Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ALEXANDRA VIANA LOPES | ||
Descritores: | NULIDADE DA SENTENÇA QUINHÃO HEREDITÁRIO PENHORA REGISTO MÁ FÉ | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 01/09/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | 1. A penhora do quinhão hereditário de um herdeiro numa herança co-titulada por demais herdeiros: realiza-se mediante o procedimento de notificações previsto no art.781º/1 do CPC, não sendo sujeita ao registo dos arts.755º/1 ou 764º/2 do CPC, ex vi do arr.783º do CPC, ainda que a herança integre estes bens sujeitos a registo, por incidir sobre uma universalidade de facto. 2. A penhora referida em 1 não carece de registo obrigatório para ser oponível a terceiros, nos termos do art. 8º-A/1-a)- ii), iii) (em relação ao art.2º) e b) (em relação ao art.3º) e do art. 5º/2-c) do CRP. 3. A transmissão do quinhão hereditário após ter sido realizada a penhora do mesmo, ainda que tendo sido facultativamente registado por averbamento (arts.37º, 49º e 101º/1-e) do CRP), mesmo sendo válido, é ineficaz em relação à execução, nos termos do art.819º do CC. | ||
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Decisão Texto Integral: | Os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte ACÓRDÃO I. Relatório: Nos presentes autos de ação declarativa de condenação, com a forma de processo comum, instaurada por AA contra BB: 1. O autor, na sua petição inicial, pediu a condenação do réu a reconhecer o seu direito à propriedade exclusiva de toda a herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de CC e DD, alegando como fundamento, em síntese: a) Que é filho de CC e de DD e é um dos herdeiros da sua herança (juntamente: com os seus dois irmãos EE e FF; com a viúva GG do seu irmão HH e dois filhos de ambos II e JJ; com KK R. Novo- filho da sua irmã LL), ainda não partilhada. b) Que, na sequência de acordo dos seus irmãos de lhe venderem as suas quotas hereditárias, em 06.07.2017 o autor adquiriu, entre outras (não identificadas), a quota hereditária de FF, que registou, sem que nessa altura existisse qualquer penhora anterior. c) Que foi com surpresa que agora teve conhecimento que o réu havia penhorado o direito de FF à herança ilíquida e indivisa no proc. n.º 67/14...., penhora de que não o avisaram (nem o seu irmão, que já lhe havia vendido os seus direitos; nem o aqui réu). d) Que «o Autor vem possuindo todos os seus bens que compõem a herança dos seus pais, paga as contribuições respectivas e exerce a sua posse pública e pacificamente.» (art.16º). 2. Regularmente citado o réu apresentou contestação, na qual: 2.1. Como “questão prévia”, defendeu: que este processo é uma repetição do proc. nº404/19.... do mesmo Tribunal; que existe um conflito de interesses, uma vez que o mandatário do aqui autor é mandatário do seu irmão FF na execução nº67/14.... (movida pelo aqui réu contra FF) e nos embargos deduzidos por apenso à mesma, tal como naquele processo nº404/19..... 2.2. Sob a epígrafe de “Contestação”: a) Alegou a prática de atos processuais na ação executiva nº67/14...., movida contra FF: que foi penhorado o quinhão hereditário do executado em 16.11.2015, com comunicação ao aqui autor pelo agente de execução por carta registada com aviso de receção, recebida por este a 17.11.2015, data em que também foram notificados os restantes herdeiros e desde a qual todos conheceram a penhora; que o autor nada disse sobre a alienação de quinhão após a notificação do art.781º/2 CPC, tal como o executado, apesar de se ter defendido por embargos a 28.01.2016 (II- 1 a 5, 10 e 11 da contestação). b) Alegou que o autor e FF fingiram a venda do quinhão hereditário por € 3 500, 00 (quando se sabe que o valor de mercado é 50 vezes mais), sabendo o autor que o negócio realizado era falso, não desejado pelas partes e apenas realizado para despistar credores, nomeadamente o aqui réu, o que corresponde a uma simulação absoluta, determinante da nulidade do negócio simulado, nos termos do art.240º/2 do CC, nulidade que declara invocar para todos os legais efeitos (II- A- 6 a 9, 12 a 15 da contestação). c) Declarou aceitar os factos alegados em 1 a 3 da petição inicial e impugnar os factos restantes alegados (II- B- 16 a 24 da contestação). 2.3. Sob a Epígrafe “Da litigância de má-fé”: defendeu que o autor litigou de má-fé, ao deduzir pretensão sobre um direito que sabe não existir; declarou estimar que terá de suportar como despesas e honorários com este processo pelo menos o valor de € 3 000, 00. 2.4. Pediu, a final: a) Em A, que o negócio da venda do quinhão hereditário celebrado entre o autor e o réu FF fosse considerado simulado e, em consequência, fosse julgado nulo. b) Em B, que a presente ação fosse julgada improcedente. c) Em C, que o autor fosse condenado como litigante de má fé no valor de €3.000,00. 3. Após cumprido o contraditório sobre previsíveis exceções, a 18.11.2021 foi proferido despacho, no qual foi julgada verificada a nulidade por erro na forma de processo e foi determinada a remessa do processo para o Tribunal onde corre a penhora (a identificar pelo autor em 10 dias), despacho este que, após interposição de recurso, foi revogado por acórdão de 11.05.2022, que ordenou que a ação prosseguisse os seus termos. 4. Descido o processo à 1ª instância: a) Foi cumprido o contraditório quanto ao caso julgado ou à autoridade do caso julgado, sem pronúncia das partes. b) Realizou-se audiência prévia a 05.12.2022 e foi na mesma proferido despacho saneador, no qual: foi fixado o valor processual de € 14 902, 00 à causa; foi proferido despacho de saneamento tabelar; foi definido o objeto do processo, foram enunciados temas de prova (definidos como: “saber a quem pertence a quota hereditária”, “saber se a mesma foi vendida”, “saber se o negócio é nulo”) e foram apreciados os requerimentos de prova. 5. Realizou-se a audiência final. 6. A 15.03.2024 foi proferida sentença, que decidiu: «Nestes termos, o Tribunal decide: ▪ Julgar a acção totalmente improcedente por não provada e consequentemente absolver o Réu do pedido; ▪ Condenar o Autor como litigante de má fé no pagamento de multa no valor de 10 UC - 1020,00€ (mil e vinte euros) e numa indemnização à parte contrária que se arbitra em 1.500,00€ (mil e quinhentos euros); ▪ Condenar o Autor no pagamento das custas processuais; * DILIGÊNCIAS DA SECRETARIA DO TRIBUNAL: - Registe e notifique; - Oportunamente comunique à Conservatória do Registo Predial; - Lavre termo de trânsito em julgado; - Apure se ainda há outras quantias por pagar e quem é o responsável, elaborando conta (arts. 30.º do Reg. Custas Proc). - Após notifique as partes para que, no prazo de 10 dias, peçam a reforma, reclamem da conta ou efectuem o pagamento (arts. 31.º do Reg. Custas Proc). - Não havendo pedidos de reforma, reclamações, quantias a liquidar nem bens a dar destino, arquive os autos e dê baixa.». 7. O autor interpôs recurso, no qual apresentou as seguintes conclusões: «A) A matéria de facto dada como provada deve ser alterada por forma a que sejam aditados os seguintes pontos: “6. OAutor nãofoi notificado da adjudicaçãodo quinhãohereditário de FF. 7. Os co-herdeiros, como o Autor, não foram notificados da adjudicação do quinhão hereditário de FF. 8. Nas descrições prediais dos imóveis que compõem a herança do que o Autor é co-herdeiro não consta o registo de qualquer penhora a favor do Réu que o Tribunal do Porto –Juízo de Execuçãodo Porto, tenha ordenado ou o Agente de Execução.” B) a. Em 6 de Julho de 2017 adquiriu a quota de seu irmão FF, pelo que este deixou de ser herdeiro de seus pais pela cessão da quota hereditária ao Autor. b. O Autor registou a aquisição do seu direito e nenhum registo havia de qualquer aquisição. c. 5. Encontra-se registada pelas Ap. ...70 de 2017/07/06, Ap. ...87 de 2017/07/07, Ap. ...69 de 2017/07/06, averbadas às certidões prediais dos prédios rústicos situados em forte, freguesia ... e ..., n.ºs 984 e 985, descrito na matriz predial sob os artigos ...44 e ...29, respectivamente, situado em ..., freguesia ... e ..., n.ºs ...48, descrito na matriz predial sob o artigo ...04, e situado em ..., freguesia ... e ..., n.