Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ANA CRISTINA DUARTE | ||
Descritores: | ACÇÃO DE VERIFICAÇÃO ULTERIOR DE CRÉDITOS CADUCIDADE CONHECIMENTO OFICIOSO CONTRATO PROMESSA | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 03/08/2018 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
Sumário: | “1 - O prazo previsto no artº. 146º nº. 2 al. b) do CIRE é um prazo de caducidade que não pode ser conhecido oficiosamente, por estar previsto em matéria não excluída da disponibilidade das partes. 2 - Esta acção de verificação ulterior de créditos não constitui já uma fase do processo de insolvência, ainda que com estrutura própria, revestindo, antes, a natureza de uma acção autónoma em que o reclamante assume a posição de autor e a massa insolvente, os credores e o devedor a posição de réus. 3 - Não tendo havido total cumprimento de um contrato promessa de compra e venda, à data da declaração de insolvência, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento – artigo 102.º, n.º 1 do CIRE – e, só após esta opção, no caso de recusa de cumprimento, se constitui o eventual crédito dos autores sobre a insolvência.” | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 674/16.0T8GMR-I.G1 2.ª Secção Cível – Apelação Relatora: Ana Cristina Duarte (R. n.º 652) Adjuntos: João Diogo Rodrigues Anabela Tenreiro *** Sumário:1 - O prazo previsto no artº. 146º nº. 2 al. b) do CIRE é um prazo de caducidade que não pode ser conhecido oficiosamente, por estar previsto em matéria não excluída da disponibilidade das partes. 2 - Esta acção de verificação ulterior de créditos não constitui já uma fase do processo de insolvência, ainda que com estrutura própria, revestindo, antes, a natureza de uma acção autónoma em que o reclamante assume a posição de autor e a massa insolvente, os credores e o devedor a posição de réus. 3 - Não tendo havido total cumprimento de um contrato promessa de compra e venda, à data da declaração de insolvência, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento – artigo 102.º, n.º 1 do CIRE – e, só após esta opção, no caso de recusa de cumprimento, se constitui o eventual crédito dos autores sobre a insolvência. *** Acordam no Tribunal da Relação de GuimarãesI. RELATÓRIO G. R. e mulher maria A. F. deduziram, com data de 15/12/2017, ação de verificação ulterior de créditos contra Massa Insolvente de J. F. e R. C., Credores da referida Massa e os próprios insolventes, pedindo que seja interpelada a Sra. Administradora da Insolvência para dar cumprimento ao contrato promessa que identificam na petição, caso assim o entenda, devendo ser-lhes reconhecido um crédito sobre a massa insolvente no valor de € 48.842,65, correspondente às obras realizadas e que faltam realizar no imóvel prometido vender, operando-se a compensação deste crédito com o preço que falta ainda pagar. Caso a Sra. Administradora opte pela recusa do cumprimento do contrato promessa, então que seja verificado e reconhecido aos reclamantes um crédito sobre a Insolvência no valor de € 188.842,65 e que, para garantia deste crédito, seja reconhecido que os autores beneficiam de direito de retenção sobre o imóvel prometido vender, graduando-se tal crédito com preferência sobre os demais que não beneficiem de garantia ou privilégio especial e dos créditos hipotecários. Foi, de seguida, proferido o seguinte despacho: “Nos termos do artigo 146.º, n.º 2, alínea b) do CIRE a presente ação só pode ser intentada nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração da insolvência ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente. A sentença de declaração de insolvência transitou em julgado em 08/08/2016. Pelo exposto, indefere-se liminarmente a presente ação por extemporaneidade e consequente caducidade. Custas pelo autor. Registe e notifique”. Discordando da decisão, dela interpuseram recurso os autores, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes Conclusões: A) A presente ação de verificação ulterior de créditos foi instaurada dentro do prazo previsto na segunda parte da alínea b) do artigo 146º do C.I.R.E, ou seja, nos 3 meses seguintes à respetiva constituição. B) Em causa está um contrato promessa de compra e venda de uma fração autónoma celebrado aos 09.12.2009 entre os Apelantes na qualidade de promitentes-compradores e os ora insolventes, estes na qualidade de promitentes vendedores. C) Os Apelantes promitentes-compradores não pagaram a totalidade do preço, mas ocorreu a tradição do imóvel e entregaram aos insolventes a quantia de €70.000,00 a título de sinal e princípio de pagamento. D) Foi alegado na petição inicial que a Sra. AI nunca os informou se optava pela execução do contrato promessa, ou recusava o seu cumprimento (vide artigos 44. e 45. da petição inicial) e que “como os AA. desconheciam o processo de insolvência também não