Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
13/21.9PEBGC.G1
Relator: FLORBELA SEBASTIÃO E SILVA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE EXPOSIÇÃO OU ABANDONO
CRIME DE MAUS TRATOS
CONCURSO DE NORMAS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. O crime de exposição ou abandono, previsto no artº 138º do Código Penal, sendo um crime de perigo concreto, pressupõe que a actuação do agente, em relação à vítima, a coloque numa situação de perigo para a sua vida, sendo que, além de ter de existir o dolo, ainda que eventual em relação à criação desse perigo, tem de haver, pelo menos uma negligência, no que tange ao resultado, caso este se verifique.
II. Já o crime de maus tratos, previsto no artº 152º-A do Código Penal versa uma actuação fora do âmbito familiar.
III. O crime de violência doméstica abarca o crime de maus-tratos, daí se referir que está em concurso aparente com este crime. Contudo, o crime de violência doméstica vai muito para além dos maus-tratos, situando-os já na esfera da dignidade e integridade humana da vítima.
IV. Uma mãe que deixa os 5 filhos sozinhos em casa em ..., um com 12 anos, outro com 7 anos, outro com 5 anos, e dois gémeos com 19 meses, durante 4 dias enquanto vai tratar das unhas e do cabelo a Lisboa, comete um crime de violência doméstica.
V. Pois a actuação da arguida, que não se resume aos 4 dias de abandono das crianças à sua sorte, revela um desprezo por parte desta do bem-estar físico e psicológico dos seus filhos, sujeitando-os ao frio, à fome, ao desconforto, à falta de higiene, à solidão, aos medos que assolam as crianças quando não têm um adulto por perto e à sensação de insegurança, enfim, a toda uma panóplia de condições que seguramente interferem com o são desenvolvimento de qualquer criança.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. No âmbito de processo comum com intervenção do Tribunal Colectivo que corre termos pelo Juiz ... do Juízo Central Cível e Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., sob o nº 13/21...., após audiência de discussão e julgamento, foi proferido acórdão em 10-01-2024, com a refª ...32, relativamente à arguida AA, através do qual, e por maioria do colectivo, a mesma foi absolvida nos seguintes termos (transcrição):

DISPOSITIVO 
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem o tribunal colectivo do Juízo Central Cível e Criminal do Tribunal Judicial de ... em julgar improcedente a douta acusação pública e, em consequência, decidem:
Absolver a arguida AA da imputada autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de cinco crimes de violência doméstica, cometidos por omissão, previstos e punidos pelos artigos 26.º, 30.º, n.º 1, e 152.º, n.ºs 1, alínea e), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal, em concurso aparente com cinco crimes de maus-tratos, cometidos por omissão, punidos pelos artigos 26.º, 30.º, n.º 1, e 152-A.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código Penal.
 Absolver a arguida da promovida indemnização civil.
 Notifique e deposite.”

II. Inconformado com a decisão absolutória veio o Ministério Público interpor recurso em 24-01-2024, com a refª ...04, através do qual oferece as seguintes conclusões:

“I. OBJETO E DELIMITAÇÃO DO RECURSO

1.º O presente recurso tem como objeto o Acórdão proferido a 10.01.2024 com a referência ...32, de fls. 609 a 620verso, depositado a 11.01.2024, acompanhado de declaração de voto de vencido datada de 10.01.2024, com a referência ...44, de fls. 622 a 626verso, por via do qual foi a arguida AA absolvida dos crimes pelos quais foi acusada, a saber, cinco crimes de violência doméstica cometidos por omissão, previstos e punidos pelos artigos 26.º, 30.º, n.º 1 e 152.º, n.ºs 1, al. e) e 2, alínea a), 4 e 5, todos do Código Penal (em concurso aparente com cinco crimes de maus-tratos cometidos por omissão punidos pelos artigos 26.º, 30.º, n.º 1 e 152-A .º, n.º 1, als. a) e c) do Código Penal)
2.ºVersa o presente recurso sobre i) impugnação da matéria de facto, por um lado e, por outro, sobre ii) matéria de Direito, concretamente, quanto à subsequente verificação dos elementos típicos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito pelo qual foi a arguida acusada, em caso de procedência da impugnação da matéria de facto e, em decorrência, da respetiva pena e da reparação a ser arbitrada às vítimas.

Assim:

II. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

i) Dos factos julgados não provados que deveriam ter sido julgados PROVADOS:
3.ºEntende o Ministério Público que o Tribunal a quo deveria ter julgado provados os factos indicados sob os pontos n.ºs 7, 9, 10, 11, 12, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 32, da douta acusação pública proferida, elencados nos factos julgados não provados (à exceção do facto n.º 31 que não constando do elenco dos factos não provados, a tal se faz referência na fundamentação de facto pelo Tribunal a quo), deveriam ter sido julgados PROVADOS, ainda que com uma redação distinta do facto 32.
4.ºConcretamente, deveria julgar-se provado que:
7. Durante o período compreendido entre o dia 16 de Fevereiro de 2021 e o dia 20 de Fevereiro de 2021 a arguida deixou os seus cinco filhos menores no interior dasua residência entregues à sua sorte, sem a supervisão e apoio de um adulto.
8. A arguida encarregou o menor BB, que na altura tinha 12 anos de idade, de providenciar pela supervisão dos restantes menores, seus irmãos, nomeadamente, alimentá-los, mudar-lhes a fraldas e levá-los à escola, o que o menor fez.
9. A arguida não adquiriu, nem providenciou pela aquisição de bens alimentares para consumo pelos seus filhos enquanto se encontrava ausente.
10. A arguida não cuidou de prestar, ou solicitar a outrem que o fizesse, de forma habitual, os cuidados normais de higiene em relação aos seus filhos (designadamente a toma de banho, limpeza do corpo e lavagem da roupa) enquanto se encontrava em Lisboa.
11. A arguida não providenciou pela limpeza da habitação onde permaneceram os seus filhos enquanto se encontrava em Lisboa.
12. A habitação onde os menores se encontravam, durante o referido hiato temporal, encontrava-se com lixo espalhado pelo chão e sacos do lixo encostados à parede, em todas as divisões da casa. […]
24. Ao ausentar-se de casa, deixando os menores entregues à sua sorte, nas condições supra elencadas agiu a arguida com total desrespeito para com os seus filhos e pelo exercício das responsabilidades parentais que lhe competia, enquanto mãe dos mesmos.
25. Sabia a arguida que os seus filhos não conseguiam nem poderiam cuidar deles próprios, nomeadamente, CC e DD, que na data dos factos tinham 12 meses de idade, não obstante agiu conforme o descrito.
26. Ademais, a arguida sabia que os seus filhos menores não poderiam contar com o auxílio do irmão BB, que na data dos factos tinha 12 anos de idade e cujas tarefas, atenta a sua idade, não lhe pertenciam, nem eram adequadas à sua idade, não obstante agiu a arguida conforme o supra relatado.
27. Com a conduta supra descrita quis e conseguiu a arguida deixar sozinhos os seus cinco filhos, entregues à sua sorte, na residência da mesma, bem sabendo (...) os mesmos (...) não obstante agiu conforme o descrito.
28. Com a sua ausência a arguida atingiu a dignidade dos seus filhos enquanto pessoas, pese embora não ignorasse que devia às vítimas dos seus actos, na qualidade de sua mãe, particular respeito e consideração.
29. Ademais, sabia a arguida que os seus cinco filhos se encontravam à sua guarda, não conseguindo por eles próprios, atendendo às suas idades, fazer face aos actos da vida corrente, nomeadamente, cozinharem, alimentarem-se, mudar a fralda e tomarem banho, não obstante agiu conforme o descrito.
30. A arguida não cuidou do bem-estar físico e emocional dos seus cinco filhos, como lhe competia, actuando com indiferença relativamente a estes, o que quis e conseguiu,
31. Bem sabia a arguida que os factos acima descritos eram praticados no interior da residência das vítimas, que as mesmas eram seus filhos e apresentavam fragilidades inerentes às suas idades.
32. A arguida agiu consciente da possibilidade de se verificar o resultado de as crianças ficarem feridas na sua dignidade de pessoa, física e/ou emocionalmente, nos termos anteriormente descritos, mas, indiferente a tal possibilidade, conformou-se com esse resultado, tendo agido nos termos supra descritos, porque quis (redação alterada).
5.ºTal erro de julgamento resulta manifesto da análise conjugada com as mais basilares regras da experiência comum e normalidade dos acontecimentos, com o teor da reportagem fotográfica junta a fls. 5 a 18, em conjugação, ainda, com as declarações prestadas pela arguida em          inquérito, juntas no Citius sob a designação “20210301123428_19877793_2872139” conjugadas, ainda, com o depoimento da testemunha EE, constante do Citius sob a designação 20231025142443_2018743_2870627, entre outros, no segmento temporal [02:28 a 22:10], com especial destaque para [21:00 a 22:10] e no segmento temporal [37:25 a 50:04] a perguntas feitas pelos Mmos. Juízes Adjuntos.
6.ºNo mesmo sentido, e a propósito dos factos respeitantes ao elemento intelectual, volitivo e emocional, atente-se, ainda, ao depoimento da testemunha FF da Associação ..., que deixa patente que as crianças eram muito ligadas entre si e à mãe e, ainda, ao sentimento de culpa assumido pelo menino BB      (vide gravação constante do Citius com a designação 20231018160847_2018743_2870627, segmento [05:50 a 07:00].
7.ºE, ainda, a propósito de que também culturalmente os factos imputados à arguida são reconhecidamente tidos como inaceitáveis sob todos os pontos de vista, estando também enraizado na sua comunidade de origem da arguida, atente-se aos depoimentos das testemunhas EE, GG e HH (como resulta, designadamente, das gravações com as designações 20231025142443_2018743_2870627 segmento [21:00 a 22:10], 0231025151507_2018743_2870627        segmento        [12:10        a 18:57] e 20231025154453_2018743_2870627 segmento [09:07 a 12:42].
ii) Dos factos julgados provados que impõem sejam alterados na sua redação:
8.ºPor outro lado e em sua decorrência, mal julgou o Tribunal a quo os factos que indicou com os n.ºs 21.º, 23.º e 24.º dos factos provados, os quais devem ser expurgados dos segmentos “com excepção do menor BB” dos factos 21.º e 23.º e “exceptuando o filho BB” do facto 24.º, precisamente por se mostrarem em oposição aos factos a que supra se fez referência e que devem ser julgados provados.
9.ºTambém em idêntica decisão de facto estriba o juízo formulado pela Mma. Juiz Adjunta no seu voto de vencido junto aos autos a fls. 622 a 626verso, com a referência ...44, de 10.01.2024, e que integra o douto Acórdão ora recorrido.

III. DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO

10.º Em face do que, da conjugação dos factos tidos como provados – a merecer provimento o recurso nesta parte – entende-se que se verificam preenchidos todos os elementos típicos objetivos e subjetivos do ilícito de violência doméstica que foi imputado à arguida, nos precisos termos que constam melhor descritos nas alegações supra, para os quais, por brevidade, se remete.
11.º Neste concreto e, em apertadíssima síntese, há que concluir que para um homem médio e, no caso, para uma mulher média, é de extrair que a mesma tivesse, pelo menos, admitido como possível que em face daquele seu comportamento as crianças tivessem aqueles concretos danos na sua integridade física e psicológica, e, ainda assim, certo é que a mesma se conformou com tal possibilidade pelo menos no momento em que sabendo que o alegado II (ou JJ) quebrou o compromisso de cuidar das crianças e, ainda assim, decidiu seguir viagem. Ou, caso se entenda que o ilícito se basta com o mero perigo, certo é que a arguida admitiu como possível que as crianças o sofressem e, ainda assim, igualmente se conformou.
12.º Com o que se impõe, assim, a condenação da arguida pela prática de cinco crimes de violência doméstica cometidos por omissão, previstos e punidos pelos artigos 26.º, 30.º, n.º 1 e 152.º, n.ºs 1, al. e) e 2, alínea a), 4 e 5, todos do Código Penal, nas respetivas penas a serem concretamente apuradas pelo Tribunal ad quem sopesando os critérios ínsitos aos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, e que, entendemos que atenta a gravidade dos factos possa ainda ser fixada próxima do mínimo legal de 2(dois) anos para cada um dos crimes e, em cúmulo, a imposição, à arguida, de uma pena única próxima dos 4(quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo, com regime de prova que passe pela sujeição e integração da arguida a programa especialmente vocacionado para a parentalidade e seu modo de exercício.
13.º Ademais, considerando a forte ligação das crianças à ora arguida e, bem assim, a circunstância de esta se encontrar a ser acompanhada em medida protetiva de apoio junto da mãe no âmbito do processo n.º 200/21...., entende-se que não deverá ser imposta qualquer pena acessória.
14.º E, por fim, deve também a arguida ser condenada na necessária e correspondente reparação oficiosa a ser arbitrada ao abrigo do artigo 82.º-A do Código Penal em quantia a ser prudentemente fixada pelo Tribunal ad quem.
15.º Destarte, julgando V. Exas. procedente o presente recurso e, assim, alterando a matéria de facto nos termos indicados, com a subsequente alteração da decisão final após subsunção dos factos ao Direito, condenando a arguida AA nos precisos termos sobreditos farão, como sempre, a tão acostumada JUSTIÇA.”

III. O recurso foi admitido por despacho de 01-03-2024, com a refª ...46, tendo sido fixado efeito suspensivo, efeito esse por nós corrigido para devolutivo nos termos do despacho de 28-05-2024 com a refª ...19.
IV. Respondeu a arguida em 05-04-2024, com a refª ...41, através de contra-alegações nas quais pugna pela improcedência do recurso interposto pelo MºPº e a manutenção do acórdão recorrido, tendo rematado com as seguintes conclusões:

“1. O itinerário argumentativo contido na decisão proferida revela-se claro e coerente, sendo a absolvição da Arguida o seu desfecho natural.
2. A factualidade dada como provada mostra-se claramente suportada pelos elementos de prova enunciados, não havendo qualquer erro na apreciação da matéria de facto ou insuficiência, sendo as declarações das testemunhas de primordial importância.
3. Por outro lado, não se mostram verificados todos os elementos objetivos do crime de violência doméstica, tal como descritos no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, de modo que se afigura assertiva a absolvição da Arguida nos exatos decididos pelo Tribunal a quo.
4. “A violação de um bem jurídico não basta por si para desencadear a intervenção penal, antes se querendo que esta intervenção seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade. Nesta precisa acepção o direito penal constitui, na verdade, a ultima ratio da politica social.” Cfr. Apontamentos de estudo da Cadeira de Direito Penal (3º ano) segundo as lições dos Profs. Doutores Jorge de Figueiredo Dias (1ª turma) e Manuel da Costa Andrade (2ª turma), 1996, página 66.
5. Assim, o Recurso interposto pelo Digníssimo Ministério Público deverá improceder.
Termos em que, e nos melhores de direitos que V. Exas. doutamente suprirão, deve o Acórdão objecto de Recurso ser confirmado, negando-se provimento ao Recurso Interposto,
Fazendo-se, assim, a habitual e necessária Justiça.”

V. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo a Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta proferido douto parecer em 29-04-2024 com a refª ...41, no qual pugna pela procedência do recurso, e consequente condenação da arguida, subscrevendo a posição assumida pelo MºPº na 1ª instância.

VI. Cumprida a notificação nos termos do artº 417º nº 2 do CPP nenhuma resposta foi oferecida.

VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

VIII. Analisando e decidindo.

O objecto do recurso interposto, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas respectivas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no artº 410º do CPP e das nulidades previstas no artº 379º do mesmo CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1]
Das disposições conjugadas dos artºs 368º e 369º, por remissão do artº 424º nº 2, e ainda o disposto no artº 426º, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:

1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, aqui incluindo-se as nulidades previstas no artº 379º e os vícios constantes do artº 410º, ambos do CPP;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artº 412º do CPP;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.

O Digno recorrente:
- invocando erro de julgamento, impugna a matéria de facto com a qual pretende a condenação da arguida;
- consequentemente, integra o comportamento da mesma no crime de violência doméstica e indica a medida concreta da pena que pretende ver aplicada, bem como o arbitramento de indemnização nos termos do artº 82º-A do CPP.

Está, assim, em causa decidir nos autos, e de acordo com a ordem legal supra estabelecida:
I)  se houve erro de julgamento;
II) qual o crime no qual os factos devem ser subsumidos;
III) qual a medida concreta da pena a aplicar na eventualidade da matéria de facto ser alterada.

Antes de entrarmos na análise dos concretos pontos objecto do recurso vejamos, primeiro, os factos que foram dados por provados e por não provados pelo Tribunal a quo bem como a respectiva fundamentação.