º ...04, descrito na matriz predial sob o artigo ...35, a cessão de quinhão hereditário em que é sujeito activo o Autor e sujeito passivo FF.” d. Os co-herdeiros, como o Autor, não foram notificados da adjudicação do quinhão hereditário de FF. e. Nas descrições prediais dos imóveis que compõem a herança do que oAutor éco-herdeiro nãoconstao registo de qualquer penhora a favor do Réu. f. O Autor nunca foi notificado pelo Tribunal de Execução, nem pelo Réu, nem pelo Agente de Execução, que ao Réu havia sido adjudicado o direito ao quinhão hereditário de seu irmão. g. Tendo por objecto os bens de uma herança – bens sujeitos a registo, é obrigatório o registo que é fundamental enquanto publicidade quanto a terceiros, h. e a penhora só produz efeitos quanto a terceiros depois da data do respectivo registo. i. A penhora é facto sujeito a registo. j. E dispõe o art 3 do Código do Registo que são sujeitos a registo as acções que tenham por fim a constituição, extinção ou modificação de direito de propriedade, o estabelecimento de garantias reais que afectam a livre disposição de bens. k. O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguiram relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos. l. O Autor não agiu de má-fé, nem usou qualquer processo de má-fé. Está o seu direito protegido por lei. m. Não foi pedido pelo Réu o cancelamento dos registos. n. A sentença não anula o negócio jurídico celebrado entre o Autor e o executado seu irmão. o. Está a sentença a condenar “ultra petitum” ao condenar em algo que não foi pedido. p. Não pode a sentença ir além do que é pedido. q. Manifestamente a sentença de que se recorre fá-lo, pelo que é nula – art. 615 nº 1 al. e) do CPC. Deve, assim, a sentença ser julgada nula por errada interpretação e errada aplicação da lei, devendo ser dado provimento, em consequência, ao pedido do Autor. Assim decidindo farão V. Ex.as JUSTIÇA.». 8. O réu/recorrido respondeu ao recurso, opondo-se ao mesmo e defendendo a sentença recorrida, alegando: que o autor foi negligente, por não ter considerado a notificação que lhe foi feita de penhora do quinhão; que o réu não podia registar a sua penhora; que o autor e o irmão foram notificados do leilão eletrónico para venda do quinhão hereditário e, após, da adjudicação do mesmo, podendo ter exercido aí os direitos que lhe competiam. 9. O recurso foi admitido na 1ª instância como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo. 10. Subido a esta Relação, o recurso foi recebido nos mesmos termos, foram colhidos os vistos e realizada a conferência. II. Questões a decidir: As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do Código de Processo Civil, doravante CPC. Definem-se como questões a decidir, pela ordem de precedência lógica: 1. A arguição de nulidade da sentença, por condenar “ultra petitum”, nos termos do art.615º/1-e) do CPC (conclusões B-m, n, o, p. q). 2. A impugnação à matéria de facto (liminar e, em caso de admissão, de mérito), quanto ao pedido de aditamento dos factos 6, 7 e 8 à matéria de facto provada (conclusão A). 3. A apreciação de erro na aplicação da lei: quanto à causa (conclusões B- a. a k., n.); quanto à litigância de má-fé (conclusão B-l).~ III. Fundamentação: 1. Matéria de facto provada e não provada na sentença recorrida (aditada por esta relação quanto ao conteúdo da notificação referida no ponto 3, nos termos do art.663º/2 do CPC): «A) FACTOS PROVADOS (…) 1. Corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto – no Juízo de Execução do Porto – Juiz ..., Processo nº 67/14...., execução intentada em 15 de Outubro de 2014, onde é Executado FF, e Exequente BB; 2. Em 15-12-2015 no processo identificado em 1., foi penhorado o quinhão hereditário que FF é titular na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito dos seus pais; 3. Em 23-12-2015 FF foi notificado da penhora referida em 1. 4. Em 17-11-2015 o Autor foi notificado da penhora referida em 1.», ato este com o seguinte teor: B) FACTOS NÃO PROVADOS 1. O Autor vem possuindo todos os bens que compõe a herança de seus pais, paga as contribuições respectivas e exerce a sua posse pública e pacificamente;» (itálico aposto por esta Relação em B)-1. Supra para assinalar a matéria de direito). 2. Apreciação do objeto do recurso: 2.1. A arguição de nulidade da sentença: O recorrente arguiu a nulidade da sentença nos termos do art.615º/1-e) do CPC, por o réu não ter pedido o cancelamento de registos, a sentença não anular o negócio jurídico celebrado entre o autor e o irmão, a sentença não poder ir além do que é pedido e ter condenado “ultra petitum”/em algo que não foi pedido (conclusões B-m, n, o, p. q). Impõe-se apreciar a arguição, face aos atos processuais provados e ao regime de direito aplicável. 2.1.1. Enquadramento legal: A sentença a proferir em processo civil, sujeito ao princípio do pedido (arts.3º, 552º/1-e), 583º/1 do CPC) e a ónus de alegação das partes (arts.5º, 552º/1-d), 572º/c), 583º/1 do CPC): só pode resolver as questões que, para além das que forem de conhecimento oficioso, tenham sido submetidas a sua apreciação, questões estas que devem ser resolvidas, salvo se tiverem ficado prejudicadas pela solução dada a outras questões (art.608º/2 do CPC); não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir (art.609º/1 do CPC). O pedido de cancelamento do registo predial, em determinados casos, pode ser presumido face ao pedido de ação na qual tenha sido impugnado o ato. De facto, o art.8º/1 do CRP, e na sequência da jurisprudência do STJ antecedente[i], definiu que «1. A impugnação judicial de factos registados faz presumir o pedido de cancelamento do respetivo registo.». A sentença que inobservar as regras processuais indicadas no primeiro parágrafo é nula, nos termos respetivos: do art.615º/1-d) do CPC (quando «d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;»); do art.615º/1-e) do CPC (quando: «e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»). 1.2.2. Apreciação da situação em análise: Importa apreciar a arguição, de acordo com os atos processuais provados. Procedendo à análise dos articulados desta ação, verifica-se: a) Que autor, na sua petição inicial, pediu a condenação do réu no reconhecimento do seu direito de propriedade de toda a herança ilíquida e indivisa por óbito dos pais, com base, nomeadamente, na alegação da aquisição do quinhão hereditário do seu irmão na herança dos pais (que é executado numa ação executiva) e na penhora realizada pelo aqui réu desse quinhão, sem que tivesse sido avisado e sem que a mesma estivesse registada. b) Que o réu, na sua contestação, apesar de não ter deduzido qualquer pedido reconvencional (art.266º do CPC), arguiu a exceção perentória de nulidade do negócio de cessão do quinhão hereditário do executado ao autor alegado como um dos fundamentos da causa de pedir, por simulação (arts.572º/c) do CPC, 240º do CC), pedindo a final que o negócio da venda do quinhão hereditário entre o autor e FF fosse considerado simulado e, consequentemente, nulo (I-2.2.-b) e 2.4.-a) supra). Procedendo, subsequentemente ao exame da sentença recorrida, verifica-se o seguinte. Por um lado, a sentença não conheceu a exceção de nulidade por simulação arguida na contestação referida em b) supra, uma vez que: não integrou na decisão de facto qualquer um dos factos alegados pelo réu na contestação para fundamentar a nulidade do negócio por simulação, não obstante ter indicado na enunciação dos temas de prova do despacho saneador o apuramento dos factos respeitantes à nulidade do negócio (I-4-b) supra); não apreciou e decidiu, consequentemente, a arguida exceção de nulidade do negócio de cessão por simulação (I-6 supra). Esta falta de conhecimento encontra-se sanada, uma vez que o réu/recorrido, na sua resposta ao recurso, não pediu a ampliação do seu objeto (art.636º/ 2 do CPC) mediante a arguição da nulidade com base neste fundamento, nos termos do art.615º/1-d) do CPC, em referência ao art.608º/2 do CPC. Por outro lado, a sentença: considerou oficiosamente um dever de cancelamento do registo de cessão do quinhão hereditário, sem daí extrair depois consequências no seu dispositivo; e ordenou a final (nas ordens de execução dadas à secretaria) a comunicação respetiva à Conservatória de Registo Predial, sem indicação de qualquer efeito da mesma. De facto: a) Na sua fundamentação jurídica, na parte da análise do caso concreto (depois do enquadramento jurídico respeitante ao art.819º do CC e à consideração que a penhora do quinhão hereditário não estava sujeito a registo), concluiu que a cessão era ineficaz em relação ao réu, por ser posterior à penhora, e considerou que deveriam ser cancelados os registos: «E) ANÁLISE DO CASO CONCRETO In casu, resulta provado que nos autos de execução n.