Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | BRÁULIO MARTINS | ||
Descritores: | REJEIÇÃO DE RECURSO EXTEMPORANEIDADE JUSTO IMPEDIMENTO PRAZO DE INVOCAÇÃO DOENÇA DO DEFENSOR | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
Sumário: | 1. Não contendo o Código de processo Penal regulação expressa sobre o conceito de justo impedimento, cumpre, nos termos do artigo 4.º do mesmo diploma legal, indagar junto do processo civil a respetiva delimitação normativa, aplicando-se, assim, conjugadamente, os artigos 107.º do Código de Processo Penal e 140.º do Código de Processo Civil. 2. Em processo penal, a invocação do justo impedimento beneficia do prazo de três dias, contado do termo do prazo (somado) para o ato e dos três dias suplementares, ou do prazo de três dias contado da cessação do impedimento. O que obrigatoriamente terá de ocorrer dentro (ou até antes) do prazo fixado para o ato, somado com o prazo dos três dias suplementares, é o evento com potencialidade de impedimento. 3. O facto fundante do justo impedimento deve ser não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, convocando, portanto, um juízo de culpa para a análise em causa. Assim, é imprescindível que aquele facto não se encontre ligado, ao de leve que seja, à psiché das pessoas referidas, isto é, que nenhuma sua atitude dolosa ou negligente tenha contribuído para a sua eclosão, bem como que nenhuma censura se lhes possa dirigir por virtude desta. 4. Depois, estatui que tal facto tem que obstar à prática atempada do ato. Este vocábulo tem os significados de causar impedimento ou estorvo, servir de obstáculo, tornar difícil ou impossível determinada ação, construir obstáculo ou impedimento. 5. Era também este o vocábulo que se encontrava plasmado no artigo 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1995 (DL 329-A/95, de 12/12) – ou de 1961, nesta data revisto. Já no Código de Processo Civil de 1961, previa-se que o justo impedimento ocorria quando o evento colocava a parte na impossibilidade de praticar o ato por si ou por mandatário (Decreto n.º 44129, de 28/12/1961). Texto idêntico existia no artigo 146.º, § 2.º do Código de Processo Civil de 1939 (Decreto n.º 29:637, de 28/0571939). 6. Esta evolução inculca que foi intenção do legislador proceder a um adoçamento, por assim dizer, das exigências do regime em causa, tendo em conta as gravíssimas consequências da preclusão processual para as partes, bem como as suas mais que nefastas consequências na realização da justiça. 7. Assim, será sempre o “juízo prudencial”, o fino crivo de apreciação destas situações, tendo sempre bem presente o frágil equilíbrio entre o rigor e a disciplina, por um lado, e a verdadeira e integral realização da justiça, por outro – e tenha-se presente que prudentia, o étimo latino daquele vocábulo, significa previsão, conhecimento, saber, competência, bom senso e sagacidade, e não apenas a vulgar aceção de cautela ou cuidado | ||
Decisão Texto Integral: | I RELATÓRIO 1 No processo 932/22...., do Juízo Local Criminal de ... – J..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., foi proferido despacho que julgou não verificado o justo impedimento quanto à não apresentação tempestiva do recurso da sentença proferida nos autos. 2 Não se conformando com a decisão, o arguido interpôs o presente recurso, formulando as seguintes conclusões: I. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido a 09.02.2024, com a Ref.ª ...14, cujo processo correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de ..., Juízo Local Criminal – juiz ...; II. No dia 8 de fevereiro de 2024, o defensor do arguido submeteu um requerimento aos autos informando que esteve doente no dia ../../2024; III. e por esse motivo, impossibilitado de concluir e apresentar as suas alegações de recurso; IV. Tendo para o efeito junto atestado médico onde consta que o utente AA, portador do Número de Utente ...17, no dia ../../2024, pelas 15h00, por síndrome febril e cefaleias intensas, associadas a dor retro ocular, rinorreia nasal anterior e posterior e febre. A sintomatologia mencionada condiciona a sua capacidade de desenvolver as suas diligências laborais e a sua atividade profissional; V. Sucede que, de acordo com o tribunal a quo, a aceitar-se como verídica a factualidade alegada pelo il. advogado, sempre diremos que o mesmo se encontrava “apenas” “condicionado” no exercício da sua actividade profissional, o que não equivale, como nos parece óbvio, a uma impossibilidade manifesta e absoluta de praticar o acto. Não resultou alegado, nem tão pouco