“Da discussão da causa resultaram os seguintes factos provados: 
1.º - BB nasceu em ../../2008 e é filho da arguida.
2.º - KK nasceu em ../../2013 e é filho da arguida.
3.º - LL nasceu em ../../2015 e é filho da arguida.
4.º - CC e DD nasceram em ../../2019 e são filhos da arguida.
5.º - A arguida fixou residência em 2019, juntamente, com os seus filhos menores, BB, KK e LL, na Rua ..., ....
6.º - No dia 16 de Fevereiro de 2021, a arguida AA deslocou-se a Lisboa, a fim de ver uma casa para poder alugar, comprar comida africana e fazer rastas no cabelo, tendo regressado a ... no dia 21 de Fevereiro de 2021.
7.º - Durante o período compreendido entre o dia 16 de Fevereiro de 2021 e o dia 20 de Fevereiro de 2021 a arguida deixou os seus cinco filhos menores no interior da sua residência.
8.º - A arguida encarregou o menor BB, que na altura tinha 12 anos de idade, de providenciar pela supervisão dos restantes menores, seus irmãos, nomeadamente, alimentá-los, mudar-lhes as fraldas e levá-los à escola, o que o menor fez.
9.º - No dia 20 de Fevereiro de 2021, a habitação onde os menores se encontravam, encontrava-se com lixo espalhado pelo chão e sacos do lixo no chão da cozinha.
10.º - Na cozinha encontrava-se loiça suja, restos de comida espalhados pela banca, pela mesa e pelo chão de onde emanava um cheiro a putrefação.
11.º - Os móveis existentes, alguns, encontravam-se espalhados pela casa, tombados no chão.
12.º - A roupa dos menores encontrava-se amontoada no chão e em cima de uma cama, encontrando-se roupa limpa misturada com roupa suja.
13.º - Os menores dormiram num quarto onde se encontrava no chão um colchão sujo, sem lençóis e cobertores.
14.º - Nesse quarto existia, junto ao colchão, uma tesoura aberta e fraldas usadas, cheias de urina, espalhadas pelo quarto.
15.º - Em cima da cómoda do referido quarto, encontrava-se uma panela cheia de urina.
16.º - No interior da referida residência não existiam brinquedos nem telefone.
17.º - A casa não tinha aquecimento e as crianças andavam descalças e sem meias.
18.º - As crianças andavam descalças, com roupa fina, calções, camisas de manga curta ou só de fraldas cheias de urina, no caso de CC e de DD.
19.º - As crianças encontravam-se sujas e cheiravam mal, uma vez que no referido hiato temporal não tomaram banho.
20.º - Era o BB quem mudava as fraldas a CC e a DD.
21.º - Sabia a arguida que, com excepção do menor BB, os seus filhos não conseguiam nem poderiam cuidar deles próprios, nomeadamente, CC e DD.
22.º - A arguida sabia que os seus filhos menores não poderiam contar, além do descrito em 8.º, com o auxílio do irmão BB.
23.º - A arguida sabia que os seus filhos eram de tenra idade e, com excepção do BB, não tinham capacidade para tomarem conta de si e necessitavam de supervisão e auxílio de um adulto para os alimentar e cuidar da sua higiene.
24.º - A arguida sabia que os seus cinco filhos se encontravam à sua guarda, não conseguindo por eles próprios, atendendo às suas idades, exceptuando o filho BB, fazer face aos actos da vida corrente, nomeadamente, cozinharem, alimentarem-se, mudar a fralda e tomarem banho.
25.º - Bem sabia a arguida que os factos acima descritos eram praticados no interior da residência dos seus filhos e apresentavam fragilidades inerentes às suas idades.
26.º - A arguida não tem antecedentes criminais.
27.º - A arguida AA, à data dos factos, residia no concelho ..., em acolhimento residencial, com os 5 filhos. Em Agosto de 2021, alterou a sua residência e a dos seus filhos para o concelho ..., onde residiu duas semanas. Posteriormente, alterou a sua residência e a dos filhos para o lugar de ..., no concelho ..., onde esteve até ao princípio do mês de Março de 2022. Depois, regressou a ..., mais concretamente a ..., onde esteve até ../../2023, altura em que alterou a sua residência e a dos filhos para o concelho .... Justificou esta mobilidade residencial por necessidade de apoio e contactos de pessoas da sua comunidade africana, referindo que tem esses apoios/contactos actualmente.
A arguida AA vive, desde ../../2023, no concelho ..., localidade onde referiu pretender ter habitação permanente. Com ela coabitam os cinco filhos, a saber BB, com 14 anos de idade, KK, com 9 anos de idade, LL, de 8 anos de idade e os filhos gémeos, CC e DD, com 4 anos de idade. Os três primeiros encontram-se a estudar no agrupamento de escolas cidade do entroncamento e os dois mais novos (gémeos) encontram-se ao seu cuidado, uma vez que estes não têm vaga na creche.
Com a arguida coabita também, ainda que de forma temporária, um primo, MM, compadre, que exerce funções em órgão de polícia criminal em ... e se deslocou a Portugal para efeitos de intervenção cirúrgica, encontrando-se em fase de recuperação, após a qual regressará a ..., em princípio, no final do ano de 2023. Este descreveu o ambiente familiar como harmonioso e positivo, referindo que a arguida é uma mãe cuidadora e presente, existindo vínculo maternal e boa comunicação entre todos. Referiu ainda que a arguida imigrou de ... para Portugal, com os filhos, em 2019, devido a alegada criminalidade do companheiro na altura.
A arguida AA, em 2007, no âmbito das suas tradições e raízes culturais africanas beneficiou de um denominado “casamento a pedido”, que em ... se designa por alambamento, que é uma tradição cultural forte, mais importante, alegadamente, que o casamento civil ou religioso. O alambamento consiste numa série de rituais, que no caso foi a entrega de uma carta com o pedido da mão da noiva e ofertas em bens. Este “casamento” teve o seu término passados dois anos, tendo sido fruto dessa relação o filho mais velho. Posteriormente, teve outro relacionamento, do qual teve dois filhos e que terminou por alegados comportamentos ilícitos do companheiro. Depois, teve um relacionamento de curta duração, do qual engravidou dos seus filhos gémeos. Actualmente, não tem nenhum relacionamento afectivo.
A arguida AA e o agregado familiar vivem em apartamento duplex arrendado, que reúne condições de habitabilidade e conforto. O apartamento localiza-se em zona urbana não conectada com problemáticas sociais e/ou criminais.
A arguida AA encontra-se habilitada com o 12.º ano de escolaridade (curso de química), que concluiu em 2015, em ..., tendo iniciado a sua actividade profissional num grupo musical denominado as EMP01.... Depois, trabalhou como operadora química na EMP02... – fábrica de colchões, até 2019, altura em que imigrou para Portugal. Desde a data dos factos, trabalhou 6 meses no centro de logística da EMP03..., sito na ..., mas teve de rescindir o contrato por não ser possível conciliar a vida profissional com a familiar. Desde então, encontra-se desempregada e inscrita no Centro de Emprego .... Encontra-se a beneficiar do rendimento social de inserção, no valor mensal de € 731, 00, e de abono familiar, no valor mensal de € 750, 00. A arguida AA apresentou, como despesas, a renda habitacional, no valor mensal de € 650, 00, a que acrescem as despesas com bens básicos essenciais, no valor mensal de € 110, 00. A estes acrescem outros encargos, nomeadamente, com a alimentação.
A situação económica é percepcionada actualmente pela arguida como suficiente para a subsistência familiar.
A arguida pretende criar o seu próprio emprego na área da restauração, especificamente, na de comida .... Foi encaminhada para o sector do empreendedorismo na Fábrica de Emprego ....
A arguida AA, em sede de entrevista, referenciou a necessidade de se deslocar pontualmente, nomeadamente a Lisboa, para comprar comida e condimentos específicos angolanos, uma vez que nas zonas residenciais onde esteve e está actualmente não existe oferta no mercado desses produtos. Na sociedade ... registam-se elementos culturais muito diversos, nomeadamente no que diz respeito à culinária tradicional de .... Esta influência gastronómica tem repercussões na vida diária da arguida que demonstra muita afinidade e necessidade destes alimentos tradicionais da sua cultura.
A arguida AA dedica o seu tempo livre aos filhos. No meio onde vive actualmente não são percepcionados sentimentos de animosidade ou de rejeição para com a mesma.
A arguida AA manifesta conhecimento da sua situação jurídica e ter capacidades para identificar e reconhecer condutas do ponto de vista do dever ser jurídico e normativo.
Apresenta ansiedade e preocupação pessoal, desde logo, quanto às eventuais consequências que do actual processo possam advir, ainda que seja primária. Reconhece, de forma parcial, o ilícito dos seus actos, desculpabilizando-se, no entanto, com a conjuntura das circunstâncias/acontecimentos na altura dos factos.
A tipologia criminal do presente processo judicial não é conhecida no meio, pelo que não existem registos de quaisquer impactos a nível social. Também não se percepcionam repercussões a nível pessoal e familiar.
Do contacto efetuado com OPC, não existem outros registos em desfavor da arguida.
A arguida AA teve um desenvolvimento de vida pautado pelos hábitos e costumes da comunidade africana. Apresenta um percurso de vida com algumas dificuldades, quer em termos económicos quer em termos de relacionamentos afetivos. Afere-se ainda uma instabilidade residencial o que se pode refletir no estado emocional familiar. Demonstra actualmente estabilidade a nível familiar e encontra-se integrada em termos comunitários.
Em termos profissionais, encontra-se atualmente desempregada, mas demonstra espírito de empreendedorismo na iniciativa de criar o seu próprio emprego.
A arguida tomava conta de outras crianças menores, em ..., com 7 anos. Parece existir uma boa relação de vinculação dos menores para com a mãe e da mãe para com os filhos. Estes reagem muito positivamente à presença da mãe. Não se apurou perturbações psicológicas que possam interferir com o exercício pleno das responsabilidades parentais. Percebe-se tratar-se de uma progenitora responsiva e atenta, que tem verbalizado querer o melhor para os seus filhos. Como fatores de risco para o exercício pleno das responsabilidades parentais salienta-se as diferenças culturais e a situação de desemprego da AA. Esta reconhece que situações que são consideradas normativas no seu país de origem não o são em Portugal. Percebe-se existir uma boa qualidade da relação e interação mãe-filhos, a existência de uma vinculação segura, motivação para a parentalidade da mãe, acompanhamento próximo que mantém com os filhos.

Não se provaram outros factos.                   

Designadamente, no que concerne à matéria da acusação pública, não se provou “7. (...) entregues à sua sorte, sem a supervisão e apoio de um adulto, 9. A arguida não adquiriu, nem providenciou pela aquisição de bens alimentares para consumo pelos seus filhos enquanto se encontrava ausente. 10. A arguida não cuidou de prestar, ou solicitar a outrem que o fizesse, de forma habitual, os cuidados normais de higiene em relação aos seus filhos (designadamente a toma de banho, limpeza do corpo e lavagem da roupa) enquanto se encontrava em Lisboa. 11. A arguida não providenciou pela limpeza da habitação onde permaneceram os seus filhos enquanto se encontrava em Lisboa. 12. (...) durante o referido hiato temporal, (...) encostados à parede, em todas as divisões da casa. 23. (...) e lhes dava os restos de comida que se encontravam espalhados pelo chão da residência. 24. Ao ausentar-se de casa, deixando os menores entregues à sua sorte, nas condições supra elencadas agiu a arguida com total desrespeito para com os seus filhos e pelo exercício das responsabilidades parentais que lhe competia, enquanto mãe dos mesmos. 25. (...) os seus filhos (...) que na data dos factos tinham 12 meses de idade, não obstante agiu conforme o descrito. 26. os seus filhos menores (...) que na data dos factos tinha 12 anos de idade e cujas tarefas, atenta a sua idade, não lhe pertenciam, nem eram adequadas à sua idade, não obstante agiu a arguida conforme o supra relatado. 27. Com a conduta supra descrita quis e conseguiu a arguida deixar sozinhos os seus cinco filhos, entregues à sua sorte, na residência da mesma, bem sabendo (...) os mesmos (...) não obstante agiu conforme o descrito. 28. Com a sua ausência a arguida atingiu a dignidade dos seus filhos enquanto pessoas, pese embora não ignorasse que devia às vítimas dos seus actos, na qualidade de sua mãe, particular respeito e consideração. 29. (...) não obstante agiu conforme o descrito. 30. A arguida não cuidou do bem-estar físico e emocional dos seus cinco filhos, como lhe competia, actuando com indiferença relativamente a estes, o que quis e conseguiu, 32. A arguida agiu livre, voluntaria e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal”.

Relativamente à matéria da contestação da arguida, não se provou o alegado nos artigos 1.º, 2.º, 3.º, 4.º, 5.º, 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 10.º, 11.º, 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25.º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, 30.º, 31.º, 32.º, 33.º, 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º, 41.º, 42.º, 43.º, 44.º, 45.º, 46.º, 47.º, 48.º, 49.º, 50.º, 51.º e 52.º.
                                                                        
