Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
220/18.1T8VFL.G1
Relator: PAULA RIBAS
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL DO LADO ATIVO
JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
ÓNUS DA PROVA
INEFICÁCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 – A ação que visa a impugnação de justificação notarial, mas em que o autor requer também o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel objeto de justificação tem uma dupla finalidade, sendo de apreciação negativa no primeiro segmento, e de apreciação positiva no segundo, com relevantes consequências na repartição do ónus da prova, considerando cada uma das pretensões deduzidas.
2 - Sendo chamados a intervir, do lado ativo, os demais herdeiros titulares do direito controvertido, de forma a assegurar a legitimidade da autora para a ação, é-lhes lícito nada alegar ou requerer depois de citados, sem que tal ausência intervenção tenha qualquer relevância para a posterior tramitação dos autos.
3 – Realizada escritura de justificação notarial, a não alegação dos factos que dela constam relativos à sua aquisição por usucapião, e assim, a sua não prova, conduz à sua ineficácia e não a sua nulidade.
4 – É também ineficaz, e não nula, a compra e venda do imóvel que tenha sido efetuada sem qualquer intervenção do seu proprietário.
Decisão Texto Integral:
I – Relatório (elaborado com base no que foi redigido em 1.ª Instância):

AA intentou a presente ação de processo comum contra BB, CC, DD e EE, requerendo que se:

- declarassem validamente impugnados os factos justificados e referidos na escritura de justificação notarial de 09 de julho de 2018, referentes à invocada aquisição pelos 1.ºs réus, por usucapião, da metade do prédio identificado em 2.º da petição inicial, declarando-se nula e de nenhum efeito a referida escritura de justificação;
- declarasse nula e sem qualquer efeito a venda efetuada pelos 1.ºs réus aos 2.ºs réus, também na escritura notarial de 09 de julho de 2018;
- decretasse que o prédio descrito em 2.º da petição inicial pertence, na sua totalidade, à herança ilíquida aberta por óbito de FF e GG e condenar os réus a reconhecer isso mesmo;
- determine o cancelamento de todo e qualquer registo que tenha por base a escritura de 09/07/2018, seja no domínio da justificação efetuada pelos 1.ºs réus, seja na compra e venda efetuada aos 2.ºs réus.
Em 12/04/2019 foi proferido despacho que, reconhecendo a ilegitimidade ativa da autora, pela preterição de litisconsórcio necessário ativo, a convidou a fazer intervir, do lado ativo, todos os herdeiros de FF e GG.
Em resposta a este convite, a autora deduziu incidente de intervenção principal provocada de HH, II, JJ, KK, LL, MM e NN.
A sua intervenção principal, do lado ativo, foi deferida por despacho de 05/06/2019.
Perante a constatação do falecimento da interveniente HH, a autora deduziu incidente tendo em vista a intervenção principal provocada dos seus herdeiros, identificando-os como sendo OO, PP e QQ
Foi admitida a sua intervenção principal, do lado ativo.
Devidamente citados, os intervenientes não apresentaram qualquer articulado.
Também os réus, apesar de regularmente citados, não deduziram contestação, tendo, porém, constituído mandatário.
RR e SS vieram deduzir incidente de intervenção principal espontânea, requerendo a sua intervenção nos autos como parte principal, peticionando:
- a declaração de impugnação dos factos justificados na escritura de justificação notarial de 09 de julho de 2018 realizada pelos réus BB e CC, quanto à aquisição de metade do prédio identificado em 6.º da intervenção, de que os requerentes são comproprietários, por direito sucessório;
- a declaração de nulidade da citada justificação, bem como da venda subsequente, na proporção de meio indiviso de tal prédio;
- a declaração de que 1/2 indiviso do prédio descrito em 6.º é propriedade da herança indivisa aberta por óbito de TT, da qual são herdeiros legitimários.
A requerida intervenção principal espontânea foi oficiosamente convolada em incidente de oposição espontânea, tendo sido admitida a intervenção de RR e SS como opoentes.
A autora, réus e intervenientes foram notificados para contestar a pretensão destes, tendo a primeira excecionado a ilegitimidade ativa dos opoentes, concluindo pela improcedência dos pedidos formulados.
Os 1.ºs e 2.ºs réus não deduziram contestação.
Os intervenientes principais nada disseram.
Foi apresentado articulado de resposta pelos opoentes.
No despacho saneador proferido foi apreciada a arguida exceção de ilegitimidade dos opoentes, tendo a mesma sido julgada improcedente.
No início da audiência, em 05/12/2022, foi proferido despacho que determinou a retificação dos termos em que haviam sido elaborados os temas de prova, nos termos requeridos pela autora em 19/09/2022.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou procedente a ação e, assim, decidiu:

I - Declarar validamente impugnados os factos justificados e referidos na escritura notarial de 09/07/2018, referentes à aquisição pelos 1.ºs réus, por usucapião, da metade do prédio indicado no ponto 2) dos factos provados.
II - Declarar a nulidade e em consequência a produção de nenhum efeito da escritura de justificação referida em I, e declarar a nulidade e em consequência a produção de nenhum efeito da venda efetuada pelos 1.ºs réus aos 2.ºs réus, também na escritura notarial de 09/07/2018.
III - Declarar que o prédio descrito em 9) pertence na sua totalidade à herança ilíquida aberta por óbito de FF e GG.
IV - Condenar os réus e opoentes a reconhecerem o declarado nos pontos I a III, com as legais consequências.
V- Determinar o cancelamento de todo e qualquer registo que tenha por base a escritura de 09/07/2018 referida em I, seja no domínio da justificação efetuada pelos 1.ºs réus, seja na compra e venda efetuada pelos 2.ºs réus”.
Inconformados, vieram os 1.ºs réus apresentar recurso de apelação, apresentando as seguintes conclusões, que se reproduzem nos exatos termos em que foram apresentadas nos autos:
(…)
Não foram apresentadas contra-alegações.
**
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - Questões a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes – arts.º 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:

1 - qual a espécie desta ação, considerando o fim a que se destina;
2 - se existiu uma ilegal ampliação do pedido formulado;
3 - se foi omitida qualquer notificação aos intervenientes principais, do lado ativo, considerando que, citados, estes intervenientes não constituíram mandatário nem apresentaram qualquer articulado;
4 - se existe fundamento para alterar a decisão sobre a matéria de facto.
5 - se, alterada ou não a decisão sobre a matéria de facto provada, existe fundamento para alterar a decisão de direito.

III - Fundamentação de facto:

Estando impugnada a factualidade considerada provada e não provada, o elenco dos factos provados a considerar será descrito após a apreciação dessa impugnação.

