Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | FÁTIMA FURTADO | ||
Descritores: | CRIME DE SUBTRACÇÃO DE MENOR GUARDA ALTERNADA VONTADE DO MENOR | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I. Estando suficientemente indiciado que a arguida não cumpre o regime de guarda alternada que foi estipulado judicialmente, recusando repetidamente entregar o filho ao pai, impedindo por completo o convívio ente ambos durante mais de um ano, com a justificação de ser o menino, com 11 anos, que não queria ir com o pai; então tem de se considerar também indiciado que a arguida, pessoa adulta e normal, ao proceder da forma descrita, sabia que estava a violar repetida e continuadamente o regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais, o que quis e conseguiu. De toda a factualidade emanando uma atuação da arguida sempre livre, voluntária e consciente, que obviamente sabia ser proibida e punida por lei, como necessariamente o saberia qualquer pessoa com o mínimo de integração social. II. Um jovem com 11 anos de idade ainda não tem capacidade para formar uma decisão crítica e consciente sobre vários aspetos essenciais da sua vida, nos quais se inclui o seu direito a ser próximo de ambos os progenitores e com eles conviver. Pelo que a eventual relutância do menor a acompanhar o pai não é justificação do comportamento da arguida sua mãe. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães. (Secção Penal) I. RELATÓRIO No processo de Instrução nº 178/20...., do Juízo de Instrução Criminal de Guimarães, juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em 4 de janeiro de 2024, foi proferido despacho de não pronúncia da arguida AA, do crime de subtração de menor, previsto e punível pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal, que lhe vinha imputado no requerimento de abertura da instrução (RAI). * Inconformado, o assistente BB interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:1. «O presente recurso é interposto apenas da decisão de não pronúncia da arguida AA. 2. Entendemos que a decisão recorrida infirma de erro notório na apreciação da prova carreada em inquérito e em instrução, nomeadamente, tendo em conta o que deve ser entendido como índices suficientes, nos termos do nº 2 do artigo 283º, ex vi do artigo 308º, n.ºs.1 e 2 do Código de Processo Penal. 3. Atendendo ao caso concreto, começamos por referir que a prova produzida no inquérito e na instrução impunha decisão diversa da constante da decisão recorrida, ou seja, despacho de pronúncia da recorrida pelo crime de subtracção de menor, previsto e punido pelo artigo 249º, n.º 1, al. c) do Código Penal. 4. A única questão aqui em causa é saber se existem indícios suficientes nos autos de que a recorrida agiu com dolo, ou seja, se está preenchido o elemento subjectivo do crime, uma vez que o tribunal a quo não põe em causa os elementos objectivos do crime de subtracção de menor, nomeadamente o incumprimento reiterado e injustificado do regime das responsabilidades parentais em vigor, dando como indiciados os pontos 1 a 16 da factualidade descrita na decisão recorrida. 5. Durante o inquérito foram recolhidas as seguintes provas: mensagens trocadas entre a recorrida e o recorrente (fls. 103 a 111 dos autos); ocorrências lavradas pelos agentes de autoridade policial (fls. 29 a 30 dos autos); despachos proferidos no processo n.º 233/13.... (fls. 112 verso, 113 frente e 114 dos autos); emails das técnicas da CAFAP (fls. 111 verso e 112 frente dos autos); declarações do aqui assistente (fls. 102 dos autos). 6. Durante a instrução foi produzida a seguinte prova: email das técnicas da CAFAP, de 01-08-2020, junto com o RAI; documentos juntos pela recorrida, nomeadamente despacho proferido pelo Tribunal de Família e Menores, informação do Processo de Promoção e Protecção e informação da Associação de Defesa dos Direitos Humanos de Guimarães. 7. Resulta dos autos que inicialmente, em 20-03-2020, a recorrida recusou entregar o menor ao recorrente devido à pandemia provocada pela Covid-19, tendo o tribunal de Família e Menores ordenado, em 24-03-2020, que o regime em vigor fosse escrupulosamente cumprido (fls. 103 e 104; fls. 112 verso dos autos). 8. Posteriormente, em 01-05-2020, a recorrida recusou-se a entregar o menor ao recorrente, desta vez escudando-se na desculpa que o menor não queria estar com o pai, tendo também o tribunal ordenado, em 21-05-2020, o cumprimento imediato do regime em vigor e que o menor não tem poder de veto, mesmo após audição, relativamente ao que foi decido pelo tribunal, isto porque a vontade do menor não pode ser vinculativa ou motivo de incumprimento (fls. 107 e 113 dos autos). 9. Acontece que, e apesar do despacho de 21-05-2020, a recorrida continuou a dificultar e a recusar a entrega do menor, bem sabendo que tinha que entregar o filho ao pai, não só pelo regime de responsabilidades parentais em vigor, mas também na sequência dos despachos proferidos pelo Tribunal de Família e Menores em 24-03-2020 e 21-05-2020. 