No que respeita aos factos provados, o tribunal fundou a sua convicção na análise e valoração que, segundo as regras da lógica e as máximas da experiência da vida, fez sobre toda a prova carreada para os autos.
Em conformidade, o tribunal, considerando relevante o teor dos documentos juntos a fls. 95 e 96, 289 e 292 (certidões de assentos de nascimento e cópias dos documentos relativos às autorizações de residência da arguida e dos menores), sob os artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º dos factos provados no presente acórdão, considerou provada a matéria descrita nos artigos 1., 2., 3. e 4. da acusação pública.
Outrossim, considerando relevantes todos os documentos juntos aos autos e os depoimentos que se relacionam com a matéria descrita no artigo 5. da acusação pública, que assertivamente a confirmam (em especial, o depoimento da testemunha BB, sobre o qual não recaem razões algumas para nele não acreditar, o qual depôs dizendo que, quando vieram para ..., ficaram logo a morar nesta casa, sita na Rua ..., e, sobretudo, o teor do relatório social da Segurança Social, junto a fls. 163 ss., maxime, fls. 168, do apenso n.º 200/21....), foi a mesma considerada provada, sob o artigo 5.º dos factos provados.
Considerando relevante o teor do auto de notícia, junto a fls. 4 a 8, corroborado pelos depoimentos das testemunhas NN, Comissário da PSP local, que elaborou e assinou o auto de notícia, e OO, também agente da PSP local, os quais se dirigiram à residência da arguida e aí encontraram os menores nas condições descritas no auto de notícia, e PP, que detectou a situação em que os menores se encontravam e a denunciou à autoridade policial, sob o artigo 9.º dos factos provados, considerou-se consentânea e parcialmente provada a matéria descrita no artigo 12. da acusação pública, ou seja, que “No dia 20 de Fevereiro de 2021, a habitação onde os menores se encontravam encontrava-se com lixo espalhado pelo chão e sacos do lixo no chão da cozinha”, não se considerando provado “durante o referido hiato temporal” (porquanto, por um lado, a testemunha BB depôs dizendo que a habitação costumava estar, mais vezes sim, que não, arrumada e limpa, a mãe deixou a casa, cozinha e quartos, arrumada, e a testemunha EE, sobre cujo depoimento também não recaem razões para nele não acreditar, depôs dizendo que reconhece na arguida qualidades de mãe boa e carinhosa e, sendo sua amiga [fazendo também indicação destas qualidades, depuseram as testemunhas GG e HH], no dia de quarta-feira, a arguida lhe telefonou, solicitando que fosse ver se os meninos estavam bem, o que ela fez, tendo, nos dias de quinta-feira e sexta-feira, dado um jeito na arrumação e limpeza da habitação, empilhado a loiça na banca da cozinha e retirado dois ou três sacos de lixo), não se considerando ainda provado que houvesse “sacos de lixo encostados à parede em todas as divisões da casa”, pois o auto de notícia e respectivos fotogramas apenas revelam a existência de dois sacos de lixo no chão da cozinha; sob o artigo 10.º dos factos provados, considerou-se provada a matéria descrita no artigo 13. da acusação pública; sob o artigo 11.º dos factos provados, considerou-se parcialmente provada a matéria descrita no artigo 14. da acusação pública, ou seja, que “Os móveis existentes, alguns, encontravam-se espalhados pela casa, tombados no chão”, pois é esse o cenário transposto pelos fotogramas; e, sob os artigos 12.º, 13.º, 14.º, 15.º, 16.º, 17.º, 18.º e 19.º dos factos provados, considerou-se provada a matéria descrita nos artigos 15., 16., 17., 18., 19., 20., 21. e 22. da acusação pública.
Considerando, uma outra vez, o depoimento da testemunha BB, que depôs dizendo que a arguida se deslocou para Lisboa no dia de terça-feira (16 de Fevereiro de 2021), que foi ver uma casa e fazer compras, era para “ficar[em] com o JJ] [um amigo da mãe], só que o mesmo dia ele foi informado que tinha que voltar a Lisboa para trabalhar”, que cuidou dos irmãos, inclusive, alimentando-os substituindo as fraldas aos mais pequenos, CC e DD, o sobredito depoimento da testemunha EE, e o depoimento da testemunha FF, sobre o qual não também não recaem razões para nele não acreditar, e a quem a arguida confirmou ter feito as rastas, sob o artigo 6.º dos factos provados considerou-se provada a matéria do artigo 6. da acusação pública, nos seguintes termos: “No dia 16 de Fevereiro de 2021, a arguida AA deslocou-se a Lisboa, a fim de ver uma casa para poder alugar, comprar comida africana e fazer rastas no cabelo, tendo regressado a ... no dia 21 de Fevereiro de 2021”, pois a referência, no artigo 6., ao dia 20 de Fevereiro se terá devido a manifesto lapso; sob ao artigo 8.º dos factos provados, a matéria descrita no artigo 8. da acusação pública; sob o artigo 20.º dos factos provados, parte da matéria descrita no artigo 23. da acusação pública, ou seja, que “Era o BB quem mudava as fraldas a CC e a DD”, não se considerando provado, por falta de prova, “e lhes dava os restos de comida que se encontravam espalhados pelo chão da residência”; e, sob o artigo 7.º dos factos provados, parcialmente provada a matéria descrita no artigo 7. da acusação pública, ou seja, “Durante o período compreendido entre o dia 16 de Fevereiro de 2021 e o dia 20 de Fevereiro de 2021 a arguida deixou os seus cinco filhos menores no interior da sua residência”, não se considerando provado “entregues à sua sorte, sem a supervisão e apoio de um adulto”, porquanto, como se referiu, dos sobreditos depoimentos das testemunhas BB e EE, resulta que a arguida solicitara ao amigo JJ que cuidasse dos menores, o que este só não fez por motivos de imprevisível deslocação para Lisboa, e, depois, solicitou à amiga EE que vigiasse o bem-estar dos menores, o que esta, como já se referiu, quanto pode e soube, fez, pelo que também se não considerou provada a matéria descrita nos artigos 9. (pois a arguida, contando com o amigo JJ, tinha deixado refeições prontas para dois dias – cf. pág. 9 do “relatório social de avaliação diagnóstica, junto a fls. 162 e ss. do processo n.º 200/21...., o que, aliás, o depoimento do BB confirma –, 10. e 11. da acusação pública.
Considerando ainda as máximas da experiência da vida, as quais nos demonstram que – com excepção do menor BB, porquanto a arguida mãe nele confiava e, quiçá, por razões culturais e interiorização dos valores da sua meninice (com sete anos cuidava de outras crianças menores), nele depositava algumas responsabilidades parentais – crianças com a idade dos menores filhos da arguida não conseguiam nem poderiam cuidar deles próprios, nomeadamente, CC e DD, nem poderiam contar com o auxílio do irmão BB, sob os artigos 21.º e 22.º dos factos provados, considerou-se provada – excluindo-se o menor BB e as conclusivas expressões “não obstante agiu conforme  descrito”, “não obstante agiu a arguida conforme o supra descrito”, “na data dos factos, tinham 12 meses de idade” e “na data dos factos tinha 12 anos de idade e cujas tarefas, atenta a sua idade, não lhe pertenciam, nem eram adequadas à sua idade” e esclarecendo-se, em conformidade com a matéria considerada provada sob o artigo 8.º dos factos provados, “os seus filhos menores não poderiam contar, além do descrito em 8.º, com o auxílio do irmão BB” – a matéria descrita os artigos 25. e 26. da acusação pública.
Por se tratar de factualidade conclusiva, não foi considerada a matéria descrita nos artigos 24., 28. e 30. da acusação pública.
No que respeita à matéria descrita nos artigos 27., 29., 31. e 32 da acusação pública, cumpre dizer que, além do mais, se nos afigurou relevante o depoimento da testemunha FF, directora técnica da instituição ..., onde os menores, na sequência dos factos, foram institucionalizados, que, essencialmente, disse que, “durante a tarde [do dia 20], pelas cinco e meia ou seis horas, as crianças foram entregues na ..., estavam bem alimentadas, sujas, mal agasalhadas, cheiravam bastante mal, não tomavam banho há alguns dias, os pequeninos traziam as fraldas sujas com urinas e fezes, não tinham aspecto de dias, mas não eram mudadas há bastante tempo, o BB vinha choroso, culpabilizava-se da situação por não ter tratado correctamente dos irmãos, quando a mãe chegou, disse-lhe que não se culpabilizasse, reconheceu que não tinha agido bem (“tu não tens culpa quem fez mal fui eu”), entre as crianças notava-se uma ligação forte entre todos centralizada na direcção do BB, de tal modo que os funcionários da ..., para fazer a higiene, pediram ajuda ao BB, foram alimentados e comeram muito bem, não se pode dizer que traziam fome, comiam sempre bem, pão com regularidade, apesar de terem feito cama para cada uma das crianças, foram todos para a cama do mais velho, BB era o porto de abrigo, a referência, o BB frisou que estavam sozinhas desde terça, perdia-se um pouco no tempo, sabia que a mãe tinha ido a Lisboa fazer rastas foi o que nos explicou e ficou uma senhora a tomar conta deles, ficou de ir lá a casa, ir levar as refeições, a AA segunda-feira chegou, confirmou que tinha ido ao cabeleireiro, corroborou o que BB tinha dito, ela trazia as trancitas na cabeça, falou com o BB, que não tinha culpa, fomos trabalhando esta senhora sobre competências parentais, aceitou sempre bem as orientações dadas, quando não sabia, pedia ajuda (por ex., nas questões de gerir o orçamento, produtos que devia comprar para higiene das crianças, compra de fraldas, colocação de lâmpadas na casa, como higienizar, uso de quarto que não usava para não estragar, necessidade de falar com o senhorio para reparar o frigorífico que estava avariado), a AA foi acolhendo e pondo em prática as orientações, fizeram várias visitas à habitação, desde logo, a primeira, na semana seguinte, a habitação não estava com higiene total mas foi limpa, não havia lixo, nem balde com urina, ela tinha chegado a casa e feito arrumação, disseram-lhe que não havia necessidade de pagar internet, televisão..., precisava de comprar gel de banho, que não havia, e champô, tinha comprado fradas, mas disseram-lhe que não havia necessidade de comprar fraldas enquanto as crianças não fossem para casa, ela terá sentido que não estaria a fazer bem, colaborou, fazia visitas aos meninos sempre preocupada, cumpria horários, estava a ganhar as competências e os meninos começaram a ir a casa, em Junho de 2021, regressaram a casa por indicação do tribunal. Ela reconheceu depois que tinha feito mal, ela disse que quando fez não tinha consciência de que tomasse estas proporções.
Ora, os traços de personalidade da arguida – onde sobressai a estreita e profunda relação de amor da arguida AA com os seus filhos –, a sua conduta – a qual revela que a arguida, como que partilhando as suas responsabilidades parentais com o menor BB, agiu, segundo os nossos padrões culturais, por forma moral e socialmente irresponsável, além de que revela que tem ainda dificuldades no exercício das responsabilidades parentais, especialmente em matéria de arrumação e higiene da habitação (esta dificuldade tem sido considerada nos autos do processo n.º 200/21...., designadamente, nos periódicos relatórios sociais, no acordo de promoção e protecção, exarado em 28 de Junho de 2021, que aplicou a medida de apoio junto da mãe, medida que, a nosso ver, apenas se compreende porque, então, as autoridades judiciárias terão interpretado a situação ocorrida na habitação da arguida e seus filhos, tal como aqui se interpreta, como episódio fortuito ou acidental e emitiram um juízo de adequada responsabilização social e jurídica da arguida, desconsiderando a hipotética caracterização criminal, pois, no caso contrário, cremos que se não compreenderia que a justiça entregasse os menores aos cuidados da mãe que malevolamente teria acabado de atentar contra a sua dignidade pessoal (cf. fls. 251-253 verso do proc. 200/21....: aí se acordou em que, “2.º - Durante o período de execução da medida a mãe obriga-se a prestar às crianças todos os cuidados de que estas necessitem ao nível de alimentação, higiene, vestuário, segurança, educação e saúde, dando-lhes os afetos que merecem e contribuindo para o seu desenvolvimento harmonioso. 3.º - A mãe obriga-se especificamente a colaborar com a ATT e com a CAFAP, aceitando as instruções das referidas entidades no que respeita ao exercício das suas responsabilidades parentais no sentido de melhorar tais competências, designadamente, no que respeita à gestão do orçamento familiar, à nutrição das crianças em particular do BB e à supervisão parental”) e no despacho de revisão a medida, proferido em 22 de Março de 2022 (cf. fls. 584 verso a 586 verso dos presentes autos: aí se consignou que “resulta actualmente indiciado que (...) Mantém-se alguma fragilidade por parte da mãe no que concerne à organização e higiene habitacional (...) resulta dos factos indiciados que a situação inicial de perigo ainda não se mostra ultrapassada”), ademais compreensíveis por se tratar de cinco filhos muito jovens, fruto de três relações diferentes – e a sua consciência, onde parece predominar uma certa negligência (“quando fez não tinha consciência de que tomasse estas proporções”), parece-nos desajustado concluir, como, na parte sublinhada, se concluiu na acusação publica: “27. Com a conduta supra descrita quis e conseguiu a arguida deixar sozinhos os seus cinco filhos, entregues à sua sorte, na residência da mesma, bem sabendo que os mesmos eram de tenra idade, não tinham capacidade para tomarem conta de si e necessitavam de supervisão e auxílio de um adulto para os alimentar e cuidar da sua higiene, não obstante agiu conforme o descrito. 29. Ademais, sabia a arguida que os seus cinco filhos se encontravam à sua guarda, não conseguindo por eles próprios, atendendo às suas idades, fazer face aos actos da vida corrente, nomeadamente, cozinharem, alimentarem-se, mudar a fralda e tomarem banho, não obstante agiu conforme o descrito. 31. Bem sabia a arguida que os factos acima descritos eram praticados no interior da residência das vítimas, que as mesmas eram seus filhos e apresentavam fragilidades inerentes às suas idades. 32. A arguida agiu livre, voluntaria e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal“, considerando-se, pois, apenas provada, de entre a matéria ora transcrita, a não sublinhada – e excluindo, ainda, da matéria do artigo 31. da acusação pública a conclusiva expressão “vítimas” e, da matéria dos artigos 27. e 29. da acusação pública, a referência ao filho BB, porquanto, como acima se referiu, a arguida mãe nele confiava e, quiçá, por razões culturais e interiorização dos valores da sua meninice (com sete anos cuidava de outras crianças menores), nele depositava algumas responsabilidades parentais, e, as conclusivas expressões, “não obstante agiu conforme o descrito” –, respectivamente, sob os artigos 23.º, 24.º e 25.º dos factos provados.
O facto, relativo aos antecedentes criminais da arguida, resultou do teor do certificado do registo criminal junto aos autos.
Os factos relativos à condição socioeconómica da arguida, resultaram do relatório social apresentado pela DGRSP e, bem assim, das conclusões do relatório da perícia médico-legal n.º 2021/...08...Ç-C- junto aos autos, cujas conclusões, entre outras, assinalam que a arguida “tomava conta de outras crianças menores, em ..., com 7 anos”, “parece existir uma boa relação de vinculação dos menores para com a mãe e da mãe para com os filhos. AA procura o contacto, diário, em vários contextos, com os filhos, e estes reagem muito positivamente à presença da mãe”, Não se apurou perturbações psicológicas que possam interferir com o exercício pleno das responsabilidades parentais”, “percebe-se tratar-se de uma progenitora responsiva e atenta, que tem (...) verbalizado querer o melhor para os seus filhos. Como fatores de risco para o exercício pleno das responsabilidades parentais salienta-se as diferenças culturais e a situação de desemprego da AA”, “...reconhece que situações que são consideradas normativas no seu país de origem não o são em Portugal”[2], “percebe-se existir uma boa qualidade da relação e interação mãe-filhos, a existência de uma vinculação segura, motivação para a parentalidade da mãe, acompanhamento próximo que mantém com os filhos”.

No que respeita à matéria alegada na contestação da arguida:

Por se tratar de matéria de impugnação, não se considerou relevante o alegado nos artigos 3.º (É falso que entre os dias 16 e 20 do mês de fevereiro de 2021, os filhos menores tenham ficado sem acompanhamento e vigilância de um adulto), 17.º (Portanto, é falso que a arguida tenha abandonado os seus filhos sem previamente ter assegurado que os mesmos seriam devidamente acompanhados por pessoas da sua confiança), 18.º (E, é igualmente falso que tenha descurado a segurança dos menores, pois ao decidir não os levar na viagem a Lisboa, considerou que ficariam mais seguros se permanecessem no respetivo ambiente familiar) e 19.º (Assim e conforme resultou dos autos a conduta da arguida não foi dolosa e não teve qualquer intuito de prejudicar ou colocar em risco os seus filhos);
Por se tratar de matéria sobre a qual não foi produzida a pertinente prova, não se considerou provado o alegado nos artigos 4.º (Naquele período de ausência da progenitora, aqui arguida, os menores ficaram sob a vigilância da Sra. EE, pessoa de absoluta confiança da arguida e conhecida dos menores), 5.º (o filho mais velho da arguida, possuía um telemóvel para ligar sempre que necessário e obrigatoriamente em caso de emergência), 6.º (toda a acusação é fundada na perceção que as Técnicas da Segurança Social tiveram dos factos), 7.º (tal perceção é totalmente desfasada do que na realidade sucedeu, e de todo o contexto sócio cultural da arguida), 13.º (Arguida tem a escolaridade básica, é refugiada política em Portugal, e de acordo com os usos e costumes a que sempre esteve habituada, a ausência durante aquele período, jamais colocaria em causa a segurança dos menores ou configuraria abandono dos mesmos), 14.º (Nunca a arguida pensou abandonar os menores, e apesar de ser mãe solteira, sempre cuidou de lhes dar afeto, amor e carinho, bem como procurou dar-lhes os cuidados que no seu país de origem, jamais conseguiria), 15.º (Ao requerer asilo político em Portugal, país onde nunca tinha residido, com hábitos que lhe eram totalmente desconhecidos, procurou desde sempre aculturar-se, com todas a dificuldades inerentes a este processo), 16.º (O que foi efetivamente conseguindo, pois conseguiu criar laços de amizade com pessoas residentes em ..., designadamente com a Sra. EE, a quem confiou a guarda e vigilância dos menores) e 21.º (E por muito estranho que possa parecer, é muito comum em ... desde muito cedo, os irmãos “tomarem conta” ou cuidarem uns dos outros);
Por se tratar de matéria irrelevante para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, não se considerou o alegado nos artigos 8.º (Efetivamente a arguida no período em causa, ausentou-se da sua residência habitual, numa curta viagem a Lisboa), 9.º (A Arguida considerou que seria de todo em todo impraticável e irresponsável da sua parte, fazer-se acompanhar dos cinco filhos menores nessa viagem, não apenas pela insegurança que tal facto poderia provocar, como também pela ausência de alojamento para albergar cinco pessoas), 10.º (Considerou que a melhor opção para os menores, seria não os colocar numa situação de stress, insegurança e desconforto para todos num ambiente totalmente desconhecido), 11.º (A Arguida, cuidou então, de tomar as precauções que de acordo com a sua realidade socio cultural, seriam suficientes para acautelar a segurança e vigilância dos menores, durante a sua ausência permanecendo os menores na sua residência e ambiente familiar), 12.º (Não poderá aqui ser olvidado, a Arguida residiu até 2019 em ..., ...),  22.º (Neste conspecto, e transcrevendo MONTAIGE, in Les Caninnibales, Essais, I “…a avaliar pelo que me contaram a seu respeito considero nada há de bárbaro ou de selvagem naquele (…), povo cada um chama bárbaro algo que não está
de acordo com os seus hábitos” (…) “Na verdade, parece que não temos critério de verdade e de razão que o exemplo e o ideal das opiniões e usos do país onde estamos.”) e 23.º (E como afirma Hassemer a este propósito “a inculturação é um processo difícil e prolongado com muitas probabilidades de fracasso”;
Por se tratar de matéria conclusiva, não se considerou o alegado nos artigos 12.º, segunda parte (cuja realidade sócio cultural é muito diferente da portuguesa),  20.º (Pelo que, a interpretação que o Digníssimo Ministério Público faz em relação aos factos, encontra-se desfasada da realidade sócio cultural em que arguida e os menores desde sempre estiveram habituados), 24.º (As condições sócio culturais da arguida e o seu significado cultural, não foram tidas em consideração na acusação do Ministério Público, que não curou de averiguar devidamente o plano da culpa e a falta de consciência da licitude), 25.º (Em vez disso, partiu de uma presunção de consciência dolosa da conduta da arguida), 26.º (O que desde já se refuta, pois nunca a Arguida representou como consequência necessária da sua conduta o propósito de criar qualquer perigo para a saúde e a integridade física dos menores), 27.º (O sentido e alcance da ilicitude da sua conduta, assim como da culpa, é necessária para que a Arguida tivesse plena consciência do conteúdo e do seu valor, para o facto de ter deixado com os seus filhos à guarda de terceiros), 28.º (A compreensão da consciência da licitude e da culpa não se basta com o conhecimento de avaliação da violação da proibição legal que é a configuração do ilícito típico), 29.º (A obrigação jurídica não se confunde com obrigação de consciência sob pena de obrigatoriedade das normas jurídicas), 30.º (O direito da arguida está fulminado por uma perspetiva e pelo fenómeno acrítico desta acusação), 31.º (Por conseguinte, convém realçar que nunca os menores estiveram privados de qualquer suporte de vigilância e de segurança, conforme resulta dos autos), 32.º (Emerge da lei e da jurisprudência a não necessidade de qualificar a conduta da Arguida como crime, não existe prova de que os menores não tenham tido qualquer apoio por parte da mãe), 33.º (Na verdade, todos menores mantêm uma relação afetiva e estreita com a Arguida, não existindo nexo causal entre a conduta da Arguida e eventuais danos causados na esfera jurídica dos seus filhos), 34.º (Tendo em conta a atual situação familiar e a continuidade interrupta da mesma, também não existe a obrigação de indemnizar), 35.º (Consequentemente, o pedido formulado deverá ser considerado improcedente por séria distorção dos factos), 36.º (Conforme resulta dos presentes autos, os factos vertidos na acusação tiveram por base os depoimentos das testemunhas ali indicadas, cuja acareação poderá será eventualmente requerida), 37.º (Além do mais, como afirmado alhures, os factos constitutivos dos crimes, foram devidamente explicados em sede de inquérito), 38.º (A acusação tenta misturar/confundir o dever de cuidado, com o abandono afetivo), 39.º (Situações que a lei e o direito claramente distinguem, e como tal, não pode aqui, ser tratadas como igual), 40.º (A alegada falta de cuidados de higiene na habitação e dos menores durante o período de ausência da arguida, não pode ser tratado como abandono efetivo, que na realidade não ocorreu), 41.º (Somente em casos especiais, em que fique cabalmente demonstrada a violência doméstica e o abandono efetivo, falta de acompanhamento na formação e no desenvolvimento dos filhos, com rejeição pública e humilhante, justificam a condenação), 42.º (Não se pode aqui olvidar, que a arguida jamais deixou os seus filhos sem supervisão, até na nossa sociedade é bastante comum, quando a mãe necessita estar ausente, pedir que uma pessoa amiga cuide e guarde os seus filhos. Pedido este que a Arguida, efetivamente, fez!), 43.º (Todo o circunstancialismo supra descrito, deve ser tido em consideração na valoração e apreciação dos factos, especialmente para não transformar as relações familiares e os afetos entre a Arguida e os seus filhos, ainda menores, em mais um caso sem futuro e sem laços familiares), 44.º (Por mais importante que seja defender os interesses dos menores, questão já acautelada em sede própria, a condenação da Arguida terá como consequência necessária a contaminação da vida dos menores com efeitos drásticos e nefastos para a vida dos mesmos), 45.º (Reconhecer que não existiu violência doméstica, não houve qualquer prejuízo efetivo para os menores, resultante de uma conduta passível de censura jurídica), 46.º (Não resulta dos presentes autos, qualquer nexo de causalidade, a configuração da responsabilidade penal e civil da arguida por violência doméstica, exige a presença dos seguintes requisitos subjetivos e objetivos: a) A conduta omissiva ou comissiva da arguida sem ter acautelado a supervisão dos menores; b) O trauma ou prejuízo psicológico sofrido pelos menores; c) O nexo de causalidade entre o ato alegadamente ilícito e o dano), 47.º (Do que resulta dos autos, não se verifica, minimamente, qualquer um dos elementos formadores da convicção segura sobre o efetivo cometimento do crime de violência doméstica ou de qualquer autuação penalmente punível), 48.º (A improcedência da acusação e dos pedidos nela contidos afigura-se assim pertinente nos presentes autos), 49.º (Não se verificaram lesões morais ou físicas que os menores possam ter experimentado, isto porque, culturalmente independentemente da idade os filhos mais velhos têm a obrigação e cuidam dos filhos mais novos)[3], 50.º (O elemento cultural é fundamental nos presentes autos, no sentido de avaliar a conduta da Arguida, é por meio do exame da relação socio cultural e da escolaridade básica da mesma, que se conclui pela exclusão do dolo e da ilicitude da conduta da Arguida), 51.º (Para além de que, a Arguida representou como suficiente para acautelar a proteção da saúde e segurança dos menores, a vigilância e supervisão por uma pessoa adulta, da sua inteira confiança, conforme acima referido) e 52.º (Atento tudo que ficou dito, deverá a Arguida ser absolvida dos crimes de que vem acusada).”

