Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
956/14.6TBVRL-AD.G1
Relator: JOÃO PERES COELHO
Descritores: DÍVIDA DE IMI
RELAÇÃO JURÍDICO-TRIBUTÁRIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Compete aos tribunais administrativos e fiscais conhecer da acção intentada pelo Estado (Autoridade Tributária e Aduaneira) contra a massa insolvente do devedor, tendo em vista obter a condenação desta a pagar-lhe os impostos municipais sobre imóveis apreendidos relativos ao período compreendido entre a declaração de insolvência e a venda.
II – Essa acção está excluída da competência do juiz do processo de insolvência, ao abrigo da parte final do n.º 2 do artigo 89º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

1. RELATÓRIO:

Inconformado com o despacho saneador que, julgando verificada a excepção de incompetência em razão da matéria do tribunal, absolveu a Ré “Massa Insolvente de EMP01... Lda” da instância, o Ministério Público, em representação do Estado, interpôs o presente recurso, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:

1º. O domínio de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais é definido, por força da parte final do artigo 1º do ETAF, pelos termos compreendidos no respectivo artigo 4º.
2º. A aferição da competência material para dirimir o conflito deve realizar-se por referência ao modo como o Autor configura a acção na sua petição inicial.
3º. Tal como o Estado configurou a petição inicial, a intentada acção não visa a fiscalização da legalidade de qualquer ato jurídico emanado de órgão da Administração Pública ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, mormente do acto de liquidação dos peticionados IMIs, conforme previsto no referida al.b) do nº1 do artigo 4º do ETAF.
4º. Essa questão apenas é colocada pelo Réu na sua contestação, a título incidental, de modo que, apesar da sua natureza eminentemente tributária, o Juízo do Comércio de Vila Real é competente para decidir sobre ela nos termos do artigo 92º do CPC, subsidiariamente aplicável ao processo falimentar, posto que a sua decisão não fará caso julgado fora do processo.
6º. O artigo 89º nº2 do CIRE não deve ser interpretado no sentido de excluir da apensação aí prescrita as acções declarativas tributárias intentadas pelo Estado quando este se apresente destituído do seu habitual ius imperii.
7º. Ao decidir declarar-se materialmente incompetente para dirimir o caso, a Mma. Juiz não só interpretou indevidamente o disposto nos artigos 89º nº2 do CIRE como aplicou incorrectamente o artigo 4º nº1 al.b) do ETAF.
8º. O artigo 89º nº2 do CIRE deve ser interpretado no sentido de a ordenada apensação em relação ao processo de insolvência poder ter lugar mesmo em relação a acções declarativas tributárias, mormente quando intentadas pelo Estado e em que este se apresente destituído do seu habitual ius imperii.
9º. A aplicação da al.b) do nº1 do artigo 4º do ETAF só deve ter lugar quando o Autor, na sua petição inicial, tiver vindo pretender a fiscalização da legalidade de qualquer ato jurídico emanado de órgão da Administração Pública ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, mas já não quando isso seja feito pelo Réu a título incidental.
10º. Nesses casos cabe aplicar o artigo 92º do CPC, por força do qual o Juízo de Comércio de Vila Real será materialmente competente para dirimir a questão incidental que a Ré colocou na sua contestação, relacionada com a legalidade do acto de liquidação tributária.
11º. Termos em que, reconhecendo a aplicabilidade ao caso da primeira parte do disposto no artigo 89º nº2 do CIRE, tal como acima interpretado, deve a douta decisão ora em crise ser revogada e substituída por outra que julgue o Juízo de Comércio de Vila Real materialmente competente para conhecer do presente litígio, ordenando o prosseguimento da acção segundo os seus termos legais.
Assim se fará a costumada JUSTIÇA
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:

A única questão a decidir que ressalta das conclusões do recurso, delimitadoras do objecto deste, é a de saber se a competência para conhecer da presente acção pertence à jurisdição comum ou à administrativa e fiscal.
*
III. FUNDAMENTOS:

As incidências fáctico-processuais que relevam para a apreciação do recurso são as que constam do despacho recorrido.