10. Assim, no dia ../../2020, pelas 13h42m, o recorrente deslocou-se à residência da recorrida para ir buscar o menor, mas ninguém lhe foi entregar o filho, pelo que chamou a GNR que se deslocou ao local, sendo que na residência da recorrida encontrava-se o companheiro desta que afirmou estar a par de toda a situação, mas que não entregava o menor, pois tinha orientações para a criança permanecer em casa (fls. 29 e 30 dos autos). 11. O menor devia ter sido entregue ao recorrente nos dias 19 de Junho, 10 de Julho, 22 de Julho e 24 de Julho de 2020, nestas duas últimas datas já com a intervenção das técnicas da CAFAP, o que nunca aconteceu, como, aliás, resulta dos emails de 22 e 29 de Julho de 2020 enviados pelas técnicas da CAFAP para o tribunal de família e menores, a recorrida recusou-se a entregar o menor ao recorrente (fls. fls. 111 verso e 112 frente dos autos). 12. Em 1 Agosto de 2020, o menor devia ter sido entregue pela recorrida ao recorrente para o período de férias com o progenitor, o que também não aconteceu, conforme email enviado em 01-08-2020 pela assistente social para o tribunal de Família e Menores e que o recorrente juntou com o RAI, onde é referido expressamente que a recorrida não compareceu para entregar o filho ao pai. 13. Na sequência do referido email, foi proferido mais uma vez despacho pelo Tribunal de Família e Menores de Guimarães a reiterar o cumprimento escrupuloso do regime das responsabilidades parentais, com a emissão de mandados de recolha e condução do menor (fls. 114 dos autos). 14. Importa ainda referir que a recorrida foi constituída arguida nos autos em 11-06-2020, tendo então tomado conhecimento deste processo e da possibilidade ser acusada da prática de um crime de subtracção de menor, o que não a impediu de continuar a incumprir o regime de responsabilidades parentais, bem sabendo o que estava a fazer. 15. A justificação de que o menor não quer estar com o pai não exclui o dolo, a ilicitude ou a culpa da recorrida, como, aliás, resulta do próprio artigo 249º, n.º 2 do Código Penal que prevê apenas uma atenuação especial da pena quando a conduta do agente é condicionada pelo respeito pela vontade do menor com idade superior a 12 anos, atenuação que neste caso nem será de aplicar, uma vez que a criança à data dos factos não tinha idade superior a 12 anos. 16. Pelo exposto, a recorrida sabia que por decisão judicial estava obrigada a entregar o menor ao recorrente nos termos estipulados, sabia e não podia ignorar que ao não entregar o menor o fazia de forma reiterada e injustificada, bem sabendo que tal resultaria, como resultou, numa absoluta impossibilidade do recorrente conviver com o menor. 17. Conforme o supra referido, existem vários despachos do Tribunal de Família e Menores a ordenar o cumprimento escrupuloso do que ficou regulado, independentemente da pandemia ou da vontade do menor, mesmo depois da sua audição, despachos dos quais a recorrida tinha pleno conhecimento e que optou por ignorar. 18. E mesmo depois de ter sido constituída arguida nos presentes autos, tomando conhecimento que podia ser acusada da prática de um crime de subtracção de menor, a recorrida continuou a recursar a entrega do filho ao pai. 19. A recorrida conhecia a ilicitude da sua conduta, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por lei, não se tendo, contudo, coibido de a praticar. 20. Acresce que, e não podemos deixar de o dizer, a forte e prolongada divergência entre a recorrida e o recorrente que o tribunal a quo refere não afasta, nem invalida o preenchimento pela recorrida do tipo legal de crime aqui em causa. 21. Ora, atenta a prova produzida nos autos, que o tribunal a quo ignorou, é forçoso concluir que existem indícios suficientes de que a recorrida actuou com dolo, directo, segundo o disposto no artigo 14º, n.º 1 do Código Penal, devendo ter sido proferido despacho de pronúncia. 22. Sem prescindir do que foi dito, ainda que se admita que a recorrida não tinha como última intenção subtrair o filho ao convívio com o recorrente (dolo directo), o que não se concebe ou concede, referindo-se apenas por mera cautela de patrocínio, esta não podia deixar de aceitar que, ao agir como agiu, o resultado típico ocorreria necessariamente, ou seja, que o recorrente ficaria impedido de conviver com o filho (dolo necessário), pelo que, o elemento subjectivo ainda assim estaria preenchido. 23. Por fim, importa ainda referir que os documentos juntos na instrução pela recorrida, nomeadamente a informação do Processo de Promoção e Protecção e da Associação de Defesa dos Direitos Humanos de Guimarães são de 2022, ou seja, posteriores às datas dos factos denunciados pelo recorrente. 