Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
826/14.8TBGMR-F.G1
Relator: AFONSO ANDRADE
Descritores: PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA FORTUITA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Da comparação entre os regimes jurídicos da qualificação da insolvência e da exoneração do passivo restante, resulta uma grande proximidade teleológica, podendo os dois serem explicados com a necessidade sentida pelo legislador de “punir” aqueles devedores que com dolo ou culpa grave, tenham prejudicado os seus credores, e, ao invés, de “premiar” de alguma forma aqueles devedores que o não tenham feito. 2. Embora não seja automático, na esmagadora maioria dos casos, uma insolvência fortuita irá dar lugar naturalmente à concessão da exoneração do passivo restante, bem como uma insolvência culposa dará lugar necessariamente à não concessão desse benefício. 3. Estando já decidido neste processo (com trânsito em julgado) que a insolvência foi fortuita, está afastada a possibilidade de vir a decidir, no mesmo processo, embora num incidente diverso, que a insolvente incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188.º, ou que ela incumpriu o dever de requerer a declaração de insolvência.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães


Sumário: 1. Da comparação entre os regimes jurídicos da qualificação da insolvência e da exoneração do passivo restante, resulta uma grande proximidade teleológica, podendo os dois serem explicados com a necessidade sentida pelo legislador de “punir” aqueles devedores que com dolo ou culpa grave, tenham prejudicado os seus credores, e, ao invés, de “premiar” de alguma forma aqueles devedores que o não tenham feito. 2. Embora não seja automático, na esmagadora maioria dos casos, uma insolvência fortuita irá dar lugar naturalmente à concessão da exoneração do passivo restante, bem como uma insolvência culposa dará lugar necessariamente à não concessão desse benefício. 3. Estando já decidido neste processo (com trânsito em julgado) que a insolvência foi fortuita, está afastada a possibilidade de vir a decidir, no mesmo processo, embora num incidente diverso, que a insolvente incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188.º, ou que ela incumpriu o dever de requerer a declaração de insolvência.


I- Relatório

MARIA, com os sinais dos autos, foi declarada insolvente no processo principal.

Veio também requerer que lhe fosse concedida a exoneração do passivo restante, alegando que preenche os requisitos previstos nos arts. 235º ss do CIRE.
O Tribunal deferiu ao requerido, e, ao abrigo do disposto no art. 239º,2 C.I.R.E., determinou que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível – até ao montante em dívida - que a devedora venha a auferir se considera cedido à Srª. Administradora de Insolvência.

Inconformados com essa decisão, os credores JOSÉ, e ANA vieram interpor recurso para este Tribunal da Relação, pedindo a revogação da decisão recorrida.

Terminam as suas alegações com a formulação das seguintes conclusões:

