Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
362/20.3T8MDL.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: SERVIDÃO DE PASSAGEM
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DEPOIMENTO DE PARTE
CONFISSÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A caderneta predial, extraída da respectiva inscrição matricial, é um documento autêntico mas não faz prova plena do que dela consta, nomeadamente da área e da composição do imóvel inscrito, porque assenta em declaração ao chefe de finanças competente, apresentada pelo sujeito passivo – eventualmente acompanhada, sendo caso disso, por plantas de arquitectura das construções existentes –, e não na observação directa feita pelo chefe de finanças e nas percepções por este colhidas “in loco”.
2. Para se poder invocar uma eventual confissão feita pela parte no seu depoimento, é necessário que tal confissão fique reduzida a escrito na respectiva acta da audiência.
3. Constitui claro abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por violação do princípio da boa-fé, a conduta do proprietário que chega a um acordo reduzido a escrito com um vizinho para constituição de servidão de passagem a favor do seu prédio e a favor do prédio contíguo, assim permitindo que aquele ficasse convencido de que o acordo ia ser respeitado, tanto mais que permitiu a construção de um muro e colocação de um portão com a condição de lhe ser entregue uma chave, e vem mais tarde invocar a nulidade desse acordo com o fundamento de a sua esposa não o ter subscrito para impedir o vizinho de por lá transitar.
4. Não há qualquer impedimento em valorar o conteúdo dos depoimentos de parte produzidos, não apenas nos estritos limites da confissão, mas como relato factual feito por sujeitos processuais que estão obrigados a responder com verdade, sendo que, fora do regime da confissão, as respectivas declarações ficarão sujeitas à regra da livre apreciação da prova.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

AA e BB, casados entre si, ambos residentes na Rua ..., ..., ..., intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra CC e DD, casados entre si, ambos residentes no ..., E.N. ...5, ... ..., peticionando:

(i) a condenação dos réus a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio rústico identificado no artigo 1.º da petição inicial,
(ii) a declaração de que, a favor deste prédio, existe, sobre o prédio propriedade dos réus, identificado no artigo 4.º do mesmo articulado, uma servidão de passagem a pé, de carro, de tractor ou de veículos motorizados e de tracção animal, localizada na linha divisória de ambos os prédios, na direcção Sul/Norte, constituída, pelo menos, por uma faixa de terreno com a largura de 4,03 metros e o comprimento aproximado de 50 metros, constituída por usucapião, a exercitar, nos termos sobreditos,
(iii) a reposição, nos termos sobreditos, da aludida servidão de passagem.

Subsidiariamente, peticionam a criação de uma servidão legal de passagem, com as apontadas características, nos termos do artigo 1550.º, n.º 1, do Código Civil.
Mais peticionam a condenação dos réus a pagar aos autores a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de indemnização pelos danos patrimoniais que invocam, e a quantia de € 1.000,00 (mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais que invocam, todos provenientes da conduta dos réus.
Para tanto, alegaram, em suma, que são proprietários do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial, o qual beneficia, desde há mais de 30 anos, de uma servidão de passagem sobre o prédio dos réus.
Apesar de esta servidão existir desde sempre e de, além do mais, o réu ter subscrito um documento particular autenticado de constituição da mesma, este procedeu à tapagem do acesso à mesma, vindo a impedir a passagem dos autores.
Invocam que a parte agrícola do seu prédio não tem qualquer comunicação directa com a via pública, motivo pelo qual se afigura essencial o acesso pela servidão de passagem que desde sempre existiu.

Citados, os réus apresentaram contestação, pugnando pela improcedência da acção.
Para tanto, alegam, entre o mais, que inexiste a referida servidão, mais invocando a invalidade formal do documento particular autenticado de constituição de servidão invocado pelos autores.
Considerando a alegação vertida nos articulados – onde se invoca que os prédios dos autores e dos réus pertenceram ao mesmo proprietário -, foram os autores convidados a aperfeiçoar a petição inicial, por forma a que os autos possibilitem um enquadramento do litígio e do peticionado à luz de todas as soluções plausíveis de direito, nomeadamente, à luz da solução de direito que, embora não tenha sido tida expressamente em conta pelos autores na petição inicial, desta mesma já decorria, ou seja, à luz de uma possível constituição da servidão invocada não por usucapião, mas por destinação do pai de família, nos termos do artigo 1547.º, n.º 1, do CC. Assim se acautelando a falta de demonstração dos requisitos da usucapião.
Na sequência do convite assim formulado, os autores aperfeiçoaram a petição inicial, concretizando factualidade atinente à anterior propriedade do prédio e, em suma, aos pressupostos da referida servidão por destinação do pai de família.
Procederam ainda à ampliação do pedido, a qual veio a ser admitida.

Foi proferido despacho saneador, no qual, entre o mais, se procedeu à identificação do objecto do litígio e à selecção dos temas da prova, não tendo havido reclamações.

Realizou-se a audiência de julgamento, com observância do legal formalismo.

A final, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, consequentemente, decidiu:
a) declarar o autor proprietário do prédio identificado em 1 da factualidade provada;
b) condenar os réus a reconhecê-lo como tal;
c) declarar que o prédio dos réus, identificado em 3 dos factos provados, se encontra onerado com a servidão de passagem, em benefício do prédio identificado em 1., descrita nos factos provados sob os n.ºs ...0 a ...6;
d) condenar os réus a repor a referida servidão;
e) condenar os réus a pagar aos autores, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais que a sua ilícita conduta lhes causou, a quantia de € 1.000,00 (mil euros);
f) condenar os réus como litigantes de má-fé, em multa que se fixa em 4 (quatro) unidades de conta;
g) absolver os réus do demais peticionado,

Os réus, não se conformando com a sentença proferida, vieram interpor recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (arts. 644º,1,a, 645º,1,a, 647º,1 CPC).

Terminam com as seguintes conclusões:
I. O presente recurso versa, num primeiro ponto, sobre matéria de facto, pois entendem os recorrentes que existem pontos de factos que consideram incorrectamente julgados, impondo decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
II. Num segundo prisma, o recurso versa sobre matéria de direito, porquanto entendem os ora recorrentes que a sentença de que se recorre interpretou erroneamente as normas jurídicas aplicáveis, fazendo uma errada aplicação do direito, violando o disposto em normas imperativas, mormente os artigos 220.º, 369.º, 371.º, 1296.º, 1548.º e 1549.º do Código Civil e 265.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.
III. Entendem ainda os recorrentes que o tribunal de que se recorre incorreu num erro de julgamento, porquanto a matéria de facto dada como assente, conjugada com o acervo probatório documental e testemunhal, não tem a devida correspondência com a realidade ontológica, causa adequada para que fosse preconizada, por consequência, uma errada interpretação e aplicação do direito aos factos que constituem a vexata quaestio recorrida.
IV. Encontra-se errada e incorrectamente julgada a matéria de facto dada como provada nos pontos 10, 12, 13, 14 e 16, a qual deveria ter sido dada como não provada. Tais pontos de factos incorrectamente julgados, impõem decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
V. Mormente, deve alterar-se o facto n.º 10 dado como provado: “A meio do prédio identificado em 5., desde tempos imemoriais, sempre existiu, a dividir o mesmo, um caminho por onde sempre se transitou para aceder, a pé, de carro, de tractor ou de veículos motorizados ou de tracção animal, quer ao lado esquerdo, quer ao lado direito do mesmo, em toda a sua extensão, no sentido sul norte.”
VI. Consta da prova documental junta aos autos que o dito prédio constituiu sempre uma única propriedade, a qual, assim se manteve, em regime de compropriedade, na proporção de metade indivisa para cada uma das famílias dos antepossuidores, ocorrendo a sua divisão apenas no ano de 2002. Esta prova documental, por se tratar de documento autêntico, faz prova plena nos termos dos arts. 369.º e 371.º do Código Civil, impondo decisão diversa da recorrida.
VII. De facto, enquanto os prédios ou fracções do mesmo prédio pertencerem ao mesmo dono, por imperativo da conhecida máximo nemini res sua servit, a servidão não existe, pois, no nosso ordenamento jurídico, não é admissível, a servidão do proprietário, pelo que deve tal facto ser dado como não provado.
VIII. Deve ainda dar-se como não provado o facto n.º 12: “Há mais de 30 anos, sem interrupção, quer os antecessores do autor quer os próprios, acedem à parte norte (zona agrícola) do prédio identificado em 1. Através do referido caminho, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, nomeadamente dos réus e seus antecessores, na convicção de exercerem um direito legítimo de passagem.”
IX. Porquanto foi feita confissão, em sede de depoimento de parte do Autor, que foi houve oposição à utilização do caminho de acesso por parte do Réu há sete ou oito anos. Para além disso, ao dar este facto como provado, a decisão ora em crise ignora a força probatória plena da caderneta predial junta na petição inicial (doc. n.º 1), que prova que o dito prédio constituiu sempre uma única propriedade, a qual, assim se manteve, em regime de compropriedade, na proporção de metade indivisa para cada uma das famílias dos antepossuidores, até 2002, ano em que ocorreu a separação em acção de divisão de coisa comum.
X. Devem os factos n.º 13 (“E aquando da divisão do prédio, no ano de 2002, os proprietários designaram que nesse específico local fosse deixado livre um trato de terreno com, pelo menos, 4,03m de largura e 50m de comprimento.”) e n.º 14 (“Trato de terreno este destinado à utilização comum dos respectivos proprietários, para que pudessem aceder aos terrenos hortícolas situados atrás das habitações que confinam com a Estrada Nacional ...5.”) ser dados como não provados.
XI. Não resulta da fundamentação da decisão de facto a motivação que permitiu ao tribunal a quo dar estes factos como provados, carecendo de efectiva fundamentação para o efeito, devendo, para além disso, observar-se o disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. d), do CPCiv.
XII. Ainda, foi dado como provado o facto n.º 16 (“Assim, tal trato de terreno, de uso comum, em terra batida, sempre esteve individualizado e demarcado, autonomizado dos terrenos que lhe são contíguos, há pelo menos mais de 20 anos, com sinais visíveis e permanentes da sua demarcação e uso e assim foi deixado entre ambos os prédios dos ora autores e réus, com as características e localização supra referidas).
XIII. Ora, resulta, do depoimento gravado das testemunhas indicadas que não existem quaisquer sinais visíveis da existência de qualquer servidão. Não existindo nem tendo resultado provado que exista um caminho, que o caminho de servidão fosse cuidado pelos Autores, pelo que deve tal facto ser considerado como não provado.
XIV. Os recorridos intentaram a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra os aqui recorrentes, peticionando (i) a condenação dos réus a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio rústico identificado no artigo 1.º da petição inicial, (ii) a declaração de que, a favor deste prédio, existe, sobre o prédio propriedade dos réus, identificado no artigo 4.º do mesmo articulado, uma servidão de passagem a pé, de carro, de tractor ou de veículos motorizados e de tracção animal, localizada na linha divisória de ambos os prédios, na direcção Sul/Norte, constituída, pelo menos, por uma faixa de terreno com a largura de 4,03 metros e o comprimento aproximado de 50 metros, constituída por usucapião, a exercitar, nos termos sobreditos, (iii) a reposição, nos termos sobreditos, da aludida servidão de passagem.
XV. Os autores foram convidados a aperfeiçoar a petição inicial, por forma a que os autos possibilitassem um enquadramento do litígio à luz da servidão por destinação do pai de família, nos termos do artigo 1547.º, n.º 1, do CC.
XVI. Inexistindo acordo entre as partes, não sendo a modificação da causa do pedir resultante de confissão efectuada pelos Réus e não constituindo a modificação do pedido o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, atento o que preceitua o artigo 265° n°s 1 e 2, do CPC, não se deveria ter admitido a alteração da causa de pedir e do pedido, efectuada no requerimento do aperfeiçoamento.
XVII. Nestes termos, o tribunal de que se recorre violou o preceituado no artigo 265.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC.
XVIII. A Mma. Juiz a quo julgou ter-se demonstrado que se constituiu por usucapião, um direito de servidão sobre o prédio dos recorrentes, para passagem, a pé, de carro, de tractor ou de veículos motorizados ou de tracção animal, quer ao lado esquerdo, quer ao lado direito do mesmo, em toda a sua extensão, no sentido sul norte.
XIX. Salvo o devido respeito, que é manifesto, o Tribunal a quo não fez justiça, e de forma alguma os Recorrentes se poderão conformar com tal decisão.
XX. A verificação da usucapião depende de dois elementos: são eles a posse e o decurso de certo período de tempo, variável conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa. Ademais, e para conduzir à usucapião, a posse tem sempre de ser pública e pacífica.
XXI. Certo é que o Recorrente marido, em sede de depoimento de parte, confessou que não tinha a convicção de utilizar o caminho como caminho de servidão e que o caminho pertencia ao prédio dos Recorrentes, servindo o seu prédio, referindo que aquela faixa de terreno lhe pertencia e que era sua propriedade. Ora, se é propriedade do seu prédio, não pode ser servidão do mesmo.
XXII. Para além disso, o Recorrido marido confessou que foi feita oposição à utilização do caminho de acesso há sete ou oito anos pelo Recorrente.
XXIII. Para mais, e conforme resulta provado no facto n.º 28, os réus, quando adquiriram o prédio, desconheciam a existência de qualquer servidão que onerasse aquele, o que, por si só, é facto demonstrativo da inexistência da referida servidão.
XXIV. De facto, alegam os Autores que, há mais de 30 anos sem interrupção, quer os antecessores dos Autores quer os próprios, acedem ao seu prédio através do referido trato de terreno, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém.
XXV. A ser verdade e por tal constituir um facto de crucial relevância na aquisição da compra de um prédio, os réus disso sempre seriam informados pelos vendedores, ou, se assim não fosse, certo é que aperceber-se-iam da existência da referida servidão no terreno, caso existissem quaisquer sinais visíveis e permanentes do invocado caminho.
XXVI. Note-se ainda que, a partir do momento em que o legislador permitiu a aquisição de servidões de passagem por usucapião, a lei exigiu factos inequivocamente demonstrativos da existência de situações duradouras e vinculativas, isto é, a existência de sinais visíveis e permanentes, demonstrativos da inexistência de uma situação precária originada por actos de mera tolerância.
XXVII. Verificou-se na inspecção ao local no dia 20 de Março de 2024 que não existem quaisquer sinais visíveis e permanentes no terreno do prédio dos Réus que mostrem a existência de uma servidão de passagem, senão no momento da instauração da acção, pelo menos no passado recente.
XXVIII. Falam os autores na existência uma rodeira, um caminho, porém, sabe-se que não basta existirem sinais visíveis, designadamente por o caminho ter sido “feito em terra batida”, para se poder ou dever concluir que os mesmos eram ou foram permanentes.
XXIX. Não resulta dos factos provados qualquer factualidade, nomeadamente obras ou edificações (sinais visíveis e permanentes no prédio dos Recorrentes), que sejam reveladores da existência de uma servidão de passagem a favor do prédio dos Recorridos.
XXX. O referido prédio rústico foi adquirido em regime de compropriedade, na proporção de metade indivisa para cada uma das famílias dos referidos antepossuidores, ocorrendo a sua divisão apenas no ano de 2002, em acordo celebrado em acção de divisão de coisa comum, que correu termos pelo Tribunal de Mirandela sob o nº .../98.
XXXI. Resulta, assim, das certidões juntas aos autos que a data da autonomização dos prédios em dois foi à data do trânsito em julgado da sentença, facto esse que sempre nos reconduz a Setembro de 2002. Esta prova documental, por se tratar de documento autêntico, exarado por oficial público, faz prova plena nos termos dos arts. 369.º e 371.º do Código Civil.
XXXII. Ora, como se sabe, não pode ocorrer uma servidão de passagem entre o mesmo prédio, pelo que não se concebe como pode o tribunal a quo sustentar que “Há mais de 30 anos, sem interrupção, quer os antecessores do autor quer os próprios, acedem à parte norte (zona agrícola) do prédio identificado em 1. através do referido caminho, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, nomeadamente dos réus e seus antecessores, na convicção de exercerem um direito legítimo de passagem (…)”.
XXXIII. Conforme jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa, Ac. de 20-10-2013, Proc. n.º 1183/10.7TBTVD.L1-1, Relator Afonso Henrique “Enquanto os prédios ou fracções do mesmo prédio pertencerem ao mesmo dono, por imperativo da conhecida máximo nemini res sua servit, a servidão não existe, pois, no nosso ordenamento jurídico, não é admissível, a servidão do proprietário.”
XXXIV. Pelo que o tribunal a quo, ao decidir como decidiu, ou seja, que antes do ano de 2002 existia uma servidão de passagem no prédio dos recorrentes a favor dos recorridos, violou disposições legais imperativas, em particular os artigos 369.º e 371.º do Código Civil.
XXXV. Entre a data da autonomização do prédio em dois, em 2002, e a oposição à passagem dos recorridos em 2016, não decorreu o prazo necessário para que se constituísse uma servidão de passagem por usucapião, razão pelo qual ao declarar a constituição da servidão de passagem por usucapião, a sentença de que se recorre violou o preceituado no artigo 1296.º do Código Civil.
XXXVI. O que se verifica antes é que tais antepossuidores beneficiariam apenas de uma passagem por tolerância através do prédio hoje do Réus, resultante da boa vontade destes. Isto é, os antecessores dos Réus consentiriam na passagem pelo seu terreno, mas apenas por favor e não de modo juridicamente vinculativo.
XXXVII. O que se traduz apenas num acto de mera tolerância, consentido jure familiaritatis, que não reflecte, ainda assim, uma relação possessória capaz de conduzir à usucapião.
XXXVIII. Invoca ainda o tribunal a quo que “De qualquer das formas, resulta provado, atenta a factualidade dada como provada sob os n.ºs 18 a 20, que, por documento particular autenticado, foi estabelecida uma servidão por acordo entre os proprietários dos prédios abrangidos, entre os quais o aqui réu, nos termos do artigo 1543.º do Código Civil, ou seja, foi imposto um encargo no prédio dos réus em benefício exclusivo do prédio do autor. (…)”.
XXXIX. Andou mal o tribunal a quo ao decidir como decidiu, porquanto aquele documento foi subscrito pelo réu desacompanhado da ré, pelo que tal documento é, ab initio, nulo por falta de forma, na medida em que se verifica necessária a vinculação da Ré, porque casada com o Réu e porque tal prédio também é sua propriedade. O tribunal a quo ignorou a observância daquele formalismo legal, violando o preceituado no artigo 220.º do Código Civil.
XL. Note-se ainda que, a constituição da servidão de passagem por destinação de pai de família, como pretendia acautelar o tribunal a quo no despacho de convite ao aperfeiçoamento, não pode ocorrer, pois não foram dados como provados a existência de factos conducentes à existência de sinais visíveis e permanentes, reportados ao tempo da separação do domínio dos prédios.
XLI. Ora, a concreta configuração do alegado caminho ali existente não revela características inerentes a um uso sedimentado ou efectivo do mesmo, de forma que qualquer pessoa pode apreender que aquele é um local de passagem habitual, pelo menos para os prédios de recorrentes e recorridos.
XLII. Não basta existirem sinais visíveis, designadamente por o caminho ter sido feito em terra batida, para se poder ou dever concluir que os mesmos eram ou foram permanentes.
XLIII. Pelo que, não tendo resultado provado a existência de qualquer sinal permanente no ou sobre o prédio dos Recorrentes, não é possível constituir-se a respectiva servidão de passagem por destinação de pai de família.
XLIV. Ao declarar constituída a servidão de passagem, caso tenha sido a intenção do tribunal a quo que esta fosse declarada por destinação de pai de família, violou aquele tribunal o preceituado no artigo 1549.º do Código Civil.
XLV. Na decorrência do atrás exposto, o tribunal errou no julgamento, decidindo contra os factos apurados.
XLVI. O douto Tribunal a quo não considerou provados os factos descritos nos pontos precedentes, sendo certo que da prova produzida, quer documental, quer testemunhal, resulta orientação diferente.
XLVII. Para além disso, a Meritíssima Juiz a quo, na fundamentação da decisão ora em crise, valorou o depoimento dos Autores enquanto declarações de parte, sendo certo que as declarações de parte não foram requeridas em qualquer momento, quer pelos Autores, quer oficiosamente, pelo que sempre errou no julgamento.