º 67/14.... do Tribunal Judicial da Comarca do Porto – no Juízo de Execução do Porto – Juiz ..., em que é Executado FF e Exequente o Réu BB, em 15-12-2015 foi penhorado o quinhão hereditário que o Executado é titular na herança ilíquida e indivisa aberta por óbito dos seus pais. Ora, no caso em apreço não subsistem dúvidas de que a penhora incidiu, não sob uma quota-parte de imóveis detidos em compropriedade, mas sobre o quinhão hereditário do executado, do qual fazem parte a quota dos prédios que compõe o acervo patrimonial, pelo que, pelas razões acima apontadas, se entende que a penhora se efectua por notificação, nos termos previstos no artigo 781º do Código de Processo Civil, não estando sujeita a registo. Ora, a notificação a que faz referência o citado normativo legal foi feita ao Executado em 23-12-2015 e ao próprio Autor – na qualidade de co-herdeiro - em 17-11-2015. Assim, o negócio jurídico de cessão de quinhão hereditário é ineficaz em relação ao Réu (Exequente nos identificados autos de execução) por ser posterior à notificação a que faz referência o art. 781.º, n.º1, do CPC. Pelo exposto, deverá improceder a presente acção, e serem cancelados os registos de cessão de quinhão hereditário em que é sujeito activo o Autor e sujeito passivo FF pelas Ap. ...70 de 2017/07/06, Ap. ...87 de 2017/07/07, Ap. ...69 de 2017/07/06, averbadas às certidões prediais dos prédios rústicos n.ºs ...84, ...85, ...48, e ...04, o que será determinado a final.» (negrito aposto por esta Relação). b) Na sua decisão, transcrita em I-6 supra: __ Não ordenou qualquer cancelamento do registo cujo dever de cancelamento fora referido na fundamentação, por ter decidido apenas: « iv. DECISÃO Nestes termos, o Tribunal decide: ▪ Julgar a acção totalmente improcedente por não provada e consequentemente absolver o Réu do pedido; ▪ Condenar o Autor como litigante de má fé no pagamento de multa no valor de 10 UC - 1020,00€ (mil e vinte euros) e numa indemnização à parte contrária que se arbitra em 1.500,00€ (mil e quinhentos euros); ▪ Condenar o Autor no pagamento das custas processuais;». __ Mas ordenou, nas ordens finais dadas à secretaria, a comunicação oportuna da sentença à Conservatória de Registo Predial: «DILIGÊNCIAS DA SECRETARIA DO TRIBUNAL: (…) Oportunamente comunique à Conservatória do Registo Predial;». Não tendo a sentença ordenado efetivamente o cancelamento dos registos da cessão do quinhão hereditário no seu dispositivo, não obstante ter entendido previamente (na fundamentação) existir um dever de o fazer, não existe qualquer decretamento de um efeito jurídico, que permita apreciar: se essa decisão seria nula por decretar um efeito não pedido em matéria não oficiosa, nos termos do art.615º/1-e) do CPC; ou se essa decisão simplesmente padeceu de um erro de julgamento, por a inoponibilidade do negócio à execução, conhecido nos termos do art.819º do CC, não o invalidar, de forma a poder fundamentar uma ordem de cancelamento do registo. Desta forma, improcede a arguição de nulidade da sentença. No entanto, deve ser ordenada a eliminação da ordem inconsequente dada à secretaria para proceder à comunicação da sentença à Conservatória de Registo Predial, não assente em qualquer decisão prévia. 2.2. A impugnação à matéria de facto: O recorrente, nas suas conclusões de recurso (conclusão A), pediu o aditamento dos factos 6 («6. OAutor nãofoi notificado da adjudicaçãodo quinhãohereditário de FF.»), 7 («Os co-herdeiros, como o Autor, não foram notificados da adjudicação do quinhão hereditário de FF.») e 8 («Nas descrições prediais dos imóveis que compõem a herança do que o Autor é co-herdeiro não consta o registo de qualquer penhora a favor do Réu que o Tribunal do Porto –Juízo de Execuçãodo Porto, tenha ordenado ou o Agente de Execução») à matéria de facto provada»). Estas conclusões são mais restritas que as alegações prévias, nas quais: a recorrente “contestou” mais factos, declarando que os factos 4 e 5 estavam mal julgados (sem qualquer indicação de pretensão quanto a estes e com pedido de aditamento dos factos 6 a 8) e que o facto não provado tinha sido incorretamente julgado (com a afirmação conclusiva que deveria ser julgado provado); a recorrente afirmou e enunciou, de seguida, os meios de prova («Os concretos meios probatórios constantes do processo, documentos e gravação que impõem diversa decisão (art.640º nº1 al.b) do CPC 1. Os documentos do registo, .... As certidões do processo de execução nº 67/14.... – Juízo de Execução do Porto, onde não consta a data de qualquer notificação ao Autor da adjudicação dos direitos ao Réu) 3. Depoimentos das testemunhas;»), com discriminação posterior das referências de gravação dos depoimentos das testemunhas (dia e período de prestação de depoimentos do réu, do autor e da testemunha EE), sem qualquer análise dos mesmos e sem explicação da razão pela qual a decisão de facto padece de erro e deveria ser alterada. Impõe-se decidir se é admissível apreciar a impugnação à matéria de facto, nos termos como a mesma foi formulada e, nesse caso, em que termos. 2.2.1. Enquadramento jurídico: 2.2.1.1. Nos processos de natureza contenciosa, como a presente ação declarativa sob a forma comum, os tribunais a quo (no julgamento da causa) e ad quem (no julgamento do recurso) encontram-se sujeitos a regras estritas quanto aos factos que podem considerar na decisão. Neste sentido, qualquer um dos tribunais apenas pode considerar: a) Os factos alegados pelas partes, a quem cabe alegar os factos essenciais (art.5º/1 do CPC e art.342º/1 e 2 do CC) em que baseiam as suas pretensões (arts.552º/1-d) e 583º/1 do CPC) e a sua defesa por exceção (arts.572º/c) e 584º do CPC), de forma adequada a preencher facti species da norma, de acordo com as soluções plausíveis das questões de direito. b) Os factos instrumentais, complementares, concretizadores ou notórios de que possa ter conhecimento na instrução da causa e sejam relevantes para a decisão, em referência àqueles que foram previamente alegados e desde que cumprido o contraditório prévio no que se refere aos factos complementares ou concretizadores (art.5º/1 e 2-a), b) e c) do CPC). Assim, não é admissível o pedido de aditamento de factos à decisão de facto, em sede de recurso, quando estes não integrem qualquer uma das previsões normativas assinaladas. 