I- O despacho recorrido viola e faz uma errada interpretação das disposições legais constantes do artigo 205.º n.º 1 da C.R.P., dos artigos 5.º, 6.º, 7.º, 154.º, n.º 1 e 2, 411.º, 547.º, 602.º, n.º 1, 607.º, 608.º, n.º 2 e 611.º, do C.P.C., estes, adaptáveis por força da norma contida no artigo 17.º do C.I.R.E., e dos artigos 11.º e 238.º, n.º 1, alíneas d) e e), do C.I.R.E, aplicáveis ao caso vertente.
II– Naquela decisão não consta qualquer referência aos fundamentos de facto, mormente, aqueles que resultam da pronúncia deduzida pelos Apelantes e dos factos apurados em sede de incidente de qualificação de insolvência.
III– Deste modo, o Tribunal a quo cometeu uma violação da lei processual por infracção ao princípio da fundamentação especificada dos actos e decisões jurisprudenciais, o que acarreta a nulidade do despacho judicial referenciado.
IV- A decisão sobre a matéria de facto prolatada pelo Tribunal recorrido, não considerou um conjunto de ocorrências evidenciadas e manifestamente relevantes para a decisão da causa, quer alegados pelos Apelante, quer em resultado da instrução da causa ou, mesmo, em virtude do exercício de funções da própria Mma. Juiz a quo.
V– No domínio do direito insolvencial vigora o princípio do inquisitório, consagrado no artigo 11.º do C.I.R.E., do qual resulta o poder de fundar a decisão em factos não alegados, que contém implícita a faculdade de o juiz, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem com recolher as provas e informações que entender convenientes.
VI- Para apreciação dos requisitos substantivos inerentes à admissão liminar do procedimento de exoneração do passivo restante, o juiz pode servir-se de todos os factos e documentos constantes do processo, mesmo que não alegados ou carreados pelos credores, podendo também fundamentá-la nos factos que tenha averiguado ou ainda dos que tenha tido conhecimento em virtude das suas funções.
VII– Nesse contexto, com base naquilo que resulta evidenciado, documentalmente, nos autos, mormente, no âmbito do incidente de qualificação de insolvência, deverá ser incluído na fundamentação fáctica da decisão sobre a apreciação liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o acervo de facto supra indicado no âmbito do ponto 3.2.1.1 desta peça processual.
VIII– Por sua vez, do Requerimento apresentado pelos Apelantes pronunciando-se sobre a pretensão aduzida pela Insolvente resulta, também, um conjunto de factos provados nos autos e indicados no ponto 3.2.1.2 desta peça processual que, por, manifestamente, relevantes, devem, também, ser incluídos no conjunto da matéria de facto que fundamentará a decisão judicial.
IX- O Tribunal da Relação de Guimarães encontra-se habilitado a proceder à modificação da decisão de facto proferida nos presentes autos ou, caso superiormente assim o entenda, a ordenar a renovação da prova produzida ou a produção de novos meios de prova.
X- Esta alteração à decisão da matéria de facto conduzirá a uma diferente fundamentação de facto e, naturalmente, de direito da decisão, o que imporá, a final, o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante deduzido pela Insolvente.
XI- De entre os fundamentos elencados no artigo 238.º, n.º 1, do C.I.R.E., importa salientar que, no caso em apreço, encontram-se, visivelmente, verificados os fundamentos constantes das alíneas d) e e) daquela disposição legal.
XII- A Insolvente não se apresentou à insolvência no momento em que verificou que se encontrava em situação de insolubilidade e não existia perspectiva séria de melhoria da sua situação económica; por acção ou omissão criou ou agravou a situação de insolvência, porquanto, dissipou parte considerável do seu património e celebrou negócios ruinosos em seu proveito e no de pessoas com ela especialmente relacionadas.
XIII- Os actos descritos mais não são do que a concretização de um plano conseguido de retirar o estabelecimento comercial identificado do património da Insolvente, que, assim, ficaria incólume a qualquer ofensiva por parte de credores, mormente, em processo de execução ou de insolvência.
XIV- Perante um manifesto estado de insolvência, a Insolvente, em vez de apresentar-se a Tribunal para requerer a sua declaração de insolvência, optou por alienar parte do seu património, realizando negócios em benefício pessoal e dos seus amigos.
XV- Resulta dos factos conhecidos nos autos que a Insolvente explorou uma loja comercial durante quase 10 anos, tendo tido a seu cargo trabalhadores, o que corresponde à titularidade de uma empresa e como tal estava obrigada a apresentar-se à insolvência nos moldes inscritos no artigo 18.º, do C.I.R.E.
XVI- Presumindo-se inilidivelmente o conhecimento da sua situação de insolvência decorridos pelo menos 3 meses sobre o incumprimento no pagamento das contribuições devidas ao I.S.S., I.P., ocorrido entre Setembro de 2012 a Julho de 2013, e o empréstimo garantido pela hipoteca, relativamente à sua residência, desde 22/11/2012, pelo que tem de se entender que o conhecimento da situação de insolvência ocorreu, pelo menos, a partir de Dezembro de 2012.
XVII- Tomando consciência da sua situação de insolvência pelo menos em Dezembro de 2012, a Insolvente deveria ter-se apresentado à insolvência até ao dia 30/01/2013 – o que não fez, já que a apresentação à insolvência se verificou, apenas, em 24/03/2014.
XVIII- Ao estabelecer que a apresentação extemporânea do devedor à insolvência haja causado prejuízo aos credores, a lei visa os comportamentos que façam diminuir o acervo patrimonial do devedor, que onerem o seu património ou mesmo aqueles que originem novos débitos, a acrescer aos que integravam o passivo que estava já impossibilitado de satisfazer.
XIX- A ausência de apresentação à insolvência prejudicou os credores, pois, tal como resulta dos factos conhecidos, após Fevereiro de 2013 ficaram por pagar várias dívidas e a Insolvente contraiu ainda (novas) dívidas junto da Banco X, de Fernando e de José e Ana, bem como continuaram a vencer-se contribuições devidas ao ISS, I.P. - o que não teria acontecido se a Insolvente se tivesse apresentado à insolvência.
XX– Além disso, daquilo que vem referenciado, conjugado com o que resulta dos presentes autos, é notório que a Insolvente, ante a sua situação presumida de insolvência, inutilizou, ocultou e fez desaparecer uma parte considerável do seu património, causou a celebração de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas, dispôs dos seu bens em proveito de terceiros, fez do crédito ou dos seus bens uso em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenha interesse directo ou indirecto, prosseguiu, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência.
XXI– Finalmente, importa destacar que a inovadora figura da exoneração do passivo restantes visa permitir reabilitação económica do Insolvente após a realização de um juízo de prognose favorável à pessoa e se a mesma é ou não merecedora de uma nova oportunidade.
XXII- No caso vertente, o juízo de prognose favorável à Insolvente não pode ocorrer pois o seu estado de insolvência manter-se-á futura e indefinidamente, mesmo que lhe venha a ser concedida a exoneração peticionada, pois rendimento mensal alegado é bastante inferior às suas despesas mensais, conforme vem alegado na Petição Inicial, o que redundaria, que a Insolvente manterá um défice mensal.
Não foram produzidas contra-alegações.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir são as seguintes:

a) ampliação da matéria de facto relevante para a decisão;
b) saber se estão reunidos os requisitos para ser concedida a exoneração do passivo restante à insolvente; mais concretamente, saber se se verificam no caso as circunstâncias impeditivas previstas nas alíneas d) e e) do nº 1 do art. 238º CIRE;

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. A Requerente é pessoa singular, divorciada, que se encontra actualmente incapacitada de cumprir as suas obrigações vencidas e vincendas;
2. A Requerente mostra-se hoje generalizadamente incapaz de pagar as suas dívidas, as quais ultrapassam já os 199.633,93 EUR;
3. Com efeito, a Requerente possui os seguintes débitos:

• 117.895,93 EUR. à BANCO X (Crédito a Habitação);
• 59.792,00 EUR. à BANCO X”;
• 68,00 EUR. ao “BANCO BANCO A SA”;
• 7.058,00 EUR. ao “BANCO Y SA”;
• 14.820,00 EUR a FERNANDO (empréstimo pessoal);
4. A Requerente exerce a actividade profissional de Empregada de Balcão na empresa/sociedade VG Unipessoal Lda, auferindo mensalmente a quantia de 485,00 EUR;
5. A Requerente tem um filho menor, a seu exclusivo cargo, TIAGO, com 15 anos de idade, e que se encontra em idade escolar;
6. A insolvência foi considerada fortuita;
7. A requerente apresentou-se à insolvência;
8. À requerente não lhe são conhecidos antecedentes criminais;

IV
Conhecendo do recurso.

A questão que se coloca neste recurso é a de saber se à insolvente deveria ter sido concedida a exoneração dos “créditos sobre a insolvência” que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A decisão recorrida entendeu que sim, pelo menos na fase liminar do incidente. Os recorrentes, como vimos, não concordam.
A sede legal desta matéria consta do art. 235º CIRE, nos seguintes termos: “Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência(1) que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.
O art. 236º estabelece o formalismo a seguir na apresentação do requerimento, o momento ou prazo da apresentação, os requisitos que o devedor deve preencher, e o cumprimento do contraditório.
O art. 238º determina em que casos o requerimento deve ser liminarmente indeferido. São eles:

a) o requerimento for apresentado fora de prazo;
b) o devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.

E o nº 2 deste artigo dispõe que o despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência nos termos previstos no n.º 4 do artigo 236.º, excepto se o pedido for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior.
E resulta de forma expressa do art. 239º,1 que “não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido o despacho inicial, na assembleia de apreciação do relatório, ou nos 10 dias subsequentes a esta ou ao decurso dos prazos previstos no n.º 4 do artigo 236º. E o nº 2 esclarece que “o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte”.

Destes excertos resulta que o legislador estabeleceu aqui um regime invertido, segundo o qual, sendo o requerimento tempestivo, e não se verificando qualquer das causas de indeferimento tipificadas no art. 238º, o Juíz deve proferir despacho liminar a abrir caminho para a concessão do benefício.
Daqui decorre ainda com extremo relevo, que, tal como tem sido entendido maioritariamente pela jurisprudência, o ónus da prova da verificação das circunstâncias previstas no nº 1 do art. 238º recai sobre os interessados na sua aplicação e não sobre o devedor (cfr. Acórdão do STJ de 19/4/2012, proferido no P. 434/11.5TJCBR-D.C1.S1).
Começando por recorrer ao apoio de Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 3ª edição, “a exoneração de que se trata neste capítulo traduz-se na liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos 5 anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente”.

Conforme as conclusões do recurso, importa apurar se se verificam as circunstâncias previstas nas alíneas d) e e) do art. 238º,1.

Decorre da alínea d) que o requerimento deve ser objecto de indeferimento liminar se “o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.
E segundo a alínea e), deve ser liminarmente indeferida a pretensão se “constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º.

Referem os recorrentes que no domínio do direito insolvencial vigora o princípio do inquisitório, consagrado no artigo 11.º do C.I.R.E., do qual resulta o poder de fundar a decisão em factos não alegados, que contém implícita a faculdade de o juiz, por sua própria iniciativa, os investigar livremente, bem com recolher as provas e informações que entender convenientes.
Ora, assim é, nos estritos termos da norma em causa.