Os autores / recorridos apresentaram as suas contra-alegações. Terminam com as seguintes conclusões:

I. Damos aqui por integralmente reproduzida e integrada, a [IV. Decisão], de fls., da Sentença, proferida nestes autos de Acção Declarativa com Processo Comum.
II. Sentença, à qual, aderimos na integra, pela elevação com que é proferida, por traduzir a acertada aplicação do direito e um elevado sentido de justiça.
III. Os Recorrentes, delimitam o objecto do Recurso, circunscrevendo-o em torno das seguintes questões de facto de direito:
1. Da alteração da matéria de facto dada como provada – facto n.º 10, n.º 12, n.º 13, n.º 14, n.º 16;
2. Da servidão da passagem em benefício do prédio identificado em 1 da factualidade dada como provada;
2.1. Da servidão por usucapião;
2.2. Da servidão por contrato;
2.3. Da servidão por destinação de pai de família;
3. Do erro de Julgamento.

1. DA ALEGADA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA – FACTO N.º 10, N.º 12, N.º 13, N.º 14 E N.º 16
IV. Os Recorrentes, laboram certamente em erro, quanto atravessaram as motivações de recurso e as suas conclusões, quanto a esta questão, ao sustentarem [(…) errada e incorrectamente julgada a matéria de facto dada como provada nos pontos 10, 12, 13, 14 e 16, a qual deveria ter sido dada como não provada.]
V. O diagnóstico levado a cabo pelo tribunal a quo, quanto à apreciação destes factos, não sofre reparo.
VI. Pois bem, não acompanhamos, por isso, e ressalvando todo o respeito que nos merece, posição contrária, o entendimento plasmado quanto a esta questão de facto nas motivações de recurso dos Recorrentes.
VII. Começamos por dizer que não assiste razão aos Recorrentes, uma vez que, tentam apagar (em benefício da sua tese), da sentença os factos considerados provados e não provados pelo tribunal a quo.
VIII. Esquecendo-se do disposto no artigo 342º do CC e do disposto no artigo 3º, n.º 3 do CPC – ónus da prova e princípio do contraditório.
IX. Isto é, os Recorrentes, em sede de recurso, não só, não reconhecem a insuficiência da contraprova que lhes competia fazer em julgamento, tendente a demonstrarem a inexistência do direito invocado pelos Recorridos, como ainda, pretendem diminuir ou ignorar a prova produzida pelos Recorridos.
X. Os Recorrentes, socorrem-se essencialmente de partes dos depoimentos do A. AA – desvirtuando o depoimento deste -, e de duas das testemunhas dos R.R., EE e FF, que transcrevem, descontextualizando-os (os depoimentos), fazendo crer (parecendo) que em audiência de julgamento, apenas estas duas testemunhas prestaram depoimento!
XI. Diminuindo em absoluto, os depoimentos prestados por outras testemunhas, designadamente as testemunhas arroladas pelos A.A., que contribuíram decisivamente para a descoberta da verdade e terão convencido o tribunal a quo a acolher a pretensão dos Recorridos.
XII. Aliás, a este respeito ainda (produção de prova), convém salientar, que os Recorrentes fazem “tábua rasa” da inspecção ao local - não sopesando nos seus argumentos, por conveniência -, realizada pelo tribunal a quo, e que no nosso modesto entendimento, terá sido determinante para a formação da convicção do tribunal a quo.

[C – Motivação da decisão de facto
A convicção do tribunal sobre a matéria de facto alicerçou-se (…) e com aquilo que foi directamente percepcionado pelo tribunal aquando da inspecção ao local realizada.] O sublinhado e o negrito são nossos.
XIII. É pertinente, a nobreza de raciocínio e a excelência da descrição feita pelo tribunal a quo, desde logo, quanto à prova da [(…) factualidade vertida nos pontos 10., 12., 13., 14., e 16.] – veja-se págs. 5 e 6, para onde convocamos o espírito deste Venerando tribunal.
XIV. Vejamos,
XV. No caso vertente, consideram os Recorrentes que não deveriam ter sido dados como provados os factos 10., 12., 13., 14., 15. E 16..
XVI. Com a impugnação dos factos 10., 12., 13., 14., 15. E 16., pretendem os Recorrentes colocar em crise a análise da prova que foi produzida pelo tribunal a quo quanto à existência e configuração da servidão de passagem a favor do prédio dos A.A., e a onerar o prédio dos R.R..
XVII. A prova produzida a este respeito consistiu na inspecção ao local realizada, nas declarações de parte prestadas, respectivamente, pelos A.A., e nos depoimentos das testemunhas.
XVIII. O tribunal a quo, fundamentou esmeradamente, a sua convicção quanto à matéria de facto (provada e não provada) – artigo 396.º do Código Civil – v. transcrição supra.
XIX. Pois bem, ao invés, da análise de toda a prova produzida, formamos convencimento inteiramente coincidente com o do tribunal a quo.
XX. Na verdade, ressalvado o devido respeito, é incumbência de quem impugna rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita pelo tribunal.
XXI. Para tal não basta sinalizar a existência de meios de prova em sentido divergente, havendo que aduzir argumentos no sentido de infirmar directamente os termos do raciocínio probatório adoptado pelo tribunal, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorrecto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente.
XXII. Dito de outro modo, não é suficiente assinalar que existe um meio de prova em sentido diverso do aceite como prevalecente pelo tribunal, sendo necessário desconstruir a apreciação crítica da prova realizada.
XXIII. Tal não sucedeu, os impugnantes não aportaram argumentos válidos nem provas bastantes que conduzam a diferente decisão, indicando passagens de depoimentos que foram tidos em conta pelo tribunal na sua motivação e aí devidamente escalpelizados, fazendo “tábua rasa” de toda a restante prova produzida. Improcede, assim a impugnação destes factos.
XXIV. Pelo que, da subsunção jurídica dos factos ao direito a alteração do mérito da decisão, nos termos propugnados pelos Recorrentes, estava dependente da modificabilidade da matéria de facto.
XXV. Permanecendo esta incólume, como no nosso modesto entendimento deve permanecer, a consequência será, salvo o devido respeito por melhor opinião, a improcedência da apelação.
XXVI. Acresce ainda que, o tribunal a quo, entendeu e muito bem que os R.R., [(…) agiram em manifesta má-fé.].
[De facto, como resulta da factualidade provada, após a aquisição do prédio identificado em 3., os réus foram alertados pelos autores para o facto de o mesmo se encontrar onerado com uma servidão de passagem a favor do prédio identificado em 1. Nessa sequência, o réu celebrou o contrato mencionado em 18. e solicitou a autorização do autor para proceder nos termos descritos em 22. na condição de lhe fornecer uma chave, por forma a manter-se o acesso ao caminho em causa.
Porém, o réu pretendeu apenas obstar à oposição do autor à construção do muro e colocação do portão, nunca tendo tido intenção de cumprir a palavra assumida, ou seja, entregar qualquer chave ao autor (cfr. factos provados sob os n.ºs 29 e 30).
Ora, após uma tal censurável conduta, vêm ainda, no âmbito dos presentes autos, procurar negar a servidão em causa, procurando ainda negar a validade e os efeitos de um contrato validamente celebrado.
Como explanado acima, a invocação da nulidade de um determinado documento que corporiza um compromisso que assumiu com o autor, com fundamento na mera falta de intervenção, no mesmo, da sua mulher – e tendo deixado que os autores ficassem convencidos de que o acordo ia ser respeitado, tanto mais que permitiram a construção de um muro e colocação de um portão com a condição de lhes ser entregue uma chave, o que nunca feito, numa atitude altamente censurável -, constitui uma clara violação do princípio da boa-fé.
Por outro lado, ainda, importa considerar a manifesta falta de colaboração dos réus com o Tribunal, porquanto nem sequer facultaram a chave do portão para possibilitar a realização da inspecção judicial ao local que havia sido determinada. O que, embora não tenha impedido a realização da mesma, é certo que a dificultou em grande medida.
A conduta processual dos réus afigura-se, pois, violadora dos princípios da cooperação e da boa fé.
Ademais, apresentaram um comportamento processual reprovável, na medida em que, com dolo, apresentaram uma defesa de cuja falta de fundamento estavam perfeitamente conscientes e absolutamente contrária à sua conduta anterior, aquando da subscrição do documento referido em 18.
Acresce que os réus foram ainda mais longe ao procurar obter, antes, a condenação dos autores – que actuaram em todo o processo de acordo com os deveres processuais a que estavam obrigados, procurando fazer valer direitos legítimos, e actuando com lisura - como litigantes de má-fé.
Assim sendo, parece-nos intolerável, a bem da justiça – e sob pena de degradação desta -, a complacência com uma tal actuação processual, a qual exige consequências. Aliás, “não actuar, não tirar consequências, deixar passar em claro este comportamento seria premiá-lo com a indiferença” (cfr. acórdão da Relação de Lisboa de 08.11.2022, disponível em www.dgsi.pt).
Estamos perante um daqueles casos em que “a generalidade das pessoas ou todas as pessoas, pertencentes à categoria social e intelectual da parte real, colocadas naquela situação em concreto, ter-se-iam abstido de litigar, uma vez que, cumprindo os seus deveres de indagação, teriam concluído não terem, quer a pretensão, quer a defesa, fundamento” (Paula Costa e Silva, em “A Litigância de Má Fé”, pág. 395).
Não há dúvidas, pois, que os réus agiram, conscientemente, com dolo, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, deduzindo, contestação cuja falta de fundamento não podiam ignorar.
Pelo que têm de ser condenados como litigantes de má fé. Como resulta do preceituado no artigo 542.º, n.º 1, do CPC, a litigância de má fé pode conduzir à aplicação ao litigante de duas sanções: multa e uma indemnização à parte contrária.
Como se sublinha no acórdão da Relação de Lisboa de 08.11.2022, disponível em www.dgsi.pt: “O sujeito passivo da litigância de má fé é - em última análise – o Tribunal, pelo que se exigem consequências para as utilizações maliciosas, malévolas e abusivas do processo que desrespeitam o interesse público de respeito por este e pela própria Justiça, só assim se reforçando a soberania dos Tribunais, o respeito pelas suas decisões, a sua credibilidade e o prestígio da Justiça”.
Assim, devem os réus ser condenados em multa, a fixar entre 2 (duas) UC e 100 (cem) UC (cfr. artigos 542.º, n.º 1, do CPC, e 27.º, n.º 3, do RCP).
Ponderando a intensidade da má-fé em causa – note-se, como vimos, que não se trata de mera negligência, ainda que grosseira, tendo os réus actuado com dolo -, e a gravidade da conduta – particularmente gravosa na falta de colaboração com o próprio Tribunal -, considerando a referida moldura, temos como justa e adequada a fixação de uma multa de 4 (quatro) unidades de conta.] o negrito e os sublinhados são nossos com excepção do negrito na pág. 27 que pertence ao punho da Mtma.ª Juíza a quo!!!