provado, que a doença de que o il. advogado se viu acometido, o impedia de se deslocar ao escritório (como, aliás, não o impediu de se deslocar ao médico) e, por exemplo, de substabelecer em outro advogado. Dito isto, e em jeito de conclusão, dos factos que podem ser tidos em conta para análise do justo impedimento alegado pelo il. advogado não resulta o menor indício da não culpa deste na não apresentação atempada do recurso; VI. Entendendo o tribunal a quo que deveria julgar improcedente o justo impedimento e consequentemente rejeitar as alegações de recurso; VII. Deste modo, não pode o recorrente concordar com a posição assumida pelo tribunal; VIII. Refere o tribunal a quo, que A mera entrega das conclusões de recurso pode ser efetuada por via informática ou na pior das hipóteses, por terceiro... IX. Ora, esta referência do tribunal a quo reduz, erradamente, a prática do ato de apresentar alegações de recurso apenas à submissão do ato processual; X. Sendo completamente omissa relativamente à sua elaboração e ao estado de saúde do defensor do recorrente para o fazer; XI. Por outro lado, entende o tribunal a quo que o atestado médico junto aos autos não era suficiente para constituir prova que a doença da qual o defensor padecia era incapacitante para a realização do seu trabalho; XII. Assim sendo, o que não se concebe, com o devido respeito, deveria o tribunal obter informações complementares sobre se a doença era ou não incapacitante para o trabalho do defensor; XIII. Neste sentido vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15.03.2005, proferido no âmbito do processo nº 04B4800 que dispõe o seguinte, Arguindo-se justo impedimento por doença, apresentando-se um atestado médico como prova e, sendo este insuficiente para comprovar que a doença era incapacitante para a elaboração de uma alegação de recurso, deve o Tribunal, antes de decidir a questão do justo impedimento, obter informações complementares sobre se a doença incapacitava para tal trabalho; XIV. O que não fez; XV. Ora, factualidade referida no despacho é francamente conclusiva, não se vislumbra, com que base factual é que o tribunal a quo retirou a conclusão de que seria insuficiente para comprovar que a doença era incapacitante para a elaboração de uma alegação de recurso com a prática do ato pelo mandatário; XVI. Impunha-se, portanto, dentro dum critério de razoabilidade, que o tribunal a quo, antes de decidir sobre a verificação ou não do justo impedimento, até porque foi alegada a impossibilidade de trabalhar e de elaborar a referida alegação, obtivesse informações complementares sobre a natureza da doença e se esta incapacitou o defensor do arguido para fazer a alegação; XVII. O que não fez, faltando elementos necessários à decisão sobre a verificação ou não do justo impedimento; XVIII. Esta situação comporta uma manifesta deficiência, ou mesmo total ausência, de fundamentação de facto; XIX. O que implica, neste segmento, a necessidade de anulação da decisão proferida, cf. o artigo 662º, nº 2, alínea c), do CPC; XX. Destarte, cumpre dizer que o tribunal a quo não efetuou uma análise crítica da prova, o que se lhe impunha atento ao disposto no artigo 607º, nº 4, do CPC; XXI. Em especial não cuidou de analisar o teor do documento (relatório clínico) junto pelo recorrente, tendo em vista a referida análise crítica de toda a prova essencial à decisão do incidente em apreço; XXII. Quanto à doença que afetou o defensor, vejamos o disposto no Novo Código Processo Civil Anotado, de Abílio Neto, Edirorum, 2ª edição revista e ampliada, Edições Jurídicas Lda., Lisboa, janeiro de 2014, página 202 na anotação ao artigo 140º, verifica-se uma situação de justo impedimento, quando nos dois dias úteis dos três que se seguiram ao termo normal do prazo para a interposição do recurso de revista o mandatário da parte se encontrava doente “com síndroma febril grave e dispneia, pelo que estava proibido de sair do leito”, segundo atestado do médico que o assistiu, que aliás, no mesmo atestado afirma que aquele síndrome febril e dispneia impossibilitavam o “doente de desenvolver o seu trabalho” e “ter consciência das diligências a tomar relativamente à sua profissão”.