Sucede porém que, como resulta dos autos, e no âmbito do incidente de qualificação da insolvência, vieram a administradora da insolvência e o Ministério Público apresentar parecer propondo que a insolvência fosse qualificada como culposa. E após cumprimento do contraditório, tendo a insolvente deduzido oposição, realizou-se audiência de discussão e julgamento, finda a qual o Tribunal considerou provados um conjunto de factos, nos quais fez depois assentar a decisão que veio a tomar, de considerar a insolvência de Maria fortuita.
Donde, assiste inteira razão aos recorrentes quando querem que sejam também considerados neste incidente todos os factos aí dados como provados, e ainda o último dos factos que, embora não conste da lista dos factos provados, resulta indubitável da fundamentação que se lhe seguiu, podendo ser agora aproveitado, em obediência à regra da prevalência da substância sobre a forma, vincada na reforma processual civil de 2013.

E isto porque, não só são factos apurados neste processo de insolvência, e logo devem valer em todos os seus incidentes e apensos, como porque há uma grande zona de sobreposição entre a factualidade subjacente à qualificação da insolvência como fortuita ou culposa, e os requisitos para a exoneração do passivo restante, o que se vê de uma rápida leitura dos arts. 238º,1 e 186º CIRE. Com efeito, “a exoneração é uma segunda oportunidade (fresh start), só deve ser concedida a quem a merecer; a lei exige uma actuação anterior pautada por boa conduta do insolvente, visando evitar que o prejuízo, que já resulta da insolvência, não seja incrementado por actuação culposa do devedor que, sabendo-se insolvente, permanece impassível, avolumando as suas dívidas em prejuízo dos seus credores e, não obstante, pretende exonerar-se do passivo residual requerendo a exoneração. Essa exigência ética, assente numa actuação de transparência e consideração pelos interesses dos credores, está claramente prevista na al. b) do art. 238.º do CIRE, cujo objectivo é obstar que a medida excepcional da exoneração do passivo não beneficie o infractor” (Acórdão do STJ de 24-01-2012, Fonseca Ramos - Relator).

E assiste igualmente razão aos recorrentes ao pretender igualmente que sejam tidas em conta os créditos reconhecidos e graduados no apenso respectivo.

Vimos ainda que os recorrentes vieram nas suas conclusões de recurso alegar que na decisão recorrida não consta qualquer referência aos fundamentos de facto, mormente, aqueles que resultam da pronúncia deduzida pelos Apelantes e dos factos apurados em sede de incidente de qualificação de insolvência, e que o Tribunal a quo cometeu uma violação da lei processual por infracção ao princípio da fundamentação especificada dos actos e decisões jurisprudenciais, o que acarreta a nulidade do despacho judicial referenciado.

É verdade que a decisão recorrida se limitou a fazer um resumo, ou um “apanhado” dos factos que já constavam provados nos autos. E não apresentou fundamentação para esse resumo. Supomos que essa opção terá decorrido do facto de se tratar justamente de um mero resumo, e não de considerar provados factos novos. Daí que se possa aceitar essa ausência de fundamentação, que no fundo, existe, mas está noutra sede.

Por outro lado, o facto de a decisão recorrida não se ter pronunciado sobre alguns meios de prova requeridos na peça processual na qual os ora recorrentes se pronunciaram contra a concessão da peticionada exoneração do passivo restante, pode entender-se se considerarmos que esses meios de prova foram propostos pelos ora recorrentes expressamente sob condição de o Tribunal os considerar necessários. Assim, a omissão de qualquer referência aos mesmos tem de ser vista apenas como o resultado de o Tribunal os ter considerado desnecessários. Não havendo pois aqui verdadeira ausência de pronúncia.

Assim, e concluindo, a matéria de facto provada a ter em conta para a decisão deste incidente passa a ser a seguinte:

1. A Requerente Maria é pessoa singular, divorciada, que se encontra actualmente incapacitada de cumprir as suas obrigações vencidas e vincendas, as quais ultrapassam já os € 199.633,93, tendo por sentença proferida em 26.3.2014, já transitada em julgado, sido declarada insolvente.
2. Entre os anos de 2005 e 2011 a insolvente explorou em nome individual um estabelecimento de pronto a vestir, denominado “S.” no Centro Comercial, nesta cidade.
3. Tratava-se de um pronto-a-vestir de classe média alta.
4. O ex-marido da insolvente explorou em nome individual uma lavandaria na Av. …, nesta cidade.
5. Na partilha dos bens do casal em 25.3.2011 o estabelecimento S. foi adjudicado à insolvente e a lavandaria ao ex-marido, ambos pelo valor de € 75.000,00.
6. O estabelecimento de pronto a vestir funcionava numa loja arrendada no Centro Comercial por valor não apurado.
7. Em 31.1.2013 a insolvente cessou a actividade do estabelecimento para efeitos fiscais.
8. A partir de Fevereiro de 2013 o referido estabelecimento passou a ser explorado pela sociedade VG- Unipessoal, Lda, sendo certo que não existiu qualquer venda ou trespasse de estabelecimento.
9. A Requerente exerce a actividade profissional de Empregada de Balcão na empresa/sociedade VG Unipessoal Lda, auferindo mensalmente a quantia de € 485,00.
10. Essa empresa passou a desenvolver a mesma actividade, no mesmo local, com os bens que até aí integravam o estabelecimento.
11. A insolvente recebeu o valor de €40.000,00 pela venda do stock de vestuário e mobiliário do estabelecimento à VG, Lda.
12. A insolvente permaneceu nessa loja desempenhando as funções de gerente, até Dezembro de 2014.
13. A sociedade VG- Unipessoal, Lda, foi constituída em 7.1.2013 pelo sócio único A. A..
14. A. A. é casado com S. S..
15. S. S. é irmã de Fernando.
16. Os recorrentes José e Ana têm um crédito sobre a insolvente, no montante de € 227.169,31, garantido por hipoteca.
17. A Segurança Social tem um crédito sobre a insolvente no valor de € 2.303,43.
18. A Banco X tem sobre a insolvente um crédito no montante de € 76.780,27, sendo que desse valor, pelo menos € 41.780,27 respeitam a dívidas posteriores ao inicio do ano de 2012.
19. Fernando tem sobre a insolvente um crédito no valor de € 15.331,59, sendo que existe uma confissão de dívida datada de 15.5.2013 no montante de € 14.820,00 a favor desse credor.
20. O BANCO A SA tem sobre a insolvente um crédito no valor de € 68,00;
21. O “BANCO Y SA” tem sobre a insolvente um crédito de € 7.058,00.
22. O ISS tem sobre a insolvente um crédito no valor de € 4.943,72.
23. Em Outubro de 2013 os fiadores do crédito à habitação José e esposa, cunhados da insolvente, adquiriram os créditos do Banco X, assumindo a posição de credores hipotecários.
24. A Insolvente mantém, pelo menos, uma sólida amizade com Fernando, S. S. e A. A.
25. A insolvência foi considerada fortuita.
26. A requerente apresentou-se à insolvência.
27. À requerente não lhe são conhecidos antecedentes criminais.
28. A Requerente tem um filho menor, a seu exclusivo cargo, TIAGO, com 15 anos de idade, e que se encontra em idade escolar.
29. Foi apreendido um imóvel – T3- que vai ser alienado por €130.000,00, dispensando-se o depósito do preço aos credores hipotecários, salvaguardadas as custas;
30. A insolvente vive com o filho menor numa casa arrendada pelo valor mensal de €480,00;
31. O stock de colecções de roupa, especialmente de senhora de épocas e anos anteriores, não tem valor igual ao inicial, apesar de poder constar da contabilidade.
32. O montante recebido pela venda do stock de vestuário e mobiliário do estabelecimento à VG, Lda, serviu para pagar aos credores mencionados
de fls. 99 a 130.

Apreciação de jure.
Temos de começar por um ponto prévio.
O facto de nestes autos já ter sido julgado, e com trânsito em julgado, o incidente de qualificação da insolvência, que como sabemos terminou com a classificação da insolvência como fortuita, tem uma incontornável influência na decisão que agora temos de tomar.
Lendo com atenção o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado pelos recorrentes, de 3 de Novembro de 2011, de que foi relatora a Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, vemos que aí se discutiu uma situação em que a insolvência foi também considerada fortuita. E afirma-se nesse aresto que “se é exacto que a culpa do devedor na criação ou no agravamento da situação de insolvência impede o deferimento do pedido de exoneração ou conduz à cessação antecipada do correspondente procedimento (cfr. artigos 238º, nº 1, e) e 243º, nº 1, c) CIRE), é igualmente certo que a ausência de culpa pode coexistir com o indeferimento, pois o pedido de exoneração pode ser indeferido mesmo que a insolvência seja apenas fortuita, (cfr. as causas de insolvência culposa, constantes do nº 1 do artigo 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
O Supremo Tribunal de Justiça pronunciou-se, nesse caso, em abstracto.