24. Quanto à decisão proferida no âmbito do processo de incumprimento que correu termos no tribunal de Família e Menores, junta pela arguida na instrução, esta refere-se a outro apenso e a apenas um incumprimento. 25. A circunstância de o Tribunal de Família e Menores ter-se pronunciado sobre uma situação de incumprimento não obsta à subsunção dos factos deste processo ao tipo de crime de subtração de menor, visto que, nos termos do disposto no artigo 7º, n.º 1 do Código de Processo Penal, “o processo penal é promovido independentemente de qualquer outro e nele se resolvem todas as questões que interessarem à decisão da causa”. 26. Acresce que, a estatuição constante do artigo 249º, n.º 1, al. c), do Código Penal não se extrai que a prévia intervenção do Tribunal de Família e Menores, no sentido de declarar a existência ou não de incumprimento relevante, constitua condição objectiva de punibilidade. 27. Nem podia ser de outra forma. O objecto e os princípios orientadores do RGPTC, definidos nos seus artigos 1º e 4º, não se compaginam minimamente com o processo penal e os seus princípios gerais. 28. Assim, não podemos aceitar o despacho de não pronúncia recorrido, pois basta ler os elementos de prova constantes nos autos, analisados e conjugados supra, para constatar que daqueles resultam indícios suficientes para imputar à recorrida o crime de subtracção de menor, previsto e punido pelo artigo 249º, n.º 1, al. c) do Código Penal. 29. Viola a douta decisão recorrida os artigos 205º da Constituição da República Portuguesa, 97º, 307º, 308º, 283º do Código de Processo Penal, 249º e 14º do Código Penal.» * O Senhor Procurador da República que representou o Ministério Público na 1ª instância e a arguida AA responderam, pronunciando-se ambos no sentido do não provimento do recurso.* Nesta Relação, a Exma. Senhora Procurador-Geral adjunta proferiu parecer, no qual – e em sentido inverso à posição assumida pelo Ministério Público na 1ª instância –, se pronuncia fundamentadamente pelo provimento do recurso, com substituição da decisão recorrida por outra que pronuncie a arguida AA pela prática do crime de subtração de menor que lhe era imputado no requerimento de abertura da instrução (RAI).* Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem resposta.* Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.* II. FUNDAMENTAÇÃOConforme é jurisprudência assente o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer[1]. * 1. Questão a decidir:Existência de indícios integradores da prática, pela arguida AA, em autoria material, de um crime de subtração de menor, previsto e punível pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal. * 2. A decisão recorrida tem o seguinte teor:«Decisões do Venerando Tribunal da Relação de Guimarães de fls. 354 e 416. Na sequência do decidido e de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 4.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, impõe-se proferir nova decisão instrutória, corrigindo a invalidade apontada na decisão de fls. 354 – descrição dos factos indiciados e não indiciados. Duas notas mais. Em primeiro lugar, não vislumbramos qualquer imposição legal à realização de novo debate instrutório. Depois, na sequência do referido pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães a fls. 13 da decisão de fls. 416 e seguintes, deixamos consignado que, felizmente e tanto quanto é possível ter a certeza, o signatário encontra-se vivo e de saúde. Na sequência, passamos de imediato a corrigir a decisão instrutória proferida nos autos nos termos determinados no acórdão ora em apreço:[2] * DECISÃO INSTRUTÓRIASaneamento. Declaro encerrada a Instrução. * O Tribunal é competente.* Não há quaisquer nulidades, ilegitimidades, excepções, questões prévias ou incidentais que importe conhecer e que obstem a uma decisão de mérito.* Relatório.Finda a fase do inquérito, na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, veio o assistente BB requerer a abertura da instrução (cfr. fls. 210 e seguintes), no sentido de ser proferido despacho de pronúncia dos arguidos AA e CC pela prática: - À arguida AA de um crime de subtração de menor, previsto e punido pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal; e, - Ao arguido CC de um crime de subtração de menor, previsto e punido pelos artigos 27.º, n.º 1, e 249.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal. Refere, para tanto e em síntese, que a Arguida, de forma livre, deliberada e consciente, incumpriu o regime de responsabilidades parentais em vigor, alienando o ora Assistente do são convívio entre este e o filho de ambos. Refere ainda que o Arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, como cúmplice da co-arguida. Termina, concluindo pela procedência dos requerimentos de abertura da instrução. * A fase da instrução foi declarada aberta por despacho judicial datado de 27/01/2022 e constante de fls. 229 dos autos.