimentos. Logo, a incapacidade funcional importa sempre diminuição dessa capacidade, obrigando o lesado a um maior esforço e sacrifício para manter o mesmo estado antes da lesão e, inclusivamente, provoca inferiorização, no confronto do mercado de trabalho, com outros indivíduos por tal não afetados (cf. Acórdão do STJ, de 7.6.2011, Relator Granja da Fonseca, in www.dgsi.pt). A doutrina e a jurisprudência estão de acordo em que pelo facto de o ofendido não exercer à data do acidente qualquer profissão, não está afastada a existência de dano patrimonial, compreendendo-se neste as utilidades futuras e as simples expectativas de aquisição de bens. Assim, a este título, merecem ressarcimento os lesados que se encontram fora do mercado do trabalho, seja a montante – caso das crianças e dos jovens ainda estudantes, ou não, que ainda não ingressaram no mundo laboral –, seja a jusante, como os reformados/aposentados, ou os desempregados (cf. Acórdão do STJ, de 25.11.2009, Relator Raúl Borges, in www.dgsi.pt). Em suma, a fixação da indemnização pelo dano biológico justifica-se mesmo que não haja uma concreta perda de rendimentos. É de realçar a dificuldade e delicadeza subjacente ao cálculo do dano biológico na vertente patrimonial, enquanto perda futura de capacidade de ganho, pois exige a previsão, sempre problemática, de dados que apenas são constatáveis no futuro e por um muito longo período de tempo, como seja a evolução da economia, da produtividade, do emprego, dos salários ou da inflação (cf Acórdão da Relação de Guimarães, de 19.10.2017, Relator António Penha, in www.dgsi.pt). Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 10.11.2016, Relator Lopes do Rego (in www.dgsi.pt) “constitui entendimento jurisprudencial reiterado que a indemnização a arbitrar por tais danos patrimoniais futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma, aos 65 anos).” Sobre a determinação do valor indemnizatório correspondente ao dano biológico, na vertente de danos patrimoniais futuros, segue-se o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 19.10.2017, Relator António Penha (in www.dgsi.pt) onde se considera que “como é posição sucessivamente reiterada pelo nosso mais Alto Tribunal, o tribunal está apenas sujeito aos critérios que emergem do preceituado no Código Civil e, em particular ao critério da equidade, pois que os critérios consagrados na Portaria n.º 377/2008, de 26.05 (ou na Portaria n.º 679/2009, de 25.06, que procedeu à sua alteração/atualização), não obstante possam (ou devam) ser considerados pelo julgador, não se sobrepõem aos que decorrem do restante sistema substantivo e, sobretudo, em primeiro lugar, do Código Civil. De facto, como se pode alcançar da nossa jurisprudência, é pacífico o entendimento de que os critérios previstos nas citadas Portarias não substituem os critérios de fixação da indemnização consignados no Código Civil e não vinculam os tribunais em tal tarefa casuística, visando, sobretudo, em sede de apresentação de proposta célere e razoável por parte das seguradoras ao lesado, servir de critério orientador para esse confessado fim.” Em idêntico sentido de o critério último para a fixação da indemnização pelo dano biológico na vertente patrimonial ser a equidade, escreveu-se no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 4.10.2017, Relatora Sandra Melo (in www.dgsi.pt) que “mesmo a análise do dano na perspetiva essencialmente patrimonial, considerando que assenta em juízos de prognose, de simples probabilidade e o conjunto de variáveis que se deverão fazer intervir para projeção do mesmo num futuro mais ou menos longínquo, só pode, em última análise, ser obtida pela equidade.” No caso em apreço, foi esta a orientação seguida pelo tribunal a quo pois a sentença usou a fórmula matemática como mera base de cálculo. Porém, a fixação do valor final arbitrado ocorreu com base no critério da equidade. É o que resulta da sua fundamentação, para cuja leitura integral se remete, salientando-se apenas a parte em que aí se afirma “assim, creio que na busca do tratamento paritário, no cálculo que efectue o julgador terá que partir de uma base uniforme que possa utilizar em todos os casos, para depois temperar o resultado final com elementos do caso que eventualmente aconselhem uma correcção, com base na equidade. Só assim será possível uniformizar minimamente o tratamento conferido aos lesados”. A equidade não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade, sendo antes a aplicação da justiça ao caso concreto mediante ponderação, prudencial e casuística, das concretas circunstâncias da situação em análise. Nas palavras do Ac. do STJ, de 10/2/1998, (in CJ S. T., 1, p. 65) a equidade