Se formos olhar para o art. 186º,1 CIRE dispõe que “a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
E o nº 2 do mesmo preceito estabelece um conjunto de circunstâncias cuja ocorrência faz presumir a existência de culpa.
O que significa que neste momento, nestes nossos autos em concreto, atenta a decisão já transitada em julgado e o que esse artigo dispõe, este Tribunal tem já como adquirido que a insolvente:

a) não destruiu, danificou, inutilizou, ocultou, ou fez desaparecer, no todo ou em parte considerável, o seu património;
b) não criou ou agravou artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduziu lucros, nem deu causa à celebração de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ela especialmente relacionada;
c) não comprou mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) não dispôs dos seus bens em proveito pessoal ou de terceiros;
e) não fez do crédito ou dos seus bens uso contrário ao seu interesse, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenha interesse directo ou indirecto;
g) não prosseguiu, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saber ou dever saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) não incumpriu em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, não manteve uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticou irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da sua situação patrimonial e financeira;
i) não incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188.º.
j) não incumpriu o dever de requerer a declaração de insolvência;
k) não incumpriu a obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
l) se for de concluir que ela não estava obrigada a apresentar-se à insolvência, então esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação económica do insolvente.

E, com base nessas afirmações, foi já considerado, com trânsito em julgado, que
a situação de insolvência não foi criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, da insolvente, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Por outro lado, nos termos do art. 238º,1, o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:

a)
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227º a 229º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.

Da comparação entre estes dois regimes jurídicos, resulta uma grande proximidade teleológica, podendo os dois serem explicados com a necessidade sentida pelo legislador de “punir” aqueles devedores que com dolo ou culpa grave, tenham prejudicado os seus credores, e, ao invés, de “premiar” de alguma forma aqueles devedores que o não tenham feito.
E terá sido essa grande proximidade que fez com que o Juíz do processo tenha considerado, e a nosso ver bem, que a decisão sobre a qualificação da insolvência era questão prejudicial em relação a esta da exoneração do passivo restante, e tenha sobrestado nesta decisão até à decisão final daquela, como resulta da consulta dos autos via CITIUS.

E por isso é que, embora concordemos em tese com a afirmação constante do citado Acórdão do STJ, temos de acrescentar que, baixando ao concreto, estamos convencidos que na esmagadora maioria dos casos, uma insolvência fortuita irá dar lugar naturalmente à concessão da exoneração do passivo restante, bem como uma insolvência culposa dará lugar necessariamente à não concessão desse benefício.

O que nos leva de imediato à tentativa de subsunção dos factos supra dados como provados em alguma das alíneas do nº 1 do art. 238º CIRE, sobretudo nas duas que os recorrentes invocam, tendo sempre presente que estamos a lidar com uma insolvência fortuita, pelo que não será possível proferir decisão que contradiga o que já está decidido com trânsito em julgado.

Vejamos pois.
O quadro factual que temos perante nós é este: entre os anos de 2005 e 2011 a insolvente explorou em nome individual um estabelecimento de pronto a vestir de classe média alta, num Centro Comercial. Na partilha dos bens do casal subsequente ao seu divórcio esse estabelecimento foi adjudicado à insolvente e uma lavandaria que o seu ex-marido explorava foi adjudicada a este, ambos pelo valor de € 75.000,00.
Em 31.1.2013 a insolvente cessou a actividade do estabelecimento para efeitos fiscais.
A partir de Fevereiro de 2013 o referido estabelecimento passou a ser explorado pela sociedade VG - Unipessoal, Lda, a qual passou a desenvolver a mesma actividade, no mesmo local, com os bens que até aí integravam o estabelecimento, não tendo existido qualquer venda ou trespasse de estabelecimento, mas tendo a insolvente recebido o valor de € 40.000,00 pela venda do stock de vestuário e mobiliário do estabelecimento à VG, Lda. Esse valor serviu para pagar a alguns dos seus credores.
E a Requerente passou a exercer a actividade profissional de Empregada de Balcão nessa empresa/sociedade VG Unipessoal Lda, auferindo mensalmente a quantia de € 485,00.
A insolvente permaneceu nessa loja desempenhando as funções de gerente, até Dezembro de 2014.

A sociedade VG- Unipessoal, Lda, foi constituída em 7.1.2013 pelo sócio único A. A., o qual é casado com S. S., a qual é irmã de Fernando, que é credor da insolvente pelo valor de € 15.331,59.
A Insolvente mantém uma sólida amizade com Fernando, S. S. e A. A..
Mais se apurou que a requerente se apresentou à insolvência, e não lhe são conhecidos antecedentes criminais.

Ora, com estes factos, podemos desde já afastar a circunstância prevista na alínea b) do nº 1 do art. 238º: não está provado que a insolvente tenha fornecido informações falsas ou incompletas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;

Igualmente não há qualquer facto que permita dizer que a insolvente já tenha beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência.
A alínea d) refere-se ao devedor que tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.
Aqui apenas nos resta constatar que, como consequência de já ter ficado decidido, com trânsito em julgado neste processo, que a insolvência foi fortuita, está afastada a possibilidade de vir a decidir, no mesmo processo, embora num incidente diverso, que a insolvente não incumpriu, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração até à data da elaboração do parecer referido no nº 2 do artigo 188.º, ou que ela incumpriu o dever de requerer a declaração de insolvência. Pelo contrário, está provado que foi ela quem se apresentou à insolvência.
Escreve-se na decisão que qualificou a insolvência como fortuita que “não se apuraram factos que determinassem a conclusão da falta de apresentação tempestiva à insolvência”. E nesta fase também não vemos esses factos.
Assim, não podemos ter como verificada a circunstância da alínea d).