2.2.1.2. O recorrente, observada que esteja a exigência supra referida, está sujeito a ónus estritos de impugnação da matéria de facto, sem os quais não é admissível a reapreciação da prova e da decisão de facto, nos termos prescritos no art.640º do CPC, sob a epígrafe «Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto», nos seguintes termos: «1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.». Os ónus em geral, de acordo com o referido por Abrantes Geraldes, estipulam exigências rigorosas que responsabilizam as partes, ainda que modeladas pelo princípio da proporcionalidade: «As referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo.», sem prejuízo do critério de rigor ser moderado pelos «princípios da proporcionalidade e da razoabilidade» sublinhados pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça[ii]. No regime legal assinalado, todavia, podem distinguir-se, de acordo com o que tem sido realizado pela jurisprudência, ónus primários e ónus secundários, com distinto tratamento no que é ou não exigível constar das conclusões do nº1 do art.639º do CPC. Por um lado, correspondem a ónus primários os previstos no nº1 do art.640º do CPC, que devem ser observados sob pena de rejeição do recurso se o não forem: a) Os dois ónus respeitantes à definição precisa do objeto do recurso de impugnação e da pretensão da parte recorrente, previstos nas als. a) e c) do nº1 do art.640º do CPC, que define que «1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; (…) c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.». b) O ónus respeitante ao dever de fundamentação da alteração pedida, com base na concreta prova produzida, que o recorrente entenda dever ser valorizada e analisada de forma distinta da 1ª instância (o art.640º, no seu nº1, al. b), do CPC define que «1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: (…) b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;»). A Doutrina e a Jurisprudência têm acentuado dominantemente a necessidade do recorrente identificar e debater a prova concreta com base na qual pede a alteração de cada um dos factos da decisão de facto, ou mesmo tema de factos, posição que o acórdão deste coletivo também perfilha. Entre estas posições: __ J. O. Cardona Ferreira refere: «Há que ter em atenção que especificar concretos (…) meios probatórios é, não só indicar, claramente, o que se se concluiu e não se deveria ter concluído- ou (e) vice-versa- mas também, o que ao menos genericamente, efetiva e especificamente, está num determinado depoimento gravado, e não apenas remeter para toda a generalidade de um depoimento ou depoimentos. É que tudo isto não é só interesse da parte; é também exercício do dever de cooperação com o Tribunal (art.7.º). Vale dizer que não interessa apenas identificar uma testemunha; interessa identificar o que ela disse.»[iii]. __ António Santos Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa referem que este ónus de fundamentação atua numa dupla vertente: «cabe-lhe rebater, de forma suficiente e explícita, a apreciação crítica da prova feita pelo tribunal a quo e tentar demonstrar que tal prova inculca outra versão dos factos que atinge o patamar da probabilidade prevalecente. Deve o recorrente aduzir argumentos no sentido de infirmar diretamente os termos do raciocínio probatório adotado pelo tribunal a quo, evidenciando que o mesmo é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilidade dos meios de prova produzidos, ou seja, que é inconsistente»[iv]. Abrantes Geraldes sublinha, ainda, a necessidade de assegurar neste campo: «a seriedade da impugnação (sustentada em meios de prova que são indicados ou em meios de prova oralmente produzidos que são explicitados»[v]. __ O Ac. STJ de 19.02.2015, proferido no processo nº299/05.6TBMGD.P2.S1, relatado por Tomé Gomes, conclui no sumário: «3. Por sua vez, a especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no n.º 1 do artigo 662.º do CPC. »[vi]. __ O Ac. RG de 22.10.2020, proferido no processo nº5397/18.3T8BRG.G1, relatado por Maria João Matos, conclui no sumário que: «II. A impugnação da decisão de facto, feita perante a Relação, não se destina a que este tribunal reaprecie, global e genericamente, a prova valorada em primeira instância, o que justifica que se imponha ao recorrente um especial ónus de alegação, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação. III. O ónus de impugnação previsto no art. 640º, nº 1, al. b) do C.P.C. exige que o recorrente: especifique os meios probatórios que determinariam decisão diversa da tomada em primeira Instância para cada um dos factos que pretende impugnar, não sendo suficiente a genérica indicação dos ditos meios de prova (isto é, desacompanhada do reporte a cada um dos factos sindicados, e antes oferecida para a totalidade da matéria de facto sob recurso);». Por outro lado, corresponde a um ónus secundário, conexo com o ónus primário de fundamentação referido em b) supra, o que prescreve na al. a) do nº2 do art.640º do CPC, que «2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;». Em relação a estes ónus, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (v.g: o Ac. do STJ de 19.02.2015, proferido no processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, relatado por Tomé Gomes; o Ac. do STJ de 29.10.2015, proferido no processo n.º 233/09.4TBVNC.G1.S1, relatado por Lopes do Rego; o Ac. do STJ de 27.09.2018, proferido no Processo n.º 2611/12.2TBSTS.L1.S1, relatado por Sousa Lameira; o Ac. do STJ de 03.10.2019, proferido no processo nº 77/06.5TBGVA.C2.S2, relatado por Maria Rosa Tching) tem acentuado, nomeadamente: que é exigível um maior rigor na apreciação do cumprimento do ónus primário e fundamental do nº 1 do art.640º do CPC, face ao ónus secundário previsto no nº2 do art.640º do CPC; que é exigível que os ónus primários de delimitação do objeto do recurso das als. a) e c) do nº1 do art.640º do CPC estejam integrados nas conclusões do recurso (tendo a AUJ do STJ nº12/2023, de 14.11. moderado a exigência, em relação à referida no art.640º/1-c) do CPC, que pode extrair-se das alegações), enquanto o ónus primário de motivação probatória e secundário de identificação dos trechos da gravação previstos na al. b) do nº1 e na al. a) do nº2 do art.640º do CPC podem estar integrados na motivação; que não é admissível despacho de aperfeiçoamento quanto à impugnação da matéria de facto e que a falta de cumprimento dos ónus do art.640º do CPC implica a rejeição do recurso. 2.2.2. Apreciação da situação em análise: Por um lado, não se apreciarão as contestações conclusivas apresentadas nas alegações prévias em relação aos factos julgados provados pelo Tribunal a quo em 4 e 5 (com base em documentos do processo executivo) e ao facto não provado (maioritariamente integrado por matéria conclusiva inatendível), uma vez que nada foi pedido nas conclusões de recurso. De qualquer forma, ainda que tivesse sido formulado algum pedido, a total falta de cumprimento do art.640º/1-b) do CPC implicaria sempre a rejeição da apreciação da impugnação (ressalvada a possibilidade de se apreciar se estaria em causa a observância oficiosa do art.663º/2 em referência ao art.607º/4-2ª parte do CPC). Por outro lado, improcede manifestamente o pedido de aditamento à decisão de facto da matéria 6 a 8, formulado em A das conclusões, tendo em conta: a) Que a matéria respeitante à adjudicação do quinhão hereditário e à sua falta de notificação, a que se referem os pedidos de aditamento dos factos 6 e 7: não corresponde a matéria alegada por qualquer uma das partes, sendo que o autor limitou-se a invocar como ato perturbador da sua invocada propriedade dos bens da herança a penhora do quinhão hereditário realizada na ação executiva, sem invocar qualquer venda ou posterior adjudicação do mesmo (art.5º/1 do CPC); não corresponde a qualquer matéria instrumental, concretizadora ou complementar da matéria que integrou a causa de pedir da ação (art.5º/2-a) e b) do CPC). b) Que a inexistência de registo da penhora do quinhão hereditário, para além de ser conclusiva, não corresponde a matéria relevante, tendo em conta: que o réu não alegou que beneficia de registo da penhora do quinhão e que fosse prévio ao registo da cessão do quinhão invocado na petição inicial como um dos fundamentos da causa de pedir; que a decisão recorrida julgou que a penhora do quinhão hereditário não estava sujeita a registo e que a cessão do quinhão era ineficaz na execução por ser posterior à penhora, independentemente do registo desta. Pelo exposto, julga-se improcedente o pedido de aditamento dos pontos 6, 7 e 8 à decisão de facto provada. 2.3. A apreciação de erro na aplicação da lei: 2.3.1. Quanto à decisão da causa: O recorrente impugnou a decisão de improcedência da ação, julgando que o seu pedido deveria ter sido julgado procedente, por entender, depois de ter procedido a uma afirmação de factos (que a 06.07.2017 adquiriu a quota do seu irmão na herança dos pais, facto que registou de seguida em altura em que não havia qualquer outro registo de aquisição; que nas descrições prediais não havia registo de penhora e o próprio e co-herdeiros não foram notificados da adjudicação do quinhão hereditário de FF): que a penhora é sujeita a registo, por ter por objeto bens sujeitos a registo, só produzindo efeitos quanto a terceiros depois da publicidade necessária do registo; que o art.3º do CRP prescreve que são sujeitos a registo as ações que tenham por fim a constituição, extinção ou modificação da propriedade, o estabelecimento de garantias reais que afetem a livre disposição de bens; que o direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que lhe seguirem relativamente aos mesmos bens (conclusões B- a. a k., n.). Importa apreciar esta impugnação de direito, de acordo com o regime jurídico aplicável. 