* Na sequência do supra referido e das decisões proferidas pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, cumpre agora, nos termos do artigo 308.º do Código de Processo Penal, proferir decisão instrutória.* Âmbito e objectivo da fase da instrução.Começando, por uma questão de lógica interpretativa da presente decisão, por delimitar o âmbito da fase da instrução, importa referir que esta fase processual visa, segundo o que nos diz o artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento». Configura-se assim como fase processual sempre facultativa – cfr. n.º 2 do mesmo dispositivo – destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida. Como facilmente se depreende do citado dispositivo legal, a instrução configura-se no Código de Processo Penal como actividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respectivo enquadramento jurídico-penal. Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia». Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual. Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como deixamos dito, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação. Depois, no n.º 2 deste mesmo dispositivo legal, remete-se, entre outros, para o n.º 2 do artigo 283.º, nos termos do qual «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança». Isto posto, para que surja uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento. Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto em si mesmo neutro, acarretando sempre, além dos incómodos e independentemente de a decisão final ser de absolvição, consequências, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista jurídico, entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando existissem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado. Assim sendo, para fundar uma decisão de pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal. Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. Neste sentido, segue-se Castanheira Neves[3] que perfilha a tese segundo a qual na suficiência de indícios está contida «a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final», apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados «os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação». * Da conjugação do que se acaba de deixar escrito com tudo quanto vem alegado no requerimento de abertura da instrução, podemos afirmar que as questões a decidir na presente instrução serão as seguintes:- Suficiência da prova produzida nos autos para sustentar a factualidade alegada pelo assistente em sede de requerimento de abertura de instrução; - Preenchimento dos elementos do tipo legal do crime imputado. * Fundamentação de facto e de direito.Com base na matéria de facto descrita no requerimento de abertura de instrução o Assistente imputa aos arguidos a prática, a cada um deles, de um crime de subtração de menor. Referiu, então e com relevância para a presente decisão[4], que: «1 – O Assistente e a arguida AA são pais do menor DD, nascido em ../../2008. 2 – Corre termos no Juízo de Família e Menores de Guimarães – Juiz ..., o processo n.º 233/13.... relativo às responsabilidades parentais do menor DD, sendo que está estipulada a guardar alternada entre os progenitores. 3 – Existem ainda a correr, por apenso aos autos supra identificados, vários processos de incumprimento. 4 – Em 20-03-2021, o menor devia ser entregue pela arguida AA ao Assistente, por volta das 19h, para dar início à semana com o pai, o que não aconteceu, tendo considerado a arguida que, em virtude da pandemia causada pela Covid-19, o menor devia permanecer com esta. 5 – Em 24-03-2020, o tribunal ordenou, no processo n.º 233/13...., que, independentemente da Covid-19, o regime das responsabilidades parentais em vigor devia ser escrupulosamente cumprido. 6 – Em 01-05-2020, o menor devia ser entregue pela arguida AA ao Assistente por volta das 19h para dar início à semana com o pai, o que também não aconteceu, desta vez com a desculpa que o menor não queria estar com o pai. 7 – Em 21-05-2020, ordenou novamente o tribunal o cumprimento imediato do regime em vigor, alegando que o menor não tem poder de veto, mesmo após audição, relativamente ao que foi decido pelo tribunal, isto porque a vontade do menor não pode ser vinculativa ou motivo de incumprimento. 8 – Na sequência do despacho de 21-05-2020, o Assistente, em ../../2020, pelas 13h42m, dirigiu-se a casa da Arguida, sita na Rua ..., ..., Guimarães, para ir buscar o menor. 9 – Acontece que, o menor não lhe foi entregue, tendo o assistente chamado a Guarda Nacional Republicana, que se deslocou ao local. 10 – Na residência da Arguida encontrava-se o companheiro desta, o arguido CC, que afirmou estar a par de toda a situação, mas que não entregava o menor, pois tinha orientações para a criança permanecer em casa, facilitando assim o incumprimento por parte da arguida AA. 11 – O menor devia ter sido entregue pela arguida AA ao Assistente nos dias 19 de Junho, 10 de Julho, 22 de Julho e 24 de Julho de 2020, nestas duas últimas datas já com a intervenção das técnicas da CAFAP, o que nunca aconteceu. 