é "a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei", devendo o julgador "ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida." Para atingir o valor indemnizatório fixado, o tribunal a quo efetuou esta ponderação equitativa e o valor obtido está em perfeita consonância com os critérios jurisprudenciais mais recentes relativos a casos análogos. Na verdade, ainda que se recorra à equidade, é importante que exista uma justiça relativa por forma a que se obtenham soluções idênticas para casos semelhantes, pois só assim se respeita o princípio da igualdade, plasmado no art. 13º, da CRP, e se acautela a imposição contida no art. 8º, nº 3, do CC, segundo o qual nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito. Exemplificativamente, vejam-se os seguintes arestos do STJ, (todos disponíveis in www.dgsi.pt): - acórdão de 3.11.2016, relativamente a um lesado de 32 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 4 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 25 000 pelo dano biológico; - acórdão de 16.6.2016, relativamente a um lesado de 40 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 6 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 25 000 pelo dano biológico; - acórdão de 5.12.2017, relativamente a um lesado de 35 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 7 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 30 000 pelo dano biológico; - acórdão de 6.12.2017, relativamente a um lesado de 31 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 2 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 20 000 pelo dano biológico; - acórdão de 6.12.2018, relativamente a um lesado de 40 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 10 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 60 000 pelo dano biológico; - acórdão de 18.3.2021, relativamente a um lesado de 50 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 13 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 45 000 pelo dano biológico; - acórdão de 13.4.2021, relativamente a um lesado de 27 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 7 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 30 000 pelo dano biológico. - acórdão de 20.5.2021, relativamente a um lesado de 24 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 3 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 30 000 pelo dano biológico. - acórdão de 26.5.2021, relativamente a um lesado de 51 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 13 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 50 000 pelo dano biológico. - acórdão de 8.9.2021, relativamente a um lesado de 29 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 2 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 20 000 pelo dano biológico. Novamente se salienta que, estando em causa critérios de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, sendo que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica. Por tudo quanto se vem de expor, e em síntese, considera-se adequada, proporcional, justificada e equitativa a fixação da indemnização em € 42 840,00 para ressarcir o dano biológico de uma lesada com 36 anos que ficou afetada no membro inferior com uma incapacidade de 10 pontos, que tem claudicação ligeira à direita, sente dificuldades acrescidas ao subir/descer escadas e/ou na marcha em pisos irregulares, não consegue correr e saltar e tem dificuldades acrescidas ao vergar-se e ao acocorar-se e não suporta estar de pé, parada, longos períodos de tempo, estando tal valor perfeitamente alinhado e em consonância com as indemnizações atribuídas pelo Supremo Tribunal de Justiça para situações análogas, não se justificando reduzir tal valor, como pretendido pela recorrente. De referir que não se está aqui a fazer qualquer dupla valoração dos danos pois o dano biológico enquanto lesão corporal que afeta a integridade físico-psíquica do lesado e que implica uma perda da plenitude das suas capacidades pessoais tem consequências quer a nível patrimonial quer a nível não patrimonial, podendo e devendo ser indemnizado nessas duas vertentes. Consequentemente, a apelação também improcede nesta parte. * Nos termos dos nºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.Face a esta norma e tendo o recurso sido julgado improcedente, a recorrente tem de suportar as custas respetivas. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando as decisões recorridas. Custas pela recorrente. Notifique. * Guimarães, 4 de novembro de 2021 (Relatora) Rosália Cunha (1ª Adjunta) Lígia Venade (2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas 1 - Doravante CPC, diploma ao qual pertencem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem. |