2. DA SERVIDÃO DE PASSAGEM EM BENEFÍCIO DO PRÉDIO IDENTIFICADO EM 1 DA FACTUALIDADE DADA COMO PROVADA
Da servidão por Usucapião
XXVII. Da servidão predial de passagem
A lei define a servidão predial como sendo um encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de um outro prédio pertencente a dono diferente (cf. artigo 1543.º do Código Civil).
XXVIII. A servidão implica, assim, uma relação de dependência entre dois prédios: de um lado o dominante, em cujo proveito ela se estabelece; do outro o serviente, onerado com o encargo em que ela se traduz.
XXIX. Não se pode rigorosamente delimitar o conteúdo das servidões, já que estas podem, em princípio, ter como conteúdo, toda e qualquer utilidade (ainda que futuras ou incertas) que um prédio pode prestar a outro (cf. artigo 1544.º do Código Civil).
XXX. E daí que o nosso ordenamento jurídico contemple uma panóplia de tipos de servidão, tais como servidões de passagem (que é aquela que está em causa nestes autos) de vistas, de águas, de aqueduto, de presa de escoamento, de estilicídio, etc.
XXXI. A servidão confere, assim, ao seu titular, poderes para fruir e utilizar a coisa, extraindo dela benefícios e limitando, em consequência, o gozo do proprietário da coisa.
XXXII. E, desse modo, a servidão é, portanto, um direito real de gozo (ius in re aliena) sobre coisa alheia, limitando o gozo efectivo do proprietário dessa coisa, na medida em que inibe este titular de praticar actos que possam prejudicar o exercício daquele direito, em benefício do titular do direito de servidão, benefício esse que se traduz em utilidades para o dono do prédio dominante, mas que este só pode gozar, como tal, por intermédio do seu prédio.
XXXIII. É, pois, isso que resulta da análise dos supra referidos normativos legais, sobretudo do primeiro, e que se desdobra em quatro notas conceituais:
a) a servidão é um encargo;
b) encargo esse que recai sobre um prédio;
c) que aproveita exclusivamente a outro prédio;
d) devendo os prédios (o beneficiado e o onerado) pertencerem a donos diferentes
–muito embora não tenham, necessariamente que ser contíguos e nem sequer vizinhos (para maior desenvolvimento, que no caso não se impõe, vide, entre outros, JOSÉ LUÍS SANTOS in Servidões Prediais. 2.ª edição, Coimbra Editora, págs. 12 e ss.; PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA in Código Civil Anotado, 2.º Vol. 2.ª edição, Coimbra Editora, págs. 613 e ss.)
XXXIV. Nos termos do disposto no artigo 1547.º do Código Civil, as servidões podem, entre outros vários títulos, ser constituídas por usucapião (que é a que aqui nos importa abordar por ser aquele em causa nestes autos, por ter sido invocados pelos A.A.).
XXXV. Porém, só é legalmente possível constituir, por usucapião, servidões (neste nosso caso de passagem) desde que as mesmas se revelem por sinais visíveis e permanentes, excluindo-se, assim, as servidões não aparentes (cf. artigo 1548.º, n.º s 1 e 2, do Código Civil).
XXXVI. Com tal exigência (de sinais visíveis e permanentes para a constituição de uma servidão por usucapião) visou-se afastar a aquisição do respectivo direito com base em actos de mera tolerância e clandestinos praticados pelo proprietário do prédio pretensamente dominante sobre o serviente e facilitar as relações de boa vizinhança. Com tal norma, o legislador quis eliminar os títulos precários e passou a exigir, para a constituição da servidão, sinais visíveis (destinados a garantir a não clandestinidade) e permanentes (por forma a revelarem inequivocamente a posse da servidão).
XXXVII. Assim, e como escrevem os profs. Pires de Lima e Antunes Varela (in ob. cit. pág. 630), para que uma servidão de passagem possa ser adquirida por usucapião é indispensável a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício, tais como um caminho, uma porta ou um portal de comunicação entre o prédio dominante e o serviente, etc.
XXXVIII. Porém, o requisito da permanência não exige a continuação no tempo dos mesmos sinais ou das mesmas obras. Indispensável é apenas a permanência de sinais, sendo admissível a sua substituição ou até transformação.
XXXIX. Ora, a aquisição de um direito de servidão de passagem, por via do instituto da usucapião, dá-se nos termos do artigo 1287.º do Código Civil, onde se estatui que “a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação”.
XL. Aliás, a esse propósito, escrevem profs. Pires de Lima e Antunes Varela (in ob. cit. pág. 631): “os termos em que os arts. 1287.º e seguintes se referem à usucapião (baseada na posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo) torna hoje indiscutível a tese (…) segundo a qual as condições que na posse se requerem para a prescrição, bem como o prazo em que, segundo as condições da posse, a prescrição tem lugar, são os mesmos que na aquisição da propriedade”.
XLI. Como é sabido, a usucapião é uma das formas de aquisição originária dos direitos (reais de gozo), cuja verificação depende de dois elementos: a posse (corpus e animus) e o decurso de certo período de tempo, variável consoante a natureza móvel ou imóvel da coisa, e as características da posse [(cf. nomeadamente artigos 1251.º e ss., 1256.º e ss. e 1294.º e ss., todos do Código Civil), sendo que, nos termos do disposto no artigo 1297.º do Código Civil, se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da usucapião só começam a contar-se desde cessação da violência ou desde que a posse se torne pública.
XLII. No que concerne àquele primeiro elemento, a posse, traduz-se na prática, além do mais, reiterada, de actos materiais correspondentes ao direito que se reclama ou se reivindica.
XLIII. Nesse domínio, o nosso ordenamento jurídico, aderiu à concepção ou corrente subjectivista da posse (cf. artigos 1251.º e 1253.º do Código Civil). Nesses termos, como elementos da posse fazem parte o corpus, que, como elemento externo, se identifica com a prática de actos materiais sobre a coisa, ou seja, com o exercício de certos poderes de facto sobre o objecto, de modo contínuo e estável, e o animus que, como elemento interno, se traduz na vontade ou intenção do autor da prática de tais actos se comportar como titular ou beneficiário do direito correspondente aos actos realizados. Elementos esses cuja presença simultânea se exige permanentemente, para que possa haver, na sequência da prática reiterada e contínua de actos materiais de posse, a aquisição, por via da usucapião, do correspondente direito ao exercício de tais actos. É que se só se verificar a presença daquele primeiro elemento (o corpus), a situação configura apenas uma mera detenção (precária), insusceptível de conduzir à dominialidade, ou seja, ao direito real de gozo que se reclama (cf. artigo 1253.º do Código Civil).
XLIV. Porém, considerando a dificuldade de demonstrar a posse em nome próprio, ou seja, do referido animus, a lei estabeleceu uma verdadeira presunção (iuris tantum) do mesmo a favor de quem detém ou exerce os poderes de facto sobre a coisa. Ou seja, presume-se que quem tem o corpus tem também o animus (cf. artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil, e assento, hoje acórdão uniformizador de jurisprudência, do S.T.J.
de 14/05/96, in D.R., II Série, de 24/6/96, e ainda acórdãos do S.T.J. de 09/01/97 e de 02/05/99, respectivamente, in C.J./S.T.J., T5 – 37 e C.J./S.T.J., T2 – 126). Pelo que, assim, podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.
XLV. Cumpre ainda referir que, como regra, será pelo respectivo título que serão reguladas, no que concerne à sua extensão e exercício, as servidões (cf. artigo 1564.º do Código Civil). É o chamado princípio da conformação da servidão com o título, sendo que na usucapião vigora a máxima tantum praescriptum quantum possesum.
XLVI. Resta, ainda, dizer - nesta primeira abordagem, de cariz teórico-técnico, ao tema que envolve o caso em apreço – que constituem causas de extinção do direito de servidão predial a confusão, o não uso, a usucapio libertatis, a renúncia, a caducidade, a desnecessidade e a remição.
XLVII. Com efeito, este encargo representa uma excepção ao princípio geral do conteúdo, tendencialmente, ilimitado do direito de propriedade, consagrado pelo artigo 1305.º do Código Civil, o qual, portanto, enquanto excepção, deve extinguir-se, o mais breve possível, de modo a que o direito de propriedade retome a sua plenitude, de acordo com a sua vocação originária.
XLVIII. De facto, a finalidade do artigo 1569.º do Código Civil, consiste em libertar os prédios onerados de encargos desnecessários que os desvalorizam, sem que, em contrapartida, valorizem o prédio dominante.
XLIX. Feito este enquadramento legal, voltemos a nossa atenção para o caso em apreço.
L. Deste, temos que, nos autos, o título constitutivo da servidão de passagem que os A.A. defendem ter direito, corresponde à usucapião.
LI. Atentos os factos que resultaram provados, nada obsta à constituição da pretendida servidão por essa via, já que ficou provada a existência de sinais aparentes e permanentes reveladores do seu exercício pelo prédio dos Réus a favor dos prédios dos Autores e, portanto, de que não se trata de uma servidão não aparente - cfr. pontos 10. A 16. dos factos provados.
LII. Consequentemente, mostram-se preenchidos os requisitos de que depende, por via desse instituto, a aquisição constitutiva de tal direito de servidão de passagem: a posse e o decurso do prazo ou tempo legal.
LIII. No que concerne ao primeiro elemento, a posse, compulsando a matéria factual dada como assente, verificamos, desde logo, que ambos os elementos que a integram – o corpus e o animus - se mostram provados. Na verdade, ficou provada a prática, há mais de 20 anos, de forma reiterada e contínua, de actos materiais reveladores do exercício do reclamado direito de servidão de passagem, ou seja, a prática pelos A.A., e seus antecessores de actos materiais reveladores da utilização do prédio da ré como passagem para o seu prédio, na convicção de que está a exercer um direito que lhe assiste - cfr. pontos 10. A 16. dos factos provados.
LIV. Ainda que não tivesse resultado provado o segundo daqueles elementos, ou seja, ainda que faltasse a prova dos factos correspondentes ao animus (o que, de todo, não é o caso dos autos) - traduzido na intenção de agirem como se fossem titulares do direito correspondente àqueles actos praticados, ou seja, como se, na realidade, lhes assistisse o direito de passagem sobre o prédio dos R.R. - pelas razões que acima deixámos expressas, sempre o corpus faria, à luz do disposto no artigo 1252.º, n.º 2, do Código Civil, presumir o animus. E, essa presunção não foi ilidida pelos R.R., tal como lhes competia, nomeadamente através da prova de que aqueles actos materiais de passagem pelo seu prédio para o prédio dos A.A., são praticados devido a mera tolerância, ou que estes não efectuam tal passagem, assumindo-se como se, na verdade, beneficiassem de um direito que ali lhes permite passar, sendo certo que quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (cfr. artigo 350.º, n.º s 1 e 2, do Código Civil).
LV. Logo, aqui chegados, e verificada a posse, convém indagar se efectivamente se verifica o decurso do prazo legalmente exigido para que os A.A. possam ter adquirido o correspondente direito de passagem por via do instituto da usucapião, sendo certo que esse elemento, tal como os outros, é constitutivo do seu reclamado direito de servidão de passagem (cf. artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
LVI. No caso em apreço, dado que estamos perante uma posse não titulada, e que não existe registo da mesma ou do direito em causa, deve aquela presumir-se de má-fé, tornando-se, assim, necessário o decurso do prazo de 20 anos, sobre o início de tal posse, para a constituição do aludido direito de servidão de passagem (cf. artigos 1260.º, n.º 2, e 1296.º do Código Civil).
LVII. Apesar do acabado de referir em nada obstar, face à factualidade provada, à verificação in casu do decurso do prazo legalmente exigido para que os A.A. possam ter adquirido por usucapião o correspondente direito de passagem, sempre caberá referir que tal presunção de má-fé resultou ilidida da matéria factual dada como assente, desde logo pelo facto de ter resultado provado que os mesmos sempre utilizaram o referido caminho convictos de que estavam a exercer um direito que lhes assistes e na convicção de que não lesa direitos ou interesses de outrem (cf. artigo 1260.º, n.º 1, do Código Civil) – cfr. ponto 20. e ponto 21. dos factos provados.
LVIII. Da matéria factual assente resulta também provado que tal posse vem sendo exercida, ininterruptamente, há mais de 20 anos [cfr. ponto 20 dos factos provados].
LIX. Porém, tal como decorre do acima já exarado, para que tal prazo se iniciasse, necessário se torna que tal posse fosse pacífica e pública, pois que se o não fosse, isto é, se fosse exercida ou constituída com violência e fosse tomada ocultamente, tal prazo para a usucapião só se iniciaria a partir do momento em que cessasse a violência ou a posse se tornasse pública (cf. artigo 1297.º do Código Civil).
LX. A prova de que se trata de uma posse pacífica e pública (cf. artigos 1261.º, n.º 1, e 1262.º do Código Civil) compete, em princípio, aos A.A., como facto constitutivo do seu alegado direito. Ora, compulsando a matéria factual dada como provada, verifica-se que resultam provados esses dois caracteres da posse, na medida em que resultou provado que os Autores e os anteriores proprietários dos prédios referidos em 1) e em 2) dos factos provados sempre utilizaram o referido caminho de modo a poder ser constatado por todos e sem qualquer oposição [cfr. pontos 14., 15, 16., 18. e 19., dos factos provados].
LXI. Ainda que tais caracteres não tivessem resultado provados, sempre haveria que ter em conta, no caso em apreço, o estatuído no artigo 1268.º do Código Civil. É que tal normativo preceitua, no seu n.º 1, que “o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”.
LXII. Direito esse que naturalmente terá que corresponder ao tipo de posse que foi ou é exercida pelo possuidor, e que no caso em apreço diz respeito ao direito de servidão de passagem constituída sobre o prédio dos R.R. favor do prédio dos A.A. (cfr., a propósito, profs. Piores de Lima e Antunes Varela, in ob. cit., págs. 34/35, notas 2 e 3, e Álvaro Moreira e Carlos Fraga segundo as preleções do prof. Mota Pinto ao 4.º ano jurídico, ano 1970/1971, in Direitos Reais, 4.ª Edição, Livraria Almedina, págs. 204/205). Presunção essa que, à semelhança daquela anterior que resulta directamente do corpus, neste domínio da posse tem grande relevância para se chegar ao direito reclamado, em que muitas vezes a prova directa se apresenta difícil.
LXIII. Tal presunção legal é ilidível e, à semelhança daquela anterior, faz inverter o ónus de prova, que a tal propósito impendia sobre os Autores, revertendo-o, assim, contra os Réus, pois quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz (cf. artigo 350.º, n.º s 1 e 2, do Código Civil).
LXIV. Logo, seria sobre os R.R. que passaria a impender o ónus de provar a inexistência do direito de servidão de passagem reclamado pelos Autores, e nessa medida, que o prazo legal para a constituição desse direito de servidão, por usucapião, ainda não havia decorrido, por, nomeadamente, se tratar de uma posse violenta e/ou oculta.
LXV. Assim, não tendo os R.R. ilidido tal presunção legal, sempre se tem de concluir pela existência de uma servidão de passagem constituída, por usucapião, sobre o prédio desde, melhor identificado no ponto 13.) dos factos provados, a favor dos prédios dos A.A., melhor identificados nos pontos 1) dos factos provados.
LXVI. Sendo assim, deverá ser reconhecida a existência e constituição, sobre o prédio dos R.R. da servidão de passagem a pé e de carro, de trator e por animais, [(…) por usucapião, (…)] a favor dos referidos prédios dos A.A., o que implica a improcedência do presente recurso, manter-se a decisão recorrida e assim, serem os R.R. condenados a reconhecer a existência de tal servidão, a respeitá-la nos seus exactos termos, deixando-a livre e desimpedida, designadamente, abstendo-se de praticar quaisquer actos que impeçam os A.A. e/ou pessoas a seu mando, de a utilizarem, [(…) com a configuração plasmada nos factos 10 a 16 da factualidade provada.] – v. parágrafo terceiro, pág. 18 da sentença.
Da Servidão por Contrato
LXVII. Sem prescindir, e caso assim, não seja entendido, com muito bem disse o tribunal a quo, [(…) sempre se verificaria a constituição da servidão por contrato, (…)].
LXVIII. Vejamos o que nos diz a sentença:
[Neste conspecto, não assiste razão aos réus quando invocam a ilegitimidade das partes que subscreveram o documento aludido em 18. da factualidade provada. Referem, a propósito, em primeiro lugar, que o mesmo foi subscrito pelo réu desacompanhado da ré, também proprietária do imóvel onerado com a servidão, e, em segundo lugar, que também os outorgantes GG e AA não eram os proprietários do prédio identificado em 1.
Quanto a este último ponto, considerando a factualidade dada como provada sob os n.ºs 1 e 2, resulta manifesta a falta de fundamento do invocado, pois que se afigura óbvio que GG subscreveu o documento enquanto proprietário do prédio e na qualidade de herdeiro de HH, qualidade na qual o fez igualmente o aqui autor.
Quanto ao facto de a ré não ter subscrito tal documento, a sua invocação afigura-se patentemente abusiva, dispensando, pois, muita análise.
De facto, a invocação da nulidade de um determinado documento que corporiza um compromisso que assumiu com o autor, com fundamento na mera falta de intervenção, no mesmo, da sua mulher – e tendo deixado que os autores ficassem convencidos de que o acordo ia ser respeitado, tanto mais que permitiram a construção de um muro e colocação de um portão com a condição de lhes ser entregue uma chave, o que nunca feito, numa atitude altamente censurável -, constitui um claro abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por violação do princípio da boa-fé.
Assim, sempre se verificaria a constituição da servidão por contrato, mediante o mencionado documento, o qual assume a natureza de documento particular autenticado, logo, com força probatória equiparada à dos documentos autênticos (cfr. artigo 377.º do CC).] – o sublinhado e o negrito são nossos.
Da Servidão Por Destinação de Pai de Família
LXIX. Fica prejudicada a contra motivação de recurso nesta parte, porquanto, não obstante, os autos permitirem o reconhecimento da constituição por Destinação de Pai de Família, perante, o convite ao aperfeiçoamento e a admitida ampliação do pedido, a sentença, não se pronunciou quanto a esta questão de direito.
3.ERRO DE JULGAMENTO
LXX. Invocam os Recorrentes que, [Na decorrência do atrás exposto, o tribunal errou no julgamento, (…)].LXXI. Há erro de julgamento (error in judicando), ou seja, erro quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má percepção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, designadamente na aplicação das normas relativas à constituição da servidão lega de passagem por usucapião.
LXXII. Quanto a isto, nesta parte também, nada há que apontar à sentença; excepto se, seguíssemos o caminho das sinistras cogitações dos Recorrentes, aduzindo ao recurso, factos e interpretações impossíveis, por não terem nenhuma correspondência com a verdade da prova produzida em audiência de julgamento.
LXXIII. Os Recorrentes despudoradamente, alegam que, [(…) o juiz disse o que queria dizer, mas decidiu mal, decidiu contra a lei ou contra os factos apurados, (…)] e ainda que, [(…) o (…) tribunal a quo não considerou provados os factos descritos nos pontos precedentes, sendo certo que a prova produzida, quer documental, quer testemunhal, resulta orientação diferente.]
LXXIV. Pois bem, sendo certo que, o julgamento dos factos é o ponto nevrálgico do iter processual, decalcando a metáfora de Calamandrei, reconhecemos que uma perfeita e irrepreensível sentença, com dezenas de páginas de elaborados argumentos jurídicos, convocando complexos institutos e citando versados doutores, proferida para uma realidade inexistente, será equiparável à operação feita com recurso às mais recentes técnicas da medicina nuclear ao paciente que não sofra de tal doença.
LXXV. Não é de todo, o que sucedeu no caso sub judice.
LXXVI. Queremos salientar, que um correcto diagnóstico está para o sucesso da operação como o julgamento de facto está para o acerto da decisão a obter a final.
LXXVII. Julgar de facto, é a complexa operação de interpretação da realidade trazida ao processo pelas partes, isto é, permitindo às partes fazer prova dos factos alegados nos articulados, com o respeito pelo princípio do contraditório (cuja prova produzida pelos Recorridos, neste recurso, os Recorrentes omitem), tendo em conta as regras de repartição do ónus da prova e fazendo uso dos poderes de investigação que a lei lhe confere, o julgador afere a verdade dos factos, julgando-os provados ou não provados, e assim demarcando a realidade objecto do litígio (o thema decidendum).
LXXVIII. Concretizando, o juízo probatório traduz-se, em processo civil, na resposta à base instrutória. Por certo que, todas as decisões que versem sobre a prova e sobre o julgamento dos factos deverão ser decisões judicativas, tal como o deve ser toda a decisão que se dirija à resolução de uma controvérsia prática – de um caso jurídico concreto. Nesta medida, também o juízo probatório é um juízo decisório, comportando, por isso, as comuns dimensões de decisão e de juízo.
LXXIX. Sabemos que, a subjectividade, já não é vista como uma patologia, mas como uma dimensão criadora intransponível. Por isso mesmo, não é esta dimensão decisória e subjectiva que nos leva a reflectir sobre a fundamentação enquanto mecanismo de sindicância do juízo probatório, mas sim, o já referido espaço de liberdade confiado ao julgador na valoração da prova, que passará em boa parte pela compreensão em termos adequados dessa liberdade.
LXXX. O estado de certeza da verdade, à qual, terá de corresponder sempre a uma probabilidade, manifesta-se num juízo de certeza prático-emocional que, não obstante a inapagável nota pessoal, não cai num subjectivismo arbitrário, mas é antes marcada pela “objectividade da vida”.
LXXXI. Ou seja, no decidir, o julgador convoca a sua experiência ou vivência pessoal, o que mais não é do que o património de saberes e experiências comum ou da comunidade em que se insere e que viabiliza o nosso conviver.
LXXXII. Do que dissemos, podemos concluir que, se o preferível é que o julgador seja um Homem/Mulher prudente, não o sendo, não poderá deixar de agir como tal. Nesta medida, o legislador procurou densificar o critério geral acolhido no artigo 607º, n.º 4, estabelecendo os critérios orientadores no n.º 5 da mesma norma do CPC.
LXXXIII. A decisão sobre a veracidade dos factos não se poderá basear em critérios irracionais, isto é, em intuições, palpites ou crenças; o julgador terá que decidir tendo em conta a prova produzida no processo.
LXXXIV. O tribunal a quo, não foi buscar outras provas, muito menos decidiu contra prova; os raciocínios ou inferências assentes, pela relação dos meios de prova entre si (análise) e pela relação destes com os factos (especificação), foram articulados de forma lógica e coerente na sentença.
LXXXV. Os raciocínios do tribunal a quo, apelam a um consenso, isto é, apelam a máximas comummente aceites, por forma a que possam ser considerados verdadeiros fundamentos; o julgador fez uma valoração conjunta e ponderada dos diferentes meios de prova, confrontando-os, por forma a que, ainda que de sentido contrário, daí resultou uma decisão linear e unívoca.
LXXXVI. Apesar destes critérios normativos densificadores do critério geral da “prudente convicção” em tudo se conserva a margem de discricionariedade do julgador, pelo que a valoração livre não saiu transformada numa valoração legal. Exemplificativamente, é ilustrativo o Ac. do TRC, de 01/10/2008, proc. n.º 3/07.4GAAVGS.C2, disponível em dgsi.pt: [IV – A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido de responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.].
LXXXVII. O que vem alegado, aplica-se a toda a apreciação que o tribunal a quo, fez relativamente a toda a prova testemunhal, bem como à prova documental junta aos autos – e, em particular, a inspecção ao local, que permitiu à Mtm.ª Juiz, ver in loco, as circunstâncias factuais invocadas por ambas as partes e formar o seu juízo de valor atinente à constituição da servidão de passagem.
LXXXVIII. Por fim, acresce que a fundamentação do direito, expendida ao longo de toda a sentença, é uma exaltação da correcta aplicação do direito e traduz o mais profundo e elevado sentido de justiça.
LXXXIX. Propugnam os Recorridos pela total improcedência do recurso.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber:
a) ocorreu erro no julgamento da matéria de facto;
b) ocorreu erro na aplicação do direito aos factos provados;