IV - Do objeto do recurso:

1 – Começam os 1.ºs réus recorrentes por questionar a natureza desta ação, alegando que não era de simples apreciação negativa, pois que a autora peticionava, pela positiva, o reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel que identifica, alegando a sua aquisição por usucapião (não sendo relevante, neste contexto, apreciar se tal reconhecimento era relativo à totalidade do imóvel ou apenas à metade que tinha sido objeto da escritura de justificação notarial).
Esta questão tem apenas relevância prática se considerarmos as regras substantivas relativas à repartição do ónus da prova e, apenas com esse relevo, será apreciada.
Os pedidos formulados pela autora correspondem a duas diferentes pretensões, com ónus de alegação e prova também diferentes.
Assim, se é verdade que, pedindo a autora que se reconhecesse determinado direito de propriedade, lhe incumbia o ónus de alegação e prova dos factos constitutivos do direito por si invocado (nos termos do art.º 342º, n.º1, do C. Civil), na parte em que pediu a impugnação da justificação notarial realizada pelos 1.ºs réus e que permitiu o negócio que realizaram com os 2.ºs réus, incumbia aos 1.ºs réus a alegação e prova dos factos alegados na justificação notarial realizada (nos termos do art.º 343.º, nº1, do C. Civil).
Resulta, pois, claro que, no que diz respeito aos pedidos formulados e nos quais estava em causa a impugnação da justificação notarial – e que se reportam a parte dos pedidos 1, 2, 3 e 5 –, a presente ação era de simples apreciação negativa (art.º 10.º do C. P. Civil), incumbindo aos réus alegar e provar os factos alegados na escritura de justificação notarial tendo em vista a inscrição da sua aquisição a seu favor (quanto à metade do imóvel que foi justificada).
Tais factos não foram alegados e, como tal, não resultaram provados.
Tanto bastaria, diga-se, para que que se declarasse a ineficácia da escritura de justificação notarial, pela simples circunstância da autora e da opoente terem impugnado judicialmente aquele ato de justificação e não estarem alegados os factos que suportavam a aquisição por usucapião aí descrita (quanto à metade do imóvel que foi objeto daquela escritura de justificação).
A simples impugnação judicial da escritura de justificação notarial não implica, sem mais, que se reconheça ao autor da impugnação qualquer direito sobre o imóvel justificado, sendo claramente possível que a ação de impugnação seja julgada procedente (ou melhor, dizendo, os pedidos que a ela respeitam) porque os justificantes não logram demonstrar a prática dos atos materiais de posse que permitiam adquirir o imóvel por usucapião e, ainda assim, não resultar demonstrada a versão do impugnante quanto à aquisição do imóvel por usucapião se, para além de impugnar a escritura de justificação notarial, reclamar para si a aquisição originária do direito de propriedade sobre o imóvel.
Temos, pois, que esta ação, no que se reporta ao fim a que se destina, é de impugnação de justificação notarial e, nessa medida, de simples apreciação negativa, mas, também, de simples apreciação positiva, quando tem por fim o reconhecimento do direito de propriedade das heranças de que a autora afirma ser herdeira sobre o imóvel identificado – vide, neste exato sentido, estando em causa a impugnação da justificação notarial e o pedido formulado de reconhecimento do direito de propriedade sobre o imóvel, o Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 19/11/2020, do Juiz Desembargador José Amaral, proc. 74/19.0T8TMC.G1, in www.dgsi.pt.
Note-se que também encontramos esta mesma dupla finalidade da ação quando analisamos os pedidos que foram formulados pelos opoentes, assumindo a ação que enxertaram nestes autos também ambos os fins, com as mesmas características e regras de repartição do ónus de prova (aqui, apenas em relação à metade do imóvel que foi objeto da escritura notarial de justificação).
*
2 – Os 1.ºs réus vieram ainda alegar que o Tribunal a quo admitiu uma ilegal ampliação do pedido formulado, considerando o despacho que foi proferido no início da audiência de discussão e julgamento e relativo à retificação do objeto do litígio e dos temas da prova.
Começa por dizer-se que o despacho proferido sobre as reclamações ao despacho saneador apenas pode ser impugnado com o recurso interposto da decisão final, nos termos do art.º 596.º. n.º 3, do C. P. Civil.
Em rigor, não se pode afirmar que os 1.º réus estejam, nesta apelação, a impugnar tal decisão.
Não obstante, sempre se dirá que não lhes assiste qualquer razão.
Como decorre com clareza da petição inicial, a autora impugnava o ato de justificação notarial que foi realizado e que se reportava a metade do imóvel nela identificado, mas requeria, pela positiva, o reconhecimento do direito de propriedade sobre a totalidade do imóvel, afirmando que o mesmo pertencia às heranças em que é interessada.
É o que se retira da sua alegação da petição inicial, nomeadamente quando referiu que:
art.º 10.º: nunca os 1.º (s) Réus possuíram o prédio referido na escritura de justificação que agora se impugna, mormente o prédio correspondente ao artigo ...82.º da freguesia ..., seja na invocada proporção de metade que justificaram, mas também na outra metade que se encontrava registada em favor do justificante marido.
art.º 23.º: a totalidade e integralidade do imóvel em causa, artigo ...82.º da freguesia ..., foi adquirido pelos avós da Autora, UU e VV, há mais de 60 anos, por compra verbal, a WW, imediatamente após a morte do marido da mesma, XX, e antes daquela emigrar com os seus filhos para o ..., local de onde não mais regressou.
art.º 24.º: desde então, até cerca do ano de 1988, ou seja durante mais de 30 anos, foram aqueles, ininterruptamente, que possuíram, usaram e fruíram o prédio em apreço como coisa inteiramente sua.
art.º 25.º: sendo que no ano acima referido, 1988, os acima referidos, UU e esposa VV, procederam a partilhas em vida de todos os seus prédios, distribuindo tais prédios pelos seus filhos, partilhas verbais, não formalizadas em documento autêntico, tendo o prédio em apreço, recorda-se artigo ...82 da freguesia ..., sido adjudicado à filha dos acima referenciados, FF, tendo tal imóvel, pelo facto de ser casada com GG no regime da comunhão geral (Vide documento 2,) passado a integrar o património comum do referido casal.
art.º 26.º: assim, a partir 1988, a referida FF e o seu marido, GG, durante cerca de 3 anos, e partir de 1991, data do óbito daquele (Vide documento 2) a referenciada FF juntamente com os seus filhos, até à morte da mencionada FF em 2016 (Documento 2) ou seja durante 28 anos, usaram, possuíram e fruíram o prédio em causa como coisa inteiramente sua, tal qual os seus pais, sogros e avós haviam feito.
art.º 27.º: sendo que, após a morte da referida FF, foram os seus filhos, entre os quais a aqui Autora, AA, (Documento 2) que passaram a usar, possuir, e fruir o prédio em causa como coisa inteiramente sua, tal qual os seus antecessores haviam feito”.
Em conformidade com esta alegação, a autora peticionava (nos pontos 4.º e 5.º dos pedidos formulados), que se declarasse que o prédio identificado no art.º 2º do da petição inicial pertencia na sua totalidade à herança aberta por morte de FF e GG e que os réus fossem condenados a reconhecer isso mesmo.
Ora, ao proferir-se despacho saneador nestes autos, em 26/07/2022, fez-se constar apenas como objeto do litígio aferir da titularidade do direito de propriedade de metade do referido prédio rústico (a metade que havia sido objeto de escritura de justificação notarial), reportando-se também os temas da prova a essa única metade.
Assim, quando apresentou a sua reclamação ao despacho saneador, como resulta do requerimento da autora de 19/09/2022 (notificado às demais partes e que nada disseram), aquela alegou precisamente que “a autora e os demais intervenientes a título principal, reivindicam, e alegam a existência de atos de posse conducentes à aquisição do direito de propriedade, não relativamente a apenas metade do prédio em causa, mas sim no que concerne à sua totalidade, vide factos alegados na petição inicial e pedidos aí formulados, mormente no ponto 4.º do pedido da Autora, quando se requer se se declare “que o prédio descrito em 2.º desta petição pertence, sua totalidade à herança ilíquida aberta por óbito de FF”. 
E, assim, requereu em conformidade a retificação quer do objeto do litígio, quer dos temas da prova, de modo a que neles fosse incluída a referência à totalidade do imóvel.
Resulta assim claro que a retificação efetuada era a que se impunha perante as questões colocadas pela autora na presente ação e os factos por si alegados, razão pela qual nenhuma censura merece o despacho proferido no início da audiência de discussão e julgamento e que deferiu a reclamação apresentada.
Não existiu, assim, qualquer ilegal ampliação do pedido inicialmente formulado pela autora, improcedendo este fundamento da apelação.
 