A alínea e) tem um teor mais genérico: “constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º.

Ora, em relação a esta alínea, a qual faz abertamente a ponte com o regime da qualificação da insolvência, e considerando o trânsito em julgado da decisão que qualificou a insolvência como fortuita, a resposta negativa assume quase um teor automático: não se verifica.
Seria mesmo contraditório negar nesta sede o que foi afirmado no incidente de qualificação da insolvência.

Aqui chegados, entendemos importante reforçar esta ideia da necessidade de evitar julgados contraditórios dentro do mesmo processo, não deferindo liminarmente a exoneração do passivo restante em caso de insolvência culposa, nem, ao contrário, indeferindo liminarmente a exoneração do passivo em caso de insolvência fortuita.

Para tanto, é essencial partir da ratio legis do instituto.
Como se escreve no Acórdão do STJ de 24-01-2012 (Relator: Fonseca Ramos), “na lógica de que a exoneração é “uma segunda oportunidade” (fresh start), só deve ser concedida a quem a merecer; a lei exige uma actuação anterior pautada por boa conduta do insolvente, visando evitar que o prejuízo, que já resulta da insolvência, não seja incrementado por actuação culposa do devedor que, sabendo-se insolvente, permanece impassível, avolumando as suas dívidas em prejuízo dos seus credores e, não obstante, pretende exonerar-se do passivo residual requerendo a exoneração. Essa exigência ética, assente numa actuação de transparência e consideração pelos interesses dos credores, está claramente prevista na al. b) do art. 238º do CIRE, cujo objectivo é obstar que a medida excepcional da exoneração do passivo não beneficie o infractor”.
Agora, considere-se o conceito de insolvência culposa dado pelo art. 186º,1 CIRE: a insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
É evidente a ligação entre os dois institutos, partindo ambos de uma análise da conduta pretérita do devedor, para chegar a uma conclusão sobre a sua probidade, na criação ou agravamento da situação de insolvência. No caso da qualificação da insolvência, a lei estabeleceu a declaração da mesma como culposa ou fortuita. E o relevo dessa qualificação é por demais evidente. O próprio legislador veio mostrar esse relevo pela negativa, ao dispor no art. 185º que “a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das acções a que se reporta o n.º 3 do artigo 82.º”. Esta preocupação de exclusão para efeitos de processo penal e para os casos previstos no nº 3 do art. 82º CIRE logo revela todo o universo de situações em que essa relevância existe: a lei fala mesmo do carácter “vinculativo”.

Na Jurisprudência podemos encontrar várias decisões que vão no mesmo sentido.

Por exemplo, no Acórdão da Relação do Porto de 28/1/2014 (Relator: Vieira e Cunha) pode ler-se: “na prática, a norma do art. 238º nº 1 al. e) torna o deferimento liminar da exoneração do passivo restante dependente da apreciação da qualificação da insolvência, sendo que os índices da insolvência culposa devem conduzir ao indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante. Neste sentido, uma forte corrente jurisprudencial vem afirmando que a norma do artº 185º CIRE (“a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das acções a que se reporta o nº 2 do artº 82º”) permite, a contrario, a interpretação de que, nas demais acções, a qualificação atribuída é vinculativa, prevalecendo o caso julgado formado pela decisão de qualificação de insolvência. Aderimos a esta corrente jurisprudencial, pelo seu pendor lógico e de harmonia do sistema” (…). A questão pode também ser observada sob o ângulo da autoridade do caso julgado formado pela decisão da qualificação da insolvência no indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, à luz da norma do artº 238º nº1 al.e) CIRE. Como é sabido, nos termos do artº 619º nº1 NCPCiv, transitada em julgado a sentença, o respectivo conteúdo fica tendo força obrigatória no processo e fora dele, nos limites fixados nos artºs 580º e 581º NCPCiv. Pode assim estabelecer-se, consoante a lição do Prof. M. Teixeira de Sousa, O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material, Bol.325/159 a 179, que se o objecto do processo precedente não esgota o objecto do processo subsequente, ocorrendo relação de dependência ou de prejudicialidade entre os dois distintos objectos, há lugar à autoridade ou força de caso julgado. A questão dos autos está pois em que existe um precedente no julgado em matéria de qualificação da insolvência que remete directamente para o disposto no artº 238º nº1 al.e), assim interferindo com a integração da norma nos factos apurados no processo. E tratando-se, no caso da qualificação da insolvência, de um julgado vinculativo, não há como fugir à conclusão de que os elementos a que se reporta a citada al.e) do nº1 do artº 238º foram já, na sua integralidade, apreciados, no processo, por forma a lhes retirar completa relevância para efeitos da conclusão sobre “culpa do devedor, na criação ou no agravamento da situação de insolvência, nos termos do artº 186º”.
E idêntica orientação foi seguida nestas outras decisões, consultáveis em www.dgsi.pt:

- Ac. TRP de 11/11/2013, pº 4133/11.0TBMTS-F.P1, relatado pelo Desemb. Caimoto Jácome;
- Ac. TRP de 4/3/2013, pº 1043/12.7TBOAZ-E.P1, relatado pelo Desemb. Manuel Fernandes;
- Ac. TRP de 3/12/2012, pº 1462/11.6TJVNF-D.P1, relatado pelo Consº Pinto de Almeida;
- Ac TRC de 24/4/2012, pº 399/11.3TBSEI.-E.C1, relatado pelo Desemb. Fonte Ramos;
- Ac. TRC de 29/2/2012, pº 170/11.2TMGR-C.C1, relatado pelo Desemb. Carlos Gil.

Baixando de novo ao caso concreto, para terminar.

Os recorrentes pretendem que no caso em apreço, encontram-se, visivelmente, verificados os fundamentos constantes das alíneas d) e e) do art. 238º,1 CIRE.
O art. 18º,1 CIRE consagra o dever de apresentação à insolvência, por parte do devedor. O nº 2 dessa disposição exceptua desse dever as pessoas singulares que não sejam titulares de uma empresa na data em que incorram em situação de insolvência. E o nº 3 do mesmo normativo dispõe que quando o devedor seja titular de uma empresa, presume-se de forma inilidível o conhecimento da situação de insolvência decorridos pelo menos três meses sobre o incumprimento generalizado de obrigações de algum dos tipos referidos na alínea g) do nº 1 do artigo 20º.
Anotando este artigo, escrevem Carvalho Fernandes e João Labareda (ob. cit.) que “a lei contempla uma panóplia de consequências muito gravosas que atingem o devedor incumpridor. (…) a insatisfação do dever de apresentação a que o insolvente está adstrito presume a existência de culpa grave na insolvência (art. 186º,3,4) e induz, consequentemente, a qualificação da insolvência como culposa, o que desencadeia um conjunto de pesadas sanções para o insolvente, como se vê do art. 189º,2. Além disso, acarreta consequências de carácter criminal”.

Só que, como também já adiantámos, na sentença que considerou a insolvência como fortuita o Tribunal já apreciou esta questão. E concluiu pela não verificação desta, ou de qualquer outra, causa de qualificação da insolvência como culposa. Essa decisão transitou em julgado. Logo, por todas as razões supra indicadas, não podia agora o Tribunal a quo desdizer-se e decidir o oposto, para efeito de exoneração do passivo restante. E a mesma regra se impõe a esta Relação.

E quanto então à alínea e), como já vimos, a situação ainda é mais flagrante, pois aí é a própria letra da lei que faz a ligação à declaração da existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º. Questão que, como já vimos, está resolvida com trânsito em julgado.

E todos os outros factos que estão dados como provados, e que poderiam ser agora analisados para efeitos da decisão liminar de exoneração do passivo restante, como por exemplo a eventual dissipação de bens, ou a celebração de negócio ruinoso, já foram analisados em sede do incidente de qualificação da insolvência. E não podia agora ser proferida decisão diversa.

Para terminar, uma breve referência à conclusão XXII: afirmam os recorrentes que o juízo de prognose favorável à insolvente não pode ocorrer pois o seu estado de insolvência manter-se-á futura e indefinidamente, mesmo que lhe venha a ser concedida a exoneração peticionada, pois o rendimento mensal alegado é bastante inferior às suas despesas mensais, conforme vem alegado na Petição Inicial, o que redundaria, que a Insolvente manterá um défice mensal.
Mas aqui basta apenas lembrar que a decisão proferida foi apenas a de admissão (ou deferimento) liminar da pretensão de exoneração, abrindo-se o período probatório de 5 anos, previsto no art. 239º, no qual o devedor fica sujeito a uma longa lista de obrigações e limitações.
Vejam-se ainda os arts. 243º e 244º CIRE, que regulam a decisão final sobre a pretensão de exoneração do passivo restante, que apenas será tomada após o referido período de 5 anos.
Em conclusão, o recurso não merece provimento.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 8/3/2018

Relator (Afonso Cabral de Andrade)

1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Luís Espinheira Baltar)

1. Expressão infeliz do legislador, em desarmonia com a epígrafe do Capítulo onde tal artigo se insere (“exoneração do passivo restante”), essa sim, terminologicamente correcta.