12 – Por correio electrónico, em 22 e 29 de Julho de 2020, as técnicas da CAFAP comunicaram ao tribunal de família e menores que a arguida AA se recusou a entregar o menor ao assistente. 13 – Em 01-08-2020, o menor devia ter sido entregue pela arguida AA ao Assistente para o período de férias com o progenitor, o que também não aconteceu. 14 – Em 01-08-2020, foi comunicado pela Assistente Social, por correio electrónico, ao tribunal de Família e Menores que a arguida AA não compareceu para entregar o menor ao Assistente. 15 – Em 05-08-2020, foi proferido despacho a determinar novamente o cumprimento escrupuloso do regime das responsabilidades em vigor, tendo sido emitido mandados de recolha/condução do menor DD. 16 – Pelo exposto, a arguida AA sabia que por decisão judicial estava obrigada a entregar o menor ao assistente nos termos estipulados. 17 – A arguida sabia e não podia ignorar que ao não entregar o menor o fazia de forma reiterada e injustificada, bem sabendo que tal resultaria, como resultou, numa absoluta impossibilidade de o assistente conviver com o menor. 18 – A Arguida conhecia a ilicitude da sua conduta, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por lei, não se tendo, contudo, coibido de a praticar. 19 – Agiu, assim, a arguida AA de forma livre, deliberada e consciente. 20 – Por sua vez, o arguido CC com a sua conduta facilitou o incumprimento do regime de responsabilidades parentais em vigor por parte da arguida AA. 21 – O arguido CC agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.». * Conforme se extrai do processado, os presentes autos tiveram início com o auto de fls. 4, elaborado pela Guarda Nacional Republicana, porquanto BB queixou-se contra AA e CC, imputando à primeira, em síntese, o facto de, reiteradamente, não cumprir o regime das responsabilidades parentais relativas ao menor, DD, filho de ambos, e ao segundo o facto de ser “cúmplice” daquela na prática destes factos.Encontra-se demonstrado nos autos que o menor, DD, é filho do Assistente e da Arguida AA. Corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo de Família e Menores de Guimarães – Juiz ..., o processo n.º 233/13.... relativo ás responsabilidades parentais do menor, DD, dizendo respeito os apensos D, E, F, G, J a sucessivos incumprimentos. Dos autos resulta, igualmente, por um lado, a notícia que o menor sempre recusou, insistentemente, as visitas ao Assistente e, por outro lado, que este e a ora Arguida se encontram completamente desavindos. * Estabelece o artigo 249.º do Código Penal, sob a epígrafe «subtração de menor», que:«1 - Quem: a) Subtrair menor; b) Por meio de violência ou de ameaça com mal importante determinar menor a fugir; ou c) De um modo repetido e injustificado, não cumprir o regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais, ao recusar, atrasar ou dificultar significativamente a sua entrega ou acolhimento; é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias. 2 - Nos casos previstos na alínea c) do n.º 1, a pena é especialmente atenuada quando a conduta do agente tiver sido condicionada pelo respeito pela vontade do menor com idade superior a 12 anos. 3 - O procedimento criminal depende de queixa.». * O crime de «subtracção de menores», na nova redacção da al. c) do n.º 1 do art. 249.º do CP, introduzida pela Lei 61/2008, de 31-10, afasta-se inteiramente da estrutura e construção típicas das als. a), b) e c) (na anterior redacção), divergindo mesmo do significado semântico que enquadrava consistentemente a construção tradicional da estrutura típica. No enquadramento de tipicidade, a al. c) do n.º 1 do art. 249.º na actual formulação não traduz nem expõe manifestamente uma «subtracção», mas apenas uma rejeição do cumprimento, ou no rigor, o incumprimento das obrigações decorrentes do regime fixado ou acordado de regulação das responsabilidades parentais de menores: a formulação típica não representa nem prevê uma retirada ou ocultação do menor, ou recusa de entrega à pessoa que exerça o poder paternal, constituindo apenas, em determinadas circunstancias, o estabelecimento de uma forma instrumental e funcional de injunção ao cumprimento de obrigações decorrentes do regime de responsabilidade parentais, no rigor, uma modalidade constitutivamente aproximada de uma desobediência.Mas, sendo assim, o princípio de subsidiariedade de intervenção do direito penal que supõe a carência de tutela penal de determinado comportamento que afecte bens e valores com relevo axiológico constitucional? Não poderá, sem afectar o princípio da proporcionalidade, sustentar a criminalização e o sancionamento penal de um puro e simples incumprimento de um regime sobre direitos civis que tem meios próprios de injunção e coerção ao cumprimento. Por isso, a «subtracção» ou o não cumprimento, com o sentido da al. c), só deve e pode ter sentido quando se refira a situações de ultima ratio, e os meios normalmente adequados para fazer respeitar o cumprimento das obrigações parentais não se revelam eficazes. É nesta perspectiva que os elementos da tipicidade do crime do art. 249.