Vejamos, agora, as questões submetidas a recurso pela ordem acima indicada.

I. Do erro de julgamento e impugnação da matéria de facto:

O Digno recorrente entende que o Tribunal a quo não apreciou de forma adequada pelo menos, parte da prova que foi produzida em sede de julgamento, tendo dado por não provados factos que, no seu ver, se mostram provados.

Vejamos.

A impugnação da matéria de facto segue o disposto no artº 412º nº3 do Código de Processo Penal que dispõe o seguinte:

“3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”

Tendo a prova sido gravada diz o nº 5 do citado artº 412º do CPP que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

Sendo que, nos termos do nº 6 do artº 412º do CPP “no caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”

No que se refere às declarações dos arguidos, aos depoimentos das testemunhas e à sua articulação com os documentos, vigora o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artº 127º do CPP, que assenta na inexistência de regras legais que atribuam valor específico, pré-determinado às provas, ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas e na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral, desde que não incluídos nas proibições contidas no artº 126º do CPP, em sintonia com o princípio consagrado no art. 32º nº 8 da Constituição.
 
Assim, “O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida” (Prof. Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).

“Por outro lado diremos também que, dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais atributos apreensíveis, em princípio, mediante exame e análise da gravação áudio onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal a quo.
Ou seja, a convicção do julgador só pode ser modificada, pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”[4]

Conforme se esclarece ainda no Acórdão da Relação de Lisboa (9ª secção) de 08-10-2015, proferida no procº nº 220/15.3PBAMD.L1-9, in dgsi.pt:

“III- O recurso em matéria de facto, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, relativamente à decisão sobre os concretos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgado, fazendo referência expressa às concretas passagens/excertos das declarações, que, no seu entendimento, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer;
IV- Não basta ao recorrente enunciar a sua pretensão quanto a um determinado resultado final em termos de facto ou de direito (v.g. da prova produzida não resultam provados os factos do tipo legal ou não se provou o crime, pelo que deve ser absolvido), de tal modo que fosse o tribunal superior, oficiosamente a retirar conclusões sobre quais os factos e provas concretas que se ajustariam à sua pretensão final e dentro destas, quais as passagens relevantes, depois de ouvir a prova gravada na íntegra, uma vez que o recurso da matéria de facto fundado em erro de julgamento não visa a realização, pelo tribunal “ad quem”, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros relevantes (evidentes e óbvios) na apreciação e ou aquisição da prova produzida em sede de primeira instância.”

Por isso é que é absolutamente fundamental que no recurso interposto da matéria de facto, nos termos do artº 412º nº 3 do CPP, o recorrente identifique os concretos factos cuja alteração pretende e as concretas provas que impunham a requerida alteração, não cabendo a este Tribunal de recurso refazer o julgamento, ouvir toda a prova e voltar a decidir.

Como explicado de forma muito clara e compreensiva no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ nº 3/2012 de 08-03-2012 (in DR 1ª Série, nº 77 de 18-04-2012):

“Pede -se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.
Esta limitação da capacidade cognitiva da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação sempre esteve presente, como desde logo esclareceu o primeiro diploma legal onde se estabeleceu a documentação das declarações orais.
Com efeito, como foi afirmado no preâmbulo do Decreto -Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, «o objecto do 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova (que, aliás, embora em menor grau, sempre ocorreria, mesmo com a gravação em vídeo da audiência)».
O Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando -se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros. (…)
Como se refere no acórdão de 27 de Janeiro de 2009, processo n.º 3978/08 -3.ª «O julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar».
Os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão em matéria de facto, a exemplo do que ocorria com o artigo 690.º -A, e actualmente do artigo 685.º -A do CPC e artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, decorrem dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa fé processuais, com vista a assegurar a seriedade do recurso e obviar que os poderes da Relação sejam utilizados para fins dilatórios.” – sublinhado nosso

Esclarecendo ainda de forma clara o Acórdão da Relação de Guimarães de 23-03-2015:[5]
“I. O recurso visa apenas uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente.
II. Tem-se entendido que impor decisão diferente quanto á matéria de facto provada e não provada (artigo 412º nº 3 alínea b) do CPP) não pode deixar de ter um significado mais exigente do que admitir ou permitir uma decisão diversa da recorrida.
III. Deste modo, se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está.
IV. A circunstância de alguém, seja por erro de percepção ou por outro motivo, acabar por efectuar declarações inverosímeis ou contraditórias não significa necessariamente que seja falsa toda a sua narrativa, pelo que o tribunal não se encontra adstrito á inutilização de todo um depoimento ou declaração por uma incompletude ou por uma contradição com outros elementos probatórios.”

 Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque na sua anotação ao artº 412º do Código de Processo Penal[6]:
“A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de «voltas» do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento. (…)
Acresce que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova «impõe» decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação.” – sublinhado nosso
              Ora, no caso em apreço, o Digno recorrente entende que deveriam ter sido dados por provados os factos vertidos em 7, 9, 10, 11, 12, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31 e 32 que o Tribunal a quo considerou não provados.
            Antes de avançarmos na análise que o MºPº nos pede para fazer, até porque, em nosso modesto entendimento, existe um vício de conhecimento oficioso, mais concretamente, o erro notório na apreciação da prova previsto no artº 410º nº 2 al. c) do CPP que infra explanaremos, é importante dizer que, no caso em apreço, a Mmª Juiz Adjunta, votou vencida, em anexo ao acórdão recorrido, em 10-01-2024 com a refª ...44, sendo relevante o teor do seu voto que aqui transcrevemos na íntegra:

Declaração de Voto Vencido
Com todo o respeito, que é muitíssimo, pela opinião contrária dos Ex.mos Srs. Juízes do Colectivo que subscreveram o douto Acórdão Absolutório, a signatária discorda veementemente dele, não podendo jamais, em consciência, aceitar as conclusões de facto e de direito que fundamentam a absolvição da arguida (seja pela prática dos crimes de que vem acusada, seja pela prática de outro tipo legal de crime enquadrável), isentando-a de qualquer censura criminal.
Diga-se, antes de mais, que teremos de nos ater apenas aos factos praticados nas circunstâncias de tempo e lugar em que o foram, não relevando a conduta da arguida posterior aos factos para a avaliação da consciência e da vontade daquela no momento em que tomou a decisão de deixar os filhos sozinhos num apartamento durante dias sem providenciar pela sua total protecção – decorrente da intervenção ao nível da tutela cível que começou a ser feita ao abrigo de uma medida de promoção e protecção, de apoio junto da mãe, depois de ter estado vigente uma medida de acolhimento residencial, inicialmente aplicada como medida urgente, dada a retirada das crianças preconizada pelas forças policiais e sua integração na ..., em ....
Nem se questiona minimamente o sentimento que a arguida tem pelos filhos, sendo a medida de promoção e protecção mais adequada à condição desta fratria de cinco irmãos, desde logo pela grande ligação afectiva à mãe, aquela que está vigente, de apoio junto da mãe, medida que se justifica pelo défice, que se tem atenuado, de competências parentais da arguida ao nível da satisfação das necessidades básicas dos filhos.
E regozijamo-nos com a evolução positiva que a intervenção está a ter, pretendendo-se a aquisição por parte da arguida daquelas competências para que possa dar seguimento à sua vida e dos seus filhos sem necessidade de orientação de terceiros. Autonomia e competência, é o que se pretende que a AA, como mãe, alcance.
Dito isto, debrucemo-nos sobre os factos e o direito.
Entendendo-se que do julgamento resultaram provados praticamente todos os factos alegados na acusação pública, não só os atinentes à actuação objectiva, mas também os cognitivos/volitivos, outra coisa não podemos concluir senão a condenação da arguida por prática de crime.
Seja pela prática do crime de exposição ou abandono p. e p. pelo artigo 138.º do Código Penal, seja pela comissão por omissão do crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.º 1, alínea a), do Código Penal[7], com violação grave do dever de garante previsto no artigo 10.º do Código Penal que sobre a mãe impendia, sendo para nós indiscutíveis os maus tratos físicos e psicológicos causados (pelo frio sentido, pela sensação de solidão, medos e sentimento de insegurança certamente vividos, pela falta de alimentação adequada a cada uma das crianças, pela ausência do conforto da mãe, e não só por parte dos bebés, pela falta de higiene e eventuais lesões dela decorrentes (por ex., assaduras nos bebés), pela transferência de uma pesada responsabilidade para o filho mais velho, pela falta de comodidade, organização e higiene da casa, pelo sentimento de culpa do BB, etc.), deveria haver sempre lugar, para nós, de forma inquestionável, a uma censura penal, e não apenas moral, que determinasse uma condenação, não podendo a subscritora conformar-se com o ‘branqueamento’ da conduta da arguida.
Não aceitamos de forma alguma que se considere que a arguida agiu de forma negligente (nem se fala da falta de consciência da ilicitude dos seus actos), por alegada falta de noção do que é errado, desde logo por razões de ordem cultural.

De acordo o disposto no artigo 15.º do Código Penal, “[a]ge com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.
Os crimes em causa são puníveis apenas por dolo, mas bastam-se com o dolo eventual para a sua verificação.

O artigo 14.º do Código Penal prescreve que:
“1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”.