foi, ainda, fixado, qualquer prazo para a Administradora de Insolvência exercer tal opção” – vide artigo 46 da petição inicial. E) De acordo com o disposto no nº1 do 102 do CIRE, em processo de insolvência o princípio geral quanto aos negócios bilaterais ainda não cumpridos à data da declaração de insolvência é que o “cumprimento fica suspenso até que o administrador de insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento”. F) Esta regra vale integralmente para o caso de estarmos perante contrato-promessa com natureza meramente obrigacional, (cfr. se defende no AC do TRG de 14.12.2010 proc. 6132/08). G) Considerando que o cumprimento do contrato promessa em questão se suspende nos termos do artº 102º do CIRE até que o administrador tome uma posição, quer por sua iniciativa quer na sequência de interpelação da contraparte, o direito de crédito dos AA. constitui-se quando conhecem a posição do administrador no sentido do incumprimento. H) O crédito dos Apelantes só se irá constituir quando o Administrador de insolvência optar pela recusa no cumprimento, situação essa, que se encontra devidamente acautelada na alegação constante da P.I.. I) A presente Verificação Ulterior de Créditos foi deduzida de acordo com as exigências feitas pela segunda parte da alínea b) do nº 2 do citado art. 146º, pelo que não pode concluir-se, sem mais, pela extemporaneidade da ação quanto a eles. J) O Douto Despacho ora recorrido violou por erro de interpretação o disposto nos seguintes preceitos legais: - Art.ºs/ 146/2 alínea b) do C.I.R.E; - Artº/s 102º do CIRE; K) De outra forma a Douta Decisão é inconstitucional e por violar sempre o direito à defesa da propriedade privada e o princípio do contraditório – artigos 62º e 202 º da C.R.P -, viola também o direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20º da CRP, bem como o princípio da proporcionalidade consagrado nos artigos 2º e 18º, nº2 2ª parte da CRP. L) Deve a presente decisão em recurso ser revogada, ordenando-se o prosseguimento da ação com vista à verificação dos créditos. M) Outra razão existe para o Despacho recorrido em recurso ser revogado: N) Atenta a expressão caducidade constante do Douto Despacho, concluímos que o Exmo. Senhor Juiz partilha o entendimento que o prazo fixado na alínea b) do nº2 do artigo 146 do C.P.C. é um prazo de caducidade. O) Estando em causa na presente ação direitos disponíveis, o tribunal de 1ª instância, nesta fase processual, não podia conhecer da caducidade do direito. P) Ao conhecer de questão que não podia tomar conhecimento cometeu o tribunal a quo a nulidade prevista na alínea d) do artigo 615º do C.P.C., devendo também por essa razão ser revogado, ordenando-se o prosseguimento dos autos. JUSTIÇA! A Massa Insolvente respondeu entendendo que deve ser negado provimento ao recurso. O recurso foi admitido como de apelação, a subir de imediato, nos próprios autos com efeito devolutivo. Foram colhidos os vistos legais. As questões a resolver traduzem-se em saber se ocorre a extemporaneidade da presente ação, se ocorre nulidade por excesso de pronúncia por a caducidade não ser de conhecimento oficioso e se a decisão é inconstitucional por violação do direito à defesa da propriedade privada, do princípio do contraditório, do direito de acesso aos tribunais e do princípio da proporcionalidade. II. FUNDAMENTAÇÃO Os factos com interesse constam do relatório supra. Nos termos do disposto no artigo 146.º, n.º 2, alínea b) do CIRE “O direito à separação ou restituição de bens pode ser exercido a todo o tempo, mas a reclamação de outros créditos, nos termos do número anterior, só pode ser feita nos seis meses subsequentes ao trânsito em julgado da sentença de declaração de insolvência, ou no prazo de três meses seguintes à respetiva constituição, caso termine posteriormente”. Na decisão sob recurso considerou-se que, tendo a sentença de declaração de insolvência transitado em julgado em 08/08/2016, teria já caducado o direito dos autores a intentarem a presente ação, por terem decorrido mais de seis meses sobre aquela data, quando a petição inicial deu entrada, a 15/12/2017. Tem sido discutido na jurisprudência se o prazo a que se refere aquele artigo 146.º, n.º 2, alínea b), é um prazo de caducidade e, sendo-o, se é de conhecimento oficioso (recorde-se que a decisão recorrida é um indeferimento liminar, tendo sido proferida antes da citação dos réus). Para uns, o prazo previsto no artº. 146º nº. 2 al. b) do CIRE é um prazo de caducidade que não pode ser conhecido oficiosamente, por este estar previsto em matéria não excluída da disponibilidade das partes, pelo que o eventual decurso daquele prazo não pode constituir fundamento de indeferimento liminar da petição inicial da acção de verificação ulterior de créditos, instaurada ao abrigo do disposto no nº. 1, daquele preceito – neste sentido, Acórdãos da Relação do Porto de 11/09/2014, processo n.