º, n.º 1, al. c), do CP, na redacção da Lei 61/2008, devem ser interpretados e integrados. A actual redacção do art. 249.º, n.º 1, al. c), do CP, interpretada logo pela construção da tipicidade, visa acorrer às situações em que a recusa, atraso ou criação de dificuldades sensíveis na entrega ou acolhimento do menor, se faz, por exemplo, através da fuga para o estrangeiro de um dos vinculados pelo regime de regulação das responsabilidades parentais, ou através de comportamentos ou abstenções de semelhante dimensão, com graves prejuízos para a estabilidade e os direitos dos menores; é em tais circunstâncias que se impõe, não uma exigência de abstenção dos Estados face às relações jurídico-familiares, mas também deveres de conteúdo positivo, fazendo impender sobre os Estados o dever de criar mecanismos legais expeditos para o cumprimento. Conhecidas as críticas a que a intervenção penal está sujeita nesta área, a lei penal não se pode satisfazer com uma qualquer forma ou modalidade de incumprimento; exige, por isso, logo pela descrição do tipo e como elemento da tipicidade, um incumprimento qualificado, não se satisfazendo, por uma projecção quantitativa, com uma única hipótese de incumprimento, mas sim, ao invés, exigindo que seja «repetido». Classificando o incumprimento como «injustificado», o legislador utiliza a noção desligada dos tipos justificadores em sentido técnico-jurídico, alargando-a a outras realidades e circunstâncias que se impõem na definição como elementos do tipo e não como causa de exclusão da ilicitude: «repetido» e «injustificado» são expressões da realidade que apontam para projecções simultaneamente materiais e de valoração, como índices de gravidade e de insuportabilidade da rejeição ao cumprimento de deveres, que justificam a dimensão penal do não cumprimento do «regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais»; «recusar, atrasar ou dificultar significativamente» são acções que apenas podem assumir dimensão típica se constituírem comportamentos repetidos, isto é, reiterados e recorrentes, densificando quantitativamente, e pela quantidade e persistência, qualitativamente, a gravidade in se e as consequências do não cumprimento do regime estabelecido. Nesta perspectiva de leitura e interpretação dos elementos do tipo do artigo 249.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, os factos imputados não integram, nem se aproximam do limiar de tipicidade descrito na norma penal, no que ao arguido CC diz respeito. * Para além do que deixamos escrito supra importa referir que, em relação à arguida AA, conforme também se deixou dito na decisão proferida no âmbito do processo de incumprimento que correu termos no Tribunal de Família e Menores, todo o circunstancialismo que tem envolvido o Assistente e a Arguida na disputa das responsabilidades parentais e as consequências que tudo isso tem tido no comportamento do filho menor, não permite afirmar que a Arguida actuou com a consciência e a vontade de cometer o imputado crime.Dito de outra forma, a prova produzida nos autos não permite afirmar o preenchimento dos factos relacionados com o elemento subjectivo do tipo legal do crime em apreço. O que se extrai dos autos é a existência de uma forte e prolongada divergência quanto à regulação das responsabilidades parentais, com enormes consequências na estabilidade emocional do menor, que aparentemente se recusa ao contacto com o pai, o ora Assistente. Não se alveja, assim, que a actuação da arguida seja apta a assumir aquela subjectividade necessária ao preenchimento do tipo legal do crime em apreço. * Por conseguinte, em síntese e para além de tudo quanto deixamos dito supra, cremos que os autos e a prova que neles foi produzida não permite ter por suficientemente indiciada a factualidade descrita supra nos pontos 17.º a 21.º, sendo certo que a demais matéria alegada deve ser tida por suficientemente indiciada.* Assim sendo, tudo isto conduz ao não provimento do requerimento de abertura da instrução, pois, aplicando os princípios e conceitos supra enunciados ao caso sub judice, afastada está nos autos prova indiciária suficiente para que aos Arguidos pudesse vir a ser aplicada uma pena – o que levará, consequentemente, à não pronúncia dos mesmos.* Decisão.Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido negar total provimento ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente BB e, em consequência, não pronuncio os arguidos AA e CC pela prática do crime que lhes vinha imputado no requerimento de abertura da instrução, ordenando o oportuno arquivamento dos autos. * Medidas de coacção.Nos termos do disposto no artigo 214.