2.3.1.1. Enquadramento Jurídico: A. A penhora do direito de um executado ao quinhão hereditário que lhe cabe numa herança indivisa (arts.2131º ss ou 2156º ss do CC), realiza-se nos termos do art.781º do CPC, com a epígrafe «Penhora de direito a bens indivisos e de quotas em sociedade», que define: «1 - Se a penhora tiver por objeto quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efetuada.» (após o que, o mesmo artigo prevê, ainda, em números seguintes, e quanto às faculdades e atos subsequentes: «2 - É lícito aos notificados fazer as declarações que entendam quanto ao direito do executado e ao modo de o tornar efetivo, podendo ainda os contitulares dizer se pretendem que a venda tenha por objeto todo o património ou a totalidade do bem. 3 - Quando o direito seja contestado, a penhora subsistirá ou cessará conforme a resolução do exequente e do executado, nos termos do artigo 775.º. 4 - Quando todos os contitulares façam a declaração prevista na segunda parte do n.º 2, procede-se à venda do património ou do bem na sua totalidade.»). O art.783º do CPC, que conclui a subsecção respeitante à penhora das diversas modalidades de direitos nos arts.773º ss do CPC, prevê que «É subsidiariamente aplicável à penhora de direito o disposto nas subsecções anteriores para a penhora de coisas imóveis e móveis». Apesar de nestas normas respeitantes à penhora de bens imóveis e móveis constar a comunicação ao registo da penhora de bens imóveis (arts.755º/1 do CPC) e de bens móveis sujeitos a registo 764º/1 do CPC), esta exigência é apenas aplicável à penhora de quota determinada de um comproprietário num desses bens (arts. 1403º ss do CC) mas já não é aplicável à penhora de direitos a patrimónios autónomos, ainda que os mesmos sejam integrados por imóveis ou móveis sujeitos a registo, por o direito do executado em relação a este património não recair sobre um desses bens concretos ou sobre uma quota dos mesmos. Neste sentido, pode ver-se na Jurisprudência, nomeadamente: Ac. STJ de 30.03.2006, proferido no processo nº05B3646, relatado por Pereira da Silva (que sumariou: «I. Penhorado o direito e acção a herança indivisa de que seja titular o executado, a partilha realizada na pendência da execução, não tendo o exequente/penhorante intervindo, como interessado, na realização da partilha, esta aceitando, é inoponível ao exequente, a penhora do supracitado direito não se convertendo, imediatamente, na dos bens com que a quota do executado foi preenchida. II. A penhora do direito à herança indivisa não é registável, por ser direito a partes indeterminadas de bens.»), Ac. STJ de 29.05.2012, proferido no processo nº1718/03.1TBILH.C1.S1, relatado por Salazar Casanova (que sumariou como regra que «I - A divisão ou partilha de herança indivisa, da qual estiver penhorada uma quota-parte, uma quota hereditária, representa um ato de disposição do direito penhorado que tem como consequência a substituição desse direito por bens determinados. II - A penhora do direito do executado a herança indivisa não está sujeita a registo e são ineficazes (art. 819.º do CC) em relação ao exequente os atos de disposição, designadamente a partilha, pois, se assim não fosse, o exequente poderia ser prejudicado por partilha que atribuísse ao executado bens de fácil ocultação ou dissipação ou de valor inferior ao direito penhorado.», embora com ressalva posterior da situação de herdeiro único em que não haja lugar à partilha); Ac. RC de 28.06.2017, proferido no processo 947/15.0T8CBR-B.C1, relatado por Maria João Areias (que sumariou: « (…) 3. A penhora do “direito à meação” no património comum do dissolvido casal realiza-se pela notificação do facto ao ex-cônjuge, sem que a sua oponibilidade a terceiros se encontre dependente de registo (ainda que dele façam parte imóveis ou móveis sujeitos a registo). 4. Apesar do nº1 do artigo 740º (anterior 825º) do CPC se referir à “execução movida contra um só dos cônjuges”, tal dispositivo abrange igualmente os casos em que, decretado o divórcio, exista uma comunhão conjugal por não se ter procedido ainda à partilha.»); o Ac. RL de 11.04.2019, proferido no processo nº171/17.7T8MFR.L1-6, relatado por Cristina Neves (que sumariou, nomeadamente, «I - A penhora do direito do executado a herança indivisa efectua-se mediante notificação do facto ao cabeça-de-casal e aos demais herdeiros, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação. II- Esta penhora não está sujeita a registo, ainda que na herança se integrem bens imóveis ou móveis sujeitos a registo, por não se concretizar em bens certos e determinados, integrando a exceção consagrada na al. c), do nº2, do artigo 5º do Código de Registo Predial.»); o Ac. RC de 27.04.2021, proferido no processo nº8638/15.5T8CBR-B.C1, relatado por António Domingos Robalo (que sumariou: «I – A herança ilíquida e indivisa, como consta do auto de penhora, e bens imóveis à mesma pertencente, constitui um património autónomo, sendo que com o acto de aceitação os herdeiros apenas assumem uma quota ideal e abstrata do todo hereditário, pois só com a partilha, ainda que com efeitos retrativos à abertura da herança, é que cada um dos herdeiros fica a conhecer e obtém a qualidade de sucessor dos concretos bens que lhe foram atribuídos. II - No artigo 781º do Código de Processo Civil (correspondente ao anterior artigo 862º) estabelece-se as especialidades do procedimento da penhora que tenha por objecto o quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, prescrevendo-se a este respeito no n.º 1 que: “Se a penhora tiver por objecto quinhão em património autónomo ou direito a bem indiviso não sujeito a registo, a diligência consiste unicamente na notificação do facto ao administrador dos bens, se o houver, e aos contitulares, com a expressa advertência de que o direito do executado fica à ordem do agente de execução, desde a data da primeira notificação efectuada”. III - No caso em apreço não subsistem dúvidas de que a penhora incidiu não sob uma quota-parte dos imóveis detidos em compropriedade, mas sobre o quinhão hereditário da executada, do qual fazem parte a quota em imóveis, pelo que se entende que a penhora se efetua por notificação, nos termos previstos no artigo 781º do Código de Processo Civil, não estando sujeita a registo. IV - Não é o registo condição de eficácia ou constitutivo desta penhora, pois que ainda que do quinhão penhorado façam parte imóveis, móveis ou direitos sujeitos a registo, tal penhora não se encontra sujeita a registo, no sentido em que tal registo não é necessário à sua oponibilidade perante terceiros, por não se concretizar em bens certos e determinados, integrando assim a exceção consagrada na al. c) do nº 2 do artigo 5º do Código de Registo Predial.»); o Ac. RP de 01.07.2021, proferido no processo nº7083/09.6T2AGD-A.P1, relatado por Carlos Portela (que sumariou « I - Com o acto de aceitação da herança ilíquida e indivisa os herdeiros apenas assumem uma quota ideal e abstracta do todo hereditário, e só com a partilha, ainda que com efeitos retractivos à abertura da herança, é que cada um dos herdeiros fica a conhecer e obtém a qualidade de sucessor dos concretos bens que lhe foram atribuídos. II - Aceite a herança, como universalidade de direito que é, o património hereditário, apesar de devidamente titulado, continua indiviso até ser feita a partilha. III - Até á realização da partilha cada um dos herdeiros apenas tem, na sua esfera jurídica individual, no seu património próprio, o direito a uma quota ou fracção ideal do conjunto e não