(...) (Ac. STJ, de 21.02.2001:AD, 481º-108). XXIII. A sintomatologia apresentada no referido Acórdão do STJ é bastante similar à apresentada pelo defensor no atestado médico que refeia o seguinte o utente AA, portador do Número de Utente ...17, no dia ../../2024, pelas 15h00, por síndrome febril e cefaleias intensas, associadas a dor retro ocular, rinorreia nasal anterior e posterior e febre. A sintomatologia mencionada condiciona a sua capacidade de desenvolver as suas diligências laborais e a sua atividade profissional. (negrito nosso) XXIV. Não conseguindo o arguido vislumbrar no despacho recorrido qualquer fundamentação que sustente esta divergência de tratamento; XXV. Acresce que, o defensor nomeado exerce a sua atividade profissional em prática isolada, estando impedido de substabelecer, uma vez que inexistia qualquer outro mandatário que tivesse conhecimento sobre a matéria vertida no processo e pudesse praticar o ato em tempo útil; XXVI. Pelo que, também o substabelecimento não era exequível; XXVII. Em face do exposto não poderá, pois, o despacho recorrido ser mantido, o que implica, consequentemente, a revogação do despacho recorrido e ser o recurso admitido; XXVIII. O Tribunal a quo alega ainda a extemporaneidade da apresentação do Justo impedimento, referindo que a decisão que ora se recorre refere ainda o seguinte o justo impedimento foi invocado já após o decurso do prazo peremptório para interposição de recurso e após o período do prazo adicional previsto nos artigos 139º, nº 5, do CPC e 107º-A do CPP, o que torna aquela invocação inoperante por já se encontrar exaurido o prazo legal de interposição de recurso; XXIX. Ora, também aqui, e com o devido respeito entendemos que o Tribunal a quo não tem razão; XXX. Se à data o defensor estava acometido de doença que o impedia de praticar o ato, de exercer a sua atividade profissional, também estava impedido de alegar o seu justo impedimento; XXXI. O facto do justo impedimento ser invocado após o decurso do prazo peremptório não é fundamento para a sua rejeição; XXXII. Neste sentido vejamos o disposto no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 31.10.2018, proferido no âmbito do processo nº 49/18.7T8BRGA.G1 que dispõe o seguinte: I- Os prazos perentórios fixados na lei ou pelo juiz têm o seu último dia diferido para um dos três dias úteis subsequentes, sem prejuízo do disposto nos nºs 5 e 6 do art. 139º, do C. P. Civil. II- É possível a invocação do “justo impedimento” por factos ocorridos num dos três dias úteis previstos no n.º 5 do art. 139º, do C. P. Civil. (negrito nosso); XXXIII. Já o Tribunal da Relação de Coimbra no Acórdão de 11.10.2023, proferido no âmbito do processo nº 20/14.8JAGRD-B-C.1 refere que, 1. Não se vislumbra qualquer obstáculo a que um recorrente lance mão do «justo impedimento» para além do prazo normal de recurso, assente que tal situação imprevista aconteceu, em termos de história, para além desse prazo. 2. Como tal, é possível a invocação do “justo impedimento” por factos ocorridos num dos três dias úteis previstos no artigo 107º-A do CPP. 3. A doença súbita de advogado, devidamente atestada por médico, constitui justo impedimento, só havendo que opinar que inexiste culpa humana nesta ocorrência imprevista de doença, sendo razoavelmente de admitir que alguém que foi acometido de uma doença súbita e com alguma duração na tarde do último dia para a apresentação de uma peça processual se possa ter atrasado 31 segundos na sua colocação no CITIUS. (negrito nosso) XXXIV. Por sua vez, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.09.2027, proferido no âmbito do processo nº 10805/15.2T8SNT.L1-4, refere que, Pode ser invocado como justo impedimento um facto ocorrido num dos três dias úteis previstos no n.º 5 do artigo 139.º do Novo Código de Processo Civil. XXXV. Em face do exposto, não colhe o entendimento do tribunal a quo, quando refere que o requerimento de justo impedimento é extemporâneo por ter sido pedido após o decurso do prazo peremptório; XXXVI. Vejamos, o defensor do recorrente podia praticar o ato até ao dia ../../2024, data em que de forma súbita e inesperada ficou doente e incapaz de realizar a sua atividade de acordo com as exigências que a mesma o obriga, tendo a sua incapacidade terminado no dia seguinte, ou seja, a 08.02.2024, data em que foi invocado o justo impedimento; XXXVII. Na verdade, o justo impedimento deverá ser invocável até à data em que o mesmo cesse sendo esta a única interpretação que se pode fazer do artigo 140º, nº 2, do CPC que refere, A parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou; XXXVIII. Posto isto, no nosso entendimento, o despacho recorrido confunde o facto de a invocação do justo impedimento ter sido efetuada após o prazo de prática do ato, com o facto de o justo impedimento ter ocorrido em tempo no último dia possível para o efeito, esta interpretação do Tribunal a quo é manifestamente violadora do disposto no artigo 140º, nº 2 do CPC; XXXIX. Pelo que, também por esta via, não poderá o despacho recorrido ser mantido, o que implica, consequentemente, a revogação do despacho e ser o recurso admitido; Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Ex.