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, declaro extinta a medida de coacção aplicada aos arguidos. * Responsabilidade tributária.Custas da instrução a cargo do assistente, atenta a não pronúncia dos arguidos, com taxa de justiça fixada em 2 UC´s (artigo 515.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 5, do Regulamento das Custas Processuais), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia conforme consta a fls. 16. * Anote na pasta própria e notifique.* Oportunamente proceda ao arquivamento dos autos.»*** 3. APRECIAÇÃO DO RECURSOO assistente/recorrente sustenta que os autos contêm indícios suficientes para que se profira despacho de pronúncia, em ordem a submeter a julgamento a arguida AA, pela prática, em autoria material, de um crime de subtração de menor, previsto e punível pelo artigo 249.º, n.º 1, alínea c), do Código Penal. Para tal impugna, desde logo, a matéria fática considerada não suficientemente indiciada no despacho recorrido, por entender que os elementos probatórios recolhidos nos autos a indiciam fortemente. Após o que defende a subsunção jurídica da matéria fática que entende indiciada à prática, pela arguida, em autoria material, do crime de subtração de menor que lhe é imputado no RAI. * Começamos pela análise do acervo probatório reunido nos autos e dos factos que ele permite, ou não, indiciar.* Como é sabido, a instrução é uma fase processual, autónoma e facultativa, que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, com vista a submeter ou não a causa a julgamento, com base em critérios de legalidade (cfr. artigo 286º, nº 1, do Código de Processo Penal). Assim, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos respetivos factos. De contrário, deverá ser proferido despacho de não pronúncia, nos termos do disposto no artigo 308º, nº 1, do Código de Processo Penal.Em face de tal normativo, verifica-se que o juiz de instrução criminal deve nortear-se pelos mesmos critérios que levam o Ministério Público à prolação de despacho de arquivamento ou de acusação. Sendo, pois, essencial apelar à produção doutrinal processual penal que tem sido desenvolvida a propósito do artigo 283º, nº 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que só deve ser deduzida acusação pública se forem recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente. Por seu turno, determina o seu nº 2, que se consideram suficientes os indícios, quando dos mesmos resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. O conceito de indiciação suficiente tem gerado uma certa divergência no campo processual penal. Por um lado, há quem entenda que o arguido deve ser levado a julgamento quando há a possibilidade de o mesmo ser condenado, bastando-se assim com a constatação de que é possível a simples ou a mera possibilidade de o arguido ser condenado. Uma outra medida de “indícios suficientes” e que encontra forte apoio na letra do artigo 283º, nº 2, do Código de Processo Penal, é aquela que se estriba na fórmula da possibilidade preponderante ou dominante da condenação, quase que assente num modelo estatístico, de que é mais provável a condenação do que a absolvição. Por último, subsiste ainda a tese (mais exigente) de que só deverá ser proferido despacho de acusação ou de pronúncia contra o arguido, quando haja uma forte e qualificada possibilidade de a condenação do mesmo vir a ocorrer em fase de julgamento. Ora, tal como defendido por Carlos Adérito Teixeira, estamos com aqueles em que apenas “o critério da possibilidade particularmente qualificada ou de possibilidade elevada de condenação, a integrar o segmento legal da “possibilidade razoável”, responde convenientemente às exigências do processo equitativo, da estrutura acusatória, da legalidade processual e do Estado de Direito Democrático, e que é o que melhor se compatibiliza com a tutela da confiança do arguido, com a presunção de inocência de que ele beneficia e com o «in dubio pro reo»” (in “Indícios suficientes: parâmetro de racionalidade e instância de legitimação concreta do poder-dever de acusar” in Revista do CEJ, n.