3 – Alegam ainda os 1.ºs réus que foi omitida a notificação prevista no art.º 41.º do C. P. Civil aos intervenientes, considerando que, estes, devidamente citados para intervir nos autos como associados da autora, não constituíram mandatário, nem apresentaram qualquer articulado.
Esta questão foi já suscitada nos autos, na audiência realizada em 17/05/2023, tendo sido proferido o seguinte despacho:
“Veio a Ilustre Mandatária dos réus BB e CC suscitar a questão já discutida e sanada da ilegitimidade ativa, uma vez que não estariam presentes na ação todos os herdeiros.
Os mesmos foram citados para a presente ação, ficando na sua livre disponibilidade ter uma intervenção mais ativa ou menos ativa no processo, tendo sido advertidos que a ação era de patrocínio obrigatório como se sabe.
Feita essa advertência, competirá às partes advertidas, constituir mandatário.
Não tendo as mesmas constituído qualquer mandatário, pelo que não se afigura existir qualquer exceção dilatória, acrescentando-se até que apenas na segunda sessão de julgamento é suscitada pela Ilustre Mandatária a referida exceção.
Nesse sentido, condena-se em multa processual que se fixa em 1UC, os réus que a Ilustre Mandatária representa, pelo fato de só agora levantar essa questão, tendo tido oportunidade de o fazer em momento anterior.
Assim sendo, vamos prosseguir a audiência com a audição das testemunhas da autora”.
Os 1.ºs réus não apresentaram recurso de apelação em relação a este despacho.
Ainda assim, sempre se dirá que não foi omitida qualquer notificação, pois que os intervenientes citados optaram por não deduzir qualquer pretensão, nem aderir à posição da autora.
Reconhecendo-se a ilegitimidade ativa da autora para a propositura desta ação, a mesma foi convidada a fazer intervir, do lado ativo desta ação e tendo em vista assegurar a sua legitimidade, os demais herdeiros de FF e marido.
Esta intervenção foi admitida, os demais herdeiros foram citados e não apresentaram qualquer articulado.
Tal não significa que não estejam na ação. Fazem parte desta ação desde que foram citados e a decisão proferida relativa à relação jurídica de que são titulares constitui, contra eles, caso julgado, apesar de nenhum articulado terem apresentado – art.º 320.º do C. P. Civil.
Como referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil, Volume I, fls. 411, quanto a este incidente, “o regime ora instituído acerca do valor da sentença mostra que, uma vez citado para o processo, é indiferente se o chamado intervém realmente nos autos. Com efeito, intervindo ou não, a sentença que julgue materialmente a causa apreciará a relação jurídica em cujo âmbito ocorreu o chamamento e valerá como caso julgado para o chamado, o que se justifica, desde logo, porque o mesmo, uma vez citado, passa a ter o estatuto de parte”.
Assim, citados os intervenientes para se associarem à autora, por existir uma situação de litisconsórcio necessário, nos termos do art.º 316.º do C. P. Civil, a circunstância destes nada terem requerido não tem qualquer consequência processual, nem estes estão obrigados a constituir mandatário se optaram por nada declarar nos autos.
Quando a constituição de mandatário é obrigatória, como resulta do disposto no art.º 40.º do C. P. Civil, tal constituição apenas se exige, naturalmente, quando a parte pretenda praticar qualquer ato processual.
Assim, tal como o réu quando é citado para a ação, se decidir não a contestar, não tem de constituir mandatário, também os intervenientes principais, citados para se associar à autora, quando nenhum ato pretendam praticar nos autos, não têm de constituir mandatário.
Improcede assim também este fundamento da apelação.

4 - Da impugnação da matéria de facto:
4.1. Em sede de recurso, os apelantes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.