ª certamente suprirá, sempre deverá ser dado provimento ao presente Recurso, e, em consequência: a) Deverá o Tribunal a quo revogar o despacho recorrido; b) Deferir o requerimento de justo impedimento; c) E como consequência aceitar as alegações de recurso apresentadas; Fazendo-se, desta forma, a costumada JUSTIÇA! 3 O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência. 4 Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso. 5 Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada foi dito. 6 Colhidos os vistos, foram os autos á conferência. II FUNDAMENTAÇÃO 1 Objeto do recurso: Deve reconhecer-se no caso presente a ocorrência de justo impedimento? 2 Decisão recorrida: Do justo impedimento Veio o il. defensor do arguido, Exmo. Sr. Dr. AA, aquando da apresentação das motivações de recurso, requerer a junção aos autos de comprovativo de justo impedimento, ocorrido no dia de ../../2024, que impediu a prática do acto no último dia de multa, nos termos do artigo 140º do CPC e 107ºA do CPP. Para o efeito juntou um denominado “relatório médico” onde se lê que no dia ../../2024, pelas 15h00 o mesmo foi observado peal subscritora do sobredito documento “por síndrome febril e cefaleias intensas, associadas a dor retro ocular, rinorreia nasal anterior e posterior febre; a sintomatologia mencionada condiciona a sua capacidade de desenvolver as suas diligências laborais e a sua actividade profissional”. * Da consulta integral dos autos verifica-se o seguinte: - a sentença foi lida e depositada no dia 07.12.2023, diligência que contou com a presença do il. defensor (cfr. referências n.ºs ...24, ...29, ...27 e ...07); - o arguido foi notificado pessoalmente do teor da sentença no dia 03.01.2024 (cfr. referência n.º ...50); - foi apresentado recurso daquela sentença no dia 08.01.2024, data em que o il. defensor invocou o justo impedimento (cfr. referências n.ºs ...46 e ...45). * Entendemos não ser necessária a produção de prova suplementar. * O justo impedimento constitui uma derrogação da regra da extinção do direito pelo decurso de um prazo peremptório (cfr. artigo 139.º, n.º 3 do Código de Processo Civil). Serve assim de válvula de escape ao sistema decorrente da extinção do direito de praticar o acto na sequência do decurso do prazo peremptório (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, Liv. Almedina, Coimbra – 1997, págs. 76 e 77). Lê-se no artigo 140.º do Código de Processo Civil que: 1. Considera-se justo impedimento o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, que obste à prática atempada do acto. 2. A parte que alegar o justo impedimento oferecerá logo a respectiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admitirá o requerente a praticar o acto fora do prazo, se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou. 3. É do conhecimento oficioso a verificação do impedimento quando o evento a que se refere o nº 1 constitua facto notório, nos termos do nº 1 do art.º 514º, e seja previsível a impossibilidade da prática do acto dentro do prazo. Deve, assim, exigir-se às partes que procedam com a diligência normal, mas já não é de lhes exigir que entrem em linha de conta com factos e circunstâncias excepcionais. Quanto a este conspecto pode ler-se o decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 22.03.2000 e disponível no sítio da internet www.dgsi.pt: “o justo impedimento só se verifica quando a pessoa que devia praticar o acto foi colocada na impossibilidade absoluta de o praticar, por si ou por mandatário, em virtude da ocorrência de um facto independente da sua vontade e que um cuidado e diligências normais não fariam prever (…) Não basta que se trate de um evento não previsto pela parte, nem se exige que se trate de um evento totalmente imprevisível. O aceitável é o meio termo, devendo exigir às partes que procedam com a diligência normal, mas já não sendo de exigir-lhes que entrem na linha de conta com factos ou circunstâncias excepcionais” (vide, em idêntico sentido, os arestos do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 13.04.99 e do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 23.06.2004, ambos disponíveis no sítio da internet www.dgsi.pt). O que releva decisivamente para a verificação do justo impedimento, mais do que a ocorrência de um evento totalmente