Recorda-se o seu teor:
Da incompetência do tribunal em razão da matéria.
Vem o Ministério Público, em representação do Estado Português - Autoridade Tributária e Aduaneira - demandar a Massa Insolvente de EMP01... Lda., peticionando a condenação da mesma a pagar ao A. a quantia total de € 11.981,73, a título de IMI, juros e custas, com referência aos prédios descritos na petição, anos e processos de execução fiscal entretanto instaurados, a que deverão acrescer juros vincendos até integral pagamento.
Notificadas as partes para se pronunciarem quanto à incompetência material, veio este pugnar pela competência deste Tribunal para julgar a presente demanda.
*
A questão em discussão, efectivamente, tem por base matéria de facto e de direito que tem directamente a ver com a competência dos tribunais administrativos e fiscais. Vejamos.
Pretende A. que os Tribunais Comuns (este Tribunal) conheça da questão em causa.
Determina o art. 212º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa que compete «aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais», cujo preceito foi transposto para o art. 1º n.º 1 do ETAF.
Como refere Manuel de Andrade "... a competência do tribunal … afere-se pelo 'quid disputatum'(quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)"; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do A.. E o que está certo para os elementos objetivos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes. (...)
É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão …" [cfr. "Noções Elementares de Processo Civil", Coimbra 1979, pág. 91] [no mesmo sentido e entre outros e nos mais recentes, Acs. do STA de 20.02.2014 - Proc. n.º 0677/13 e 10/04/2024 – Proc. n.º 01937/18; Acs. do Tribunal de Conflitos de 03.03.2011 - Proc. n.º 014/10, de 15.05.2013 - Proc. n.º 024/13, de 05.11.2013 - Proc. n.º 039/13, de 29.01.2014 - Proc. n.º 061/13, de 06.02.2014 - Proc. n.º 058/13, de 15.05.2014 - Proc. n.º 031/13, in: «www.dgsi.pt/jsta»].
Em conformidade com a aludida norma constitucional, dispõe o art.º 1º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (Lei 13/2002 de 19/02) que “Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”. E, concretizando o âmbito da jurisdição que está genericamente definido no artigo 1º, o artigo 4º do aludido Estatuto enuncia, nos seus nºs 1 e 2, os litígios compreendidos no âmbito da jurisdição administrativa, onde se incluem, entre outros, os litígios que tenham por objeto questões relativas à tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais e relativas à fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal.
No caso em análise, está em causa o acto da administração tributária que liquida o IMI e apura o respectivo sujeito passivo nos termos do art.º 113.º do Código do IMI – estando em causa, portanto, uma relação jurídico-tributária, nos termos em que esta se encontra definida no art.º 1.º da Lei Geral Tributária, estabelecida entre a administração tributária, agindo como tal, e a Massa Insolvente – em relação ao qual o sujeito passivo tem ao seu dispor, nos termos do art.º 129.º do referido diploma, os meios de garantia previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário, ou seja, o direito de impugnação ou recurso (cfr. art.º 95.º da Lei Geral Tributária) por via dos meios processuais tributários previstos no CPPT (reclamação graciosa, recurso hierárquico, impugnação judicial) e que são da competência dos órgãos próprios da administração tributária ou, em caso de impugnação judicial, dos tribunais administrativos e fiscais nos termos acima referidos.
A questão que o A. veio colocar e cuja resolução veio pedir no âmbito deste processo de insolvência, por apenso, insere-se no âmbito dessa relação jurídico-tributária que se estabeleceu entre a Massa Insolvente e a Administração Tributária e prende-se com a legalidade (ou ilegalidade) do acto/facto tributário que liquidou o imposto e apurou o respectivo sujeito passivo.
Ora, estando em causa – como se viu – uma questão emergente de uma relação jurídico-tributária que se estabeleceu entre a ATA e a Massa Insolvente -, é certo que tal questão se insere no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais (delimitado no art.º 4.º do ETAF) e, nessa medida, está excluída – pelo menos em regra – do âmbito de competência dos tribunais judiciais. Tratar-se-á, portanto, de questão que deve ser suscitada e resolvida, nos termos acima referidos, por via dos meios processuais tributários previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário e que, conforme referido, são da competência dos órgãos próprios da administração tributária ou dos tribunais administrativos e fiscais.