Dispõe o art.º 640.º do C. P. Civil, que:
1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo, de poder proceder à transcrição do excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
A jurisprudência tem entendido que desta norma resulta um conjunto de ónus para o recorrente que visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2015, da Juiz Conselheira Ana Luísa Geraldes, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1 in www.dgsi.pt, das normas aplicáveis resulta que “recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão”.
Estes ónus exigem que a impugnação da matéria de facto seja precisa, visando o regime vigente dois objetivos: “sanar dúvidas que o anterior preceito ainda suscitava e reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expressa a decisão alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova” (cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, pág. 198).
Recai assim sobre o recorrente o ónus de, sob pena de rejeição do recurso, determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretendem questionar (delimitar o objeto do recurso), motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação (fundamentação) que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre cada um dos factos que impugnam e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No âmbito da impugnação da matéria de facto não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento da alegação, ao contrário do que se verifica quanto às alegações de direito (vide Abrantes Geraldes, no livro já citado, pág. 199).
Veja-se, por todos, a jurisprudência citada no Acórdão recente do Supremo Tribunal de Justiça de 12/10/2023, da Juiz Conselheira Maria da Graça Trigo, proc. 1/20.2T8AVR.P1.S1, e em particular o Acórdão do mesmo Tribunal de 10/12/2020 (proc. n.º 274/17.8T8AVR.P1.S1), nele citado, que estabelece que “na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no art. 640.º do CPC, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal”.
Analisadas as alegações apresentadas, os recorrentes indicam de forma correta os factos que pretendem sejam decididos de forma diversa, fundamentando a sua alegação em concretos meios probatórios que entendem permitir concluir no sentido por si proposto, nada obstando assim à reapreciação da matéria de facto da decisão recorrida.
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4.2. Nos termos do art.º 662.º, n.º 1, do C. P. Civil, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 12/10/2023, da Juiz Desembargadora Margarida Gomes, proc. 2199/18.3T8BRG.G1, in www.dgsi.pt, “a reapreciação da prova pela 2ª Instância, não visa obter uma nova e diferente convicção, mas antes apreciar se a convicção do Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência comum e da lógica, atendendo aos elementos de prova que constam dos autos, aferindo-se, assim, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto.
De todo o modo, necessário se torna que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido, conforme a parte final da al. a) do nº 1 do artº 640º, do Código de Processo Civil.
Competirá assim, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, atendendo ao conteúdo das alegações do recorrente, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados”.
Começam os recorrentes por questionar os factos provados em 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 da matéria de facto provada e que deveria considerar-se provada alínea c) da matéria de facto não provada:
9- No prédio rústico composto de vinha, terra para centeio e horta, sito no lugar de “...”, na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...82, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ..., há mais de 60 anos que não se produz qualquer tipo de cereal, pois o avô da Autora, também sensivelmente há 60 anos, plantou, na totalidade de tal prédio, vinha, produzindo-se, desde então, no prédio em apreço, uvas.
10- Vinha que subsistiu até há 5 anos atrás, data em que a mãe da autora arrancou a mesma, pois vendeu a licença da vinha que aí possuía, permanecendo, desde aí, tal prédio, sem qualquer cultura, sendo, no entanto, lavrado, para estar apto para proceder à plantação de outra cultura.
11- A totalidade e integralidade do imóvel em causa, descrito em 9), foi adquirido pelos avós da autora, UU e VV, há mais de 60 anos, por compra verbal, a WW, imediatamente após a morte do marido da mesma, XX, e antes daquela emigrar com os seus filhos para o ..., local de onde não mais regressou.
12- Desde então, até cerca do ano de 1988, ou seja, durante mais de 30 anos, foram aqueles, ininterruptamente, que possuíram, usaram e fruíram o prédio em apreço como coisa inteiramente sua.
13- Sendo que no ano acima referido, 1988, os acima referidos, UU e esposa VV, procederam a partilhas em vida de todos os seus prédios, distribuindo tais prédios pelos seus filhos, partilhas verbais, não formalizadas em documento autêntico, tendo o prédio em apreço descrito em 9), sido adjudicado à filha dos acima referenciados, FF, tendo tal imóvel, pelo facto de ser casada com GG no regime da comunhão geral, passado a integrar o património comum do referido casal.
14- A partir de 1988, a referida FF e o seu marido, GG, durante cerca de 3 anos, e a partir de 1991, data do óbito daquele, a referenciada FF juntamente com os seus filhos, até à morte da mencionada FF em 2016, ou seja, durante 28 anos, usaram, possuíram e fruíram o prédio em causa.
15- Após a morte da referida FF, foram os seus filhos, entre os quais a aqui autora, AA, que passaram a usar, possuir, e fruir o prédio em causa como coisa inteiramente sua, tal qual os seus antecessores haviam feito.
16- Fruição que se consubstanciou no somatório de atos próprios dos proprietários, mormente plantando, cultivando, lavrando, colhendo os frutos, mormente uvas, entrando e saindo do mesmo sempre que queriam e entendiam, defendendo e conservando tal imóvel, pagando as contribuições respetivas e dele se servindo de acordo com a sua normal utilização e destino, como coisa inteiramente sua, tal qual os seus pais, sogros e avós haviam feito.
17- Fazendo-o à vista de toda a gente, de forma pacífica, sem oposição de ninguém, na convicção que exerciam direito próprio e que não lesavam direitos de terceiros.
c) A avó dos opoentes, YY, nunca abandonou o seu património sito em Portugal, já que pagava impostos, ordenava e dividia despesas de limpeza do mesmo, tendo autorizado a par da mãe dos opoentes, TT e o réu que, durante largos anos que tal prédio fosse cultivado e do mesmo fizessem total fruição, inicialmente UU e VV e mais tarde à filha destes FF e cônjuge GG, a título de empréstimo”.
Procedeu-se à audição de todos os depoimentos prestados, partes e testemunhas.
Analisou-se toda a prova documental.
A impugnação da matéria de facto que foi apresentada é manifestamente infundada.
Não existe qualquer divergência entre os depoimentos prestados sobre quem utilizou o imóvel (na sua totalidade) desde 1952, ano em que a mãe do 1.º réu e avó dos opoentes, então viúva, emigrou para o ..., acompanhada dos seus filhos menores.
Também não existe qualquer dúvida que junto a esse imóvel existe um outro, com diferente inscrição matricial, que sempre esteve na família da autora
Estes dois imóveis são e sempre foram, no contexto da prova produzida, cultivados como se fossem um só, sem qualquer demarcação ou divisória (sendo certo que as testemunhas se referem a este conjunto como um único prédio, desconhecendo que existiam duas inscrições matriciais). E, neste contexto, é até relevante o levantamento topográfico que foi efetuado a pedido do 1.º réu (num contexto de litígio já entre aquele e a autora no âmbito de outro processo) e que pretendeu separar, no desenho, aquilo que não apresenta no terreno qualquer diferença: onde começava um artigo matricial e onde começava o outro.
 Os documentos demonstram que o imóvel que aqui esta em causa – e cuja metade foi objeto da escritura de justificação notarial – foi partilhado na sequência da morte do pai do 1.º réu, quando este era ainda menor, tendo ficado então a pertencer a proporção de metade ao 1.º réu e à irmã TT (mãe dos opoentes) – as licitações são de 20/01/1949 e a sentença de adjudicação é de 24/01/1949 (certidão do inventário orfanológico junta com o articulado dos opoentes).
O 1.º réu procedeu ao registo desta aquisição (de metade) em 12/01/1994 (descrição predial com o n.º ...75, da freguesia ... da Conservatória do Registo Predial ...).
Para proceder ao registo da aquisição da metade que foi adjudicada à sua irmã, o 1.º réu realizou uma escritura de justificação notarial, alegando ter adquirido essa metade por compra e venda verbal que fez à irmã, declarando que teria praticado desde essa aquisição atos de posse em nome próprio que permitiriam tê-la adquirido por usucapião, tendo de seguida procedido à venda da totalidade do imóvel aos 2.ºs réus.
São estes os factos que se retiram dos documentos juntos.
Estes factos nada têm a ver com a factualidade dada como provada e que se prende com os atos materiais realizados sobre a totalidade do imóvel (e não apenas sobre a metade) e a convicção com que tais atos eram praticados.
E, nesta matéria, a prova produzida em audiência de julgamento foi inequívoca, clara e convincente.
Foram ouvidos a autora, o 1.º réu e o 2.º réu.
Foram ouvidas as três testemunhas que tiveram, como tal, intervenção na escritura de justificação notarial: ZZ, AAA e ....
Foram ouvidos BBB, CCC, DDD, EEE, vizinhos da autora que sempre conheceram aquele imóvel, apesar da ausência, por emigração, tendo, porém, regressado todos os anos à aldeia para férias, uma ou duas vezes, e FFF, ex marido da autora. 
As únicas testemunhas que negaram ter existido um negócio entre a mãe do 1.º réu e os avós da autora foram as indicadas como testemunhas na escritura de justificação notarial.
Destas, a testemunha ZZ conheceu o imóvel em 2018/2019, aquando da realização do levantamento topográfico referido e, como tal, sabia sobre o prédio o que lhe foi dito pelo 1.º réu, para quem tratava de assuntos jurídicos relacionados com o seu património.
Assumiu, por isso, como verdadeiro o que este lhe contou, afirmando (de forma inexplicável, dir-se-á para quem tem formação jurídica), que conhecia os documentos existentes e, assim, o acerto das afirmações do 1.º réu. Ora, o que os documentos que analisou lhe diriam seria, apenas, que o 1.º réu se presumia proprietário da metade do imóvel que lhe foi adjudicada no inventário obrigatório instaurado pelo falecimento do pai e não que tal direito existia também em relação à metade que testemunhou pertencer-lhe na escritura de justificação notarial, com base, todos percebemos, na versão que o 1.º réu lhe contou e alicerçada na realização verbal de um negócio com a irmã, que os sobrinhos, filhos desta, nestes autos, contestam alguma vez ter existido.
Como é evidente, perante o Tribunal, esta testemunha, advogada de profissão mas que depôs, apenas, sobre o que testemunhou como amiga do 1.º réu, não foi já capaz de afirmar o que então abonou, ou seja, que o 1.º réu praticou sobre aquela metade (a adjudicada à irmã) os atos materiais de posse, em nome próprio, que estão referidos na escritura de justificação notarial, refugiando-se em afirmações jurídicas com base nas regras do registo predial, sendo certo que foi a inexistência destas que obrigou à realização a escritura na qual teve intervenção como “testemunha”.
As demais testemunhas – AAA e ... – afirmaram que o imóvel em causa era da família do 1.º réu (e era, todo o sabemos), desconhecendo se havia sido ou não vendido à família da autora, embora soubessem que quem sempre viram tratar do imóvel foi a família da autora.
Não é essa a origem que está em causa, pois que, na versão também da autora, o prédio em causa pertenceu efetivamente à família do 1.º réu, afirmando-se, porém, um negócio posterior de natureza verbal.
Ou seja, em rigor, nenhuma das testemunhas referidas na escritura pública de justificação notarial, sabia se tinha ou não existido esse negócio verbal, fosse com quem fosse.
Note-se que a testemunha AAA desconhecia também que foi vendida uma casa pela mãe do 1.º réu ao avô da autora, onde este chegou a viver, facto que o réu não contesta (tendo admitido tal venda pela mãe, e de outros terrenos que pertenciam aos irmãos maiores, nas declarações que prestou).
Ou seja, nenhuma destas testemunhas sabia se os avós da autora apenas trabalhavam o terreno – porque sabiam que o trabalhavam – porque estavam autorizados pela mãe do 1.º réu, ou porque entendiam que o terreno lhes pertencia.
Daqui decorre que a única pessoa que afirma a existência de autorização para o cultivo do terreno ou uma situação de mera tolerância da mãe do 1.º réu é ele próprio, que saiu de Portugal com cerca de cinco/seis anos. Autorização essa que, embora alegue ter sido mantida pela irmã e por ele próprio, nunca esclareceu quando a deu e em que circunstâncias, já que a irmã nunca voltou a Portugal e o 1.º réu voltou apenas após de 40 anos de emigração.
Ora, todos os demais elementos de prova apontam no sentido contrário.
Em primeiro lugar, as testemunhas que referiram que o avô da autora afirmava ter adquirido este terreno (e não só este) à referida mãe do 1.º réu, quando esta emigrou com os filhos para o ..., sem que aquela tivesse voltado a Portugal.
O próprio 1.º réu declarou ter voltado a Portugal ao fim de cerca de 40 anos emigrado no ..., voltando, depois, periodicamente, tendo sempre sido confrontado com a posição da avó e depois da mãe da autora que afirmavam que o terreno então já era delas.
Ou seja, esta afirmação de que eram donos, sempre foi efetuada à frente de toda a gente, incluindo do 1.º réu (que afirmou que até era possível que as pessoas pensassem que “aquilo” era delas). Aliás, para contestar esta afirmação, afirmou o 1.º réu que mostrava “os documentos” que demonstravam que o imóvel lhe pertencia, porque o herdou do pai, quando, como todos sabemos, o que está em causa não são esses documentos. mas os atos materiais que possam ter sido praticados sobre o imóvel desde que ele e a mãe foram para o ..., regressando apenas o primeiro após cerca de 40 anos.
Em segundo lugar, porque as testemunhas referiram que a família da autora sempre fez o que queria do imóvel, colhendo as uvas, fazendo a horta, usando a água do poço, acabando com a vinha (e vendendo a licença), colhendo os frutos das árvores existentes, tendo o avô da autora chegado a fazer preço para vender o imóvel à testemunha EEE (que não comprou porque não concordou com o valor pedido).
E, aqui, não pode deixar de referir-se as declarações do 2.º réu que confirmou que, após ter feito o negócio, várias pessoas na aldeia lhe disseram que o imóvel pertencia afinal à família da autora de quem era, até, familiar afastado (mostrando algum desgaste com esta situação).
Diga-se, por último, que é absolutamente destituído de fundamento afirmar que inexiste prova sobre a prática de atos materiais por parte da autora AA. O próprio 2.º réu afirmou que, quando adquiriu o imóvel, nesse ano não o limpou porque este estava limpo, só o tendo procurado fazer no ano seguinte, e tendo sido então impedido pela autora. Ora, como o 1.º réu afirma, o imóvel sempre esteve a ser tratado pela família da autora e, nos últimos tempos, por esta, e, assim, os últimos atos materiais praticados foram-no a seu mando, fosse por aquele que era então seu marido, ouvido como testemunha, ou pelas pessoas que aquela AA contratava para o efeito.
Diga-se que, em relação à alínea c), da matéria de facto não provada, nenhuma prova se produziu que sustente qualquer ligação da mãe dos opoentes à metade do imóvel que lhe foi adjudicada no processo de inventário instaurado por morte do pai, antes de ir para o ..., ainda menor de idade, e de onde nunca mais regressou.
Não pode, contudo, manter-se o facto provado em 18, pois que o mesmo não traduz qualquer realidade fáctica, mas a conclusão que se extrairá (ou não) dos factos que resultem provados e que permitam afirmar o direito de propriedade sobre o imóvel. Aliás, o que se visa com esta ação é, precisamente, em parte, saber se o direito de propriedade que se afirma no facto 18 pode ou não ser reconhecido.
Como decorre do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/09/2023, do Juiz Desembargador Jerónimo Freitas, in www.dgsi.pt, “conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, mormente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado a jusante, na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Dito de outro modo, só os factos materiais são suscetíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objeto de prova”, remetendo para o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/09/2009 do Juiz Conselheiro Bravo Serra, proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1, também ele disponível in www.dgsi.pt.
Nas palavras de Anselmo de Castro só “acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objeto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste” (Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, Volume III, 1982, pág. 268/269).
O Tribunal seguirá aqui de perto o entendimento expresso no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/09/2019, da Juiz Conselheira Rosa Ribeiro Coelho, proc. 1333/15.7T8LMG.C1.S1, in www.dgsi.pt: “no regime anterior na audiência de julgamento, após a produção da prova, abria-se o debate sobre a matéria de facto, com produção de alegações sobre o tema pelos advogados das partes, e seguia-se o proferimento de decisão onde se julgavam os factos, indicando-se os tidos como provados e aqueles que se consideravam como não provados. Ultrapassada a fase em que às partes era facultada a discussão sobre o aspeto jurídico da causa, era proferida a sentença na qual, além do mais, se discriminavam os factos admitidos por acordo, os factos provados por documento ou por confissão reduzida a escrito e os factos constantes do acórdão ou do despacho proferido no final da audiência; seguia-se a indicação interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes a esses factos, assim se chegando à decisão final - tudo nos termos enunciados nos arts. 652º, 653º e 659º do CPC então vigente,
Atualmente, porém, à audiência final, onde são produzidas as provas e as partes produzem alegações sobre a matéria de facto e o direito aplicável, segue-se o proferimento da sentença, em cuja fundamentação o juiz discrimina os factos que considera provados e não provados, através de análise crítica das provas, tomando ainda em consideração os admitidos por acordo e os provados por documento ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e indicando, interpretando e aplicando as normas jurídicas pertinentes, concluindo pela decisão final – arts. 604º e 607º do atual CPC.
Coerentemente, não havendo já, na tramitação de um concreto processo, a prolação de uma decisão sobre os factos e, depois, o proferimento de uma decisão de mérito, muitas vezes com a intervenção sucessiva de julgadores diferentes – o do facto e o do direito –, foi eliminado o antigo nº 4 do art. 646º, que rezava assim: “têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Como a este propósito escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, esta “(…) opção legislativa tem subjacente a admissibilidade de uma metodologia em que, com mais maleabilidade, se faça o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que a circunstância de ambos os segmentos surgirem agregados na mesma peça processual facilita e simplifica a decisão do litígio (…).”.
Porém, tal “(…) opção não significa, obviamente, que seja admissível doravante a assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”.
E continua, “não poderá, portanto, a sentença, ao emitir o julgamento sobre os factos atinentes a uma dada questão de direito, considerar como provado o correspondente conceito jurídico, desacompanhado dos factos suscetíveis de o integrarem”.
No caso concreto, àquela conclusão jurídica reportam-se os demais factos impugnados, cumprindo, assim, apenas, eliminar o facto provado em 18.
Quanto ao mais, não temos, pois, qualquer dúvida em confirmar os factos impugnados, nos exatos termos em que estes foram dados como provados e não provados por corresponderem, na íntegra, ao que resulta da prova produzida.