imprevisível ou em absoluto impeditivo, é que o evento que impediu a prática atempada do acto não seja imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, ou seja, que inexista culpa do sujeito requerente do acto, ou de seu representante ou mandatário, culpa essa a valorar em consonância com o critério geral estabelecido no n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil, e sem prejuízo do especial dever de diligência e organização que recai sobre os profissionais do foro no acompanhamento das causas. Assim, não pode, pois, a parte interessada beneficiar da excepcionalidade do conceito de justo impedimento quando tenha havido da sua parte negligência, culpa ou imprevidência. Para a apreciação do caso em preço, importa, igualmente, chamar à colação o decidido no aresto do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 04.11.2021 e disponível no sítio da internet www.dgsi.pt, no sentido de para que ocorra justo impedimento ser necessário que, em consequência do obstáculo, o acto não possa ser praticado por mandatário, “não se verificando justo impedimento se, apesar de um acontecimento, normalmente imprevisível, houver probabilidades, usando a diligência normal de o acto ser praticado pela parte ou mandatário, ou por outro advogado, no qual possa substabelecer o mandatário impedido ou que a parte possa mandatar para o efeito”. E, ainda, o constante do aresto do mesmo Tribunal, datado de 26.06.2017 disponível no sítio da internet www.dgsi.pt “as doenças dos mandatários judiciais só podem ser constitutivas de justo impedimento em casos limite: “sejam manifesta e absolutamente impeditivas da prática de determinado acto; ii) tenham sobrevindo de surpresa, de forma súbita e tão grave que inviabilize qualquer possibilidade de tomar prontas e necessárias providências para que o acto seja praticado, nomeadamente avisando o constituinte para, se necessário, constituir novo mandatário ou substabelecer o mandato, com ou sem reserva”. Chamamos, ainda, à colação o decidido no acórdão de 27.05.2010 (Processo n.° 4184/07, disponível no sítio da internet www.dgsi.pt, tal como Sumariado): “O atestado de doença que atesta a impossibilidade de exercício dos deveres profissionais, sem esclarecer a gravidade do mal, ou desacompanhado de outros meios de prova que demonstrem essa gravidade, não é suficiente para estabelecer o justo impedimento, uma vez que não indicia que não pudesse ser encarregada outra pessoa de praticar o acto."; "A mera entrega das conclusões de recurso pode ser efectuada por via informática ou, na pior das hipóteses, por terceiro, pelo que a doença concretamente invocada apenas seria atendível se se demonstrasse que impedia o requerente de tomar as necessárias providências para que outro praticasse por si o acto omitido.”; “Logo, tendo o requerente provado apenas a impossibilidade relativa de exercer a actividade processual que tinha o ónus de praticar, deve ter-se por não verificado o (justo) impedimento.”. Aqui chegados, constatamos, desde logo, que o justo impedimento foi invocado já após o decurso do prazo peremptório para interposição de recurso e após o período do prazo adicional previsto nos artigos 139º, n.º 5, do C.P.C. e 107.º-A do C.P.P, o que torna aquela invocação inoperante por já se encontrar exaurido o prazo legal de interposição de recurso (cfr., neste sentido, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 04.11.2021 e disponível no sítio da internet www.dgsi.pt). Por outro lado, e mesmo que assim não fosse, e a aceitar-se como verídica a factualidade alegada pelo il. advogado, sempre diremos que o mesmo se encontrava “apenas” “condicionado” no exercício da sua actividade profissional, o que não equivale, como nos parece óbvio, a uma impossibilidade manifesta e absoluta de praticar o acto. Não resultou alegado, nem tão pouco provado, que a doença de que o il. advogado se viu acometido, o impedia de se deslocar ao escritório (como, aliás, não o impediu de se deslocar ao médico) e, por exemplo, de substabelecer em outro advogado. Dito isto, e em jeito de conclusão, dos factos que podem ser tidos em conta para análise do justo impedimento alegado pelo il. advogado não resulta o menor indício da não culpa deste na não apresentação atempada do recurso. Pelo exposto, julgo não verificado o justo impedimento quanto à não apresentação tempestiva do recurso da sentença proferida nestes autos. Custas do incidente a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça pelo mínimo legal. Registe e notifique. *-*-* Da rejeição do recurso Nos termos do artigo 411.