O carácter universal da verificação do passivo no âmbito do processo de insolvência – que implica a necessidade de reclamação dos créditos no âmbito do processo de insolvência, para o efeito de nele poderem obter pagamento, independentemente do seu fundamento e da sua natureza, conforme previsto nos artigos 90.ºe 128.º do CIRE - determina a extensão da competência material do tribunal de insolvência que, para o efeito de proceder à verificação dos créditos que sejam impugnados, porém não é essa a situação dos autos.
Não estamos no âmbito da fase de verificação do passivo e o que está em causa não é a verificação de um crédito tributário que haja sido reclamado no processo de insolvência; o que está em causa é uma dívida tributária referente a IMI que se constituiu na pendência do processo, ou seja, uma dívida que, nos termos da legislação vigente, seria qualificada como dívida da massa insolvente (art.º 51.º do CIRE).
Sucede que, em relação a essas dívidas, não existe – não existe agora, nem existia no âmbito do CPEREF – qualquer norma legal onde se possa apoiar qualquer extensão da competência material do tribunal da insolvência relativamente a questões ou litígios emergentes de relações jurídicas tributárias.
Refira-se que o art. 89.º, n.º 2 – que determina que as acções relativas a essas dívidas correm por apenso ao processo de insolvência (com a inerente competência do tribunal onde corre este processo) – faz expressa exclusão das execuções por dívidas de natureza tributária, o que não deixa de evidenciar que não existiu qualquer intenção de incluir no âmbito de competência do tribunal onde corre o processo de insolvência a apreciação de questões relacionadas com dívidas da massa insolvente de natureza tributária (que, nos termos das disposições legais acima mencionadas, estão reservadas aos órgãos próprios da administração tributária ou aos tribunais administrativos e fiscais).
Concluímos, portanto, que, fora do âmbito da fase de verificação do passivo e daquilo que seja necessário para efeitos de verificação dos créditos aí em causa, não cabe no âmbito do processo de insolvência – e não cabe do âmbito da competência do tribunal onde ele se encontra pendente – a resolução de questões ou litígios emergentes de relações jurídico-tributárias que hajam surgido entre a Massa Insolvente e a Administração Tributária, designadamente, as questões ou litígios que – como acontece na situação dos autos – estão relacionados com a legalidade (ou ilegalidade) do acto/facto tributário que liquidou o imposto e atribuiu à Massa Insolvente a responsabilidade pelo respectivo pagamento. Tais questões e a resolução desses litígios devem ser suscitadas por via dos meios processuais tributários que se encontram previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário e que são da competência dos órgãos próprios da administração tributária ou dos tribunais administrativos e fiscais.
Assim, de acordo com o art.º 211.º, n.º 1 da CRP, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. E o art.º 64.º do CPC determina que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
O carácter residual da competência dos tribunais comuns também encontra expressão no art.º 40º, n.º 1 da Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de agosto quando estabelece: “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”».
Tal específica competência é uma actividade regulada pelo Direito Administrativo.
A atribuição de tal competência assenta na presunção de uma certa conexão das matérias aí a decidir com a organização e o funcionamento dos serviços públicos, ou com o conhecimento de relações jurídico-administrativas, e, ao mesmo tempo, na assunção pela Administração, naqueles casos, da sua veste de poder público, para a realização de uma função pública (Marcelo Caetano, Manual de Direito Administrativo, Tomo II, pág. 1198, e Vaz Serra, Revista de Leg. E Jur., Ano 103º, págs. 348 e 349 e Ac. do STA de 26.06.2014).».
A competência em razão da matéria é aferida pelos termos em que o autor propõe a acção, configurada pelo pedido e pela causa de pedir, sendo assim que, segundo o Prof. Alberto dos Reis, se caracteriza o modo de ser da lide.