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:
1. O autor é dono e legítimo possuidor do prédio rústico composto por terra de cultura com vinha e árvores de fruto, sito na freguesia ..., concelho ..., que confronta a Norte com Ribeiro, Sul Estrada Nacional ...5, Nascente com II e Poente com JJ, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...09, descrito e inscrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...23.
2. O prédio identificado em 1 adveio à sua posse por herança dos progenitores do autor, GG e HH.
3. Os réus são donos e legítimos possuidores do prédio urbano composto de edifício destinado a habitação de ..., ... andar e anexo de ... com 124 m2, com confrontação a Norte com II, Sul com Estrada Nacional ...5, nascente com ... e Poente com GG, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...81, descrito e inscrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...16.
4. Prédio urbano este que adveio ao domínio e propriedade dos réus no ano de 2015, mediante aquisição no âmbito de um processo executivo.
5. No ano de 1979, KK e marido, II, e GG e falecida mulher, HH, adquiriram a LL e MM, na proporção de ½ indivisa, sem determinação de parte e direito, cada um dos casais, a propriedade do prédio rústico constituído por uma terra para batata, trigo e centeio com 11 oliveiras, sito no lugar da ..., limite da freguesia ..., concelho ...; confrontava do Norte com Ribeiro, Nascente com ..., Sul com Estrada e a Poente com JJ, e encontrava-se descrito na CRP ... pela freguesia ... sob o número ...54, a fls. 178v do livro ...14 e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...61.
6. LL e MM haviam adquirido o referido prédio, pelo menos no ano de 1964, a NN, JJ, OO e mulher, PP, QQ e mulher, JJ, RR e mulher, SS e TT e UU.
7. O prédio identificado em 5 foi formalmente dividido no ano de 2002, nos autos de processo de divisão de coisa comum que correram termos sob o n.º .../98, no ... juízo do Tribunal de Comarca de Mirandela, interpostos por acordo pelos antecessores das partes envoltas na presente demanda, de modo a formalizar e titular o que haviam convencionado verbalmente pelo ano de 1979.
8. De tais autos resultou a adjudicação por acordo da parcela ...09 aos antecessores do autor, GG e HH e da parcela ...10 aos antecessores dos réus, por sua vez autores nos supra-referidos autos processuais, KK, VV e WW.
9. O prédio urbano identificado em 3 foi destacado do prédio rústico composto por terra de cultura e árvores de fruto, sito no lugar da ..., freguesia ..., concelho ..., com a área de 9233,30m2, que confronta a ..., Sul Estrada Nacional ...5, Nascente com ... e Poente com GG, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ...10, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...14.
10. A meio do prédio identificado em 5, desde tempos imemoriais, sempre existiu, a dividir o mesmo, um caminho por onde sempre se transitou para aceder, a pé, de carro, de tractor ou de veículos motorizados ou de tracção animal, quer ao lado esquerdo, quer ao lado direito do mesmo, em toda a sua extensão, no sentido sul norte.
11. O referido caminho, pelo menos desde 1979, é destinado à passagem comum dos autores e seus antecessores, bem como dos réus e seus antecessores, de forma pacífica e continuada, para acesso à parte norte do prédio identificado em 5, o qual se encontrava, até ao ano de 2002, indiviso.
12. Há mais de 30 anos, sem interrupção, quer os antecessores do autor quer os próprios, acedem à parte norte (zona agrícola) do prédio identificado em 1 através do referido caminho, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, nomeadamente dos réus e seus antecessores, na convicção de exercerem um direito legítimo de passagem.
13. E aquando da divisão do prédio, no ano de 2002, os proprietários designaram que nesse específico local fosse deixado livre um trato de terreno com, pelo menos, 4,03m de largura e 50m de comprimento.
14. Trato de terreno este destinado à utilização comum dos respectivos proprietários, para que pudessem aceder aos terrenos hortícolas situados atrás das habitações que confinam com a Estrada Nacional ...5.
15. Isto porque quer os antecessores dos autores quer os dos réus construíram as suas habitações e estabelecimentos comerciais do ramo da restauração para cada um dos lados do trato livre de terreno.
16. Assim, tal trato de terreno, de uso comum, em terra batida, sempre esteve individualizado e demarcado, autonomizado dos terrenos que lhe são contíguos, há pelo menos mais de 20 anos, com sinais visíveis e permanentes da sua demarcação e uso e assim foi deixado entre ambos os prédios dos ora autores e réus, com as características e localização supra-referidas.
17. A parte agrícola do prédio dos autores não é dotada de comunicação com a via pública existente no local, nem possui condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, pois que tal acesso directo é vedado fisicamente pela sua habitação e seus anexos, assim edificados, nos moldes actuais, atento o facto de a passagem para a parte de trás dos mesmos ser realizada pelo trato/faixa de terreno supra identificado.
18. Motivo pelo qual, e para serem evitadas discussões pessoais e quezílias que conduzissem a um processo judicial, como agora ocorre, foi contratualizado e outorgado pelos autores, pai do autor GG e pelo réu, em 25 de Agosto de 2015, um documento particular autenticado de constituição de servidão de passagem a favor do prédio identificado em 1.
19. Servidão essa sita no trato de terreno acima identificado, com a configuração descrita em 13, localizado na linha divisória de ambos os prédios.
20. Ou seja, a que assim existe há mais de 30 anos e desde essa altura que era utilizada pelos antecessores dos autores.
21. Tal servidão de passagem sempre foi do conhecimento dos autores e seus antecessores, bem como dos antecessores dos réus e de toda a comunidade em geral.
22. Após a outorga do documento referido em 18, o réu marido murou, vedou e colocou portões no trato de terreno identificado.
23. Emparedamento este, com uma extensão aproximada de 35 metros de largura, quer a norte, quer a sul da sua propriedade, no sentido nascente/poente, no limite do qual e junto à propriedade dos autores, colocou portões e vedações com cerca de três metros de largura por dois metros de altura.
24. Tais barreiras físicas, agora presentes no local, impossibilitam a utilização da servidão de passagem e, com isso, o acesso, pelos autores, ao prédio rústico identificado em 1.
25. Os autores estão impossibilitados de acederem à sua propriedade para a cultivar, lavrar, limpar e proceder à apanha dos seus frutos, estando privados da cabal utilização e fruição do prédio identificado em 1.
26. O autor ficou sentido com a atitude dos réus, já que avisou o réu para não tomar tal atitude, compelindo-o a não vedar de tal forma a parcela em questão, ou a fazê-lo de maneira a que permitisse a sua passagem, garantindo o acesso ao seu prédio.
27. A conduta dos réus causou aos autores perturbações emocionais, que os deixou sem paz nem descanso, o que os faz sentir mal, com noites mal dormidas, mau estar, dores de cabeça e insónias, a pensar na forma de solucionar o seu problema, bem como na ousadia e falta de respeito que o réu tem demonstrado ao tomar tais atitudes, impedindo-os, assim, de usufruir da sua propriedade e dos seus pertences.
28. Os réus, quando adquiriram o prédio identificado em 3, desconheciam a existência de qualquer servidão que onerasse tal prédio.
29. Após a referida aquisição, os réus foram alertados pelos autores para a existência da servidão, tendo celebrado o contrato mencionado em 18 e solicitado a autorização do autor para proceder nos termos descritos em 22 na condição de lhe fornecer uma chave, por forma a manter-se o acesso ao caminho em causa.
30. Porém, o réu pretendeu apenas obstar à oposição do autor à construção do muro e colocação do portão, nunca tendo tido intenção de cumprir a palavra assumida, ou seja, entregar qualquer chave ao autor.