4.3. São assim estes os factos a considerar:
“1- No dia 9 de julho de 2018, no Cartório Notarial, sito na Alameda ..., ..., em ..., perante a Notária, GGG, foi exarada de fls. 19 a 20, do livro n.º ...42-A, escritura de justificação notarial, em que foram justificantes os 1.º (s) Réus, BB e mulher, CC.
2- Pelos mesmos réus foi dito na referida escritura descrita em 1), “que com exclusão de outrem se declaram com exclusão de outrem, donos e legítimos possuidores, do seguinte: Metade de um prédio rústico composto de vinha, terra para centeio e horta, sito no lugar de “...”, na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...82, com o valor patrimonial de 34,42€, e correspondente à fração de 17,21€, a que atribuem igual valor, e para efeitos de IMT o valor de 674,64€, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ..., registado na proporção de metade a favor do justificante marido, ao tempo do registo solteiro maior, atualmente casado, pela apresentação cinco de doze de janeiro de mil novecentos e noventa e quatro”.
3- Declararam ainda os 1. º(s) Réus na escritura referida em 1) que tal prédio descrito em 2) veio à sua posse e domínio, já no estado de casados “por compra verbal a, TT, viúva, residente no ..., aquisição esta que ocorreu por volta do ano de mil novecentos e oitenta, não tendo sido formalizada por documento autêntico”.
4- Acrescentam também os 1. º (s) réus na escritura descrita em 1), “que desde então, portanto há mais de vinte anos, têm possuído o referido prédio, em nome próprio, retirando as utilidades pelo mesmo proporcionada, cultivando-o, colhendo o cereal e seus frutos, com o ânimo de quem exerce direito próprio, sendo reconhecidos como seus donos por toda a gente, fazendo-o de boa-fé, por ignorarem lesar direito alheio, pacificamente porque sem violência, contínua e publicamente, à vista e com conhecimento de toda a gente e sem oposição de ninguém”.
5- Afirmaram igualmente na citada escritura descrita em 1), “que dadas as características de tal posse, os justificantes adquiriram, o referido prédio na referida proporção, por usucapião, título esse que pela sua natureza, não é suscetível de ser comprovado pelos meios extrajudiciais normais”.
6- Ainda na mesma escritura descrita em 1) os 1.º (s) réus declararam vender aos 2.º (s) réus, DD e mulher, EE, pelo preço de dezasseis mil euros, já recebido, a totalidade do prédio referido. 7- Consta da certidão permanente que o bem imóvel descrito em 2), na proporção de metade, por partilha judicial (sucessão hereditária por óbito de XX), se encontra registado em nome do 1.º réu na Conservatória do Registo Predial ..., através da apresentação n.º 5 de 12/01/1994.
8- À data da celebração da escritura de justificação referida em 1) os 1.ºs réus residiam permanentemente no ..., constando da mencionada escritura como residência dos réus Alameda ..., ..., HHH, ..., ....
9- No prédio rústico composto de vinha, terra para centeio e horta, sito no lugar de “...”, na freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...82, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ..., há mais de 60 anos que não se produz qualquer tipo de cereal, pois o avô da Autora, também sensivelmente há 60 anos, plantou, na totalidade de tal prédio, vinha, produzindo-se, desde então, no prédio em apreço, uvas.
10- Vinha que subsistiu até há 5 anos atrás, data em que a mãe da autora arrancou a mesma, pois vendeu a licença da vinha que aí possuía, permanecendo, desde aí, tal prédio, sem qualquer cultura, sendo, no entanto, lavrado, para estar apto para proceder à plantação de outra cultura.
11- A totalidade e integralidade do imóvel em causa, descrito em 9), foi adquirido pelos avós da autora, UU e VV, há mais de 60 anos, por compra verbal, a WW, imediatamente após a morte do marido da mesma, XX, e antes daquela emigrar com os seus filhos para o ..., local de onde não mais regressou.
12- Desde então, até cerca do ano de 1988, ou seja, durante mais de 30 anos, foram aqueles, ininterruptamente, que possuíram, usaram e fruíram o prédio em apreço como coisa inteiramente sua.
13- Sendo que no ano acima referido, 1988, os acima referidos, UU e esposa VV, procederam a partilhas em vida de todos os seus prédios, distribuindo tais prédios pelos seus filhos, partilhas verbais, não formalizadas em documento autêntico, tendo o prédio em apreço descrito em 9), sido adjudicado à filha dos acima referenciados, FF, tendo tal imóvel, pelo facto de ser casada com GG no regime da comunhão geral, passado a integrar o património comum do referido casal.
14- A partir de 1988, a referida FF e o seu marido, GG, durante cerca de 3 anos, e a partir de 1991, data do óbito daquele, a referenciada FF juntamente com os seus filhos, até à morte da mencionada FF em 2016, ou seja, durante 28 anos, usaram, possuíram e fruíram o prédio em causa.
15- Após a morte da referida FF, foram os seus filhos, entre os quais a aqui autora, AA, que passaram a usar, possuir, e fruir o prédio em causa como coisa inteiramente sua, tal qual os seus antecessores haviam feito.
16- Fruição que se consubstanciou no somatório de atos próprios dos proprietários, mormente plantando, cultivando, lavrando, colhendo os frutos, mormente uvas, entrando e saindo do mesmo sempre que queriam e entendiam, defendendo e conservando tal imóvel, pagando as contribuições respetivas e dele se servindo de acordo com a sua normal utilização e destino, como coisa inteiramente sua, tal qual os seus pais, sogros e avós haviam feito.
17- Fazendo-o à vista de toda a gente, de forma pacífica, sem oposição de ninguém, na convicção que exerciam direito próprio e que não lesavam direitos de terceiros.
18- (eliminado).
19- Os aqui opoentes RR e SS são sobrinhos dos réus BB e CC.
20- Filhos de III e TT.
21- Que foram casados entre si, sendo que sua mãe, era filha de YY e XX.
22- Na sequência do óbito dos seus pais, III e TT, ocorrido respetivamente a 01/08/2016 e 16/09/2017, os opoentes, herdeiros legitimários daqueles, depois de partilharem os bens sitos no ..., contactaram jurista para proceder à sua legal habilitação de herdeiros e partilha dos bens sitos em Portugal que constituíam a herança indivisa deixada por óbito dos avós, YY e XX, e de sua mãe TT.
23- Do escrito denominado “inventário orfanológico” n.º 6/1948 que data de 29/11/1948, é descrito como verba 3 o seguinte imóvel: “Uma terra á ..., confronta de nascente e sul caminho público, poente JJJ, norte KKK, inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...17, com o valor matricial corrigido de trezentos trinta e seis escudos e sessenta centavos”. Constando do mesmo documento no “auto de licitações” que “Pelo mesmo curador foi licitada a verba número TRÊS, na proporção de metade para cada um dos interessados menores TT e BB”.
24- Do escrito denominado “declaração” emitida pelo Presidente da Junta de Freguesia ... consta que: “... também é denominado por ...”.
25- A mãe dos opoentes e estes não procederam ao registo da metade do prédio descrito em 2)”.
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V -  Reapreciação de direito:

Apesar da total improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nem por isso se pode manter, na totalidade, a decisão proferida.
A apreciação do mérito da ação exigia que se fizesse uma distinção entre os pedidos que se reportam à impugnação da escritura de justificação notarial, pois que nesta está em causa apenas metade do imóvel identificado nos autos, e aqueles que se reportam à totalidade do imóvel (a sua venda aos 2.ºs réus).
Quanto aos primeiros e relativos à escritura de justificação notarial:
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/06/2015, do Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, proc. 17933/12.4T2SNT.L1.S2,  in www.dgsi.pt, refere-se que a justificação notarial é um instrumento com “uma elevada dose de pragmatismo e de eficácia que confluem para o objetivo da regularização registral de prédios, através da obtenção de um instrumento formal sem as exigências, os custos e as demoras inerentes quer à ação de justificação judicial, quer à ação de simples apreciação positiva para reconhecimento do direito real por usucapião, meios processuais de natureza contenciosa.
Relativamente aos casos verdadeiramente patológicos, os efeitos negativos para os titulares inscritos, cujos interesses podem ser afetados pela justificação notarial, acabam por ser atenuados com a atribuição do direito de ação que lhes permite confrontar judicialmente o justificante e onerá-lo com a prova dos factos justificativos da usucapião, à semelhança do que ocorreria numa ação de reconhecimento do direito real pela mesma via.
A experiência demonstra, aliás, que o uso razoável daquele mecanismo facilita e simplifica a regularização tabular dos prédios num sistema como o nosso em que, essencialmente fora dos grandes meios urbanos, ainda não está generalizada a perceção das vantagens do cumprimento dos requisitos formais no que concerne aos negócios que têm por objeto prédios rústicos e urbanos (outorga de escritura pública e registo predial dos factos) ou em que, com elevada frequência, se verifica uma desconformidade entre os aspetos de ordem substancial ou material e os aspetos de ordem formal atinentes ao património imobiliário”.
Como se disse já, perante a impugnação da justificação notarial realizada, nenhum dos réus alegou os factos que os 1.ºs réus fizeram constar da escritura pública de justificação notarial.
Estando em causa uma ação de simples apreciação negativa, tanto bastaria para que o pedido formulado (e relativo a essa impugnação) fosse julgado procedente, porque não lograram os réus alegar e provar os factos que constavam da escritura pública de justificação notarial – art.º 343.º, n.º 1, do C. Civil.
Porém, a consequência da falta de demonstração dos factos que foram objeto de impugnação é a ineficácia da escritura de justificação notarial, nos termos dos arts.º 70.º e 71.º do C. do Notariado, e não a sua nulidade, como declarado.
Note-se que esta ineficácia foi também pedida pela autora (fosse declarada “de nenhum efeito”) e declarada, erradamente, como consequência daquela nulidade.
Decorre do exposto que não pode manter-se a declaração da nulidade da escritura de justificação notarial, mas afirmar-se, apenas, tal como requerido e pretendido, como vício autónomo, a ineficácia da escritura pública de justificação notarial.
Ora, no que se reporta ao negócio realizado entre os réus e ao direito de propriedade que a autora pretende seja reconhecido, está já em causa não apenas a metade do imóvel que consta da escritura de justificação notarial, mas a totalidade do imóvel identificado nos autos.
E, assim, em relação aos pedidos formulados e relativos à totalidade do imóvel, temos, por um lado, que os 2.ºs réus beneficiam da presunção derivada do registo de propriedade em nome do 1.º réu, relativamente a metade do imóvel (aquela que lhe foi adjudicada em sede de inventário por morte do pai), pois que comprovam ter adquirido o imóvel de quem tinha a sua aquisição registada – art.º 7.º do C. Registo Predial.
Note-se que, em relação à propriedade da metade do imóvel que foi objeto de justificação, concluiu-se já que tal escritura pública era ineficaz porquanto os 1.ºs réus não alegaram e por isso não demonstraram os factos que fizeram constar naquela escritura pública e que permitiriam a aquisição daquela metade por usucapião.
Ainda que tal conclusão não tivesse sido já afirmada, não poderia este Tribunal considerar qualquer registo predial – e a presunção resultante desse registo para afirmação do direito de propriedade - que tivesse sido efetuado com base nessa escritura de justificação notarial.