Em face da pretensão formulada pelo A., julga-se verificada a excepção de incompetência absoluta do presente Tribunal, em razão da matéria, para conhecer dos presentes autos e, consequentemente, absolve-se a R. da instância (artigos 576.º, n.º 2, 577.º, alínea a), 96.º, alínea a), 97.º e 99.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
Custas pelo A. – artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Fixa-se à presente acção o valor fixado na petição inicial e não contestado de € 11.981,73 (arts. 296º, 297º e 306º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil).
Registe e notifique.
14.11.2024”
Pois bem.
Afigura-se-nos que a decisão recorrida, aliás particularmente bem fundamentada, não merece censura.
Mostrando-se despiciendo percorrer aqui os diversos dispositivos legais, ali pertinentemente convocados, que regulam a competência em razão da matéria dos tribunais comuns e dos tribunais administrativos e fiscais, diremos apenas que a competência daqueles é residual, pelo que lhes cabe conhecer de todas as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, nos termos do artigo 64º do Código de Processo Civil (doravante CPC), e bem ainda que, no caso concreto que nos ocupa, para além dos citados dispositivos, assume especial relevo o quadro normativo que decorre do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), mormente a disciplina constante  do respectivo artigo 89º.
Considerou-se na decisão recorrida que está em causa “uma questão emergente de uma relação jurídico-tributária” que se estabeleceu entre a Autoridade Tributária e Aduaneira e a Massa Insolvente, atinente à  “legalidade (ou ilegalidade) do acto/facto tributário” de liquidação do imposto e determinação do respectivo sujeito passivo, e que, como tal, se “insere no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais”, nos termos do artigo 4º , n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei 13/2002, de 19 de Fevereiro, segundo o qual “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto:
(…)
b) A Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
(…)”.

Contrapõe o recorrente que, tal como o Estado a configurou, a acção “não visa a fiscalização da legalidade de qualquer ato jurídico emanado de órgão da Administração Pública ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, mormente do acto de liquidação dos peticionados IMIs”, questão que apenas é colocada pela ré na contestação, a título incidental, “de modo que, apesar da sua natureza eminentemente tributária, o Juízo do Comércio de Vila Real é competente para decidir sobre ela nos termos do artigo 92º do CPC, subsidiariamente aplicável ao processo falimentar, posto que a sua decisão não fará caso julgado fora do processo”.
Discordamos deste entendimento.
É verdade que a competência material do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica controvertida, tal como o autor a configura na petição inicial, e que, como resulta do disposto nos artigos 91º e 92º do CPC, subsidiarmente aplicáveis ao processo de insolvência por força do artigo 17º do CIRE, o tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa, assim como das questões prejudiciais, entre as quais se inclui a apreciação da validade de um acto administrativo, sem prejuízo de, quanto a estas, poder sobrestar na decisão até que o tribunal administrativo se pronuncie.
Sucede, porém, que toda a acção tem, naturalmente, subjacente um litígio, pelo que, ao intentar a presente acção, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe IMI’s relativos aos prédios apreendidos para a massa insolvente, respectivos adicionais e custas dos processos de execução fiscal correspondentemente instaurados e entretanto suspensos, o autor, ora recorrente, tinha consciência de que o administrador da insolvência não os reconhecia – razão pela qual não procedeu ao seu oportuno pagamento, como, em princípio, lhe competia, por força do artigo 172º, n.º 3 do CIRE – e, consequentemente, os impugnaria.
Acresce que a defesa apresentada pela ré, invocando a preclusão do direito do Estado reclamar o pagamento de impostos que alegadamente se reportam a períodos anteriores à declaração de insolvência, impugnando a legalidade dos adicionais de IMI cujo pagamento lhe é exigido e excepcionando o pagamento dos IMI’S referentes a duas fracções apreendidas e entretanto vendidas, insere-se no objecto da acção, não implicando a convolação para relação jurídica diversa.
Trata-se, portanto, da mesma relação jurídica, definida pelo pedido e pela causa de pedir, que o autor configurou na petição inicial e que se prende, como bem refere a decisão sob censura, com a legalidade da liquidação do imposto e a determinação do respectivo sujeito passivo.
De resto, como adiante se verá, o próprio autor, justificando o recurso à via declarativa para cobrança de dívidas tributárias, admite que, em geral, essa via tem lugar por iniciativa do contribuinte, pelo que mal se compreenderia que este tivesse, como inequivocamente tinha, de intentar a acção perante os tribunais tributários e aquele pudesse optar pelos tribunais comuns.