º 1218/12.9TJVNF-AB.P1 (Deolinda Varão) e de 21/02/2013, processo n.º 2981/11.0TBSTS-G.P1 (Carlos Portela), da Relação de Guimarães, de 06/02/2014, processo n.º 1551/12.0TBBRG-C.G1 (Estelita de Mendonça), da Relação de Coimbra de 25/10/2016, processo n.º 600/14.1TBPBL-E.C1 (Moreira do Carmo), todos em www.dgsi.pt. Em sentido oposto, consideram outros que o prazo do artº 146º, nº 2, al. b), do CIRE não tem natureza substantiva, é um prazo de natureza processual (perentório) – não de caducidade -, de conhecimento oficioso, cujo decurso extingue o direito de praticar o acto (artº 139º, nºs 1 e 3 do CPC) no processo de insolvência (com rejeição liminar da reclamação), não se lhe aplicando o regime de caducidade previsto nos artigos 298º, nº 2, e 333º, nº 2, C. Civil. – cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 20/06/2017, processo n.º 4185/14.0T8VIS-K.C1 (Jaime Carlos Ferreira) e da Relação de Lisboa de 28/04/2015, processo n.º 664/10.7YLSB-AB.L1-7 (Roque Nogueira) e de 20/06/2017, processo n.º 1338/16.0T8SNT.L1-7 (Carla Câmara), também em www.dgsi.pt. Pensamos tratar-se de um prazo de caducidade, sujeito às normas dos artigos 298.º, n.º 2 e 333.º, n.º 2 do Código Civil. Estamos aqui perante um direito que, por força da lei, deve ser exercido dentro de certo prazo, pelo que devem ser-lhe aplicáveis as regras da caducidade, a menos que a lei se refira expressamente à prescrição (o que não acontece) – artigo 298.º, n.º 2 do CC. Contudo, tratando-se de matéria não excluída da disponibilidade das partes, esta caducidade não é de conhecimento oficioso – artigo 333.º, n.º 2 do CC. Assim também entende Luís M. Martins, in “Processo de Insolvência”, 2.ª edição, Almedina, pág. 306. Veja-se que o prazo é processual quando existe uma ação já proposta, tendo determinado acto processual que ser praticado dentro desse prazo (perentório), tendo o seu decurso um mero efeito de natureza processual. Não é o que sucede no caso de uma ação para verificação ulterior de créditos, a intentar nos termos do n.º 1 do artigo 146.º do CIRE, ainda que esta deva correr por apenso ao processo de insolvência. Esta acção interposta nos termos do artº 146º do CIRE não constitui já uma fase do processo de insolvência, ainda que com estrutura própria. Reveste, realmente, a natureza de uma acção autónoma em que o reclamante assume a posição de autor e a massa insolvente, os credores e o devedor a posição de réus – veja-se Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2ª ed., págs. 585 e 586. Decorre do que acabamos de expor que o Sr. Juiz, tendo considerado que se tratava de um prazo de caducidade, não podia conhecer oficiosamente da mesma, devendo aguardar a sua eventual invocação, para se pronunciar. Ainda que assim não fosse, não poderia a ação ser considerada, nesta fase, extemporânea, tendo em conta a segunda parte da alínea b) do n.º 2 do artigo 146.º do CIRE, em conjugação com o que dispõe o artigo 102.º, n.º 1 do mesmo diploma legal. Com efeito, os autores alegam que, celebraram um contrato promessa com os insolventes, em que apenas foi pago parte do valor devido, a título de sinal, e não tendo os insolventes celebrado o contrato definitivo, o administrador da insolvência nunca chegou a pronunciar-se acerca do cumprimento ou não do contrato promessa. Daí que os autores tenham intentado esta ação com vista a interpelar o administrador para tomar posição, peticionando, em caso de recusa do cumprimento, a verificação e graduação do seu crédito privilegiado (atento o direito de retenção), no valor de € 188.842,65. Não tendo havido total cumprimento, à data da declaração de insolvência, o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento – artigo 102.º, n.º 1 do CIRE – e, só após esta opção, no caso de recusa de cumprimento, se constitui o eventual crédito dos autores sobre a insolvência. Ou seja, o crédito dos autores ainda não está constituído, pelo que estão estes em tempo para o reclamarem através de ação de verificação ulterior de créditos, ao abrigo do disposto no artigo 146.º do CIRE. A questão da inconstitucionalidade do artigo 146.º, n.º 2 do CIRE fica prejudicada. Sempre se dirá, no entanto, que o Tribunal Constitucional tem vindo a entender que tal norma (ainda na versão anterior em que o prazo era de um ano) não é inconstitucional – cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 8/2012, in DR 2.ª Série, 08/05/2012. Do que fica dito resulta a procedência da apelação interposta, com a consequente revogação da decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus regulares termos. III. DECISÃO Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se o normal prosseguimento dos autos. Sem custas. *** Guimarães, 8 de março de 2018 Ana Cristina Duarte João Diogo Rodrigues Anabela Tenreiro |