º, n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal, o prazo para interposição de recurso é de 30 dias e conta-se a partir da notificação ao arguido, uma vez que o mesmo não esteve presente aquando da leitura de sentença. Em conformidade com o que já afloramos supra, verificamos que o arguido foi pessoalmente notificado do teor da sentença no dia 03.01.2024, pelo que o prazo para recorrer terminou em ../../2024 (já contabilizado o prazo de três dias úteis a que aludem os artigos 107.º-A do Código de Processo Penal e 145.º do Código de Processo Civil), e tendo aquele apenas sido apresentado em 08.01.2024, forçoso é concluir-se que o recurso apresentado é extemporâneo, atento o decurso do prazo legal previsto para o efeito. Pelo exposto, ao abrigo do disposto no artigo 414.º, n.º 2 do Código de Processo e por extemporâneo, não admito o recurso interposto pelo arguido BB. Notifique. 3 O direito. Para decidir a questão que neste recurso nos ocupa cumpre ter presente duas normas jurídicas: Artigo 107.º do Código de Processo Penal: Renúncia ao decurso e prática de acto fora do prazo (…) 2 - Os actos processuais só podem ser praticados fora dos prazos estabelecidos por lei, por despacho da autoridade referida no número anterior, a requerimento do interessado e ouvidos os outros sujeitos processuais a quem o caso respeitar, desde que se prove justo impedimento. 3 - O requerimento referido no número anterior é apresentado no prazo de três dias, contado do termo do prazo legalmente fixado ou da cessação do impedimento. 4 - A autoridade que defira a prática de acto fora do prazo procede, na medida do possível, à renovação dos actos aos quais o interessado teria o direito de assistir. 5 - Independentemente do justo impedimento, pode o acto ser praticado no prazo, nos termos e com as mesmas consequências que em processo civil, com as necessárias adaptações. (…) Artigo 140.º do Código de Processo Civil: Justo impedimento 1 - Considera-se «justo impedimento» o evento não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários que obste à prática atempada do ato. 2 - A parte que alegar o justo impedimento oferece logo a respetiva prova; o juiz, ouvida a parte contrária, admite o requerente a praticar o ato fora do prazo se julgar verificado o impedimento e reconhecer que a parte se apresentou a requerer logo que ele cessou. 3 - É do conhecimento oficioso a verificação do impedimento quando o evento a que se refere o n.º 1 constitua facto notório, nos termos do n.º 1 do artigo 412.º, e seja previsível a impossibilidade da prática do ato dentro do prazo. Na verdade, não contendo o Código de processo Penal regulação expressa sobre o conceito de justo impedimento, cumpre, nos termos do artigo 4.º do mesmo diploma legal, indagar junto do processo civil a respetiva delimitação normativa. “Chama-se prazo o período dentro do qual um ato pode ser praticado (prazo perentório, conclusivo, preclusivo ou resolutivo) ou a partir do qual um outro prazo começou a correr (prazo dilatório ou suspensivo) “– cfr. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2.º Edição, pag. 63. É, assim, indubitável que o prazo em causa nos autos (prazo para interposição de recurso) pertence à primeira categoria referida no anterior parágrafo. “O justo impedimento atua como limitação ao efeito do prazo perentório. Se a parte teve justo impedimento para praticar o ato dentro do prazo, é admitida a praticá-lo depois do prazo expirar.” – cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra Editora, 3.ª Edição, pag. 273. “A noção de justo impedimento comporta alguns elementos de indeterminação, impondo um concreto juízo prudencial perante as circunstâncias de cada caso.” – Conselheiro Henriques Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pag. 354. Ora, em primeiro lugar, diz a lei que o facto fundante do justo impedimento deve ser não imputável à parte nem aos seus representantes ou mandatários, convocando, portanto, um juízo de culpa para a análise em causa. Assim, é imprescindível que aquele facto não se encontre ligado, ao de leve que seja, à psiché das pessoas referidas, isto é, que nenhuma sua atitude dolosa ou negligente tenha contribuído para a sua eclosão, bem como que nenhuma censura se lhes possa dirigir por virtude desta. Depois, estatui que tal facto tem que obstar à prática atempada do ato. Este vocábulo tem os significados de causar impedimento ou estorvo, servir de obstáculo, tornar difícil ou impossível determinada ação, construir obstáculo ou impedimento – Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo. Era também este o vocábulo que se encontrava plasmado no artigo 146.