Mais. Se a 1ª instância optasse, como o autor acaba por sugerir, por sobrestar na decisão até que os tribunais administrativos e fiscais apreciassem a legalidade da liquidação dos adicionais de IMI, seria sobre si próprio que recairia a obrigação de intentar a acção correspondente (nesse sentido, Alberto do Reis, em “Comentário ao Código de Processo Civil”, volume 1º, 2ª edição, página 288), desiderato que, como facilmente se alcança, torna a presente discussão absolutamente estéril[1].
Sustenta depois o recorrente que o artigo 89º, n.º 2 do CIRE “não deve ser interpretado no sentido de excluir da apensação aí prescrita as acções declarativas tributárias intentadas pelo Estado quando este se apresente destituído do seu habitual ius imperii”.
O raciocínio subjacente a esta conclusão mostra-se explicitado no corpo das alegações.
Como aí se pode ler “Tudo isto vale por dizer que, se bem ajuizamos, a competência para dirimir a presente acção pertence ao Juízo de Comércio de Vila Real. É isso, de resto, o queresulta do artigo 89º nº2 do CIRE, onde se estabelece que ´as acções, incluindo as executivas, relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência, com excepção das execuções por dívidas de natureza tributária`. Portanto, todas as acções relativas à dívida da massa, seja qual for a sua natureza, serão processadas por apenso, e o seu conhecimento pertencerá, por conseguinte, ao tribunal de comércio. Só assim não será com as execuções fiscais, o que não é seguramente o caso dos autos.
É interessante verificar como a parte final do artigo 89º nº2 do CIRE é dada a interpretações diametralmente opostas. No entendimento vertido na douta decisão ora crise, ´a expressa exclusão das execuções por dívida de natureza tributária (…) não deixa de evidenciar que não existiu qualquer intenção de incluir no âmbito de competência do tribunal onde corre o processo de insolvência a apreciação de questões relacionadas com dívidas da massa insolvente de natureza tributária`. Mas com uma lógica igualmente persuasiva poder-se-ia argumentar, em sentido contrário, que, se o legislador – que se presume ter sabido exprimir o seu pensamento em termos adequados (artigo 9º nº3 do CC) –, não excluiu as acções declarativas tributárias, podendo fazê-lo, foi porque não quis.
O caso é que, tanto quanto alcança o nosso entendimento, as acções declarativas tributárias propostas pelo Estado – Administração Tributária e Aduaneira não são propriamente muito habituais. E não o são porque o Estado, sendo dotado de ius imperii, pode, verificados certos pressupostos e observados certos procedimentos, dispensar-se delas e avançar directamente para a execução das suas decisões, sem prejuízo dos meios gerais de impugnação ao dispor do contribuinte. É por isso que, em geral, só se concebe que a actividade declarativa dos tribunais tributários possa ter lugar por iniciativa do contribuinte – artigo 97º do CPPT. É desta forma que se logra compreender o entendimento vertido na douta decisão ora em crise: as acções declarativas tributárias instauradas pelo Estado não teriam sido expressamente excluídas da prescrita apensação aos processos de insolvência não porque o legislador não as quisesse excluir mas sim por desnecessidade na expressa previsão dessa exclusão.
Sucede que, se bem nos parece, na presente acção o Estado – Administração Tributária e Aduaneira apresenta-se à litigância judicial não investido na sua qualidade habitual de detentor do ius imperii mas sim, precisamente, despido dela. E despido na medida em que, podendo lançar mão de uma execução tributaria com base em certidão de dívidas emitida pelo próprio, entendeu ainda assim submeter-se ao escrutínio judicial prévio de natureza declarativa. Mas sendo assim, forçoso se torna compreender a ressalva final do artigo 89º nº2 de outro modo: o legislador não excluiu as acções declarativas tributárias da determinação de que corram termos por apenso ao processo de insolvência porque, reconhecendo que o Estado se pode apresentar à litigância judicial declarativa destituído daquele seu habitual ius imperii, entendeu por bem que nesses casos não haveria razões para que não fossem os tribunais judiciais os competentes para dirimir o caso”.