Com relevo para a decisão da causa, resultou não provada a seguinte factualidade:
a. O trato de terreno aludido em 13 possuía 4,30m de largura e 77m de comprimento.
b. As barreiras físicas referidas em 22. e 23. foram implantadas no início de Janeiro de 2016.
c. Antes de tal conduta, os réus já se vinham opondo à passagem de pessoas pelo seu prédio.
d. Os réus, desde 2015, vêm-se opondo à passagem invocada pelos autores.
e. As barreiras físicas implantadas pelo réu, referidas em 22 e 23 impedem o uso, cultivo, amanho e retirada de proveitos do prédio identificado em 1.
f. Trata-se de um terreno hortícola com um elevado índice de produção devido à sua localização ribeirinha, o que faz com que possua elevada fertilidade, pelo que o seu não cultivo durante os anos transactos até à data actual é fonte de um prejuízo patrimonial não inferior a € 5.000,00.
g. A ré mulher sofre de doença do foro oncológico e vive sobressaltada com a chuva de missivas e notificações dos tribunais.
h. A ré mulher passa noites sem dormir, vive preocupada e ansiosa, com o receio de ver pessoas a passar em sua casa e sempre preocupada com os processos judiciais.
i. O réu marido está sempre preocupado com o estado da sua esposa, temendo pela sua saúde.
j. A ré era uma pessoa alegre e encontra-se agora, também pelo facto de ter este processo, triste e ansiosa, evitando sair de casa e de estar com os seus amigos, sabendo que tem de contestar as acções dos autores sob pena de confessar os factos por eles alegados.
k. O réu foi pressionado pelos autores para assinar um documento.

IV
Conhecendo do recurso.
Começam os recorrentes por querer impugnar a decisão sobre matéria de facto.
Como é sabido, há regras apertadas para poder impugnar a decisão sobre matéria de facto.

Ora, constam do art. 640º CPC os requisitos formais de admissibilidade do recurso sobre matéria de facto. Como escreve Abrantes Geraldes (Recursos, 2017, fls. 158):
“a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b);
b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (vg. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc);
d) falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”.

No caso concreto, os recorrentes indicam de forma clara quais os pontos de facto que consideram mal julgados e quais as respostas que entendem que o Tribunal deveria ter dado aos mesmos, e indicam em concreto os meios de prova que em seu entender deveriam ter levado a decisão diversa.
Podemos pois conhecer desta parte do recurso.

A- A matéria de facto provada
O art. 607º,4 CPC estabelece que “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
E o nº 5 acrescenta que “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”.
Em anotação a este artigo, escreve Lebre de Freitas (CPC anotado, 3ª edição): “o princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração (ver o nº 2 da anotação ao art. 604º): é porque há imediação, oralidade e concentração que ao julgador cabe, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões, em conformidade com as impressões recém-colhidas e com a convicção de que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência aplicáveis”.
De seguida o mesmo autor faz uma breve nótula sobre a evolução histórica do princípio da livre apreciação.
Seguidamente acrescenta que estão sujeitas à livre apreciação do julgador a prova testemunhal (art. 396º CC), a prova por inspecção (art. 391º CC), a prova pericial (art. 389º CC), e a prova por declarações de parte (…)”.
A definição dos parâmetros que permitem ajuizar da existência de um erro de julgamento, ou de qualquer outro vício da decisão que leve a uma alteração da decisão da matéria de facto consta do artigo 662º,1 CPC, que dispõe que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Ora, vamos começar por uma apreciação de carácter geral.
Como é pacífico, as pretensões de natureza real assentam frequentemente na invocação da aquisição originária do direito real pretendido, através da demonstração da usucapião. Para chegar a esta, é necessário demonstrar, em traços largos, a prática de actos de posse material, pública e pacífica sobre o prédio reivindicado, com exclusividade. O que está em discussão é saber quem usava determinada parcela de terreno ao longo do tempo. É toda uma reconstrução histórica que tem de ser feita.
É esta ideia de apreciação global de todas as provas, e de negação da apreciação pontual desta ou daquela prova isolada, que queríamos sublinhar aqui.
Prosseguindo.
O recurso à prova documental junta aos autos, nomeadamente certidões da matriz predial não é relevante, pois o que consta ou deixa de constar da matriz predial não dá nem retira direitos. Não se pense que é possível resolver o litígio com recurso ao que consta da matriz predial. Apesar do regime de harmonização entre o registo predial e a matriz cadastral, os registos dos prédios para efeitos fiscais não conferem ou retiram direitos reais.
A prova testemunhal, apesar de ser apontada como a “meretriz das provas”, é o mais importante meio de prova aqui em jogo. Não há outra forma de o julgador ser informado sobre quem exercia e como exercia o poder de facto sobre a coisa, quem passava e não passava no local, que não através das pessoas que ao longo do tempo viveram e passaram pelo local regularmente, conjugando depois essa prova com uma descrição das características físicas do terreno. E isto porque temos de ter presente a essência da usucapião, que, basicamente pode ser definida como a atribuição de cobertura jurídica a quem exerce a gestão económica do prédio, ao longo de muitos anos. Ora, não há outra forma de o julgador ser informado sobre quem exercia e como exercia esse poder de facto sobre a coisa que não através das pessoas que ao longo do tempo viveram e passaram pelo local regularmente, conjugando depois essa prova com uma descrição das características físicas do terreno.

Assim, a busca da verdade passa por perceber que a credibilidade a dar a cada uma das testemunhas ouvidas varia. A arte estará em perceber quais merecem credibilidade e quais não merecem, fundamentadamente. Sendo que a prova testemunhal, por definição, não é tarifada, estando sujeita à regra da livre apreciação (art. 607º,5 CPC).

Dito isto, os recorrentes indicam quais os meios de prova em que fazem assentar a sua argumentação. Porém, incorrem num lapso evidente, que é tomar os depoimentos que citam como verdades absolutas.

E temos de ter presente algumas limitações[1] com que esta Relação se depara, que não existiram no julgamento feito na primeira instância.

Primeiro, “a gravação dos depoimentos por registo áudio ou por meio que permita a fixação da imagem (video) nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no Tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância. Na verdade existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador[2].
Ou seja, o registo audio da prova não permite captar aquilo que a psicologia designa de “comunicação não-verbal”. E para um juiz que tem perante si testemunhos divergentes sobre os mesmos factos essenciais, essa comunicação não-verbal assume uma importância determinante na conclusão final sobre a veracidade dos depoimentos.
Por outro lado, ainda, foi notório que ao longo da audiência de julgamento as testemunhas foram sendo confrontadas com documentos juntos aos autos, nomeadamente fotografias, e foram acompanhando o seu depoimento com a indicação de pontos nesses documentos, outra prova que escapa completamente à análise desta Relação.
Assim, a priori, numa situação destas, um recurso da decisão sobre matéria de facto assente apenas no entendimento do recorrente, necessariamente divergente do entendimento do Tribunal, estará, na esmagadora maioria dos casos votado ao fracasso. Para obter vencimento, a recorrente tem de demonstrar que houve erro de julgamento por parte do Tribunal recorrido, e não apresentar apenas a sua interpretação da prova. Mais concretamente, teria de demonstrar que a análise integrada da prova feita na sentença está errada, e explicar porquê.
Ora, na fundamentação de qualquer decisão sobre matéria de facto assume papel essencial a análise crítica das várias provas produzidas. Não basta elencar os meios de prova produzidos, porque na esmagadora maioria das vezes eles não são coincidentes, antes são claramente divergentes. E ainda menos basta indicar apenas excertos da prova, os que são ou parecem favoráveis ao recorrente. E para que se perceba por que razão o Tribunal decidiu considerar provados uns factos e não provados outros, tendo havido prova contraditória, é essencial que essa análise crítica seja feita.

Dito isto, vamos então apreciar os vários factos cujo julgamento é contestado.
Os recorrentes não concordam com as respostas dadas aos factos 10, 12, 13, 14, e 16. O Tribunal considerou tais factos como provados, mas os réus/recorrentes entendem que os mesmos deveriam ter sido considerados como não provados.