o direito a uma parte específica ou concretizada dos bens que constituem o acervo hereditário IV - É legalmente admitida a penhora do direito a uma herança por partilhar, o que é equivalente a penhora de um quinhão hereditário, ou seja, admite-se a penhora do direito que a esses bens, ainda não determinados nem concretizados, tiver o executado. V - No entanto, a lei já obsta a que se proceda à penhora de uma parte especificada de bem indiviso, como é o caso da herança, atento o que decorre do disposto nos artigos 743º, nº 1 e 781º, nºs 1 e 2, ambos do Cód. de Processo Civil. VI - A penhora do direito a herança indivisa não está sujeita a registo, nem pode ser registada, porque o direito à herança não partilhada é um direito a uma parte indeterminada de bens, desconhecendo-se assim que bens virão a formar a parte do executado.»). B. O registo da penhora de direito ao quinhão hereditário de herança indivisa, por sua vez, também não é obrigatório, face ao regime do Código de Registo Predial vigente. De facto, o registo predial respeita a prédios e «destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário.» (art.1º do CRP). Encontram-se sujeitos a registo os factos indicados no art.2º do CRP (nos quais se destaca, nomeadamente, «a) Os factos jurídicos que determinem a constituição, o reconhecimento, a aquisição ou a modificação dos direitos de propriedade, usufruto, uso e habitação, superfície ou servidão;») e as ações, procedimentos e providências que previstos no art.3º do CRP (nos quais constam, nomeadamente: «a) As ações que tenham por fim, principal ou acessório, o reconhecimento, a constituição, a modificação ou a extinção de algum dos direitos referidos no artigo anterior, bem como as ações de impugnação pauliana; b) (…) c) As decisões finais das ações referidas nas alíneas anteriores, logo que transitem em julgado; d) Os procedimentos que tenham por fim o decretamento do arresto e do arrolamento, bem como de quaisquer outras providências que afetem a livre disposição de bens; e) As providências decretadas nos procedimentos referidos na alínea anterior.»). Todavia, o registo pode ser ou não obrigatório. De facto, o art.8º-A do CRP define a obrigatoriedade do registo, ressalvadas as situações em que este deixa de ser obrigatório: no domínio dos factos sujeitos a registo referidos no art.2º de CRP, o art.8º-A/1-a) do CRP define, nomeadamente, que é «1 - É obrigatório submeter a registo: a) Os factos referidos no artigo 2.º, exceto: (…) ii) Quando se trate de aquisição sem determinação de parte ou direito; iii) Aqueles que incidam sobre direitos de algum ou alguns dos titulares da inscrição de bens integrados em herança indivisa»; no domínio das ações, decisões e providências, o art.8º-A/1-b) do CRP prevê que «1 - É obrigatório submeter a registo: (…) b) As ações, decisões e providências, referidas no artigo 3.º, salvo as ações de impugnação pauliana e os procedimentos mencionados na alínea d) do n.º 1 do mesmo artigo;». A oponibilidade a terceiros de factos sujeitos a registo (art.5º/1, 2 e 4 do CRP) sofre também variações, definindo-se: como regra que «1- Os factos sujeitos a registo só produzem os seus efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo»; como uma das exceções que «2 - Excetuam-se do disposto no número anterior: (…) c) Os factos relativos a bens indeterminados, enquanto estes não forem devidamente especificados e determinados.». São terceiros para efeito de registo, de acordo com o definido no art.5º/4 do CRP (na versão aditada pelo DL nº533/99, de 11/12, depois de jurisprudência contraditória sobre esta matéria), «4 – (…) aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si» (negrito aposto por esta Relação). De acordo com esta tese, mais restrita, pode prevalecer um ato não registado sobre um registado quando as partes não forem terceiras para efeitos de registo por não terem adquirido de um autor comum, como explica Maria Vitória Rocha: «Havendo um conflito entre o direito de propriedade que resulta de uma aquisição anterior à penhora, mas não registada, e uma penhora posterior, registada, a aquisição anterior prevalece sobre a penhora porque o exequente e o proprietário que vier com embargos de terceiro (ou em ação de reivindicação) não são terceiros para efeitos de registo. Não adquiriram de um mesmo transmitente comum e de boa-fé direitos incompatíveis entre si. Todavia, o resultado será diverso caso o bem penhorado venha a ser alienado em ação executiva. Nesta última hipótese, o adquirente do bem já será terceiro em relação ao titular do direito de propriedade não registado.»[vii]. O parecer do Conselho Consultivo do IRN, proferido no processo R. P. 92 e 93/2006 DSJ-CT, homologado pelo Presidente a 03.08.2007, considerou, porém, que «a tutela de terceiros não se esgota no referido preceito do artigo 5º, impondo-se considerar também, no mesmo domínio específico, a previsão contida no nº2 do artigo 17º, e, ainda, no campo da lei civil, o disposto no artigo 291º do C.C.[viii]» (o art.17º/2 do CRP prevê que «A declaração de nulidade do registo não prejudica os direitos adquiridos a título oneroso por terceiro de boa-fé, se o registo dos correspondentes factos for anterior ao registo da ação de nulidade»; e o art.291º do CC, respeitante à inoponibilidade em relação a terceiros e boa-fé «com registo anterior ao registo da ação de nulidade ou anulação ou ao registo do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio» da «declaração de nulidade ou a anulação do negócio jurídico que respeite a bens imóveis, ou a móveis sujeitos a registo», considera «de boa fé o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem culpa, o vício do negócio nulo ou anulável.»). As exceções da obrigatoriedade de registo e da oponibilidade de factos mesmo sem registo supra indicadas – a aquisição sem determinação de facto ou direito ou os factos relativos a bens indeterminados enquanto não forem determinados- são consentâneas entre si. Isabel Ferreira Quelhas Geraldes refere, em anotação a esta previsão do art.8º-A/1-a)- ii), relacionando-a com o precedente art.5º/1-c) do CRP: «São excecionados do aludido sistema de obrigatoriedade do registo os seguintes factos: (…) b) A aquisição sem determinação de parte ou direito e os factos que incidam sobre os titulares de direitos de algum dos ou alguns dos titulares da inscrição de bens integrados em herança indivisa (ii) e iii) da alínea a) )- porque produzem efeitos contra terceiros independentemente do registo- cfr. a alínea c) do nº2 do artigo 5.º.»[ix]. E estas exceções não são colocadas em causa pela possibilidade de registar a aquisição sem determinação de parte ou direito, a pedido de algum dos herdeiros e com base na habilitação de herdeiros (arts.37º, 49º do CRP), e de serem averbadas às respetivas inscrições «A transmissão, o usufruto e a penhora do direito de algum ou de alguns dos titulares da inscrição de bens integrados em herança indivisa, a declaração de insolvência que afete este direito, bem como os procedimentos que tenham por fim o decretamento do arresto, do arrolamento ou de quaisquer outras providências que afetem a livre disposição desse direito;» (art.101º/1-e) do CRP). De facto, como refere o Parecer do Conselho Consultivo do IRN no processo nº RP 148/2009 SJC-CT, homologado pelo Presidente a 04.03.2010[x]: este art.101º/1-e) do CRP «está evidentemente a contemplar a genérica registabilidade dos factos jurídicos atinentes à quota parte que cada herdeiro possua na herança. Insistimos, porém, em que tal registo, podendo fazer-se, não é todavia condição de eficácia do facto perante terceiros. A publicidade que daí dimana é meramente enunciativa: o registo informa, divulga, dá notícia do facto- e é tudo.»; acrescentando, em relação a regime vigente do CPC de 1961, atualmente correspondente ao referido art.781º do CPC de 2013, que «Ora não é deste registo enunciativo que o legislador no art.862.º/1 do CPC lança mão, como critério operativo: na hipótese desenhada de penhora de quinhão em património autónomo ou de direito a bem indiviso não sujeito a registo o que aí se tem em vista é o registo com o significado e o valor previstos no n.