A arguida teve de representar como possível a ocorrência, na sua ausência, de factos atentatórios da vida ou integridade física das crianças e conformou-se com tal possibilidade, deixando-as entregues a si próprias, fechadas num apartamento, sem a vigilância permanente de um adulto, não sendo manifestamente suficiente as idas que, a pedido da arguida, depois de 2 dias de ausência, uma amiga fez ao apartamento ‘só’ para lhes levar comida.
É inaceitável para nós, ante a prova que foi produzida, considerar-se que a arguida agiu negligentemente, ora porque representou como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime e actuou sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ora porque não chegou sequer a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente).
A arguida, por razões que não se apuraram, decidiu deslocar-se a Lisboa e aí permanecer durante alguns dias. Deixou ... no dia 16 de Fevereiro, 3.ª feira. Para o efeito, incumbiu a criança mais velha, o BB, de tomar conta dos irmãos durante o período de tempo que estivesse fora, permanecendo todos no apartamento onde residiam, no ... andar de um prédio. Era inverno, fazia frio em ... (como é normal para a época), o apartamento não tinha aquecimento, as crianças não vestiam roupa adequada para a época, dormiam todos num colchão que se encontrava no chão, sem roupa de cama, designadamente cobertores, não havia um frigorífico onde pudessem ser armazenados alimentos para as crianças, não faziam a sua higiene nem a casa estava limpa, havendo restos de comida e urina que provocava um odor nauseabundo, estando as crianças neste ambiente, sujeitas as miseráveis condições. A arguida não providenciou por deixar condições mínimas de conforto para os filhos e prover à satisfação das necessidades básicas de alimentação, higiene, saúde e segurança das crianças, nem por intermédio de terceiras pessoas, que estivessem presentes durante todo o período de tempo de ausência da mãe. Mandar lá uma pessoa para ver como os meninos estão e levar alimentos, como aconteceu com uma das testemunhas ouvidas, amiga da arguida, que foi contactada por esta na 5.ª feira seguinte, dia 18 de Fevereiro, não é vigiar, guardar, proteger, até porque a dita testemunha ter-lhe-á dito que estava em época de exames e não poderia lá ir muitas vezes nem estar muito tempo, acabando por levar comida às crianças à hora das refeições, no máximo 4 vezes. As crianças passavam as noites sozinhas, nas condições já descritas. Estavam completamente entregues a si próprias, foram totalmente deixadas à sua sorte e ao acaso, durante considerável período de tempo, mesmo que o BB falasse com a mãe através de computador, segundo foi dito.
Falou-se de um tal JJ. Não se apurou quem é, o que fez e em que circunstâncias, tendo sido mencionada apenas pelo BB – para nós essa pessoa não existiu, tendo sido ‘arranjada’ para justificar os dois dias anteriores àquela 5.ª feira de manhã que a arguida pediu à amiga para ir ver os filhos.
O BB, com 12 anos de idade (nasceu em ../../2008) à data da prática dos factos (Fevereiro de 2021), por muito que estivesse habituado a mudar fraldas, dar de comer e beber, despir e vestir ou dar banho – e até acreditamos que sim, mas sempre num contexto de auxílio à mãe na execução das tarefas domésticas –, não tinha seguramente a capacidade e a competência para sozinho prestar os cuidados que eram devidos e satisfazer as necessidades prementes dos seus quatro irmãos, KK, LL e CC e DD, de 7 anos, 5 anos e 19 meses de idade, respectivamente, à data da prática dos factos.
É elevadíssima a taxa de acidentes e mortes ocorridas em contexto doméstico quando não há supervisão, ainda que momentânea, de um adulto (mortes por afogamento ou por quedas em altura). Incêndio, quedas, lesões graves, doença súbita, etc., são alguns dos cenários possíveis quando se deixam crianças sozinhas em casa, até por umas horas.
Tendo só em conta a idade dos filhos e o número de crianças que iriam ficar fechadas em casa durante alguns dias, numa altura em que faz muito frio em ..., tendo o frigorífico avariado, conforme se provou, e com livre acesso aos mais variados instrumentos perigosos, como facas, tesouras, vidros, também como se provou, a arguida, como mãe que ama os seus filhos e que se preocupa com eles, não poderia deixar de representar a possibilidade de, dentro de casa, estando cinco crianças juntas, duas delas de tenra idade, sem qualquer supervisão, ocorrer um incidente que pusesse em risco a vida ou a integridade física dos filhos; representou e conformou-se com a mesma.
Toda a gente sabe que as crianças, consoante a idade, não têm qualquer ou a real noção do perigo; que são muito curiosas, gostam de mexer em tudo, são atraídos pelo desconhecido e/ou proibido e fazem o que lhes apetece quando não estão ao alcance do olhar do adulto ou fazem coisas a que não estão autorizadas quando o adulto não está naquele momento ou não vê. Ora, qualquer brincadeira, qualquer interesse, qualquer vontade de experimentar pode resultar em acidente.
É absolutamente proibido, cruel, perigoso, desprovido de sentido de responsabilidade e protecção e, portanto, criminoso, deixar sozinhas, e por vários dias, cinco crianças com a idade dos filhos da AA, entregues à sua sorte e sujeitas às incertezas do acaso e à aleatoriedade dos comportamentos impetuosos próprios das crianças.
Como é que se pode aceitar que a AA, mãe de cinco filhos de diferentes idades, contra o que é normal, expectável, exigível a qualquer mãe escorreita e responsável, não representou a possibilidade de algum incidente ocorrer ao longo de vários dias em que iriam estar sozinhos (negligência inconsciente) ou, tendo-a representado, com ela não se conformou (negligência consciente), por confiar nas competências do filho BB e acreditar na sorte? Que fundamentos pode uma mãe ter para acreditar que um filho de 12 anos tem capacidade para cuidar de quatro irmãos e de si próprio, durante vários dias, provendo a todas as suas necessidades, que os filhos se encontram seguros estando fechados num apartamento e sozinhos, sem a supervisão permanente de um adulto? E como se pode achar que é razoável deixar quatro filhos de 7 anos, 5 anos e 19 meses de idade à guarda e cuidados de uma criança de 12 anos e não se questionar ou sequer importar com a existência de sérios riscos para a vida ou integridade física dos filhos, nem sequer um mínimo receio disso?
Não temos, por isso, dúvidas em afirmar que a AA representou e conformou-se, porque outros interesses se sobrepuseram na sua deslocação a Lisboa (mesmo que fosse para tratar de assuntos do interesse dos filhos, como procurar uma habitação, como o próprio BB sugeriu), valendo a pena o risco.
Propendemos mais para a verificação do crime de exposição ou abandono p. e p. pelo artigo 138.º do Código Penal, em detrimento da comissão por omissão do crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152.º-A, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal.
Dispõe o artigo 138.º do Código Penal que:
“1 - Quem colocar em perigo a vida de outra pessoa:
a) Expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se; ou
b) Abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir; é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
2 - Se o facto for praticado por ascendente ou descendente, adotante ou adotado da vítima, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.
3 - Se do facto resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos”.
Para o preenchimento do tipo objectivo, o agente tem de colocar em perigo a vida de uma pessoa através de uma das duas modalidades de conduta descritas. Trata-se, assim, de um crime de perigo concreto: o elemento típico implica que, por acto do agente, se crie um perigo ou se potencie um perigo para a vida de outra pessoa.
A primeira modalidade típica (a exposição) pressupõe a deslocação espacial da vítima levada a cabo pelo agente.
A segunda modalidade (o abandono) consiste em o agente abandonar a vítima sem defesa, sempre que tenha um dever de a guardar, vigiar ou assistir. O abandono ocorre não só quando o agente abandone o local, mas também quando, mantendo-se junto à vítima, omita qualquer ato de auxílio para com aquela (cf., neste sentido, J. M. Damião da Cunha, in “Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial. Tomo I”, em anotação art.º 138.º do CP).
O tipo subjetivo só se preenche com o dolo, bastando, porém, o dolo eventual. Este dolo tem evidentemente de abarcar a criação de perigo para a vida da vítima, bem como a ausência de capacidade para se defender por parte desta.
Por fim, a agravação da pena decorrente da ocorrência de um resultado mais grave (morte da vítima ou ofensa à integridade física grave) pressupõe a possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência (cfr. artigo 18.º do Código Penal).
De qualquer modo, e como salienta J. M. Damião da Cunha, decisivo para a verificação do crime preterintencional é que o resultado produzido seja imputável à situação de perigo criada e diretamente conexionada com a ausência de capacidade de defesa por parte da vítima.
No caso concreto, entendemos que se provou o seguinte:
BB nasceu em ../../2008 e é filho da arguida.
KK nasceu em ../../2013 e é filho da arguida.
LL nasceu em ../../2015 e é filho da arguida.
CC e DD nasceram em ../../2019 e são filhos da arguida.
A arguida fixou residência em 2019, juntamente, com os seus filhos menores, BB, KK e LL, na Rua ..., ....
No dia 16 de Fevereiro de 2021 AA deslocou-se a Lisboa, tendo regressado a ... no dia 20 de Fevereiro de 2021.
Durante aquele período de tempo a arguida deixou os seus cinco filhos menores no interior da sua residência entregues à sua sorte, sem a supervisão e apoio permanentes de um adulto.
A arguida encarregou o menor BB, que na altura tinha 12 anos de idade, de providenciar pela supervisão dos restantes menores, seus irmãos, nomeadamente, alimentá-los, mudar-lhes a fraldas, o que o menor fez.
A arguida não adquiriu, nem providenciou pela aquisição de bens alimentares para consumo pelos seus filhos enquanto se encontrava ausente, tendo solicitado a uma amiga, só no dia 18 de Fevereiro, para ir ver os filhos, o que aquela fez pelo menos por quatro vezes, limitando-se a levar-lhes comida quente.
Enquanto se encontrava em Lisboa, a arguida não cuidou de prestar ou solicitar a outrem que o fizesse, de forma habitual, os cuidados normais de higiene em relação aos seus filhos (designadamente a toma de banho, limpeza do corpo e lavagem da roupa).
A arguida não providenciou pela limpeza da habitação onde permaneceram os seus filhos enquanto se encontrava em Lisboa.
A habitação onde os menores se encontravam, durante o referido hiato temporal, encontrava-se com lixo espalhado pelo chão e sacos do lixo encostados à parede, em todas as divisões da casa.
Na cozinha encontrava-se loiça suja, restos de comida espalhados pela banca, pela mesa e pelo chão de onde emanava um cheiro a putrefação.
Os móveis existentes encontravam-se espalhados pela casa, tombados no chão.
A roupa dos menores encontrava-se amontoada no chão e em cima de uma cama, encontrando-se roupa limpa misturada com roupa suja.
Os menores dormiram num quarto onde se encontrava no chão um colchão sujo, sem lençóis e cobertores.
Nesse quarto existia junto ao colchão uma tesoura aberta e fraldas usadas, cheias de urina, espalhadas pelo quarto.
Em cima da cómoda do referido quarto encontrava-se uma panela cheia de urina.
No interior da referida residência não existiam brinquedos nem telefone.
A casa não tinha aquecimento e as crianças andavam descalças e sem meias.
As crianças andavam descalças, com roupa fina, calções, camisas de manga curta ou só de fraldas cheias de urina, no caso de CC e de DD.
As crianças encontravam-se sujas e cheiravam mal, uma vez que no referido hiato temporal não tomaram banho.
Era o BB quem mudava as fraldas a CC e a DD e lhes dava de comer com o que havia na residência.
Ao ausentar-se de casa, deixando os menores entregues à sua sorte, nas condições supra elencadas, agiu a arguida com total desrespeito para com os seus filhos e pelo exercício das responsabilidades parentais que lhe competia, enquanto mãe dos mesmos.
A arguida bem sabia que os seus filhos não conseguiam nem poderiam cuidar deles próprios, não obstante agiu conforme o descrito, tendo deixado o BB responsável pelos cuidados a prestar aos irmãos mais novos.
Na data dos factos o BB tinha 12 anos de idade e tais tarefas, atenta a sua idade, não lhe pertenciam, nem eram adequadas à sua idade, não obstante agiu a arguida conforme o supra relatado, depositando toda a responsabilidade de guardião no seu filho mais velho.
A arguida representou como possível a ocorrência de algum problema com qualquer dos filhos dentro do apartamento durante a sua ausência, sabendo que o BB, dada a sua idade e as circunstâncias em que o deixou com os restantes filhos, não teria capacidade de reacção idêntica à de um adulto responsável.
Não obstante, conformou-se com tal possibilidade e deixou sozinhos os seus cinco filhos, colocando-os entregues à sua sorte, na residência da mesma, bem sabendo que os mesmos não tinham capacidade para tomarem conta de si e que todos necessitavam de supervisão e auxílio de um adulto para os alimentar e cuidar da sua higiene.
Ademais, sabia a arguida que os seus cinco filhos se encontravam à sua guarda, não conseguindo por eles próprios, atendendo às suas idades, fazer face aos actos da vida corrente, nomeadamente, cozinharem, alimentarem-se, mudar a fralda e tomarem banho, não obstante agiu conforme o descrito.
A arguida descurou o bem-estar físico e emocional dos seus cinco filhos que lhe competia assegurar.
Bem sabia a arguida que os factos acima descritos eram praticados no interior da residência das vítimas, que as mesmas eram seus filhos e apresentavam fragilidades inerentes às suas idades.
A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Tal factualidade integra os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito em apreço, tendo a arguida actuado com dolo eventual relativamente ao perigo concreto para a vida ou integridade física dos seus filhos que, com a sua conduta causou ou, pelo menos, potenciou e agravou.
O ‘perigo concreto’ é uma asserção jurídica que se densifica ou concretiza factualmente. A existência desse perigo potenciado pela conduta da arguida resulta à saciedade da factualidade provada, tendo esta actuado com dolo eventual em relação a todos os elementos do tipo.
Não pode deixar de se realçar os efeitos perniciosos que esta decisão absolutória poderá ter na comunidade, indo absolutamente contra o interesse superior das crianças que a nossa sociedade e o nosso ordenamento jurídico pretendem, e bem, tutelar.
Não é para nós admissível – e, de resto, foi contrariado pelo depoimento das várias testemunhas conterrâneas da arguida ... –, que se cogite sobre uma suposta falta de consciência da ilicitude, não só porque não comprovada, mas também, e sobretudo, porque colide frontalmente contra os especiais deveres inerentes à condição de mãe e sempre caracterizaram as relações materno-filiais: o sentido de protecção (a todos os níveis).
Pelo vindo de expor, a subscritora votou contra o douto Acórdão, pugnando pela condenação da arguida pela prática de cinco crimes de exposição ou abandono – ou, se assim não se entender, crimes de maus tratos por omissão (cfr. artigo 10.º do Código Penal) –, na forma agravada, sendo de 2 a 5 anos a moldura da pena abstracta de tal tipo legal, concretamente na pena única de prisão de 5 anos (tendo já em conta o cúmulo jurídico das cinco penas – que seriam de 2 anos e 2 meses para o crime cometido contra o menor BB, 2 anos e 4 meses para os crimes cometidos contra os menores KK e LL e 2 anos e 6 meses para os crimes cometidos contra os menores CC e DD), suspensa na sua execução, com regime de prova, porque assim se acautelariam as prementes exigências de prevenção geral e as ainda verificadas, mas atenuadas, exigências de prevenção especial, havendo circunstâncias atenuantes relevantes.”
Este voto de vencido, que não se fica apenas pela discordância do decidido, mas também se refere à convicção do Tribunal a quo no tocante à prova produzida, revela que a convicção do Tribunal não foi uniforme, nem unívoca.
E, da cuidada leitura da fundamentação oferecida pelo Tribunal a quo para justificar a matéria de facto, tanto a provada como a não provada, se retira que dois dos três senhores juízes que compuseram o Colectivo, entenderam que questões culturais explicam o que entendem por falta de consciência da ilicitude por parte da arguida, o que terá levado à sua absolvição.
Ora, se é certo que a arguida é ... e que ... é um país com costumes próprios, a respectiva cultura, em parte alguma, pode justificar comportamentos por parte da arguida que são, no mínimo, atentatórios do bem-estar mais básico dos seus filhos.
Uma coisa seria a arguida ter deixado os filhos umas horas com o filho mais velho, outra, completamente distinta, e já alvo de censura, é deixar todos os filhos sozinhos, durante dias a fio, sendo os mais novos, os dois gémeos, ainda bebés pois tinham menos de dois anos de idade, mais concretamente tinham 19 meses.
E a verdade é que a arguida passou a ser alvo de um processo de promoção e proteção o que claramente revela já uma incapacidade, ainda que temporária, em cuidar devidamente dos seus filhos.
Quanto a este aspecto, queremos apenas abrir aqui um parêntesis em face da justificação que o Colectivo deu para considerar que, a final, a arguida não agiu com dolo.
É que o Colectivo, nas pessoas dos senhores juízes que votaram pela absolvição da arguida, entendem que, porque num processo de promoção e protecção, não se retirou as crianças à mãe, é porque se acha que a mesma é boa mãe e não há aqui responsabilidade criminal.
Salvo o devido respeito, mas nada mais errado, uma vez que o processo de promoção e protecção, sendo uma acção de jurisdição voluntária, afecto aos juízes de família e menores, não julga acções criminais.
Por outro lado, muitas vezes os progenitores têm comportamentos criminosos sem que isso, dite, automaticamente, o seu afastamento das crianças.
A lei de promoção e protecção elenca uma série de medidas, dando preferência às medidas em meio natural, junto dos pais.
A actuação da arguida, podendo ter sido isolada, não determina automaticamente o seu afastamento das crianças, tanto mais que só uma acção de inibição das responsabilidades parentais é que pode excluir um progenitor da esfera legal dos seus filhos – ou, então, em sede de acção penal aplicar-se à arguida uma sanção acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais – o que não ocorre num processo de promoção e protecção, excepto se estiver em causa uma medida de entrega para adopção que, por sua vez, requer a verificação de certos requisitos que não se mostram presentes no caso dos autos.
Assim, não podia o Tribunal a quo basear-se na decisão do processo de promoção e protecção para ajuizar da responsabilidade criminal da arguida.
Dito isto, olhando os fotogramas juntos aos autos a fls. 5 e ss, claro se torna ver que o estado degradante e desumano em que as crianças se encontravam não se devia unicamente ao recente abandono de alguns dias.
O estado da casa revela um descuido já instalado, tanto mais que as 5 crianças dormiam todas num colchão no chão, sem lençóis nem cobertores, o que seguramente não foi fruto do acaso e da simples ausência da arguida uns dias em Lisboa.
Ora, se a arguida tivesse deixado os filhos por uns meros dias, mas tivesse a casa arrumada e cuidada, as crianças teriam as suas caminhas, e o seu espaço, ainda que partilhado.
Nem se consente que as crianças, duas delas com menos de 2 anos pudessem ter criado tanto lixo e deixado tanta desarrumação pela casa como é patente dos fotogramas que claramente revelam uma situação mais instalada do que uns meros 4 dias pudesse produzir.
Não foi seguramente os 4 dias em que as crianças estiveram entregues a si mesmas – e de seguida iremos ver que é, de facto, isso que resulta da prova – que a casa ficou no estado deplorável que os fotogramas revelam.
Estas crianças são, de algum tempo, vítimas de negligência parental por parte da sua mãe, tanto que, como referido, corre um processo de promoção e protecção a seu favor.
Ora, se a situação da arguida se explica com recurso a argumentos culturais, então todos os angolanos teriam processos de promoção e protecção o que, claramente, não acontece.
Por outro lado, a arguida tem o 12º ano de habilitações, ademais no curso de química, não sendo, por isso, uma pessoa simples sem quaisquer noções do que é normal numa sociedade minimamente estruturada.
Ora, o exercício da parentalidade, ainda que sofra nuances culturais, implica sempre o respeito por um núcleo básico e muito apertado de deveres que incumbem aos pais, sejam eles de que etnia ou grupo cultural são.
Havendo um mínimo que tem de ser garantido em qualquer cultura ou etnia.
Olhando só os factos que o Tribunal a quo deu como provados, verifica-se que só esses factos são susceptíveis de levar a um juízo de censura uma vez que revelam que a arguida falhou ao nível mais básico dos seus filhos.

Vejamos, recapitulando os factos que o Tribunal a quo considerou provados:

7.º - Durante o período compreendido entre o dia 16 de Fevereiro de 2021 e o dia 20 de Fevereiro de 2021 a arguida deixou os seus cinco filhos menores no interior da sua residência.
8.º - A arguida encarregou o menor BB, que na altura tinha 12 anos de idade, de providenciar pela supervisão dos restantes menores, seus irmãos, nomeadamente, alimentá-los, mudar-lhes as fraldas e levá-los à escola, o que o menor fez.
9.º - No dia 20 de Fevereiro de 2021, a habitação onde os menores se encontravam, encontrava-se com lixo espalhado pelo chão e sacos do lixo no chão da cozinha.
10.º - Na cozinha encontrava-se loiça suja, restos de comida espalhados pela banca, pela mesa e pelo chão de onde emanava um cheiro a putrefação.
11.º - Os móveis existentes, alguns, encontravam-se espalhados pela casa, tombados no chão.
12.º - A roupa dos menores encontrava-se amontoada no chão e em cima de uma cama, encontrando-se roupa limpa misturada com roupa suja.
13.º - Os menores dormiram num quarto onde se encontrava no chão um colchão sujo, sem lençóis e cobertores.
14.º - Nesse quarto existia, junto ao colchão, uma tesoura aberta e fraldas usadas, cheias de urina, espalhadas pelo quarto.
15.º - Em cima da cómoda do referido quarto, encontrava-se uma panela cheia de urina.
16.º - No interior da referida residência não existiam brinquedos nem telefone.
17.º - A casa não tinha aquecimento e as crianças andavam descalças e sem meias.
18.º - As crianças andavam descalças, com roupa fina, calções, camisas de manga curta ou só de fraldas cheias de urina, no caso de CC e de DD.
19.º - As crianças encontravam-se sujas e cheiravam mal, uma vez que no referido hiato temporal não tomaram banho.
20.º - Era o BB quem mudava as fraldas a CC e a DD.

As partes por nós sublinhadas revelam situações que, seguramente, segundo as regras da experiência comum, não resultam da ausência da arguida durante 4 dias, revelando já uma negligência estrutural por parte da arguida no seu agregado familiar.
Por outro lado, só dos factos que o Tribunal a quo considerou provados em 21 a 25 se poderia concluir pela prova da consciência da ilicitude.

Veja-se o que consta dos factos vertidos em 21 a 25:
21.º - Sabia a arguida que, com excepção do menor BB, os seus filhos não conseguiam nem poderiam cuidar deles próprios, nomeadamente, CC e DD.
22.º - A arguida sabia que os seus filhos menores não poderiam contar, além do descrito em 8.º, com o auxílio do irmão BB.
23.º - A arguida sabia que os seus filhos eram de tenra idade e, com excepção do BB, não tinham capacidade para tomarem conta de si e necessitavam de supervisão e auxílio de um adulto para os alimentar e cuidar da sua higiene.
24.º - A arguida sabia que os seus cinco filhos se encontravam à sua guarda, não conseguindo por eles próprios, atendendo às suas idades, exceptuando o filho BB, fazer face aos actos da vida corrente, nomeadamente, cozinharem, alimentarem-se, mudar a fralda e tomarem banho.
25.º - Bem sabia a arguida que os factos acima descritos eram praticados no interior da residência dos seus filhos e apresentavam fragilidades inerentes às suas idades.

Sem entrarmos, por ora, no tocante ao menor BB, que se mostra subtraído destes factos e que faz parte da matéria suscitada pelo Digno recorrente no seu recurso, os factos acabados de citar não permitem concluir-se pela falta de consciência da ilicitude por parte da arguida.
E não se venham com questões culturais porquanto essas, a existirem, também só farão sentido no contexto cultural de onde emergem.
A arguida, como toda a mãe (e pai) sabe que tem de alimentar os seus filhos, que tem de os vestir adequadamente de acordo com o clima, que tem de lhes dar banho, assegurando a respectiva higiene, e que, quando pequenos, tem de lhes mudar a fralda.
Acima de tudo a arguida, como qualquer mãe, sabe que tem de garantir aos filhos um ambiente seguro e que os tem de vigiar de acordo com a respectiva faixa etária dos mesmos.
Estes conhecimentos que aqui trazemos à colação traduzem o mais básico das obrigações parentais.
Não está em causa colocar os filhos em colégios caros, em dar-lhes lições de equitação ou comprar-lhes playstations e roupa de marca.
Nem está em causa levá-los ao cinema ou ao teatro uma vez por mês ou pagar uma actividade extra-curricular.
Está em causa o mínimo dos mínimos para o desenvolvimento humano destas crianças, sendo o mínimo que todas as culturas respeitam, mesmo as mais primitivas.
Ora, o Tribunal a quo, com o manancial fáctico já referido entendeu dar como não provado o dolo da arguida, entendendo que factores culturais justificam as graves falhas parentais da mesma.
A nosso ver, o Tribunal a quo enveredou por um caminho que não se mostra expresso nos factos provados, não podendo a questão cultural justificar comportamentos como aqueles que se mostram retratados nos autos.
Até porque, da argumentação despendida pode parecer que os angolanos em geral não sabem cuidar dos seus filhos, o que se nos afigura ofensivo.
Nem as situações referidas pelo Tribunal a quo, citando noticias em nota de rodapé nº 2 – “Embora conclusiva, a alegação parece encontrar algum respaldo nos meios de comunicação social angolanos, por exemplo, na edição do Jornal de ... de 8 de Março de 2015, onde se noticiou que a Senhora I. M., que trabalha num posto de combustível, tem 33 anos e é mãe de dois filhos, disse “todos os dias saio de casa às cinco da manhã e tudo fica entregue ao meu filho de 14 anos”, e a Senhora M. A. de 40 anos, comerciante há 19 anos, mãe de seis filhos, salientou que o segundo tem 16 anos. É ele que cuida da casa e dos irmãos mais novos durante a sua ausência. “Sinto muito ter que colocar o meu filho a cumprir as minhas obrigações dentro de casa” – alguma vez possam ter comparação com o que se discute nos autos, pois o menor encarregue de cuidar dos irmãos tinha 12 anos ao tempo, e a ausência da mãe não foi durante um dia ou umas horas.
Em todo o caso, a mãe do segundo caso noticiado revela plena consciência do mal que faz ao dizer: “Sinto muito ter que colocar o meu filho a cumprir as minhas obrigações dentro de casa.”
Pelo que a diferença cultural, no que tange às necessidades básicas de uma criança, não tem o peso que o Tribunal a quo quis atribuir-lhe.
Ora, o crime de violência doméstica, bem como o de maus tratos e de exposição ao abandono não são crimes axiologicamente neutros, ou seja, não é preciso o agente conhecer concretamente a existência da norma legal que os pune para se lhe poder imputar a consciência da ilicitude.
Mas o Tribunal a quo parece querer a afastar a consciência da ilicitude do comportamento da arguida porque, segundo refere em nota de roda pé 3:

“Na verdade, a Lei n.º 25/11 de 14 de Junho (Lei Contra a Violência Doméstica), publicada no Diário da República (Órgão Oficial da ...), não prevê que constituam crime os factos imputados à arguida nos presentes autos.”