Com efeito,     o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 04/12/2007, publicado no DR IIª Série, n.º63, de 31/03/2008, definiu que o registo predial que tenha sido realizado com base na escritura de justificação notarial não confere qualquer presunção para o reconhecimento do direito de propriedade em ação de impugnação de justificação notarial.
Ora, se, como se disse, por um lado, os 1.ºs réus beneficiam da presunção de serem os proprietários decorrente do registo predial relativamente à metade do imóvel em causa nestes autos, por outro lado, a autora logrou demonstrar, com início anterior à data daquele registo, os factos relativos à prática de atos materiais sobre o imóvel, com intenção de agir como seu proprietário, há mais de 60 anos, pelos avós da autora e depois pelas heranças de FF e GG.
A posse exercida sobre uma coisa em termos correspondentes ao direito real de propriedade, durante certo lapso de tempo, em que a usucapião se consubstancia, constitui, forma de aquisição daquele direito - arts.º 1251.º, 1287,º, 1302.º e 1316.º do C. Civil.
 De acordo com a noção legal do art.º 1251.º do C. Civil, posse é o poder de facto que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. Segundo Orlando Carvalho, R.L.J., Ano 122, pág. 104, "posse é o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (rectius: do direito real correspondente a esse exercício). Envolve, portanto, um elemento empírico - exercício de poderes de facto - e um elemento psicológico - em termos de um direito real. Ao primeiro é o que se chama corpus e ao segundo animus".
Entre estes dois elementos existe uma relação biunívoca. "Corpus é o exercício de poderes de facto que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico-real. Animus é a intenção jurídico-real, a vontade de agir como titular de um direito real, que se exprime (e hoc sensu emerge ou é inferível) em (de) certa atuação de facto. É essa inferência ou correspondência que se acentua no art. 1251" - autor citado in obra citada, RLJ, Ano 122, págs. 68 e 69.
A posse pode ser titulada ou não titulada, de boa ou de má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, nas palavras do art.º 1258º do C. Civil, relevando as diversas modalidades, desde logo, para permitirem a aquisição por usucapião e, para além disso, para a determinação do prazo necessário para esse efeito.