º, n.º 1, do Código de Processo Civil de 1995 (DL 329-A/95, de 12/12) – ou de 1961, nesta data revisto. Já no Código de Processo Civil de 1961, previa-se que o justo impedimento ocorria quando o evento colocava a parte na impossibilidade de praticar o ato por si ou por mandatário (Decreto n.º 44129, de 28/12/1961). Texto idêntico existia no artigo 146.º, § 2.º do Código de Processo Civil de 1939 (Decreto n.º 29:637, de 28/0571939). A Jurisprudência, tal como dá conta a decisão recorrida, para onde nesta parte se remete, tem entendido que são as mais severas aceções do vocábulo que estão contidas na lei, ou seja, impedir, tornar impossível. Disso mesmo nos dá conhecimento, por exemplo, Anselmo de Castro, in Direito Processual Civil Declaratório, 1982, Vol. III, Almedina, pag. 53, nota de rodapé 2: “A Jurisprudência (vid. citações em Dr. Rodrigues Bastos, Notas, 319) tem entendido que a doença do advogado da parte pode constituir justo impedimento para a prática do ato que esta devesse praticar por intermédio daquele mandatário, mas que para satisfazer ao referido conceito é necessário que a doença seja súbita e tão grave que o impossibilite, em absoluto, de praticar o ato, avisar o constituinte ou substabelecer o mandato.” Devemos, contudo, procurar indagar o motivo pelo qual a lei eliminou neste campo normativo o termo impossibilidade, de significação única e indiscutível, e adotou, a partir de certa altura, a expressão obstar, plurissignificativa, como se viu, englobando em si também as aceções de estorvo, obstáculo, tornar difícil determinada ação. Certamente foi intenção do legislador, que conhecia bem as aludias orientações jurisprudenciais, proceder a um adoçamento, por assim dizer, das exigências do regime em causa, tendo em conta as gravíssimas consequências da preclusão processual para as partes, bem como as suas mais que nefastas consequências na realização da justiça. No caso presente, é evidente que o evento não é imputável à parte nem ao seu mandatário – trata-se de síndrome febril e cefaleias intensas, associadas a dor retro ocular, rinorreia nasal anterior e posterior febre. O problema consiste apenas em saber se o dito evento obsta à prática do ato em causa – interposição de recurso de sentença. A declaração médica apresentada como prova do episódio de doença atesta ainda que que a sintomatologia mencionada condiciona a sua capacidade de desenvolver as suas diligências laborais e a sua actividade profissional. Diga-se, ainda, que existe evidente lapso de escrita na decisão recorrida, quando afirma que foi apresentado recurso daquela sentença no dia 08.01.2024 data em que o il. defensor invocou o justo impedimento (cfr. referências n.ºs ...46 e ...45) - na verdade, a data correta 08/02/2024, pois, se assim não fosse, nem sequer o presente recurso teria lugar. Assim, tendo em conta que o prazo para interposição de recurso nos autos, acrescido dos três dias de praticabilidade do ato com multa, findou em 07/02/2024, o requerimento de invocação de justo impedimento é tempestivo, nos termos do artigo 107.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, cujo teor é o seguinte: o requerimento referido no número anterior é apresentado no prazo de três dias, contado do termo do prazo legalmente fixado, ou da cessação do impedimento. Isto é, em processo penal, a invocação do justo impedimento beneficia do prazo de três dias, contado do termo do prazo (somado) para o ato e dos três dias suplementares, ou do prazo de três dias contado da cessação do impedimento. O que obrigatoriamente terá de ocorrer dentro (ou até antes) do prazo fixado para o ato, somado com o prazo dos três dias suplementares, é o evento com potencialidade de impedimento; a sua invocação é feita nos termos da disposição legal citada. Ora, cumpre ter presente que a doença em causa surgiu no último dia do prazo suplementar a que aludem os artigos 107.º, n.º 5, do Código de Processo Penal, e 145.º, e 139.