Mesmo que a arguida não conhecesse concretamente a lei, aliás, a maior parte das pessoas não a conhece e, nem por isso, a ignorância lhes pode valer, os comportamentos por si perpetrados, ou melhor dizendo, a sua omissão enquanto mãe, não são comportamentos desprovidos de juízo ético.

Em todo o caso, não se percebe porque motivo o Tribunal a quo apela à Lei Angolana Contra a Violência Doméstica, afirmando que a mesma “não prevê que constituam crime os factos imputados à arguida” quando no artº 3º da referida Lei se constata toda uma panóplia de situações que enquadram a violência doméstica em ..., mormente, a situação retratada nos autos.
           
Veja-se o que dispõe o artº 3º da Lei nº 25/11 de 14 de Junho, subordinado à epígrafe “Definição e tipo de violência doméstica”[8]:

“1. Para efeitos da presente lei, entende-se por violência doméstica, toda a acção ou omissão que cause lesão ou deformação física e dano psicológico temporário ou permanente que atente contra a pessoa humana no âmbito das relações previstas no artigo anterior[9].
2. A violência doméstica classifica-se em:
a) violência sexual — qualquer conduta que obrigue a presenciar, a manter ou participar de relação sexual por meio de violência, coacção, ameaça ou colocação da pessoa em situação de inconsciência ou de impossibilidade de resistir;
b) violência patrimonial — toda a acção que configure a retenção, a subtracção, a destruição parcial ou total dos objectos, documentos, instrumentos de trabalho, bens móveis ou imóveis, valores e direitos da vítima;
c) violência psicológicaqualquer conduta que cause dano emocional, diminuição de auto-estima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento psico-social;
d) violência verbal — toda a acção que envolva a utilização de impropérios, acompanhados ou não de gestos ofensivos, que tenha como finalidade humilhar e desconsiderar a vítima, configurando calúnia, difamação ou injúria;
e) violência física — toda a conduta que ofenda a integridade ou a saúde corporal da pessoa;
f) abandono familiarqualquer conduta que desrespeite, de forma grave e reiterada, a prestação de assistência nos termos da lei.”
- negrito e sublinhado nossos

É por o Tribunal a quo, na pessoa dos Senhores Juízes – Presidente do Colectivo e Adjunto – que absolveram a arguida, não relevar o abandono por parte da mesma dos seus 5 filhos, dois deles de tenra idade, e por entender que esse abandono não produz quaisquer danos emocionais e psicológicos, como bem refere o Digno recorrente, é que, sob a justificação das diferenças culturais entenderam que não se mostravam preenchidos nem os elementos objectivos, nem subjectivos do crime em apreço, e, ao que tudo indicia, de mais nenhum outro crime, como a Mmª Juiz Adjunta que votou vencido, entendeu existir.

Quando se torna claro que ..., como qualquer outro país civilizado, não está atrás com a sua legislação no que tange a crimes de violência doméstica.

Mas, no caso em apreço a situação é ainda mais gritante porque não estamos a falar de uma relação entre adultos, onde uma das pessoas possa estar habituada a costumes centenários da relação conjugal, onde o homem dominava ao ponto de poder mal-tratar a sua mulher.

Estamos a falar de um conceito universal que é a maternidade, e o contexto em que os factos foram praticados não foi entre as quatro paredes de uma relação conjugal, entre adultos, mas entre uma mãe e os seus 5 filhos menores, dois dos quais de muito tenra idade.
           
Está em causa as obrigações de uma mãe em relação aos seus filhos menores, totalmente dependentes de si.

Ora, e com isto em mente, vejamos, agora de perto a impugnação da matéria de facto pedida pelo MºPº em sede de recurso.

O MºPº entende que devem ser considerados provados os seguintes factos, relacionados com o elemento objectivo do tipo de crime:

7. Durante o período compreendido entre o dia 16 de Fevereiro de 2021 e o dia 20 de Fevereiro de 2021 a arguida deixou os seus cinco filhos menores no interior da sua residência entregues à sua sorte, sem a supervisão e apoio de um adulto.
9. A arguida não adquiriu, nem providenciou pela aquisição de bens alimentares para consumo pelos seus filhos enquanto se encontrava ausente.
10. A arguida não cuidou de prestar, ou solicitar a outrem que o fizesse, de forma habitual, os cuidados normais de higiene em relação aos seus filhos (designadamente a toma de banho, limpeza do corpo e lavagem da roupa) enquanto se encontrava em Lisboa.
11. A arguida não providenciou pela limpeza da habitação onde permaneceram os seus filhos enquanto se encontrava em Lisboa.
12. A habitação onde os menores se encontravam, durante o referido hiato temporal, encontrava-se com lixo espalhado pelo chão e sacos do lixo encostados à parede, em todas as divisões da casa. […]
           
Para tal oferece as declarações da arguida prestadas em sede de primeiro interrogatório, e lidas em sede de julgamento, (cuja transcrição consta do citius, em 05-03-2021 com a refª ...75) uma vez que a arguida se remeteu ao silêncio na fase de julgamento, e as declarações da testemunha EE.

Vejamos.

Das declarações da arguida, em particular página 7 da respectiva transcrição,  resulta claro que nem água que, apesar da mesma supostamente estar a contar com uma pessoa “II” ou “JJ”, que nem soube concretizar bem quem era, e que supostamente estaria a residir em casa consigo e as crianças, e logo no próprio dia em que a arguida se pôs a caminho de Lisboa, o mesmo terá estranhamente saído de casa, a arguida admite que podia e devia ter voltado logo no dia para junto dos filhos mas preferiu continuar a sua aventura em Lisboa onde alega, ia comprar comidas africanas e procurar casa, aproveitando para, “mexer no cabelo e fazer as unhas” – página 9 da transcrição.

Aliás, a arguida admite que, tendo partido numa terça-feira, dia 16 de Fevereiro de 2021, pelas 15.00 e tendo o tal II/JJ ligado pelas 19.00 a dizer que tinha de sair, a arguida, só no dia seguinte, quarta-feira é que ligou para uma tal EE (é o que consta da transcrição)[10] que lhe disse (só na quinta-feira) não poder ficar a noite mas que podia passar pela casa.

Portanto, tal como o Digno recorrente refere, a arguida, podendo voltar para casa logo no dia 16, não só espera pelo dia seguinte para contactar uma outra pessoa que lhe diz, só na quinta-feira, não poder ficar a noite, continuando a sua estadia em Lisboa.

Mais grave ainda é que a arguida admite que não conseguiu contactar logo a tal EE, que só lhe devolveu a chamada no dia seguinte, ou seja, na quinta-feira (página 10 da transcrição).

Pelo que, se nos afigura claro que a arguida efectivamente deixou os seus filhos à sua própria sorte, não só porque não se certificou que a pessoa que supostamente iria ficar com as crianças tinha essa disponibilidade e era responsável  – o tal II/JJ – como, sabendo logo no próprio dia, que não podia ficar, ao invés de arrepiar caminho e voltar logo para junto dos filhos, continua a sua viagem para Lisboa – para comprar comidas africanas, compor o cabelo e arranjar as unhas – esperando pelo dia seguinte para falar com alguém que só lhe devolve a chamada na quinta-feira mas que também não lhe pode acudir em conformidade, só podendo visitar as crianças.

A somar a tudo isto a própria arguida admitiu nas suas declarações que era para ter voltado no sábado, mas perdeu a camioneta, pelo que ficou até domingo.
Ou seja, nada demoveu a arguida para voltar o mais depressa possível para junto dos filhos, repetimos, dois deles com menos de 2 anos de idade.

Tendo sido contactada pela polícia no sábado que a informou que tinham as crianças na sua custódia.

Mais grave ainda, e isto parece ter sido esquecido pelo Tribunal a quo, é o facto da ausência da arguida ter ocorrido em plena pandemia durante um Estado de Emergência que condicionou de forma muito vincada a circulação das pessoas.

Note-se que entre 11-02-2021 e 01-03-2021, e ainda antes e depois deste período vigorou um Estado de Emergência que no período em que a arguida se ausentou de ... para Lisboa foi aprovado pelo Decreto do Presidente da República nº 11-A/2021 de 11-02-2021.

Ou seja, nem a pandemia, nem o Estado de Emergência demoveu a arguida de viajar vários dias até Lisboa para, segundo afirmou em sede de interrogatório, tratar do cabelo e das unhas e comprar comida africana.

Nem faz sentido algum, em face do Estado de Emergência, que a arguida fosse ver uma casa para viver, tanto que, nas suas declarações acabou por confirmar que ninguém apareceu para lhe mostrar a casa (página 13 da respectiva transcrição).

Da audição que efectuamos das declarações integrais da testemunha EE, a tal pessoa que terá ido ver como estavam as crianças na quinta-feira e, segundo a mesma, também na sexta-feira, é possível perceber que a mesma não quis esclarecer de forma credível e cabal o estado em que as crianças se encontravam uma vez que diz que chegou a empilhar uns pratos, terá levado algumas refeições e não se lembra de muito mais.

Contudo, olhando o estado da casa nos fotogramas juntos aos autos é absolutamente incompreensível como é que esta testemunha não se apercebeu ou não reparou no estado deplorável em que a habitação se encontrava.

Aliás, quando perguntada a referida testemunha disse que foi o filho mais velho da arguida que lhe abriu a porta, e que, às 9.00 da manhã, de quinta-feira, hora a que esta testemunha terá passado pela casa, o menor e os outros estariam todos em casa.

Quando perguntado acerca da escola a referida testemunha teria respondido que eram férias escolares. Contudo, olhando o calendário de 2021, o que se constata é que 16 de Fevereiro foi terça-feira de carnaval, pelo que a arguida deixou os filhos no dito feriado, sendo que as escolas só encerram até quarta-feira de cinzas, sendo que a quinta-feira, dia em que a testemunha EE se deslocou à casa onde as crianças estavam sozinhas, já seria um dia escolar, bem como a sexta-feira.

Assim, as crianças em idade escolar faltaram à escola não tendo a arguida sequer providenciado junta desta testemunha para assegurar essa frequência.

No fundo, esta testemunha admitiu que a arguida lhe ligou para ver se estava tudo bem com as crianças, não a tendo incumbido de tarefas específicas para salvaguardar o bem-estar dos filhos.

Sendo que foi esta testemunha – segundo a mesma afirma mas sem capacidade de concretizar ao certo o que deu aos menores para comer, excepto que trouxe algum leite e terá trazido alguma carne já cozinhada – que teria trazido alimentos para os menores.

Por outro lado, e tal como afirma o MºPº no seu recurso, esta testemunha admitiu que não é norma em ..., deixar-se 5 crianças, ademais muito pequenas, sozinhas em casa durante dias a fio.

Afigura-se-nos, assim, que assiste total razão ao Digno recorrente, devendo ser dado como provados os seguintes factos:
 
7. Durante o período compreendido entre o dia 16 de Fevereiro de 2021 e o dia 20 de Fevereiro de 2021 a arguida deixou os seus cinco filhos menores no interior da sua residência entregues à sua sorte, sem a supervisão e apoio de um adulto.
9. A arguida não adquiriu, nem providenciou pela aquisição de bens alimentares para consumo pelos seus filhos enquanto se encontrava ausente.
10. A arguida não cuidou de prestar, ou solicitar a outrem que o fizesse, de forma habitual, os cuidados normais de higiene em relação aos seus filhos (designadamente a toma de banho, limpeza do corpo e lavagem da roupa) enquanto se encontrava em Lisboa.
11. A arguida não providenciou pela limpeza da habitação onde permaneceram os seus filhos enquanto se encontrava em Lisboa.
12. A habitação onde os menores se encontravam, durante o referido hiato temporal, encontrava-se com lixo espalhado pelo chão e sacos do lixo encostados à parede, em todas as divisões da casa. […]

Aliás, a Mmª Juíza Adjunta, no seu voto de vencido também considera estes factos provados, pelo que, claramente, há prova bastante para impor uma alteração da matéria de facto nos termos propostos.

E porque se nos afigura acertada a análise que a Srª Juíza Adjunta fez da prova aqui recapitulemos essa parte do voto vencido que, pela sua clareza de análise, escusamos de parafrasear:

“A arguida, por razões que não se apuraram, decidiu deslocar-se a Lisboa e aí permanecer durante alguns dias. Deixou ... no dia 16 de Fevereiro, 3.ª feira. Para o efeito, incumbiu a criança mais velha, o BB, de tomar conta dos irmãos durante o período de tempo que estivesse fora, permanecendo todos no apartamento onde residiam, no ... andar de um prédio. Era inverno, fazia frio em ... (como é normal para a época), o apartamento não tinha aquecimento, as crianças não vestiam roupa adequada para a época, dormiam todos num colchão que se encontrava no chão, sem roupa de cama, designadamente cobertores, não havia um frigorífico onde pudessem ser armazenados alimentos para as crianças, não faziam a sua higiene nem a casa estava limpa, havendo restos de comida e urina que provocava um odor nauseabundo, estando as crianças neste ambiente, sujeitas as miseráveis condições. A arguida não providenciou por deixar condições mínimas de conforto para os filhos e prover à satisfação das necessidades básicas de alimentação, higiene, saúde e segurança das crianças, nem por intermédio de terceiras pessoas, que estivessem presentes durante todo o período de tempo de ausência da mãe. Mandar lá uma pessoa para ver como os meninos estão e levar alimentos, como aconteceu com uma das testemunhas ouvidas, amiga da arguida, que foi contactada por esta na 5.ª feira seguinte, dia 18 de Fevereiro, não é vigiar, guardar, proteger, até porque a dita testemunha ter-lhe-á dito que estava em época de exames e não poderia lá ir muitas vezes nem estar muito tempo, acabando por levar comida às crianças à hora das refeições, no máximo 4 vezes. As crianças passavam as noites sozinhas, nas condições já descritas. Estavam completamente entregues a si próprias, foram totalmente deixadas à sua sorte e ao acaso, durante considerável período de tempo, mesmo que o BB falasse com a mãe através de computador, segundo foi dito.
Falou-se de um tal JJ. Não se apurou quem é, o que fez e em que circunstâncias, tendo sido mencionada apenas pelo BB – para nós essa pessoa não existiu, tendo sido ‘arranjada’ para justificar os dois dias anteriores àquela 5.ª feira de manhã que a arguida pediu à amiga para ir ver os filhos.
O BB, com 12 anos de idade (nasceu em ../../2008) à data da prática dos factos (Fevereiro de 2021), por muito que estivesse habituado a mudar fraldas, dar de comer e beber, despir e vestir ou dar banho – e até acreditamos que sim, mas sempre num contexto de auxílio à mãe na execução das tarefas domésticas –, não tinha seguramente a capacidade e a competência para sozinho prestar os cuidados que eram devidos e satisfazer as necessidades prementes dos seus quatro irmãos, KK, LL e CC e DD, de 7 anos, 5 anos e 19 meses de idade, respectivamente, à data da prática dos factos.

Entende ainda o Digno recorrente que devem também ser dados como provados os seguintes factos que o Tribunal a quo, por maioria, considerou não provados:

24. Ao ausentar-se de casa, deixando os menores entregues à sua sorte, nas condições supra elencadas agiu a arguida com total desrespeito para com os seus filhos e pelo exercício das responsabilidades parentais que lhe competia, enquanto mãe dos mesmos.
25. Sabia a arguida que os seus filhos não conseguiam nem poderiam cuidar deles próprios, nomeadamente, CC e DD, que na data dos factos tinham 12 meses de idade, não obstante agiu conforme o descrito.
26. Ademais, a arguida sabia que os seus filhos menores não poderiam contar com o auxílio do irmão BB, que na data dos factos tinha 12 anos de idade e cujas tarefas, atenta a sua idade, não lhe pertenciam, nem eram adequadas à sua idade, não obstante agiu a arguida conforme o supra relatado.
27. Com a conduta supra descrita quis e conseguiu a arguida deixar sozinhos os seus cinco filhos, entregues à sua sorte, na residência da mesma, bem sabendo que os mesmos eram de tenra idade, não tinham capacidade para tomarem conta de si e necessitavam de supervisão e auxílio de um adulto para os alimentar e cuidar da sua higiene, não obstante agiu conforme o descrito
28. Com a sua ausência a arguida atingiu a dignidade dos seus filhos enquanto pessoas, pese embora não ignorasse que devia às vítimas dos seus actos, na qualidade de sua mãe, particular respeito e consideração.
29. Ademais, sabia a arguida que os seus cinco filhos se encontravam à sua guarda, não conseguindo por eles próprios, atendendo às suas idades, fazer face aos actos da vida corrente, nomeadamente, cozinharem, alimentarem-se, mudar a fralda e tomarem banho, não obstante agiu conforme o descrito.
30. A arguida não cuidou do bem-estar físico e emocional dos seus cinco filhos, como lhe competia, actuando com indiferença relativamente a estes, o que quis e conseguiu,
31. Bem sabia a arguida que os factos acima descritos eram praticados no interior da residência das vítimas, que as mesmas eram seus filhos e apresentavam fragilidades inerentes às suas idades.
32. A arguida agiu consciente da possibilidade de se verificar o resultado de as crianças ficarem feridas na sua dignidade de pessoa, física e/ou emocionalmente, nos termos anteriormente descritos, mas, indiferente a tal possibilidade, conformou-se com esse resultado, tendo agido nos termos supra descritos, porque quis (redação alterada).