Numa apreciação global, vamos aqui reproduzir um segmento da motivação do Tribunal a quo, que, só por si, nos parece dizer quase tudo:
Quanto ao mais, da prova produzida em sede de audiência de julgamento resultou, de forma segura, sem qualquer prova credível em sentido contrário, a existência do caminho descrito na factualidade provada.
Sendo certo que a prova produzida no sentido dado como provado foi directamente percepcionada pelo Tribunal aquando da inspecção judicial ao local, permitindo as conclusões extraídas desta diligência confirmar a credibilidade da prova produzida.
De sublinhar que, pese embora a falta de colaboração dos réus com a realização da inspecção ao local – pois que não compareceram nem sequer facultaram a chave do portão para acesso ao caminho, o que obrigou o Tribunal a visualizar o caminho através do prédio dos autores, por cima do muro ali existente –, foi absolutamente perceptível a existência do caminho, designadamente, dos sinais existentes de um uso antigo e continuado do mesmo, como é o caso dos rodados no mesmo presentes”.

Esta prova directa, ou seja, a convicção que o Tribunal retirou da ida ao local e da observação que fez do alegado caminho é, diga-se irrebatível, e se conjugada com a postura ali descrita dos réus/recorrentes, que se recusaram a colaborar com o Tribunal na tarefa de busca da verdade material, afasta qualquer dúvida que pudesse haver sobre a correcção da decisão do Tribunal ao julgar a matéria de facto.
Para além disso, esta Relação ouviu igualmente toda a prova que foi produzida na audiência de julgamento, e está em condições de confirmar tudo o que o Tribunal recorrido expendeu a esse respeito, bem como, mais importante ainda, a análise crítica de toda essa prova.

Assim, vejamos:
O facto 10 tem o seguinte teor:
10. A meio do prédio identificado em 5, desde tempos imemoriais, sempre existiu, a dividir o mesmo, um caminho por onde sempre se transitou para aceder, a pé, de carro, de tractor ou de veículos motorizados ou de tracção animal, quer ao lado esquerdo, quer ao lado direito do mesmo, em toda a sua extensão, no sentido sul norte”.
A existência do caminho foi constatada pelo Tribunal, na inspecção ao local e é incontornável para esta Relação, não só que o caminho existe actualmente, como que já existe há muitos anos, pois o Tribunal fez questão de explicar que “foi absolutamente perceptível a existência do caminho, designadamente, dos sinais existentes de um uso antigo e continuado do mesmo, como é o caso dos rodados no mesmo presentes”.
No mais, a decisão da matéria de facto emerge das declarações dos autores e dos depoimentos das testemunhas XX e YY, que, como o Tribunal recorrido explicou mereceram credibilidade, ao invés das testemunhas arroladas pelos réus.
Aliás, porque a decisão recorrida está quanto a nós correcta e bem fundamentada, vamos reproduzir aqui, com total concordância, a motivação expendida pelo Tribunal recorrido:
Ora, o Tribunal valorou as circunstanciadas, espontâneas e honestas declarações de parte dos autores, no decurso das quais descreveram os prédios, as transmissões dos mesmos e a forma como sempre foi feito o acesso aos mesmos. Explicitaram, entre o mais, a existência e modo de utilização do caminho que permitia o acesso carral à parte norte do prédio identificado em 1. de forma que o Tribunal reputou de séria, espontânea e verdadeira, sendo, além do mais, absolutamente consonante quer com o directamente percepcionado pelo Tribunal em sede de inspecção ao local e com as regras da experiência comum e, por isso, verosímil.
Com especial relevo, num relato muito esclarecedor, com grande clareza, detalhe e objectividade, a autora – e de forma absolutamente coerente com as declarações de parte do autor -, afirmando conhecer o local desde 1996 e que o sogro era amigo da sua família desde que nasceu (pelo que o seu conhecimento é anterior ao seu casamento com o autor), explicou que o terreno era do sogro e do seu irmão, sendo que havia um caminho entre as duas casas, decidido entre os dois. Para tanto, cada um cedeu um pedaço de terreno e ficou estabelecido que ambos usavam aquele caminho, constituído pelas parcelas cedidas. Declarou que o sogro relatava isso com muita frequência.
Referiu que foi construído um muro a delimitar o caminho do lado da casa do sogro (prédio identificado em 1), apenas não tendo sido feito o mesmo do outro lado do caminho, a separar este da propriedade do irmão do sogro (agora dos réus), porque nesta era explorado um restaurante e a existência de um muro iria impedir o livre acesso de carros e pessoas, clientes de tal estabelecimento, que estacionavam nas traseiras do prédio.
Reportou-se às características do caminho – com largura suficiente para passagem de um tractor, apenas num sentido -, e à sua ininterrupta e pacífica utilização ao longo dos anos.
Ademais, explicou o logro que o réu conseguiu causar nos autores, aliciando-os a permitir a colocação dos muros e do portão, com a promessa de que lhes entregaria a chave, o que não veio a fazer. Querendo dessa forma enganosa libertar o seu prédio do encargo que sobre o mesmo recaía.
As declarações de parte dos autores foram corroboradas pelos depoimentos esclarecedores e credíveis das testemunhas por si arroladas.
XX, agricultor, com simplicidade, isenção, absoluta honestidade, e com o conhecimento directo adveniente do facto de trabalhar, desde o ano de 1986, a propriedade onde fica o caminho, confirmou a existência deste de forma convergente com o descrito pelos autores, declarando que por tal caminho sempre passou e que via as outras pessoas a pelo mesmo passarem.
Identificou os locais no documento 10 junto com a petição inicial em consonância com o visualizado pelo Tribunal aquando da inspecção judicial ao local, denotando um profundo conhecimento do local e objectividade nas explicações dadas.
Esta testemunha explicou que apenas tem logrado agricultar o terreno do autor por ao mesmo aceder através dos terrenos localizados ao lado daquele, por igualmente os agricultar a pedido dos respectivos proprietários. Daqui emerge, pois, a conclusão de que apenas a circunstância de o terreno do autor ser agricultado pela mesma pessoa que agriculta os terrenos contíguos tem permitido que o mesmo seja trabalhado (como referiu: “Como trago aquilo à renda, passo por onde quero”). Porém, explicou que antes de o réu fechar o acesso ao caminho, era por este que acedia aos prédios.
A testemunha YY, agricultor e amigo do autor, conhecedor do local, igualmente confirmou que o caminho existe há mais de vinte anos, declarando que chegou a ir com o tractor lavrar o terreno, ainda no tempo do pai do autor, fazendo o acesso sempre pelo caminho aqui em discussão, cuja utilização asseverou sempre ter sido pacífica e cuja configuração descreveu de forma convergente com os depoimentos anteriores e com o visualizado pelo Tribunal em sede de inspecção judicial ao local.
Mais referiu que o caminho existe e era utilizado desde que casou, ou seja, há pelo menos 49 anos (idade do seu filho).
Dos mesmos relatos e da inspecção ao local resultou igualmente a falta de comunicação do prédio com a via pública, pois que se é certo que o acesso à habitação situada no início da propriedade e ao jardim traseiro é facilmente feito pela estrada nacional, com a qual confronta, igualmente certo é que que as edificações situadas na parte traseira da habitação impedem o acesso carral à parte agrícola do prédio. Sendo certo ainda que pelo lado oposto igualmente não pode fazer-se o acesso – contrariamente ao que procuraram fazer crer os réus no decurso da produção de prova -, pois que o prédio confina com um ribeiro.
A testemunha XX confirmou que pelo fundo, pela ribeira, é impossível passar de carro, explicando tal impossibilidade de forma muito elucidativa: “não tem hipótese por causa da ribeira, só se fizer uma ponte”.
Assim, as declarações de parte dos autores, concatenadas com a prova testemunhal produzida – a qual, pela seriedade, espontaneidade e objectividade revelada, foi reputada pelo Tribunal como credível - e com a inspecção judicial ao local realizada, permitiram ao Tribunal formar convicção segura de que os factos dados como provados são verdadeiros.
Por sua vez, a testemunha FF, afirmando embora conhecer o réu apenas de vista, deixou muitas dúvidas quanto à espontaneidade e isenção do seu depoimento. Apresentando uma postura contrita, proferiu afirmações que logo a seguir se percebeu não estarem assentes em conhecimento certo, apresentando fraca memória do local, negando a existência de um caminho que se afigurou óbvio existir (até pela própria inspecção ao local), e afirmando a existência de um portão que mais ninguém referiu existir.
Também a testemunha ZZ, colega de trabalho do réu, cuja postura nervosa e comprometida já denunciava a falta de isenção e verdade do seu depoimento, expôs em definitivo a sua falta de credibilidade ao demonstrar, quando confrontado com a fotografia junta à petição inicial como documento n.º 10, desconhecer em absoluto o local sobre o qual se encontrava a depor como se o conhecesse, pois que nem sequer soube identificar correctamente os prédios em causa.
Também a testemunha EE, amigo do réu, prestou um depoimento comprometido, cuja postura não convenceu, tendo o seu relato sido desconforme com a demais prova.
Assim, revelou-se patente, quer pelas posturas de clara parcialidade, quer pelo teor dos seus relatos, que os seus depoimentos não se revelaram sérios e genuínos.
Donde, atenta a falta de conhecimento directo dos factos e a patente parcialidade, estes depoimentos não aportaram qualquer contributo probatório, pelo que não lograram contrariar a demais prova produzida.
Em face do exposto, da prova produzida e analisada – ou seja, da conjugação das declarações de parte dos autores, dos depoimentos das já identificadas testemunhas, e da inspecção judicial ao local -, resultou a prova da factualidade consignada sob os n.ºs 10 a 17, 19 a 21.
O argumento dos recorrentes para que o facto nº 10 passe a não provado é este: “consta da prova documental junta aos autos que o dito prédio constituiu sempre uma única propriedade, a qual, assim se manteve, em regime de compropriedade, na proporção de metade indivisa para cada uma das famílias dos antepossuidores, ocorrendo a sua divisão apenas no ano de 2002. Esta prova documental, por se tratar de documento autêntico, faz prova plena nos termos dos arts. 369.º e 371.º do Código Civil, impondo decisão diversa da recorrida”.
Ora, parece-nos evidente que esta afirmação não afecta em nada o facto provado nº 10. Os recorrentes trazem argumentação jurídica, invocando um documento autêntico, que faria prova plena, quando o caminho referido no facto provado 10 é uma realidade puramente fáctica, que não tem de constar de nenhum documento autêntico.
E acrescentam os recorrentes que “enquanto os prédios ou fracções do mesmo prédio pertencerem ao mesmo dono, por imperativo da conhecida máximo nemini res sua servit, a servidão não existe, pois, no nosso ordenamento jurídico, não é admissível, a servidão do proprietário, pelo que deve tal facto ser dado como não provado”.
Este argumento é, salvo o devido respeito, uma confusão entre facto e direito. O artigo 10º contém um facto, e considerações jurídicas nada têm a ver com a sua prova ou não prova.
Assim, sem mais, o facto provado nº 10 mantém-se como provado.

Facto 12: Há mais de 30 anos, sem interrupção, quer os antecessores do autor quer os próprios, acedem à parte norte (zona agrícola) do prédio identificado em 1 através do referido caminho, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, nomeadamente dos réus e seus antecessores, na convicção de exercerem um direito legítimo de passagem”.
A motivação para este facto ser dado como provada já ficou exposta supra, e esta Relação concorda integralmente com a mesma.
Os recorrentes pretendem que tal facto seja dado como não provado “porquanto foi feita confissão, em sede de depoimento de parte do Autor, que foi houve oposição à utilização do caminho de acesso por parte do Réu há sete ou oito anos. Para além disso, ao dar este facto como provado, a decisão ora em crise ignora a força probatória plena da caderneta predial junta na petição inicial (doc. n.º 1), que prova que o dito prédio constituiu sempre uma única propriedade, a qual, assim se manteve, em regime de compropriedade, na proporção de metade indivisa para cada uma das famílias dos antepossuidores, até 2002, ano em que ocorreu a separação em acção de divisão de coisa comum”.
Mais uma vez temos um argumento jurídico, para tentar contrariar um facto provado, o que não colhe. Acresce que, como já antecipámos, a caderneta predial não tem a força probatória plena que os recorrentes lhe atribuem. Como se pode ler no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 5.2.2004 (BERNARDO DOMINGOS), “as certidões da Conservatória do Registo Predial têm força probatória plena quanto às presunções registrais juris tantum estabelecidas no art.º 7º do Cód. Registo Predial (a de que o direito existe tal como o registo o revela; e a de que o direito pertence a quem está inscrito como seu titular) mas essa prova legal plena - ilidível mediante prova do contrário ( art.º 350º, n.º 2 do Cód. Civil - não abrange os elementos circunstanciais descritivos como as áreas, limites e confrontações. As certidões das matrizes prediais emitidas pelas Repartições de Finanças apenas constituem presunção para efeitos fiscais, não para efeitos civis. Os elementos matriciais apenas conseguem obter relevância, indirectamente, através do registo predial, com as quais se devem em princípio harmonizar (art.ºs 28º e segs. do Cód. Registo Predial). Fora do âmbito da força probatória material legal plena dos documentos referidos, vigora o princípio da livre apreciação da prova pelo tribunal (art.º 655º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil), o que significa que o tribunal as aprecia livremente, segundo a sua prudente convicção, ou seja, após a produção das provas produzidas, o tribunal tira as suas conclusões, em conformidade com as suas impressões recém colhidas, e de acordo com a convicção que através delas se for gerando no seu espírito, de acordo com as regras da ciência, do raciocínio, e das máximas da experiência que forem aplicáveis ao caso”.
E igualmente o Acórdão do STJ de 20.2.2020 (Rosa Ribeiro Coelho) vai no mesmo sentido: “a caderneta predial, extraída da respectiva inscrição matricial, é um documento autêntico mas não faz prova plena do que dela consta, nomeadamente da área e da composição do imóvel inscrito, porque assenta em declaração ao chefe de finanças competente, apresentada pelo sujeito passivo – eventualmente acompanhada, sendo caso disso, por plantas de arquitectura das construções existentes –, e não na observação directa feita pelo chefe de finanças e nas percepções por este colhidas “in loco”.
Quanto à referência de que foi feita “confissão, em sede de depoimento de parte do Autor, que foi houve oposição à utilização do caminho de acesso por parte do Réu há sete ou oito anos”, apenas temos de dizer que lida a acta da audiência de julgamento, não se vê que tal confissão tenha sido reduzida a escrito. Vê-se, isso sim, que o Ilustre Mandatário dos réus o requereu, o Ilustre Mandatário dos autores opôs-se e o Tribunal proferiu despacho nos seguintes termos: “entende-se que, considerando a matéria sobre a qual foram prestados os depoimentos de parte, estes não revelaram conteúdo confessório, não havendo, por isso, matéria confessada a extrair destes depoimentos. Portanto, não se fará assentada”.
Os réus não recorreram deste despacho, pelo que o mesmo transitou em julgado.
E como é sabido, é essencial que o depoimento de parte seja reduzido a escrito nos segmentos em que houver confissão do depoente, pois só assim produzirá prova plena contra o confitente (art. 358º,1 CC). Pode ver-se, a propósito, o que escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em anotação ao art. 463º CPC.
Em síntese, a argumentação dos recorrentes não colhe de todo. Este facto mantém-se provado.