No caso dos autos, a autora demonstrou a prática dos atos materiais necessários, com verdadeira intenção de domínio, durante mais de 60 anos, para que se possa afirmar o direito de propriedade que invocava.
Ou seja, a autora logrou ilidir a presunção derivada do registo, de que beneficiavam os 1.ºs réus, em relação apenas a metade do imóvel, demonstrando, em relação à totalidade daquele, a sua aquisição por usucapião, pelas heranças das quais a autora é herdeira.
Tanto basta para afirmar a ineficácia da venda que foi realizada entre os réus, não produzindo em relação à autora e aos demais herdeiros qualquer efeito, pois que o imóvel foi vendido por quem não era o proprietário do imóvel (vide, neste sentido, afastando o puro regime da nulidade, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume II, em anotação ao art.º 892.º do C. Civil e, nos mesmos termos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 06/12/2018, da Juiz Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e de 30/06/2009, do Juiz Conselheiro Hélder Roque, ambos consultáveis em www.dgsi.pt)).
Daí que se imponha a revogação apenas parcial da sentença proferida, no que se reporta ao ponto II da decisão proferida, mantendo-se apenas a declaração de ineficácia da justificação notarial e venda realizadas e não a sua nulidade, sem que, contudo, tal alteração tenha relevo efetivo na repartição da responsabilidade das partes quanto a custas da ação ou do recurso (pois que a decisão é mantida no que releva quanto aos seus efeitos práticos, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil).
No mais, mantém-se, naturalmente, a decisão proferida, incluindo o cancelamento dos registos, nos termos ordenados.
**
Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663.º, n.º 7, do C. P. Civil):
(…)
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VI – Decisão:

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente e, assim:
a) alteram a condenação resultante do ponto II da decisão, nos seguintes termos:
II - Declarar a ineficácia da escritura de justificação, referida em I da decisão de 1.ª Instância, bem como do negócio jurídico de compra e venda efetuado entre os 1.ºs réus os 2.ºs réus, também na escritura notarial de 09/07/2018;
b) no mais, confirmam a decisão proferida nos seus exatos termos.
As custas do recurso são suportadas pelos recorrentes, nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil.
Guimarães, 09 de janeiro de 2025
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)

Relator: Paula Ribas
1ª Adjunta: Anizabel Sousa Pereira
2ª Adjunta: Maria Amália Santos