Ora, estes factos integram o elemento subjectivo do crime e por serem factos que têm a ver com o mundo interior e psicológico da arguida são factos que só se alcançam através da conjugação dos factos objectivamente já assentes nos autos.

E, como tivemos já ocasião de referir, estes factos mostram-se provados em virtude dos próprios factos já dados como provados pela maioria do Colectivo do Tribunal a quo.

E não se venha com a desculpa das diferenças culturais, como se ... fosse um outro planeta sem noções básicas do que é cuidar de uma criança.

Não podemos esquecer que ..., bem ou mal, foi uma colónia portuguesa durante séculos, tendo sido exposta aos costumes europeus, mormente, aos portugueses, motivo pelo qual assimilou não só a língua, como os próprios textos legais.

E das declarações da arguida o que se retira, claramente, é que a mesma quis ir para Lisboa, no dia de Carnaval, e em pleno Estado de Emergência, onde iria passar alguns dias para tratar do cabelo e das unhas e comprar comidas africanas.

Ora, a Srª Juíza Adjunta expressa de forma muito clara o motivo pelo qual se deve concluir pela participação criminal da arguida a título de dolo eventual que é, também, esse tipo de dolo que se nos afigura existir no caso, tal como proposto pelo Digno recorrente.

Veja-se:

“Não aceitamos de forma alguma que se considere que a arguida agiu de forma negligente (nem se fala da falta de consciência da ilicitude dos seus actos), por alegada falta de noção do que é errado, desde logo por razões de ordem cultural.
De acordo o disposto no artigo 15.º do Código Penal, “[a]ge com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto”.
Os crimes em causa são puníveis apenas por dolo, mas bastam-se com o dolo eventual para a sua verificação.
O artigo 14.º do Código Penal prescreve que:
“1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização”.
A arguida teve de representar como possível a ocorrência, na sua ausência, de factos atentatórios da vida ou integridade física das crianças e conformou-se com tal possibilidade, deixando-as entregues a si próprias, fechadas num apartamento, sem a vigilância permanente de um adulto, não sendo manifestamente suficiente as idas que, a pedido da arguida, depois de 2 dias de ausência, uma amiga fez ao apartamento ‘só’ para lhes levar comida.
É inaceitável para nós, ante a prova que foi produzida, considerar-se que a arguida agiu negligentemente, ora porque representou como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime e actuou sem se conformar com essa realização (negligência consciente) ora porque não chegou sequer a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente).
(…)
É elevadíssima a taxa de acidentes e mortes ocorridas em contexto doméstico quando não há supervisão, ainda que momentânea, de um adulto (mortes por afogamento ou por quedas em altura). Incêndio, quedas, lesões graves, doença súbita, etc., são alguns dos cenários possíveis quando se deixam crianças sozinhas em casa, até por umas horas.
Tendo só em conta a idade dos filhos e o número de crianças que iriam ficar fechadas em casa durante alguns dias, numa altura em que faz muito frio em ..., tendo o frigorífico avariado, conforme se provou, e com livre acesso aos mais variados instrumentos perigosos, como facas, tesouras, vidros, também como se provou, a arguida, como mãe que ama os seus filhos e que se preocupa com eles, não poderia deixar de representar a possibilidade de, dentro de casa, estando cinco crianças juntas, duas delas de tenra idade, sem qualquer supervisão, ocorrer um incidente que pusesse em risco a vida ou a integridade física dos filhos; representou e conformou-se com a mesma.
Toda a gente sabe que as crianças, consoante a idade, não têm qualquer ou a real noção do perigo; que são muito curiosas, gostam de mexer em tudo, são atraídos pelo desconhecido e/ou proibido e fazem o que lhes apetece quando não estão ao alcance do olhar do adulto ou fazem coisas a que não estão autorizadas quando o adulto não está naquele momento ou não vê. Ora, qualquer brincadeira, qualquer interesse, qualquer vontade de experimentar pode resultar em acidente.
É absolutamente proibido, cruel, perigoso, desprovido de sentido de responsabilidade e protecção e, portanto, criminoso, deixar sozinhas, e por vários dias, cinco crianças com a idade dos filhos da AA, entregues à sua sorte e sujeitas às incertezas do acaso e à aleatoriedade dos comportamentos impetuosos próprios das crianças.
Como é que se pode aceitar que a AA, mãe de cinco filhos de diferentes idades, contra o que é normal, expectável, exigível a qualquer mãe escorreita e responsável, não representou a possibilidade de algum incidente ocorrer ao longo de vários dias em que iriam estar sozinhos (negligência inconsciente) ou, tendo-a representado, com ela não se conformou (negligência consciente), por confiar nas competências do filho BB e acreditar na sorte? Que fundamentos pode uma mãe ter para acreditar que um filho de 12 anos tem capacidade para cuidar de quatro irmãos e de si próprio, durante vários dias, provendo a todas as suas necessidades, que os filhos se encontram seguros estando fechados num apartamento e sozinhos, sem a supervisão permanente de um adulto? E como se pode achar que é razoável deixar quatro filhos de 7 anos, 5 anos e 19 meses de idade à guarda e cuidados de uma criança de 12 anos e não se questionar ou sequer importar com a existência de sérios riscos para a vida ou integridade física dos filhos, nem sequer um mínimo receio disso?
Não temos, por isso, dúvidas em afirmar que a AA representou e conformou-se, porque outros interesses se sobrepuseram na sua deslocação a Lisboa (mesmo que fosse para tratar de assuntos do interesse dos filhos, como procurar uma habitação, como o próprio BB sugeriu), valendo a pena o risco.”

Pese embora a Srª Juíza Adjunta tivesse integrado o comportamento da arguida no crime de maus tratos, afigura-se-nos que a actuação, ou melhor dizendo, a omissão da arguida é de tal forma grave que atingiu a esfera de dignidade dos seus filhos, pois não é credível que a casa estivesse no estado em que foi encontrada por lá faltar um adulto a tempo inteiro durante 3 dias.

Repare-se que a arguida ausenta-se pelas 15.00 do dia 16 de Fevereiro de 2021, ou seja, da parte da tarde de terça-feira de Carnaval.

As crianças ficam sozinhas essa noite e todo o dia e toda a noite de quarta-feira de cinzas, dia 17 de Fevereiro, indo lá vê-las e testemunha EE na quinta-feira, dia 18 de Fevereiro, três vezes.

A mesma testemunha ainda foi ver as crianças na sexta-feira, dia 19 de Fevereiro, pelo menos da parte da manhã, não se lembra se foi mais alguma vez, tendo a PSP ido ao local pelas 16:45 de sábado, dia 20 de Fevereiro.

Ora, aqueles dias sem a presença da mãe nunca levaria ao estado em que a casa se encontrava, muito menos se a tal testemunha EE tivesse, de facto, tentado arrumar alguma coisa.

A falta de condições em que estas crianças se encontravam, ao ponto da PSP no seu auto de notícia ter apelidado as condições da habitação de “desumanas”, revela, não um incidente isolado, fruto do acaso ou de algum momento temporário de inconsciência por parte da arguida, mas um modo de vida já sedimentado e revelador do total desrespeito que a arguida tem pelos filhos.

E não se venha com a falta de condições económicas, que também não estão provadas, para se justificar o estado deplorável em que estas crianças se encontravam.

Por isso, se entende que os factos em referência devem também ser dados por provados por resultar claro, da conjugação dos factos objectivamente já alcançados nos autos e suportados em elementos objectivos, e de acordo com a prova indicada pelo Digno recorrente, aliado às regras da experiência comum e do bom senso, que a arguida, com dolo eventual, não só colocou os filhos numa situação de grave perigo físico como os sujeitou a maus tratos psicológicos, desrespeitando as suas mais básicas necessidades e a sua dignidade enquanto seres humanos em desenvolvimento.

Pelo que se altera a matéria de facto nos termos propostos, dando-se por provados ainda os seguintes factos:
24. Ao ausentar-se de casa, deixando os menores entregues à sua sorte, nas condições supra elencadas agiu a arguida com total desrespeito para com os seus filhos e pelo exercício das responsabilidades parentais que lhe competia, enquanto mãe dos mesmos.
25. Sabia a arguida que os seus filhos não conseguiam nem poderiam cuidar deles próprios, nomeadamente, CC e DD, que na data dos factos tinham 12 meses de idade, não obstante agiu conforme o descrito.
26. Ademais, a arguida sabia que os seus filhos menores não poderiam contar com o auxílio do irmão BB, que na data dos factos tinha 12 anos de idade e cujas tarefas, atenta a sua idade, não lhe pertenciam, nem eram adequadas à sua idade, não obstante agiu a arguida conforme o supra relatado.
27. Com a conduta supra descrita quis e conseguiu a arguida deixar sozinhos os seus cinco filhos, entregues à sua sorte, na residência da mesma, bem sabendo que os mesmos eram de tenra idade, não tinham capacidade para tomarem conta de si e necessitavam de supervisão e auxílio de um adulto para os alimentar e cuidar da sua higiene, não obstante agiu conforme o descrito
28. Com a sua ausência a arguida atingiu a dignidade dos seus filhos enquanto pessoas, pese embora não ignorasse que devia às vítimas dos seus actos, na qualidade de sua mãe, particular respeito e consideração.
29. Ademais, sabia a arguida que os seus cinco filhos se encontravam à sua guarda, não conseguindo por eles próprios, atendendo às suas idades, fazer face aos actos da vida corrente, nomeadamente, cozinharem, alimentarem-se, mudar a fralda e tomarem banho, não obstante agiu conforme o descrito.
30. A arguida não cuidou do bem-estar físico e emocional dos seus cinco filhos, como lhe competia, actuando com indiferença relativamente a estes, o que quis e conseguiu,
31. Bem sabia a arguida que os factos acima descritos eram praticados no interior da residência das vítimas, que as mesmas eram seus filhos e apresentavam fragilidades inerentes às suas idades.
32. A arguida agiu consciente da possibilidade de se verificar o resultado de as crianças ficarem feridas na sua dignidade de pessoa, física e/ou emocionalmente, nos termos anteriormente descritos, mas, indiferente a tal possibilidade, conformou-se com esse resultado, tendo agido nos termos supra descritos, porque quis

Também se deve alterar a redacção dos factos vertidos em 21, 22 e 23 dos factos provados, nos termos igualmente propostos pelo MºPº uma vez que tais factos excluem da actuação da arguida o filho mais velho, BB, o que, ante a prova produzida e na sequência de tudo quanto temos vindo a referir, resulta claro que este menor, apesar de mais velho, também foi alvo da omissão da arguida, sendo que um menor com 12 anos, completamente sozinho e sem ajuda de um adulto, durante dias a fio (não estamos a falar de ficar sozinho umas horas) também não é capaz de tomar conta de todas as suas necessidades muito menos as dos irmãos.

Assim, onde se lê:
“21.º - Sabia a arguida que, com excepção do menor BB, os seus filhos não conseguiam nem poderiam cuidar deles próprios, nomeadamente, CC e DD.
            23.º - A arguida sabia que os seus filhos eram de tenra idade e, com excepção do BB, não tinham capacidade para tomarem conta de si e necessitavam de supervisão e auxílio de um adulto para os alimentar e cuidar da sua higiene.”

Deverá ler-se:
21.º - Sabia a arguida que os seus filhos não conseguiam nem poderiam cuidar deles próprios, nomeadamente, CC e DD.
23.º - A arguida sabia que os seus filhos eram de tenra idade e não tinham capacidade para tomarem conta de si e necessitavam de supervisão e auxílio de um adulto para os alimentar e cuidar da sua higiene.
Terá, assim, de proceder o recurso nesta parte.

II) Da Qualificação Jurídica em função da alteração da matéria de facto:

Chegados aqui, com a alteração da matéria de facto nos termos requeridos pelo Digno recorrente, há, agora que enquadrar aqueles factos no respectivo tipo legal.

Ora, o MºPº perfilha o entendimento de que estamos perante 5 crimes de violência doméstica enquanto que a Srª Juíza Adjunta que votou vencida enquadraria a actuação da arguida no crime de maus tratos.

Vejamos.

O crime de violência doméstica vem previsto no artº 152º do Código Penal, na versão aplicável aos autos, dada pela Lei nº 44/2018 de 04-08, o qual diz o seguinte:
           
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.”

O crime de maus tratos, previsto no artº 152º-A do Código Penal dispõe o seguinte:
           
“1 - Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;
b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se dos factos previstos no número anterior resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.”

Havendo ainda um terceiro crime onde a actuação da arguida, abstractamente poderia ser enquadrada, a saber no crime de exposição ao abandono previsto no artº 138º do Código Penal, o qual diz o seguinte:

“1 - Quem colocar em perigo a vida de outra pessoa:
a) Expondo-a em lugar que a sujeite a uma situação de que ela, só por si, não possa defender-se; ou
b) Abandonando-a sem defesa, sempre que ao agente coubesse o dever de a guardar, vigiar ou assistir;
é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.
2 - Se o facto for praticado por ascendente ou descendente, adoptante ou adoptado da vítima, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 5 anos.
3 - Se do facto resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de 2 a 8 anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de 3 a 10 anos.”

Ora, o crime de exposição ao abandono, previsto no artº 138º do Código Penal, sendo um crime de perigo concreto, pressupõe que a actuação do agente, em relação à vítima, a coloque numa situação de perigo para a sua vida, sendo que, além de ter de existir o dolo, ainda que eventual em relação à criação desse perigo, tem de haver, pelo menos uma negligência, no que tange ao resultado, caso este se verifique.

Ou, como esclarece o Acórdão da Relação do Porto de 04-01-2023[11]:
“I - Para o preenchimento do tipo objetivo do crime de exposição ou abandono o agente tem de colocar em perigo a vida de uma pessoa através de exposição ou abandono, o que consubstancia um crime de perigo concreto.
II - Enquanto a exposição pressupõe a deslocação espacial da vítima levada a cabo pelo agente, o abandono consiste em o agente abandonar a vítima sem defesa sempre que tenha um dever de a guardar, vigiar ou assistir.
III - No entanto, o abandono ocorre não só quando o agente abandone o local, mas também quando, mantendo-se junto à vítima, omita qualquer acto de auxílio para com aquela.
IV - O tipo subjetivo só se preenche com o dolo, bastando, porém, o dolo eventual, o qual tem evidentemente de abarcar a criação de perigo para a vida da vítima, bem como a ausência de capacidade para se defender por parte desta.
V - A agravação da pena decorrente da ocorrência de um resultado mais grave, morte da vítima ou ofensa à integridade física grave, pressupõe a possibilidade de imputação desse resultado ao agente pelo menos a título de negligência, embora decisivo para a verificação do crime preterintencional é que o resultado produzido seja imputável à situação de perigo criada e diretamente conexionada com a ausência de capacidade de defesa por parte da vítima.”

No caso em apreço, não só não temos todos os elementos subjectivos para preenchimento deste crime, pois não está provado que a arguida quis colocar em perigo de vida os filhos, como, as consequências para as crianças se traduzem em muito mais do que um mero perigo, tendo havido, em nosso entendimento, verdadeiros maus-tratos que vão para além da criação de perigo.

Já o crime de maus tratos, previsto no artº 152º-A do Código Penal versa uma actuação fora do âmbito familiar.

Como referem Simas Santos e Leal-Henriques[12]:
“Enquanto o artigo anterior (o artº 152º) penaliza a violência na família, este normativo (o artº 152º-A) tratará da violência na escola ou outras instituições e no trabalho.”

Na realidade, o crime de violência doméstica abarca o crime de maus-tratos, daí se referir que está em concurso aparente com este crime.

Ou conforme se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 22-10-2022[13]:
“I - Na redação dada ao artigo 152º do C. Penal pela Lei 59/2007 de 04.09, consolidada pela Lei nº19/2013 de 21.02 e pela Lei 44/2918 de 09.08, o crime de violência doméstica abrange no conceito de “maus tratos físicos ou psíquicos” ou “ofensas sexuais” quaisquer ofensas à integridade física ou psíquica suscetíveis de constituir, se autonomamente consideradas, crimes puníveis com pena prisão de limite superior até 5 anos - ocorridas entre as pessoas previstas no tipo, no âmbito e por causa, precisamente, das relações aí previstas, independentemente de haver entre elas quaisquer assimetrias de poder, imparidades ou dependências.
II - Existe uma relação de concurso aparente de crimes entre o crime de violência doméstica que engloba aqueles maus tratos físicos ou ofensas sexuais e os crimes que possam prever, isoladamente, a punição de cada um dos atos englobados naquele.”
           
Ora, afigura-se-nos, tal como defende o Digno recorrente, que o crime que melhor retrata a actuação da arguida é o de violência doméstica, o qual, abarca mais do que os simples maus-tratos, situando-se a nível da dignidade humana e da integridade moral da vítima.