Facto provado 13: E aquando da divisão do prédio, no ano de 2002, os proprietários designaram que nesse específico local fosse deixado livre um trato de terreno com, pelo menos, 4,03m de largura e 50m de comprimento.
Facto provado 14: trato de terreno este destinado à utilização comum dos respectivos proprietários, para que pudessem aceder aos terrenos hortícolas situados atrás das habitações que confinam com a Estrada Nacional ...5.
Afirmam os recorrentes que “não resulta da fundamentação da decisão de facto a motivação que permitiu ao tribunal a quo dar estes factos como provados, carecendo de efectiva fundamentação para o efeito, devendo, para além disso, observar-se o disposto no art.º 662.º, n.º 2, al. d), do CPCiv”.

Ora, não assiste razão aos recorrentes.
Na sentença refere-se que “a convicção do Tribunal sobre a matéria de facto alicerçou-se (…) na análise crítica e ponderada, de harmonia com os princípios que regem a matéria, da prova documental oferecida pelas partes (…)”.
E os documentos nos quais o Tribunal se baseou para dar tais factos como provados são os juntos à petição inicial, com destaque para os docs. nºs 11 e 12. Aliás, quanto aos factos provados e incontroversos 7 e 8, interligados com estes, o Tribunal expendeu: “no que diz respeito aos factos provados sob os n.ºs 7 e 8, o Tribunal fundou a sua convicção da conjugação da certidão judicial oferecida como documento n.º 11 com a petição inicial, com as declarações de parte dos autores, as quais foram reputadas como credíveis, como será aflorado infra. De sublinhar que o autor, em sede de declarações de parte, de forma espontânea e segura, afirmou que o caminho aqui em discussão existe desde finais de 1970, declarando ter sido atropelado naquele local no ano de 1982, em momento em que aquele caminho já se encontrava constituído”.
E mais adiante, o Tribunal recorrido responde (antecipadamente) à objecção dos recorrentes, escrevendo: “Sublinhe-se, ainda, que se deu como provada a configuração do caminho descrita em 13, de forma coerente com aquilo que foi acordado no contrato aludido em 18. De facto, se este contrato pretendia reflectir e fazer respeitar uma situação pré-existente, será de assumir que a dimensão do caminho aí plasmada é a que corresponde à existente (até porque resultou provado o facto vertido sob o n.º 20)”.
Parece-nos um raciocínio válido, escorado na regra da livre apreciação da prova, fundamentado, e não existe qualquer contraprova minimamente credível.
Aliás, torna-se quase incompreensível os recorrentes virem impugnar estes dois factos, considerando que não impugnaram os factos provados sob os números 18, 19 e 20, retirados do documento nº 12 com a petição inicial.
E assim, os factos 13 e 14 mantêm-se provados.

Finalmente, o facto 16:
“Assim, tal trato de terreno, de uso comum, em terra batida, sempre esteve individualizado e demarcado, autonomizado dos terrenos que lhe são contíguos, há pelo menos mais de 20 anos, com sinais visíveis e permanentes da sua demarcação e uso e assim foi deixado entre ambos os prédios dos ora autores e réus, com as características e localização supra-referidas”.
Os recorrentes querem que este facto transite para o rol dos não provados porque, afirmam, “resulta, do depoimento gravado das testemunhas indicadas que não existem quaisquer sinais visíveis da existência de qualquer servidão. Não existindo nem tendo resultado provado que exista um caminho, que o caminho de servidão fosse cuidado pelos Autores, pelo que deve tal facto ser considerado como não provado”.
Ora, esta argumentação olvida por completo que teve lugar uma inspecção judicial ao local, na qual a Juiz do processo pode constatar a existência dos sinais visíveis de existência do caminho, e isto apesar da atitude incompreensível dos réus/recorrentes em não colaborar com o Tribunal, não concedendo o necessário acesso ao caminho em discussão nos autos, pois o portão de acesso encontrava-se fechado e não foram facultadas as chaves.
Esta é uma situação clara de aplicação do disposto nos arts. 417º,1,2 CPC, tendo os réus violado ostensivamente o dever de cooperação para a descoberta da verdade.
Não é necessário dizer mais para manter o facto 16 como provado.
E assim, a matéria de facto mantém-se inalterada.

B- Aplicação do direito aos factos

Para um correcto enquadramento dos factos provados, recordemos que os autores começaram por formular os seguintes pedidos:
a)- Serem os Réus condenados a reconhecer o direito de propriedade dos Autores, sobre, o prédio rústico melhor identificado em 1º desta petição;
b)- Declarar-se que sobre o prédio urbano propriedade dos Réus e melhor identificado em 4º desta petição, existe a favor do prédio rústico dos Autores, melhor identificado em 1º desta petição, uma servidão de passagem, a pé, de carro, de tractor ou de veículos motorizados e de tracção animal, localizada na linha divisória de ambos os prédios, na direcção Sul/Norte, constituída, pelo menos, por uma faixa de terreno com a largura de 4,03 metros e o comprimento aproximado de 50 metros, constituída por usucapião, a exercitar, nos termos sobreditos, ou seja;
c)- Ser reposta, nos termos sobreditos a servidão de passagem a favor do prédio dos Autores, a onerar o prédio dos Réus, melhor identificado em 4ºdesta petição, mediante o reconhecimento da sua constituição por usucapião;
e)- Subsidiariamente, na ausência de tal entendimento, requer-se a V. Exa a criação de uma servidão legal de passagem, a pé, de veículos motorizados e de tracção animal, sita na linha divisória de ambos os prédios, na direcção Norte/Sul, constituída, nos termos sobreditos, por uma faixa de terreno com 4,30m de largura e comprimento de 50 metros, nos termos do artigo 1550.º, n.º 1 do Código Civil,
f)- Serem os Réus condenados, a pagar aos Autores, a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos patrimoniais;
g)- Sejam os Réus condenados, a pagar aos Autores, a quantia de € 1.000,00 (Mil euros) a título de danos morais;

Em sede de audiência prévia, o Tribunal recorrido deparou-se com a necessidade de dirigir aos autores convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, dizendo que “considerando a alegação vertida nos articulados – onde se invoca que os prédios em causa pertenceram ao mesmo proprietário -, o quadro normativo das soluções plausíveis em que se inscreve a pretensão deduzida afigura-se mais extenso do que aquele que foi tido em conta pelos autores. Pode, com efeito, vir a verificar-se uma situação em que a constituição da servidão ocorreu não por usucapião, conforme vem alegado, mas por destinação do pai de família, nos termos do artigo 1547.º, n.º 1, do CC. Assim, por forma a que os autos possibilitem um eventual enquadramento do litígio e do peticionado à luz de todas as soluções plausíveis de direito, impõe-se que os autores aleguem factos concretos e objectivos atinentes à possível solução de direito apontada. Face ao exposto, podendo vir revelar-se uma situação de insuficiência da causa de pedir, convidam-se os autores a, ao abrigo do artigo 590.º, n.º 2, alínea b) e n.º 4, do CPC, no prazo de 10 dias, aperfeiçoar a petição inicial, esclarecendo e completando a factualidade alegada no mesmo, nos termos indicados, o que devem fazer de forma destacada e individualizada”.

E os autores corresponderam ao convite, apresentando petição aperfeiçoada, concretizando factualidade atinente à anterior propriedade do prédio e, em suma, aos pressupostos da referida servidão por destinação do pai de família. E terminam assim:
“deve o aperfeiçoamento da p.i., ser recebido e admitido, e a final, subsidiariamente, na improcedência, da alegada constituição da servidão legal de passagem, por usucapião, ser julgada procedente por provada, a constituição da servidão legal de passagem, por “destinação do pai de família”, nos termos do artigo 1547º, n. 1 do CC”.

Os réus vieram reagir, defendendo que os autores procederam a uma alteração da causa de pedir e do pedido, designadamente porque a factualidade aditada modificou a forma de aquisição da alegada servidão de passagem. Referem que, inexistindo acordo entre as partes, não sendo a modificação da causa do pedir resultante de confissão efectuada pelos réus e não constituindo a modificação do pedido o desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, atento o que preceitua o artigo 265.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, não se deve admitir a alteração da causa de pedir e do pedido.

Em sede de despacho saneador, o Tribunal recorrido considerou que os autores se limitaram a concretizar melhor a factualidade em que assentava o pedido de reconhecimento da servidão, e que tal concretização se contém dentro dos limites do princípio do dispositivo.
E considerou verificados os pressupostos de que o artigo 265º,2 CPC faz depender a admissibilidade de ampliação do pedido, ainda que na falta de acordo das partes. E admitiu a requerida ampliação do pedido.
Deste despacho não foi interposto recurso.
Pois bem.
O primeiro pedido formulado pelos autores é o da condenação dos réus a reconhecer o seu direito de propriedade sobre o prédio rústico identificado em 1 da factualidade provada.
Este pedido não é controvertido, pois o direito de propriedade em causa não é disputado pelos réus, e funciona na acção como um pressuposto necessário para a verdadeira pretensão formulada pelo autores, essa sim controvertida, a do reconhecimento da servidão de passagem pelo prédio dos réus. E assim, descontando o facto de a figura da “condenação a reconhecer algo” ser juridicamente inexistente, o Tribunal recorrido, na prática, declarou o autor titular do direito de propriedade sobre o prédio rústico identificado em 1 da factualidade provada.
O centro do litígio está na alegada servidão de passagem.

E aqui a sentença recorrida considerou o seguinte:
considerando a factualidade provada, constituiu-se, por usucapião, um direito de servidão, para passagem, a pé, de carro, de tractor ou de veículos motorizados ou de tracção animal, em favor do prédio do autor e onerando o prédio dos réus, com a configuração plasmada nos factos 10 a 16 da factualidade provada.
De facto, demonstrou-se que, a meio do prédio identificado em 5, desde tempos imemoriais, sempre existiu, a dividir o mesmo, um caminho por onde sempre se transitou para aceder, a pé, de carro, de tractor ou de veículos motorizados ou de tracção animal, quer ao lado esquerdo, quer ao lado direito do mesmo, em toda a sua extensão, no sentido sul norte (cfr. facto provado sob o n.º 10).
O referido caminho, pelo menos desde 1979, é destinado à passagem comum dos autores e seus antecessores, bem como dos réus e seus antecessores, de forma pacífica e continuada, para acesso à parte norte do prédio identificado em 5, o qual se encontrava, até ao ano de 2002, indiviso (cfr. facto provado sob o n.º 11).
Há mais de 30 anos, sem interrupção, quer os antecessores do autor quer os próprios, acedem à parte norte (zona agrícola) do prédio identificado em 1 através do referido caminho, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, nomeadamente dos réus e seus antecessores, na convicção de exercerem um direito legítimo de passagem (cfr. facto provado sob o n.º 12).
E aquando da divisão do prédio, no ano de 2002, os proprietários designaram que nesse específico local fosse deixado livre um trato de terreno com, pelo menos, 4,03m de largura e 50m de comprimento, destinado à utilização comum dos respectivos proprietários, para que pudessem aceder aos terrenos hortícolas situados atrás das habitações que confinam com a Estrada Nacional ...5 (cfr. factos provados sob os n.ºs 13 e 14).
Assim, tal trato de terreno, de uso comum, em terra batida, sempre esteve individualizado e demarcado, autonomizado dos terrenos que lhe são contíguos, há pelo menos mais de 20 anos, com sinais visíveis e permanentes da sua demarcação e uso e assim foi deixado entre ambos os prédios dos ora autores e réus, com as características e localização supra-referidas (cfr. facto provado sob o n.º 16).
A parte agrícola do prédio dos autores não é dotada de comunicação com a via pública existente no local, nem possui condições que permitam estabelecê-la sem excessivo incómodo ou dispêndio, pois que tal acesso directo é vedado fisicamente pela sua habitação e seus anexos, assim edificados, nos moldes actuais, atento o facto de a passagem para a parte de trás dos mesmos ser realizada pelo trato/faixa de terreno supra identificado (cfr. facto provado sob o n.º 17).
Em suma, demonstrou-se o exercício da servidão, sendo que o acesso em causa foi exercido de boa-fé (porque na sequência de um acordo entre os proprietários afectados), à vista de todos e sem oposição.
Ou seja, verifica-se a existência do corpus da posse, consubstanciado em actos materiais, e por tempo suficiente para a aquisição.
O corpus faz presumir o animus, nada se tendo provado que permita ilidir tal presunção (cfr. artigo 1252.º, n.º 2, do CC), pelo contrário, pois que este está cabalmente demonstrado.
Pelo que se encontra demonstrada a constituição de uma servidão predial de passagem com as características apontadas na factualidade provada.
Assim, cumpre reconhecer a constituição da servidão de passagem referida, revelada, inequivocamente, por sinais visíveis e permanentes, nos termos supra descritos, conforme exige o artigo 1548.º, n.º 2, do CC.
De qualquer das formas, resulta provado, atenta a factualidade dada como provada sob os n.ºs 18 a 20, que, por documento particular autenticado, foi estabelecida uma servidão por acordo entre os proprietários dos prédios abrangidos, entre os quais o aqui réu, nos termos do artigo 1543.º do Código Civil, ou seja, foi imposto um encargo no prédio dos réus em benefício exclusivo do prédio do autor.
Por conseguinte, foi validamente constituída a servidão em causa”.
Ora, atentos os factos provados, esta solução afigura-se-nos inteiramente correcta.
Porém, os recorrentes vêm-se opor.