Salvo o devido respeito, pensamos que também aqui não assiste razão ao recorrente.
É que, independentemente de estarmos no âmbito de uma acção declarativa, a dívida, emergente de impostos municipais sobre imóveis, mantém a sua natureza original e os meios de defesa ao dispor do sujeito passivo continuam a ser apenas aqueles que decorrem da Lei Geral Tributária (doravante LGT) e do Código de Procedimento e Processo Tributário (doravante CPPT), aplicáveis por força do artigo 129º do Código do Imposto Municipal Sobre Imóveis (doravante CIMI), a saber: impugnação graciosa, recurso hierárquico e impugnação judicial.
Acresce que o autor dispõe de um título executivo, constituído pela certidão de dívida que juntou aos autos como documento n.º 1 (artigo 162º do CPPT), munido do qual, previamente à propositura da presente acção, instaurou processos de execução fiscal com vista à cobrança coerciva dos mesmos impostos, processos esses que, deduz-se, só não terão prosseguido por neles não terem sido penhorados outros bens para além dos bens apreendidos para a massa insolvente, de acordo com a interpretação restritiva que tem sido dada ao n.º 6 do artigo 179º do CPPT)[2] e cujas custas, por isso mesmo, não se coibiu de reclamar também aqui, acrescendo aos créditos fiscais que se arroga.
Donde se conclui que a opção pelo recurso à via declarativa não significa que o autor tenha abdicado das prerrogativas que lhe assistem, antes foi imposta pela frustração das execuções fiscais instauradas, por inexistência de bens penhoráveis, e pela necessidade de “convencer” o administrador da insolvência a proceder ao pagamento dos valores em dívida pelo produto da venda dos bens apreendidos para a massa insolvente.
Entendemos, por conseguinte, que, apesar do respectivo teor literal, a parte final do n.º 2 do artigo 89º do CIRE, ao excepcionar as execuções por dívidas de natureza tributária da regra geral enunciada no respectivo proémio (segundo a qual “as acções, incluindo as executivas, relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência”), também abrange as acções declarativas, como a presente, em que, na sequência da frustração das execuções fiscais correspondentemente instauradas, o Estado pretende obter a condenação da massa insolvente a pagar-lhe os impostos de que se arroga credor, não reconhecidos pelo administrador da insolvência.
Muito embora sejam escassas as decisões dos nossos tribunais superiores que se debruçaram especificamente sobre esta questão, o entendimento que defendemos encontra eco em todos os arestos que, ainda que lateralmente, a abordaram, nomeadamente nos acórdãos da Relação de Coimbra de 12/07/2022 (processo n.º 2119/03.7TBACB-I.C1) e de 09/03/2021 (processo n.º 1846/12.2TBFIG-I.C1), relatados por Maria Catarina Gonçalves e por Freitas Neto, respectivamente, assim como no acórdão da Relação do Porto de 11/04/2018 (processo n.º 21/14.8T8OAZ.P1, relatado por Aristides Rodrigues de Almeida, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Como se ponderou no primeiro, aliás seguido de perto na decisão sob censura, “estando em causa – como se viu – uma questão emergente de uma relação jurídico-tributária que se estabeleceu entre a ATA e a Massa Falida, é certo que tal questão se insere no âmbito da competência dos tribunais administrativos e fiscais (delimitado no art.º 4.º do ETAF) e, nessa medida, está excluída – pelo menos em regra – do âmbito de competência dos tribunais judiciais. Tratar-se-á, portanto, de questão que deve ser suscitada e resolvida, nos termos acima referidos, por via dos meios processuais tributários previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário e que, conforme referido, são da competência dos órgãos próprios da administração tributária ou dos tribunais administrativos e fiscais.