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, ou seja no terceiro e último dia posterior ao último dia do prazo normal – é certo que é discutida, tal como demonstram a decisão recorrida e a motivação de recurso, com citação jurisprudencial em ambos os sentidos, a possibilidade de invocação do justo impedimento dentro do prazo suplementar a que se referem os preceitos atrás citados; todavia, seguimos o entendimento de que o justo impedimento pode ser invocado ainda dentro deste prazo suplementar, uma vez que, sendo ele ainda, para todo os efeitos legais, um prazo, e não procedendo a lei a qualquer distinção, não deve, igualmente, o intérprete distinguir. O ato a praticar era a interposição de recurso da sentença proferida nos autos, que, atenta a simplicidade destes e daquela, admite-se como verosímil que pudesse ser elaborado nesse mesmo dia – não será certamente a conduta mais prudente, mas cada um tem o seu ritmo de trabalho, não sendo minimamente exigível que o mandatário previsse que nesse dia iria ser acometido por aquele estado de saúde. Por outro lado, deve admitir-se que elaborar a motivação de recurso e as conclusões no estado de saúde acima descrito será muitíssimo difícil, se não mesmo impossível. Além disso, deve ter-se presente que o substabelecimento numa situação como esta se afigura como improvável, pois a interposição competente de recurso, dependendo, naturalmente da sua extensão, pressupõe, ou pode pressupor, o conhecimento profundo dos autos e a assistência ao julgamento ou, pelo menos, a sua audição integral, enfim, todo um conjunto de tarefas, este sim, impossível de levar a cabo num só dia – note-se que mesmo que o recurso já estivesse pronto, a sua subscrição e apresentação por outro advogado para o efeito substabelecido, não se afigura como simples ou fácil, pois, num ato desta responsabilidade, não se trata de assinar de cruz, sendo compreensível que o brio e responsabilidade profissional imponham análise, estudo, leitura, etc., o que demora ou pode demorar algum tempo. Assim, não estava em causa apenas a entrega de um requerimento – tratava-se de elaborar e/ou apresentar um recurso de uma decisão condenatória. Temos até como certo que se um advogado se apresentasse nestas condições numa audiência de julgamento, e pedisse, por isso, o seu adiamento, muito provavelmente, e certamente sem oposição de ninguém, o seu adiamento, se requerido, seria concedido. A decisão recorrida, num compreensível esforço de implementação de rigor e disciplina, alicerça-se, essencialmente, no facto de a declaração médica apenas atestar o condicionamento e não a impossibilidade da doença para a atividade profissional. No fundo, um pouco à semelhança do que se passa com os atestados médicos previstos no artigo 117.º do Código de Processo Penal, nos quais a impossibilidade de comparência assume foros de primeiríssima linha analítica – simplesmente, nestes casos, sem embargo das sanções e medidas aplicáveis, o ato é repetível, pelo que as consequências são totalmente diferentes. Todavia, a escolha de uma determinada palavra pelo médico não pode deixar o tribunal completamente dependente dessa opção na apreciação global da situação. Por outras palavras, a medida do condicionamento deve ser aferida, também pelo tribunal, em face da sintomatologia observada (cujas implicações são, neste caso, do conhecimento comum), do ato a praticar e do tempo de que o ora impetrante ainda dispunha para o elaborar e apresentar. E, na confluência de todos estes vetores, entendemos que o evento descrito obstou à prática do ato. Ao contrário do que propõe o recorrente, não entendemos ser necessária a produção de qualquer outra prova suplementar – aliás, já Alberto dos Reis ensinava, num contexto legal bem mais adstringente, como se viu em cima, que “Há outras disposições que em que a lei se exprime de maneira a autorizar a conclusão de que o juiz não deve ser exigente na apreciação das provas, isto é, deve contentar-se com prova meramente informatória ou de simples justificação. Tais são, por exemplo, o § 2.º do artigo 146.º (justo impedimento) (…).” – Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 4.ª edição, Vol. III, pag. 247. Assim, será sempre o “juízo prudencial”, nas palavras do Conselheiro Henriques Gaspar, o fino crivo de apreciação destas situações, tendo sempre bem presente o frágil equilíbrio entre o rigor e a disciplina, por um lado, e a verdadeira e integral realização da justiça, por outro – e tenha-se presente que prudentia, o étimo latino daquele vocábulo, significa previsão, conhecimento, saber, competência, bom senso e sagacidade, e não apenas a vulgar aceção de cautela ou cuidado. Assim sendo, o recurso deve ser julgado procedente. III DISPOSITIVO Por todo o exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso, pelo que revogam a decisão recorrida, e, do mesmo passo, julgam verificado o invocado justo impedimento, admitindo o recorrente a praticar o ato em causa. Sem tributação. Guimarães, 18 de Junho de 2024. Os Juízes Desembargadores Bráulio Martins Armando Azevedo Fernando Chaves |