Vejamos com que argumentos.
1. Em primeiro lugar vêm dizer que não se deveria ter admitido a alteração da causa de pedir e do pedido, efectuada no requerimento do aperfeiçoamento e que ao fazê-lo o tribunal de que se recorre violou o preceituado no artigo 265º,1,2 CPC.
Esta questão, como vimos, foi decidida em sede de despacho saneador, e os réus não reagiram contra tal decisão. Logo, a mesma transitou em julgado (caso julgado formal- art. 620º,1 CPC).
Assim, não podem agora impugnar a mesma.
2. Afirmam os recorrentes que o recorrido marido, em sede de depoimento de parte, confessou que não tinha a convicção de utilizar o caminho como caminho de servidão e que o caminho pertencia ao prédio dos Recorrentes, servindo o seu prédio, referindo que aquela faixa de terreno lhe pertencia e que era sua propriedade. Ora, se é propriedade do seu prédio, não pode ser servidão do mesmo.
Mais uma vez nos parece que os recorrentes fazem confusão entre o plano dos factos e o plano do direito, e mesmo dentro do plano estritamente factual, não lhes assiste razão.
O autor declarou, em síntese, que a servidão foi constituída desde sempre, pelo menos finais de 70 princípios de 80, e surgiu de uma divisão amigável entre o seu pai (GG), e o seu tio (AAA). Esticaram um fio de ponta a ponta no terreno e cada um cedeu a mesma distância para formar a tal rodeira, do início ao fundo do terreno. Havia um prédio único, e quando o dividiram mantiveram essa faixa de terreno para utilização comum. Depois os réus compraram o prédio em hasta pública, há 7 ou 8 anos, e o réu foi a casa dele, disse que queria vedar aquilo. Ele disse que aquele espaço era comum, e concordou com a vedação mas fazendo um documento comprovativo que o réu podia pôr lá o portão, mas não podia impedir os autores de usar aquele espaço comum. Mais adiante, inquirido pelo Ilustre Mandatário dos réus, que lhe perguntou quem era o proprietário da rodeira, respondeu que é espaço comum de passagem para ambas as partes; se é comum pertence às duas partes. Ambas as partes cederam metade do terreno para a rodeira”.
Portanto, e mesmo na construção agora avançada pelos recorrentes, só metade da rodeira seria propriedade dos autores, sendo a outra metade propriedade dos réus, e daí o acerto da referência ao conceito de servidão.
Independentemente destas considerações, nem nos depoimentos de parte nem nos depoimentos testemunhais relevam as considerações jurídicas que sejam feitas. Os autores e os réus e as testemunhas apenas falam sobre factos concretos do mundo do ser, e se emitirem opiniões de conteúdo técnico-jurídico as mesmas devem ser ignoradas. Foi o que fez o Tribunal, e bem, mas já os recorrentes não respeitaram essa regra.
Improcede mais este argumento.
3. Acrescentam os recorrentes que o Recorrido marido confessou que foi feita oposição à utilização do caminho de acesso há sete ou oito anos pelo Recorrente.
Sobre esta matéria já nos pronunciámos supra, aquando da apreciação do recurso contra a decisão da matéria de facto. Para lá remetemos.
4. Afirmam ainda os recorrentes que “conforme resulta provado no facto nº 28, os réus, quando adquiriram o prédio, desconheciam a existência de qualquer servidão que onerasse aquele, o que, por si só, é facto demonstrativo da inexistência da referida servidão”.
Esta afirmação é incompreensível, tendo presente que servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente (art. 1543º CC), e portanto a representação mental que seja feita pelo titular de um prédio sobre a servidão, ou falta dela não altera o direito real em causa. O art. 1569º CC regula os casos de extinção das servidões, mas entre eles não consta o “desconhecimento da existência da servidão pelo adquirente do direito de propriedade sobre o prédio serviente”.
Este argumento não merece que se perca mais tempo com ele.
5. A afirmação de que os antepossuidores dos autores beneficiariam apenas de uma passagem por tolerância através do prédio hoje dos Réus, resultante da boa vontade destes, isto é, os antecessores dos Réus consentiriam na passagem pelo seu terreno, mas apenas por favor e não de modo juridicamente vinculativo, atentos os factos provados, não merece atenção.
6. Fazem ainda os recorrentes referência ao “contrato particular de constituição de servidão de passagem” para retomar a argumentação já expendida na primeira instância, de tal documento “ter sido subscrito pelo réu desacompanhado da ré, pelo que tal documento é, ab initio, nulo por falta de forma, na medida em que se verifica necessária a vinculação da Ré, porque casada com o Réu e porque tal prédio também é sua propriedade”.

Reproduzimos aqui o que a sentença recorrida disse a este respeito, com total concordância: “De qualquer das formas, resulta provado, atenta a factualidade dada como provada sob os n.ºs 18 a 20, que, por documento particular autenticado, foi estabelecida uma servidão por acordo entre os proprietários dos prédios abrangidos, entre os quais o aqui réu, nos termos do artigo 1543.º do Código Civil, ou seja, foi imposto um encargo no prédio dos réus em benefício exclusivo do prédio do autor. Por conseguinte, foi validamente constituída a servidão em causa. Neste conspecto, não assiste razão aos réus quando invocam a ilegitimidade das partes que subscreveram o documento aludido em 18 da factualidade provada. Referem, a propósito, em primeiro lugar, que o mesmo foi subscrito pelo réu desacompanhado da ré, também proprietária do imóvel onerado com a servidão, e, em segundo lugar, que também os outorgantes GG e AA não eram os proprietários do prédio identificado em 1.
Quanto a este último ponto, considerando a factualidade dada como provada sob os n.ºs 1 e 2, resulta manifesta a falta de fundamento do invocado, pois que se afigura óbvio que GG subscreveu o documento enquanto proprietário do prédio e na qualidade de herdeiro de HH, qualidade na qual o fez igualmente o aqui autor. Quanto ao facto de a ré não ter subscrito tal documento, a sua invocação afigura-se patentemente abusiva, dispensando, pois, muita análise. De facto, a invocação da nulidade de um determinado documento que corporiza um compromisso que assumiu com o autor, com fundamento na mera falta de intervenção, no mesmo, da sua mulher – e tendo deixado que os autores ficassem convencidos de que o acordo ia ser respeitado, tanto mais que permitiram a construção de um muro e colocação de um portão com a condição de lhes ser entregue uma chave, o que nunca feito, numa atitude altamente censurável -, constitui um claro abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, por violação do princípio da boa-fé[3]. Assim, sempre se verificaria a constituição da servidão por contrato, mediante o mencionado documento, o qual assume a natureza de documento particular autenticado, logo, com força probatória equiparada à dos documentos autênticos (cfr. artigo 377.º do CC)”.
7. Alegam ainda os recorrentes que a constituição da servidão de passagem por destinação de pai de família, como pretendia acautelar o tribunal a quo no despacho de convite ao aperfeiçoamento, não pode ocorrer, pois não foram dados como provados a existência de factos conducentes à existência de sinais visíveis e permanentes, reportados ao tempo da separação do domínio dos prédios.
Outra afirmação que além de difícil de entender é inútil, pois o Tribunal recorrido julgou procedente o pedido principal formulado, de reconhecimento da existência da servidão de passagem constituída por usucapião. E como tal não chegou a conhecer do pedido deduzido subsidiariamente, sobre a constituição da servidão legal de passagem por destinação do pai de família, nos termos do artigo 1547º,1 CC.
8. Finalmente, vêm os recorrentes dizer que “a Meritíssima Juiz a quo, na fundamentação da decisão ora em crise, valorou o depoimento dos Autores enquanto declarações de parte, sendo certo que as declarações de parte não foram requeridas em qualquer momento, quer pelos Autores, quer oficiosamente, pelo que sempre errou no julgamento”.
Vir abordar esta questão nesta sede é um acto inútil, pois a mesma respeita ao julgamento da matéria de facto, e teria sido nessa sede que a sua invocação teria feito sentido. Fazê-lo neste momento, desta forma desgarrada e desligada do julgamento de um facto em concreto, não nos parece pertinente.
Não obstante, mesmo na substância, não assiste razão aos recorrentes.
Como é sabido, à primeira vista, o depoimento de parte apenas poderia servir para obter a confissão de factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à contraparte, no que corresponde à visão clássica da figura (art. 356º,2 CC).
Todavia, e ainda na vigência do anterior Código de Processo Civil, surgiu e foi crescendo uma corrente jurisprudencial que considerava que o depoimento de parte, naquilo que exceder a confissão de factos desfavoráveis à mesma parte, constitui meio de prova sujeito à livre apreciação pelo tribunal (art. 361º CC). Neste sentido foram, entre outros, os Acórdãos do STJ de 2.10.2003 (Ferreira Girão), de 9.5.2006 (João Camilo), de 16.3.2011 (Távora Víctor): neste último escreve-se: “… o depoimento tem um alcance muito mais vasto, podendo o tribunal ouvir qualquer uma das partes quando tal se revele necessário ao esclarecimento da verdade material. E se é certo que “a confissão” só pode versar sobre factos desfavoráveis à parte, não é menos verdade que o Juiz no depoimento em termos gerais não está espartilhado pela confissão, podendo colher elementos para a boa decisão da causa de acordo com o princípio da “livre apreciação da prova”); de 4.6.2015 (João Bernardo).
No Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 22.11.2011 (Araújo de Barros), escreve-se que: “por decorrência do princípio da livre apreciação da prova, embora o depoimento de parte seja o meio próprio para colher a confissão judicial das partes, nada impede que dele se extraiam elementos que contribuam para a prova de factos favoráveis ao depoente ou para a contraprova de factos que lhe sejam desfavoráveis”.
No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/01/015 (Rita Romeira) ponderou-se que “quando a parte presta o seu depoimento não se visa exclusivamente a confissão. O depoimento pode incidir sobre todos os factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento, desde que não sejam criminosos ou torpes (arts. 452º e 454º CPC), podendo ou não conduzir à confissão (art. 453º,2 CPC) e arts. 352º e 361º do CC. Na sequência dos poderes que tem de ouvir qualquer pessoa, incluindo as partes, por sua iniciativa, nada obsta a que o tribunal, na busca da verdade material, tome em consideração, para fins probatórios, as declarações não confessórias da parte, as quais serão livremente apreciadas, nos termos do art. 607º,5 do CPC.
Não sendo os factos reconhecidos, através do depoimento de parte, desfavoráveis ao depoente, os mesmos não têm valor confessório. No entanto, sendo as declarações, prestadas pelas partes, sob juramento, cfr. art. 459º do CPC, podem ser valoradas pelo tribunal para fundar a sua convicção acerca da veracidade de factos controvertidos favoráveis a qualquer delas
”.
E no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23/6/2015 (Henrique Antunes) escreve-se que “é admissível a valoração do depoimento de parte, no segmento em que não produz confissão, à luz da livre apreciação do tribunal”.
Na base do regime positivado pretérito estava a ideia de que ninguém deve ser testemunha em causa própria (“nemo debet esse testis in propria causa”). Entendia-se que isso seria abrir as portas ao perjúrio. Porém, a praxis judiciária demonstrou cabalmente que a inadmissibilidade da prestação de declarações de parte conduzia com frequência a assimetrias no exercício do direito à prova, dificilmente compagináveis com o princípio da igualdade de armas ínsito no direito à prova. Pense-se por exemplo nos julgamentos de acidente de viação em que o autor/condutor – por ser formalmente parte - não era ouvido quanto ao relato da dinâmica do acidente enquanto o segurado (e também condutor) da Ré (Seguradora) era sempre arrolado como testemunha. Acresce ainda que existem com frequência factos integradores da causa de pedir que não podem ser provados, na maior parte das situações, senão com o depoimento das próprias partes que os vivenciaram, sendo por natureza avessos à prova documental, testemunhal e mesmo pericial: é o que sucede com os factos de natureza estritamente doméstica e pessoal que habitualmente não são percepcionados por terceiros de forma directa, factos respeitantes a “acontecimentos do foro privado, íntimo ou pessoal dos litigantes”. Neste tipo de situações, a não admissão de depoimentos de parte poderia fazer perigar o direito à prova, no quadro da garantia de um processo equitativo e orientado para a verdade material (verdade formal é uma contradição nos próprios termos).
Finalmente, numa perspectiva sistemática, pense-se ainda que no Código de Processo Penal de 1987 declarações de arguidos, assistentes e demandantes civis são meios de prova, a produzir logo na abertura da audiência de julgamento. E assistentes e demandantes civis ficam sujeitos ao dever de responder com verdade, apenas não prestando o juramento legal. Só no caso do arguido o legislador fugiu a este regime, atribuindo a esse sujeito processual -é verdade-, de forma envergonhada ou “encapotada” o direito a mentir em audiência (arts. 359º,2 e 140º,3 CPP), mas erigindo as declarações deste sujeito processual, sem qualquer margem de dúvida, em meio de prova.
Sendo assim a orientação da jurisprudência, e sendo assim no âmbito do processo penal, acabou por vir o legislador, na reforma processual civil de 2013, criar a figura tão reclamada das declarações de parte (art. 466º CPC).
Assim, não há qualquer impedimento em valorar o conteúdo dos depoimentos de parte produzidos, não apenas nos estritos limites da confissão, mas como relato factual feito por sujeitos processuais que estão obrigados a responder com verdade, sendo que, fora do regime da confissão, as respectivas declarações ficarão sujeitas à regra da livre apreciação da prova. Foi assim que o Tribunal recorrido as apreciou, e o mesmo fez esta Relação.
Em conclusão, o recurso improcede.
       
V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente e confirma na íntegra a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 16.1.2025
 
Relator
(Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Raquel G. C. Batista Tavares)
2º Adjunto (Paulo Reis)


[1] Que, apesar de tudo, não são impeditivas de uma reapreciação total da prova com vista à formação da convicção do Juíz da Relação.
[2] Conselheiro Abrantes Geraldes, ob cit, fls. 286.
[3] Destaque nosso.