É certo que essa competência – por regra atribuída e reservada aos tribunais administrativos fiscais – é extensível ao juiz do processo de insolvência no âmbito e para o efeito de proceder à verificação dos créditos aí reclamados. Com efeito, o carácter universal da verificação do passivo no âmbito do processo de insolvência – que implica a necessidade de reclamação dos créditos no âmbito do processo de insolvência, para o efeito de nele poderem obter pagamento, independentemente do seu fundamento e da sua natureza, conforme previsto nos artigos 90.ºe 128.º do CIRE e como também se encontrava previsto no art.º 188.º do CPEREF (aqui aplicável) – determina a extensão da competência material do tribunal de insolvência que, para o efeito de proceder à verificação dos créditos que sejam impugnados, não poderá deixar de ter competência para apreciar matérias que, normalmente e por regra, estariam reservadas para outros tribunais e, designadamente, para apreciar questões de natureza tributária normalmente reservadas aos tribunais administrativos, quando esteja em causa um crédito tributário que haja sido impugnado.
Não é essa, no entanto, a situação dos autos.
Não nos encontramos, de facto, no âmbito da fase de verificação do passivo e o que está em causa não é a verificação de um crédito tributário que haja sido reclamado no processo de insolvência; o que está em causa é uma dívida tributária referente a IMI que se constituiu na pendência do processo, ou seja, uma dívida que, nos termos da legislação actualmente vigente (o CIRE) seria qualificada como dívida da massa insolvente (art.º 51.º do CIRE) e que, no âmbito do CPEREF, era tratada em termos semelhantes (embora sem alusão à terminologia e classificação agora utilizada), correspondendo a uma dívida da responsabilidade da massa falida enquadrável no âmbito do respectivo art.º 208.º.
Sucede que, em relação a essas dívidas, não existe – não existe agora, nem existia no âmbito do CPEREF – qualquer norma legal onde se possa apoiar qualquer extensão da competência material do tribunal da insolvência relativamente a questões ou litígios emergentes de relações jurídicas tributárias.
Refira-se que, no actual quadro legislativo (o CIRE), a extensão da competência do tribunal de insolvência relacionadas com as dívidas da massa insolvente está prevista no art.º 89.º, n.º 2 – onde se determina que as acções relativas a essas dívidas correm por apenso ao processo de insolvência (com a inerente competência do tribunal onde corre este processo) – mas com expressa exclusão das execuções por dívidas de natureza tributária, o que não deixa de evidenciar que não existiu qualquer intenção de incluir no âmbito de competência do tribunal onde corre o processo de insolvência a apreciação de questões relacionadas com dívidas da massa insolvente de natureza tributária (que, nos termos das disposições legais acima mencionadas, estão reservadas aos órgãos próprios da administração tributária ou aos tribunais administrativos e fiscais).
Concluimos, portanto, que, fora do âmbito da fase de verificação do passivo e daquilo que seja necessário para efeitos de verificação dos créditos aí em causa, não cabe no âmbito do processo de insolvência/falência – e não cabe do âmbito da competência do tribunal onde ele se encontra pendente – a resolução de questões ou litígios emergentes de relações jurídico-tributárias que hajam surgido entre a Massa Insolvente ou Falida e a Administração Tributária, designadamente, as questões ou litígios que – como acontece na situação dos autos – estão relacionados com a legalidade (ou ilegalidade) do acto/facto tributário que liquidou o imposto e atribuiu à Massa Falida a responsabilidade pelo respectivo pagamento. Tais questões e a resolução desses litígios devem ser suscitadas por via dos meios processuais tributários que se encontram previstos na Lei Geral Tributária e no Código de Procedimento e de Processo Tributário e que são da competência dos órgãos próprios da administração tributária ou dos tribunais administrativos e fiscais”.
Por sua vez, pode ler-se no segundo que “dívidas da massa insolvente são aquelas que estão previstas nas várias alíneas do nº 1 do art.º 51º do CIRE,além de outras como tal qualificadas neste Código”, salvo preceito expresso em contrário.
Esta qualificação não cabe unilateralmente aos credores, mas, em primeira linha, ao administrador da insolvência que as deve pagar “nas datas dos respectivos vencimentos, qualquer que seja o estado do processo”, devendo ainda assegurar e provisionar o seu pagamento quando seja previsível a sua constituição ou reconhecimento – cfr. os nºs 1, 3 e 4 do art.º 172º do CPC.