º1 do art.5.º do CRP.». C. O art.819º do CC dispõe que «são inoponíveis em relação à execução os atos de disposição, oneração ou arrendamento de bens penhorados», «sem prejuízo das regras do registo». Assim, esta previsão de inoponibidade às partes da execução dos atos jurídicos de disposição, alienação ou arrendamento praticados após a penhora, sem prejuízo dos efeitos do registo, corresponde a um dos efeitos da penhora, que não põe em causa a validade dos atos que tenham sido praticados após a mesma mas limita-se a impedir a sua eficácia perante os credores da ação executiva. A este propósito, veja-se, nomeadamente: Maria Victória Rocha e bibliografia subjacente à anotação ao art.819º do CC, «A disposição, a oneração ou o arrendamento de um bem penhorado efetuada pelo executado ou por um terceiro em sua representação ou a seu mando são atos válidos, porque a penhora não extingue o direito de propriedade do executado sobre o bem em causa. Todavia, a eficácia plena do ato fica a depender do resultado da execução, sendo inoponível à mesma. Daqui decorre que o devedor pode alienar, onerar ou arrendar os bens penhorados. No entanto, a execução decorre como se esses atos não tivessem sido praticados. Se a penhora vier a ser levantada, sendo atos válidos, readquirem plena eficácia. Se, pelo contrário, afetarem a execução, o direito de terceiro que tiver contratado com o executado caduca, embora se transfira, por sub-rogação objetiva, para o produto da venda, nos termos do artigo 824.º»[xi]; Lebre de Freitas- «Com a penhora, o executado não fica privado de poder dispor do seu direito, podendo, depois da penhora, continuar a praticar atos de disposição ou oneração. Os atos de disposição ou oneração de bens penhorados comprometeriam, no entanto, a função da penhora se tivessem eficácia plena. Por isso, são inoponíveis à execução. Não se tratando de atos nulos, mas apenas relativamente ineficazes, eles readquirirão eficácia plena no caso da penhora ser levantada. Mas, se pelo contrário, da execução resultar a transmissão do direito de executado, o direito do terceiro que tiver contratado com o exequente caduca, embora transferindo-se, por sub-rogação objetiva, para o produto da venda (art.824.º).»[xii]. 2.3.1.2. Apreciação da situação em análise: Numa primeira abordagem, verifica-se que o autor, apesar de pedir a condenação do réu a reconhecer a propriedade de toda a herança aberta por morte dos seus pais, limitou-se: a alegar a cessão que lhe foi feita do quinhão hereditário de um dos seus irmãos nessa herança, com o registo desta transmissão a seu favor, registo este provado na decisão recorrida como feito por averbamento em relação a quatro prédios concretos (cuja aquisição sem determinação de parte ou direito se encontrava previamente averbada em favor de todos os herdeiros- fls.8 a 13 da petição inicial); a afirmar ter praticado em relação à totalidade dos bens da herança atos de posse pública e pacífica, matéria esta que, para além de ter sido julgada não provada, seria sempre conclusiva e totalmente insuficiente para julgar adquirida a propriedade da totalidade de bens da herança por usucapião, nos termos dos arts.1251º ss e 1287º ss do CC (uma vez que não foram identificados os bens, os atos fáticos exercidos sobre os mesmos, o período e termos concretos dos mesmo). Ora, estes factos são totalmente insuficientes para julgar alegados e provados os factos de que dependeria a procedência do pedido em relação à totalidade dos bens da herança. Numa segunda abordagem- com a abrangência restringida ao quinhão hereditário do executado FF na herança dos seus pais, cujo registo de cessão ao autor se encontra averbado em relação a quatro prédios (cuja aquisição sem determinação de parte ou direito se encontrava previamente averbada em favor de todos os herdeiros- fls.8 a 13 da petição inicial)- verifica-se que não assiste razão ao recorrente/autor neste recurso, face aos factos provados e ao regime legal exposto em III- 2.3.1.1. supra. De facto, a penhora do quinhão hereditário foi realizada em 2015, com notificação ao contitular/aqui autor nesse ano, nos termos do art.781º/1 do CPC. Esta penhora, incidindo sobre um património autónomo indeterminado: não carece de registo para se considerar realizada, nos termos do art.781º/1 do CPC; e não carece de registo obrigatório para ser oponível a terceiros, nos termos do art. 8º-A/1-a)- ii), iii) (em relação ao art.2º) e b) (em relação ao art.3º) e do art. 5º/2-c) do CRP. Em qualquer caso, o autor/cessionário do quinhão e o réu/exequente na ação executiva onde se procedeu à penhora não são sequer terceiros para efeitos de registo, nos termos do art.5º/4 do CRP, uma vez que, tendo o réu sido demandado como exequente e não como adquirente do bem na execução, não está verificada a previsão do mesmo concorrer com o autor/cessionário na aquisição do mesmo autor de direito incompatível. Por sua vez, a cessão do direito ao quinhão hereditário do executado FF na herança dos pais (invocada pelo autor como realizada em 2017) ao aqui autor encontra-se registada como realizada por aquele em favor deste em 2017. Ora, este ato de transmissão, tendo-se realizado após a penhora do direito (válida e eficaz mesmo sem registo), é ineficaz em relação à ação executiva provada (factos 1 a 3 da decisão de facto) e ao aqui réu/exequente na mesma, nos termos do art.819º do CC. Desta forma, improcede o recurso de apelação quanto ao julgamento de improcedência da ação. 3.2. Quanto à condenação em litigância de má-fé: A sentença recorrida, depois de proceder ao enquadramento jurídico da litigância de má-fé, considerou que o autor era litigante de má-fé e que deveria ser condenado em 10 UC de multa e € 1500, 00 de indemnização, com base na seguinte subsunção dos factos ao direito: «Embora seja certo que a simples proposição de uma acção, que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, de per si, actuação dolosa ou gravemente negligente da parte (…). analisando a situação concreta em apreço, fornece o processo elementos seguros para por ela se concluir. Ou seja, resulta demonstrado nos autos, de forma manifesta e inequívoca, que o Autor agiu, conscientemente, de forma manifestamente reprovável, com vista a impedir ou a entorpecer a acção da justiça, mais concretamente, impedir o andamento normal dos auto de execução n.º67/14...., em que é executado o irmão do Autor. Não surgem quaisquer dúvidas sobre a actuação dolosa ou gravemente negligente da parte, na medida em que a cessão do quinhão hereditário operou-se após o autor tomar conhecimento da pendência de tais autos de execução e da penhora do quinhão hereditário cuja aquisição mais tarde registou. Ou seja, dois anos após ter conhecimento da existência de tal penhora, no ano de 2017 fez uma escritura pública e registou. Face à moldura sancionatória legalmente prevista - entre 2 (€204,00) e 100 (€10.200,00) unidades de conta (U.C.), nos termos do artigo 27.º, n.º 3, do R.C.P. – e perante o atraso processual que a conduta do Autor tem causado, o Tribunal entende adequada a fixação de uma multa em 10 U.C. Quanto à indemnização, tendo como critério uma média dos honorários que são cobrados pelos Mandatários na comarca, considera-se adequada a fixação da mesma em 1.500,00€ (mil e quinhentos euros).». O recorrente, neste recurso, defendeu que não agiu nem usou qualquer processo de má-fé, estando o seu direito protegido por lei (conclusão B-l). Impõe-se apreciar o recurso, de acordo com os atos processuais e factos provados e o regime de direito aplicável. 3.2.1. Enquadramento jurídico: O art. 542º do CPC prescreve, quanto à litigância de má-fé, que: «1 - Tendo litigado de má-fé, a parte é condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir. 2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.». Assim a condenação de litigância de má-fé, exige: a) A prova de atuações ilícitas da parte, entre as previstas no nº2 do art.542º do CPC. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre sintetizam-nas, em conformidade com a norma, no seguinte acervo: «a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, por inconcludência ou inadmissibilidade do pedido ou da exceção (al.a)); a apresentação de uma versão dos factos deturpada ou omissa, em violação do dever de verdade (alínea b)); a omissão do dever de cooperação (alínea c)); em geral, o uso reprovável do processo ou de meios processuais, visando um objetivo ilegal, o impedimento da descoberta da verdade, o entorpecimento da ação da justiça ou o protelamento, sem fundamento sério, do trânsito em julgado da decisão (alínead)).», entorpecimento da justiça que pode integrar o uso pela parte de meios dilatórios[xiii]. Esta litigância de má-fé, em qualquer uma das vertentes, não deve ser confundida, por si só, como têm sublinhado a Doutrina e a Jurisprudência, com a improcedência de uma ação ou oposição. Neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa sintetizam que a referida litigância de má-fé não deve ser confundida com: «a) A mera dedução de pretensão ou oposição cujo decaimento sobreveio por mera fragilidade da sua prova, por a parte não ter logrado convencer da realidade por si trazida a juízo; A eventual dificuldade de apurar os factos e de os interpretar; A discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre certos factos ou a defesa convicta e séria de uma posição, sem, contudo, a lograr impor (RP 2-3-10, 6145/09)»[xiv]. b) A imputação da conduta à parte a titulo de dolo ou a negligência grave. Como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, para além da responsabilização da parte pela lide dolosa (com consciência ou intenção), passou a ser responsabilizada a parte pela lide temerária (com culpa grave ou erro grosseiro), sendo que «A litigância temerária é mais do que a litigância imprudente, que se verifica quando a parte excede os limites da prudência normal, atuando culpa leve, a qual só excecionalmente é sancionada, (…)» Este sentido da imputação a título de negligência grave depreende-se, também, da explicação de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa quanto à falta de fundamento da previsão e da oposição, constante da previsão da al. a) do nº2 do art.542º do CPC, para cuja verificação « basta que à parte seja exigível esse conhecimento, cabendo-lhe indagar se a sua pretensão era concretamente fundamentada, no plano de facto e do direito», sendo que «A exigibilidade do conhecimento quanto à falta de fundamentação constitui realidade diversa do conhecimento efetivo», sendo que «Na síntese da mesma autora, o parâmetro de aferição do dever de diligência da parte consubstancia-se assim: “a generalidade das pessoas ou todas as pessoas, pertencentes à categoria social e intelectual da parte real, ter-se-iam abstido de litigar, uma vez que cumpridos os seus deveres de indagação, teriam concluído não terem, quer a pretensão, quer a defesa, fundamento. Só um sujeito extraordinariamente desleixado age como agiu a parte” (p.395)»[xv]. 3.2.2. Apreciação do recurso de apelação: O recorrente, neste recurso, como decorre do que se enunciou em III-3.2. supra, não discutiu de fundo a subsunção dos factos ao direito realizada na sentença e limitou-se a afirmar que não agiu nem usou qualquer processo de má-fé e que o seu direito estava protegido por lei. Apesar do recorrente não ter procedido à discussão que lhe cabia dos fundamentos da sentença, reconhece-se que a fundamentação desta padece de limites, uma vez: que considerou que o autor agiu para impedir e entorpecer o andamento normal da ação executiva n.º67/14...., sem explicar a ação concreta e sem a qualificar normativamente (embora se presuma ter sido realizada para preencher a previsão do art.542º/2-d) do CPC); que o autor/recorrido interveio no negócio de cessão do quinhão hereditário de forma dolosa ou gravemente negligente (por ter ocorrido depois de ter sabido há dois anos que o mesmo quinhão estava penhorado na ação executiva), imputação esta que o Tribunal a quo realizou em relação a facto substantivo que fundou a defesa do réu e não propriamente a conduta do autor como sujeito processual (com a instauração da ação ou a sua tramitação da ação), conforme o exige o art.542º/2 do CPC. No entanto, não se pode confirmar, como o recorrente afirmou neste recurso, que não agiu e não usou de má-fé e que agiu no direito protegido por lei (que, efetivamente, não lhe foi reconhecido na sentença e neste recurso). De facto, a alegação do autor da petição inicial, os factos provados na decisão e a apreciação jurídica que dos mesmos se fez permitem reconhecer a litigância de má-fé do autor, nos termos das previsões do art.542º/2-a) e b) do CPC, uma vez: que o autor alegou em 2021, na sua petição inicial, que foi com surpresa que acabara de saber que o réu penhorou o direito à herança que havia adquirido em 2017; que, ao contrário desta alegação, resultou provado na sentença (na sequência da alegação e prova produzida pelo réu) que o quinhão hereditário do executado, cuja aquisição por cessão o autor registou em 2017, havia sido penhorado em 2015, penhora esta expressamente notificada ao contitular/aqui autor nesse mesmo ano de 2015; que a prova deste facto demonstra que o autor instaurou a presente ação com alegação na sua causa de pedir de um facto falso para obter o efeito pedido, falsidade e consequente falta de fundamento para o decretamento do pedido que não podia deixar de conhecer e que lhe são censuráveis por culpa grave (seja dolosa ou gravemente negligente). Assim, ainda que com fundamentos parcialmente distintos, deve ser confirmada a qualificação do autor/recorrente como litigante de má-fé. E, não tendo sido suscitado qualquer discussão quanto aos valores arbitrados para a multa e indemnização, nada há a conhecer. IV. Decisão: Pelo exposto, os juízes da 1ª Secção Cível deste Tribunal da Relação de Guimarães acordam: 1. Julgar improcedente o recurso de apelação quanto à decisão de improcedência da ação e condenação em litigância de má-fé. 2. Determinar a eliminação da ordem dada à secretaria de comunicação da sentença à Conservatória de Registo Predial. * Custas do recurso pelo recorrente, nos termos do art.527º/1 do CPC.* Guimarães, 09-01-2025 Assinado eletronicamente pelo coletivo de Juízes Alexandra Viana Lopes (Juiz Des. Relatora) Maria João Marques Pinto de Matos (Juiz Des. 1ª Adjunta) José Alberto M. Moreira Dias (Juiz Des. 2ª Adjunta) [i] Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, in Código de Registo Predial Anotado e Comentado, 4ª Edição, Almedina, Maio de 2024, anotação ao art.8º, pág.120. [ii] Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5º Edição, 2018, Almedina, págs.169 e 174. [iii] J. O. Cardona Ferreira, in Guia de Recursos em Processo Civil, atualizado à Luz do CPC de 2013, Coimbra Editora, 6ª Edição, Agosto de 2014,, pág.135. [iv] António Santos Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in obra citada, nota 4 ao art.640º, 797. [v] Abrantes Geraldes, in obra citada, pág.175 [vi] O AC. STJ de 19.02.2015, proferido no processo nº299/05.6TBMGD.P2.S1, relatado por Tomé Gomes, encontra-se disponível in dgs.pt. [vii] Maria Vitória Rocha, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, dezembro de 2018, anotação 4-VII ao art.819º do CC, pág.1197. [viii] Disponível in https://irn.justica.gov.pt/Sobre-o-IRN/Doutrina-registal/Pareceres-do-Conselho-Consultivo [ix] Isabel Ferreira Quelhas Geraldes, in obra citada, anotação 3 ao art.8º-A, págs.121 e 122. [x] Disponível in https://irn.justica.gov.pt/Sobre-o-IRN/Doutrina-registal/Pareceres-do-Conselho-Consultivo [xi] Maria Vitória Rocha, in obra citada, anotação 4-iv, pág.1196. [xii] Lebre de Freitas, in Código Civil Anotado, coordenado por Ana Prata, Almedina, 2ª Edição Revista e Atualizada, 2019, anotação ao art.819º, pág.1067. [xiii] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in obra citada, vol. II, anotação 3 ao art.542º do CPC, pág.457. [xiv] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, in Vol. I da obra citada, anotação 2 ao art.542º do CPC, pág.616. [xv] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, in Vol. I da obra citada, anotação 4 ao art.542º do CPC, pág.616. |