Como se esclarece no Acórdão da Relação de Lisboa de 19-04-2017[14] (aplicável também quando a vítima é filho menor):
           
“I - O crime de violência doméstica, p. e p. pelo art° 152°, do CP, na sua vertente de ofensas dirigidas ao cônjuge, é um crime que visa as prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da família, tendo em conta a gravidade individual e social destes comportamentos e a consciencialização da sua inadequação, gravidade e perniciosidade.
II - A ratio do tipo não está na protecção da comunidade familiar ou conjugal, mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, enquanto membro de um determinado agregado familiar. O âmbito punitivo deste tipo de crime abarca, pois, todos os comportamentos que, de forma reiterada ou não, lesam a referida dignidade, quer no âmbito dos maus tratos físicos, quer no dos maus tratos psíquicos, abrangendo ainda situações como as ameaças, as humilhações, as provocações, as pequenas privações de liberdade e de movimentos e as ofensas de âmbito sexual.
III - O bem jurídico protegido é plural e complexo, visando essencialmente a saúde, entendida nas vertentes de saúde física, psíquica e/ou mental, mas abrangendo também a protecção da dignidade humana no âmbito de uma particular relação interpessoal. Esse bem jurídico, por conseguinte, é susceptível de ser afectado por toda uma diversidade de comportamentos, desde que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento ou afectem a dignidade pessoal e individual do cônjuge.”

A actuação da arguida, que não se resume aos 4 dias de abandono das crianças à sua sorte, revela um desprezo por parte desta do bem-estar físico e psicológico dos seus filhos, sujeitando-os:
- ao frio (as crianças não tinham roupa nem agasalhos adequados e a cama não tinha lençóis nem cobertores, tratando-se de ... em pleno inverno),
- à fome (só quando a amiga EE se deslocou na quinta-feira é que as crianças poderiam ter ingerido algum alimento adequado),
- ao desconforto (os gémeos, ao tempo, com 19 meses tinham as fraldas ensopadas em urina, de tal forma que foi a PSP que lhas mudou, cfr. auto de notícia),
- à falta de higiene (ninguém responsável estava presente para dar banho aos mais pequenos e a casa estava cheia de lixo e detritos)
- à solidão (de noite sem qualquer adulto),
- aos medos que assolam as crianças quando não têm um adulto por perto,
- à sensação de insegurança (qualquer pessoa podia bater à porta, aliás, foi assim que a EE entrou bem como a PSP), em fim, a toda uma panóplia de condições que seguramente interferem com o são desenvolvimento de qualquer criança.

Como se esclarece no Acórdão da Relação de Évora de 03-07-2012:[15]

“A «pedra de toque» da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida.”

Ou ainda, como se explica no Acórdão da Relação de Coimbra de 18-05-2022:[16]
“I - Os factos praticados, isolados ou reiterados, integrarão o tipo legal de crime de violência doméstica se, apreciados à luz do circunstancialismo concreto da vida familiar e sua repercussão sobre a mesma, transmitirem um quadro de degradação da dignidade de um dos elementos, incompatível com a dignidade e liberdade pessoais inerentes ao ser humano.
II - O crime de violência doméstica é integrado por situações que, não fora essa especial ofensa da dignidade humana, seriam tratadas atomisticamente e preencheriam uma multiplicidade de tipos legais, como os de ofensa à integridade física, ameaça, injúria, etc - é aquela envolvente que determina que acções susceptíveis de integrar estes crimes sejam tratadas como uma unidade.
III - Uma vez que qualquer crime contra as pessoas atenta contra a sua dignidade, então esta violação que remete aquelas acções para o tipo legal da violência doméstica terá que revelar a tal especial ofensa à dignidade humana que determinou o surgimento deste tipo especial que a tutela.
IV - Se o crime de violência doméstica tutela um bem jurídico diferente do que é tutelado pelos crimes que, vistos atomisticamente, o integram, se ele acautela a dignidade humana, que é mais do que a tutela da integridade física e psíquica, e se é punido mais gravemente que cada um daqueles ilícitos, então, para a densificação do conceito de maus tratos, na base do qual o tipo se constrói, não pode servir uma qualquer ofensa.
V - Daí que o decisivo para a verificação do tipo seja a configuração global de desrespeito pela dignidade da pessoa da vítima que resulta do comportamento do agente, normalmente assente numa posição de domínio e controlo.”

No caso em apreço, mais do que um simples maltrato perpetrado nestas crianças é a condição absolutamente desumana –veja-se a descrição constante do auto de notícia quando a PSP entrou na casa pela primeira vez – em que as 5 crianças se encontravam, com lixo espalhado por todo o lado, um cheiro nauseabundo, bebés com 19 meses em fraldas sujas, todos a partilharem um colchão no chão sem lençóis, cobertores, sem agasalhos, loiça suja por toda a cozinha, urina num tacho em cima do balcão, roupa limpa misturada com roupa suja, em fim, uma visão apocalíptica de uma casa que parece que uma guerra passou por ela.

Não havia um único brinquedo na casa, nem telefone que, pelo menos, o BB pudesse utilizar em caso de necessidade.

Nem isso a arguida providenciou.

Além do perigo criado para o bem-estar destas crianças, pois havia uma faca e uma tesoura à mão de semear, as mesmas não tinham qualquer higiene efectuado, os bebés estiveram em fraldas sujas, pelo menos há mais de 24 horas, isto a partir do pressuposto que a tal EE efectivamente mudou as fraldas às crianças na sexta-feira quando lá esteve; as crianças também foram sujeitas a maus-tratos psicológicos, com consequências no seu desenvolvimento, ainda por apurar, que implicam a afectação da sua dignidade enquanto seres humanos e enquanto seres indefesos.

Como muito bem referiu a Srª Juíza Adjunta no seu voto de vencido:
“(é) para nós indiscutíveis os maus tratos físicos e psicológicos causados (pelo frio sentido, pela sensação de solidão, medos e sentimento de insegurança certamente vividos, pela falta de alimentação adequada a cada uma das crianças, pela ausência do conforto da mãe, e não só por parte dos bebés, pela falta de higiene e eventuais lesões dela decorrentes (por ex., assaduras nos bebés), pela transferência de uma pesada responsabilidade para o filho mais velho, pela falta de comodidade, organização e higiene da casa, pelo sentimento de culpa do BB, etc.), deveria haver sempre lugar, para nós, de forma inquestionável, a uma censura penal, e não apenas moral, que determinasse uma condenação, não podendo a subscritora conformar-se com o ‘branqueamento’ da conduta da arguida.”

Por outro lado, não existem dúvidas que o crime de violência doméstica pode ser praticado por omissão, tal como afirma o Digno recorrente, em relação a quem, aqui citamos pela clareza da sua exposição:

“Neste concreto há que ter em consideração que sobre a arguida impendem os mais
basilares deveres de guarda e cuidado dos filhos enquanto progenitora e titular do exercício
das responsabilidades parentais, recaindo, pois, sobre a mesma o dever de garante nos termos do artigo 10.º do Código Penal em conjugação com o artigo 1874.º do Código Civil, segundo o qual:

“1. Pais e filhos devem-se mutuamente respeito, auxílio e assistência.
2. O dever de assistência compreende a obrigação de prestar alimentos e a de contribuir, durante a vida em comum, de acordo com os recursos próprios, para os encargos da vida familiar.”
Em face do que, o comportamento da arguida, omissivo que foi, é social, moral e, no que releva, penalmente relevante, pelo menos nesta primeira parte.”

Diz o Artigo 10.º do Código Penal, cuja epígrafe é “comissão por acção ou omissão” que:

“1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.”

Dúvidas não restam de que a arguida detém um dever jurídico que a obriga a evitar os maus-tratos dos filhos, estando por lei obrigada, a garantir-lhes uma série de condições que, no caos dos autos, não garantiu quando o devia e podia.

Afigura-se-nos, assim, e ao contrário do propugnado no acórdão recorrido, que se mostram preenchidos todos os elementos – objectivos e subjectivos – do crime de violência doméstica sendo que, em face da existência de 5 menores e, porque o crime em apreço tutela bens jurídicos iminentemente pessoais, há que concluir que a arguida cometeu 5 crimes de violência doméstica previstos e punidos pelos artigos 10º, 26.º, 30.º, n.º 1 e 152.º, n.ºs 1, al. d) e 2, alínea a) todos do Código Penal.”

IV) Da medida da pena e arbitramento de indemnização:
           
Revertendo-se a decisão de primeira instância, e passando a condenar-se a arguida pela prática de cinco crimes de violência doméstica há que fixar a medida concreta da pena, bem como arbitrar uma indemnização.

a) da medida da pena:

A fim de o fazermos, vejamos o que diz o quadro legal e a doutrina.

O artº 40º do Código Penal (CP), cuja epígrafe é "finalidades das penas e das medidas de segurança" dispõe o seguinte:
"1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente."

O artº 70º do CP, cuja epígrafe é "critério de escolha da pena" dispõe o seguinte:
"Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."

E o artº 71º CP, subordinado à epígrafe "determinação da medida da pena" diz o seguinte:
"1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de criem, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena."
           
Em termos doutrinais, ensina-se nos Figueiredo Dias[17] que "as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução da medida da pena."

Ora, o crime imputado à arguida prevê uma pena de 2 a 5 anos de prisão.

Na determinação da pena em concreto há que observar o disposto no artº 71º do Código Penal, supra citado, pelo que há a considerar:
- a ilicitude revela-se elevada, atendendo ao estado em que os menores concretamente se encontravam, sendo o abandono dos mesmos por período já significativo atendendo, em especial, à idade das crianças;
- a culpa é grave, considerando a relação entre arguida e menores, tendo o crime sido cometido por dolo eventual;
- em consequência dos crimes, os menores tiveram de ser institucionalizados, embora agora estejam com a arguida;
- o esforço que esta tem feito para arrepiar caminho e aderir às indicações dadas no âmbito do processo de promoção e protecção;
- a escolaridade da arguida – 12º ano – que já lhe permite uma compreensão dos seus actos e das suas resposnabilidades;
- a falta de antecedentes criminais.

Tudo ponderado, afigura-se-nos adequadas as penas propostas pelo MºPº, ou seja, 2 (dois) anos para cada crime (na realidade não podemos ir para além das mesmas atento o princípio da não violação da reformatio in pejus), uma vez que, a nosso ver, a pena deveria ser mais elevada no tocante aos gémeos.

Como se nos afigura adequado a pena única de 4 (quatro) anos também proposta pelo MºPº.

Por fim, no que ainda tange à medida concreta da pena, afigura-se-nos que a mesma deve ser suspensa na sua execução, nos termos do artº 50º do Código Penal, uma vez que a arguida é primária, terá interiorizado a gravidade do seu comportamento que, ao que tudo indica, não voltou a repetir, os menores têm um vínculo consigo sendo a arguida o suporte destas crianças.

Pelo que se nos afigura ser possível efectuar-se uma prognose favorável a esta arguida, sendo a ameaça da pena suficiente para evitar que a mesma volte a cometer este, ou qualquer, outro tipo de crime.

Dado o lapso de tempo já decorrido desde a prática dos factos, e porque a arguida tem sido acompanhada no âmbito do processo de promoção e protecção, afigura-se-nos que a pena deve ficar suspensa pelo período de 2 (dois) anos – aqui discordamos do MºPº que propunha período de suspensão de 4 anos.
           
A arguida deve ainda ficar sujeita a regime de prova através do qual cumprirá um plano que passe pela participação em programa vocacionado para trabalhar as competências parentais.

Uma vez que na acusação não foi pedida a aplicação de sanção acessória, nem se nos afigura existir fundamento para tanto, mormente inibição do exercício das responsabilidades parentais, não se determina qualquer sanção acessória.

b) da indemnização devida nos termos do artº 82º-A do Código de Processo Penal:

Diz o Artigo 82.º-A do Código Penal, subordinado à epígrafe “Reparação da vítima em casos especiais” o seguinte:           

“1 - Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.
3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”

Sendo que, nos termos do disposto no artº 21º nº 2 da Lei nº 112/2009 de 16-09: “Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.” – sublinhado nosso

Ora, no caso em apreço as vítimas são todas menores e, como tal, não se opuseram expressamente ao arbitramento da referida indemnização.

Haverá, assim, que neste momento proceder-se àquele arbitramento.

Esclarece o Acórdão da Relação de Coimbra de 27-09-2023[18]:

“III – Em caso de condenação por crime de violência doméstica é obrigatório o arbitramento de uma compensação à vítima, nos termos do artigo 21.º, nºs 1 e 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, não dependendo tal arbitramento da verificação dos pressupostos estabelecidos no artigo 82.º-A do C.P.P.
V – Os danos morais ou prejuízos de natureza não patrimonial correspondem àquilo que se costuma designar por pretium doloris ou ressarcimento tendencial da angústia, da dor física, da doença ou do abalo psíquico-emocional resultante da situação do lesado gerado pelo acto ilícito a que foi sujeito.
VI – Em matéria de danos morais não há uma indemnização verdadeira e própria, mas antes uma reparação, que se destina a aumentar um património que não foi espoliado com vista a proporcionar ao lesado a possibilidade de, acedendo a bens ou atividades que lhe proporcionam bem-estar, poder, de alguma forma, encontrar uma compensação para a dor.
VII – Por isso a reparação deve ser proporcional à gravidade do dano, devendo ter-se em conta, na sua fixação, todas as regras de boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida, os padrões geralmente adoptados pela jurisprudência e as flutuações do valor da moeda e deve ter um alcance “significativo e não meramente simbólico”, conforme vem sendo repetidamente afirmado pelos tribunais superiores.”

No caso em apreço, não podemos deixar de ter em atenção que as vítimas, todas menores, são filhos da arguida, à cuja guarda e cuidados se mantêm, e que esta é responsável pelo sustento das mesmas.

Pelo que, a fixação de uma indemnização não pode ignorar aquela realidade, bem como não se pode alhear do facto de ser a arguida quem sustenta sozinha os filhos atendendo à informação social de que dispomos.

Assim, considerando este particular contexto, a situação económica da arguida, a idade ainda muito jovem das vítimas, cuja gestão de quaisquer recursos, sempre caberá à arguida, fixa-se um valor indemnizatório de € 200,00 (duzentos euros) por filho, num total de € 1.000,00 (mil euros).

Procede, assim, o recurso do MºPº.

Decisão:

Em face do acima exposto decidem os Juízes Desembargadores da Secção Penal em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência:

I. Alteram a matéria de facto nos termos determinados no corpo deste acórdão;
II. Consequentemente, condenam a arguida pela prática de 5 (cinco) crimes de violência doméstica previstos e punidos pelos artigos 10º, 26.º, 30.º, n.º 1 e 152.º, n.ºs 1, al. d) e 2, alínea a) todos do Código Penal, numa pena de 2 (dois) anos de prisão por cada crime.
III. Em cúmulo jurídico condenam a arguida numa pena única de 4 (quatro) anos de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos sujeita a regime de prova que passe pela sua participação em programa vocacionado para trabalhar as competências parentais.
IV. Mais arbitram, nos termos do artº 82º-A do Código de Processo Penal, aplicável ex vi o artº 21º da Lei nº 112/2009 de 16-09, uma indemnização no valor de € 200,00 (duzentos euros) por cada vítima, num total de € 1.000,00 (mil euros).
           
Sem custas.
Guimarães, 05 de Junho de 2024.
           
Florbela Sebastião e Silva (Relatora)
Fernando Chaves (1º Adjunto)
Armando da Rocha Azevedo (2º Adjunto)


[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[2] Na verdade, a Lei n.º 25/11 de 14 de Junho (Lei Contra a Violência Doméstica), publicada no Diário da República (Órgão Oficial da ...), não prevê que constituam crime os factos imputados à arguida nos presentes autos.
[3] Embora conclusiva, a alegação parece encontrar algum respaldo nos meios de comunicação social angolanos, por exemplo, na edição do Jornal de ... de 8 de Março de 2015, onde se noticiou que a Senhora I. M., que trabalha num posto de combustível, tem 33 anos e é mãe de dois filhos, disse “todos os dias saio de casa às cinco da manhã e tudo fica entregue ao meu filho de 14 anos”, e a Senhora M. A. de 40 anos, comerciante há 19 anos, mãe de seis filhos, salientou que o segundo tem 16 anos. É ele que cuida da casa e dos irmãos mais novos durante a sua ausência. “Sinto muito ter que colocar o meu filho a cumprir as minhas obrigações dentro de casa”.
[4] Ac. Rel. Évora de 28-05-2013 no procº nº 166/11.4IDFAR.E1 in dgsi.pt.
[5] In www.dgsi.pt.
[6] In “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, reimpressa na Universidade Católica em 2018, página 1144.
[7] À data da prática dos factos, Fevereiro de 2021, ainda não tinha sido aditada a alínea e) ao n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal pela Lei n.º 57/2021, de 16 de Agosto, que passou a prever que incorre na prática de crime de violência doméstica “quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, […] a menor que seja seu descendente”.
[8] Consultável em:
https://assets-global.website-files.com/5a8e71e3c7881c000130ff13/5fc0b8e705040da154d6cc03_Lei25_11%20Violencia%20domestica.pdf
[9] O artigo anterior – artº 2º - diz o seguinte:
“A presente lei aplica-se aos factos ocorridos no seio familiar ou outro que, por razões de proximidade, afecto, relações naturais e de educação, tenham lugar, em especial:
a) nos infantários;
b) nos asilos para idosos;
c) nos hospitais;
d) nas escolas;
e) nos internatos femininos ou masculinos;
f) nos espaços equiparados de relevante interesse comunitário ou social.”
[10] Será a testemunha EE.
[11] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/45ace7be0b82c9b58025893300404a0c?OpenDocument
[12] Código Penal Anotado, Parte Especial, 5ª Edição, Rei dos Livros, p. 346.
[13] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/0d88264c5ae680ea802587f3004a5858?OpenDocument
[14] Consultável em:
https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?codarea=57&nid=5239
[15] Consultável em:
https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=109A0152&nid=109&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&nversao=
[16] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/6d9e801afde60b7c8025884c0035689b?OpenDocument
[17] In Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, p. 227 e ss.
[18] Consultável em:
https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/581e69596ebdea2080258a45004ee0a8?OpenDocument