Recusado o pagamento da dívida pelo administrador da insolvência, o apuramento da natureza do crédito, ou o contraditório da massa insolvente, só são adequadamente alcançados no quadro de uma acção declarativa ou de uma oposição numa acção executiva. Uma decisão meramente incidental e sumária da qualificação da dívida como dívida da massa seria sempre aligeirada, correndo o risco de ser injusta ao desprezar a audição do credor e a prova que este poderia carrear.
Quando o pagamento de uma dívida da massa insolvente pelo administrador não ocorra no tempo devido não fica o credor da massa impedido de fazer valer o seu crédito. Se dispuser de um título executivo poderá executar os bens da massa após o decurso de três meses sobre a declaração de insolvência; não tendo título executivo, terá de lançar mão de uma acção visando o reconhecimento do seu crédito e a condenação da massa insolvente no respectivo pagamento (como dívida da massa), de harmonia com o disposto nos nºs 1 e 2 do art.º 89º do CIRE. Esta acção correrá por apenso ao processo de insolvência, salvo quanto às dívidas tributárias, em que a sua execução – e de execução se trata porque aqui não é necessária a instauração de acção declarativa para a condenação do devedor – terá de correr no tribunal materialmente competente (cfr. o nº 2 do art.º 89º do CIRE)”.
Finalmente, discorreu-se no terceiro que “O administrador de insolvência só tem de pagar as dívidas sobre a massa que o próprio reconhecer ou considerar ser previsível que se constituam até ao encerramento do processo. Se o administrador não reconhecer uma determinada dívida sobre a massa, a pessoa que se apresenta como credor terá de intentar acção destinada a obter a condenação da massa no pagamento.
Trata-se de uma possibilidade expressamente prevista no artigo 89.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que apenas consagra um período de tréguas de três meses seguintes à declaração de insolvência dentro do qual tais acções não poderão ser instauradas. Segundo o n.º 2 do preceito as acções, declarativas ou executivas, relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência. Todavia, o preceito excepciona precisamente as execuções por dívidas de natureza tributária, as quais têm de ser instauradas no tribunal competente que é o Tribunal Administrativo e Fiscal.
Daqui resulta, portanto, que não reconhecendo o administrador de insolvência o crédito e pretendendo discutir a obrigação de pagamento do mesmo pela massa, o administrador não deve atender a esse crédito nos rateios e nos pagamentos subsequentes e o credor terá de instaurar a competente acção para obter a condenação da massa no pagamento. Para o efeito, sendo o credor o Estado e a dívida de natureza tributária, a acção terá de correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal, sendo que a legitimidade para a instaurar pertence naturalmente ao credor Estado”.
Impõe-se, por conseguinte, julgar improcedente o recurso.
De acordo com a regra geral inscrita no artigo 527º do CPC, o recorrente, como parte vencida, suportará as custas do recurso.
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IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Guimarães, 06 de Fevereiro de 2025

João Peres Coelho Relator
Maria Gorete Morais 1ª Adjunta
Gonçalo Oliveira Magalhães 2º Adjunto


[1] Na medida em que a presente acção, em vez de ser remetida à jurisdição tributária e aí integralmente apreciada (admitindo que o autor usasse a prerrogativa que lhe confere o artigo 99º, n.º 2 do CPC), teria de aguardar o desfecho de uma outra acção a intentar perante aquela jurisdição, sem qualquer vantagem do ponto de vista da celeridade, antes pelo contrário, e com o inconveniente acrescido da duplicação de procedimentos.
[2] Nesse sentido, pode ler-se no sumário do acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 06/04/2011, proferido no processo n.º 0981/10 e relatado por Isabel Marques da Silva, que “A instauração da execução fiscal por créditos vencidos posteriormente à declaração de falência (…) encontra expresso apoio legal no disposto no n.º 6 do artigo 180.º do CPPT, preceito que há-de ser, contudo, interpretado razoavelmente, atenta a unidade do sistema jurídico, no sentido de que só será viável o prosseguimento dos processos de execução fiscal por créditos vencidos após a declaração de falência se forem penhorados bens não apreendidos naquele processo”.