º 1, p. 151-190). Na verdade, estamos em crer que o juízo ou a convicção a estabelecer na fase da prolação da acusação, há-de ser equivalente ao de julgamento, quer ao nível da apreciação da fenomenologia, quer na objetividade da indagação fáctica e na apreciação do material probatório, quer na conformação desse material probatório às normas atinentes com as proibições de valoração de prova e na racionalidade lógica em que assenta a apreciação dos elementos probatórios coligidos. Por outro lado, e a marcar esta nossa opção, está igualmente presente o indelével caráter criminógeno que representa a indevida sujeição do arguido à fase de julgamento, o que, por imperativos de justiça, deve ser evitado. Assim, entendemos que só indícios necessariamente graves ou fortes, na aceção de serem factos que permitem uma inferência de tipo probabilístico da prática do crime (enquanto facto) de elevada intensidade, permitem estabelecer uma conexão com aquela prática altamente provável. E, só os indícios de elevada intensidade são suficientes, isto é, apenas aqueles justificam um juízo normativo de possibilidade razoável de condenação (cfr. no sentido desta tese mais exigente, Castanheira Neves, in Sumários de Processo Criminal (1967-68), Coimbra, 1968, p. 39, bem como Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20 de Outubro de 1993, in CJ/IV/ 261). A par destas balizas legais, na interpretação das disposições legais adjetivas em referência, deve ainda atender-se aos princípios estruturantes do processual penal. O que implica que a exegese destes preceitos legais se ajuste tanto ao princípio in dubio pro reo, enquanto emanação da garantia constitucional da presunção de inocência (cfr. artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa; 11º, nº 1 da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6º, nº 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), como ao dever de respeito pela dignidade da pessoa humana, enquanto vertente do Estado de Direito Democrático, o qual implica a preservação do bom nome e reputação (cfr. artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), contra as intromissões abusivas e arbitrárias na respetiva esfera de direitos. * Da factualidade já considerada suficientemente indiciada na decisão instrutória recorrida (que para além de não ter sido impugnada encontra suporte nas provas recolhidas nos autos), consta que:«1 – O Assistente e a arguida AA são pais do menor DD, nascido em ../../2008. 2 – Corre termos no Juízo de Família e Menores de Guimarães – Juiz ..., o processo n.º 233/13.... relativo às responsabilidades parentais do menor DD, sendo que está estipulada a guardar alternada entre os progenitores. 3 – Existem ainda a correr, por apenso aos autos supra identificados, vários processos de incumprimento. 4 – Em 20-03-2020, o menor devia ser entregue pela arguida AA ao Assistente, por volta das 19h, para dar início à semana com o pai, o que não aconteceu, tendo considerado a arguida que, em virtude da pandemia causada pela Covid-19, o menor devia permanecer com esta. 5 – Em 24-03-2020, o tribunal ordenou, no processo n.º 233/13...., que, independentemente da Covid-19, o regime das responsabilidades parentais em vigor devia ser escrupulosamente cumprido. 6 – Em 01-05-2020, o menor devia ser entregue pela arguida AA ao Assistente por volta das 19h para dar início à semana com o pai, o que também não aconteceu, desta vez com a desculpa que o menor não queria estar com o pai. 7 – Em 21-05-2020, ordenou novamente o tribunal o cumprimento imediato do regime em vigor, alegando que o menor não tem poder de veto, mesmo após audição, relativamente ao que foi decido pelo tribunal, isto porque a vontade do menor não pode ser vinculativa ou motivo de incumprimento. 8 – Na sequência do despacho de 21-05-2020, o Assistente, em ../../2020, pelas 13h42m, dirigiu-se a casa da Arguida, sita na Rua ..., ..., Guimarães, para ir buscar o menor. 9 – Acontece que, o menor não lhe foi entregue, tendo o assistente chamado a Guarda Nacional Republicana, que se deslocou ao local. 10 – Na residência da Arguida encontrava-se o companheiro desta, o arguido CC, que afirmou estar a par de toda a situação, mas que não entregava o menor, pois tinha orientações para a criança permanecer em casa, facilitando assim o incumprimento por parte da arguida AA. 11 – O menor devia ter sido entregue pela arguida AA ao Assistente nos dias 19 de Junho, 10 de Julho, 22 de Julho e 24 de Julho de 2020, nestas duas últimas datas já com a intervenção das técnicas da CAFAP, o que nunca aconteceu. 12 – Por correio electrónico, em 22 e 29 de Julho de 2020, as técnicas da CAFAP comunicaram ao tribunal de família e menores que a arguida AA se recusou a entregar o menor ao assistente. 13 – Em 01-08-2020, o menor devia ter sido entregue pela arguida AA ao Assistente para o período de férias com o progenitor, o que também não aconteceu. 14 – Em 01-08-2020, foi comunicado pela Assistente Social, por correio electrónico, ao tribunal de Família e Menores que a arguida AA não compareceu para entregar o menor ao Assistente. 15 – Em 05-08-2020, foi proferido despacho a determinar novamente o cumprimento escrupuloso do regime das responsabilidades em vigor, tendo sido emitido mandados de recolha/condução do menor DD. 16 – Pelo exposto, a arguida AA sabia que por decisão judicial estava obrigada a entregar o menor ao assistente nos termos estipulados.» Por sua vez, e no que respeita à arguida AA, o despacho recorrido entendeu que não se encontravam suficientemente indiciados os seguintes factos, descritos nos pontos 17, 18 e 19 do RAI: «17 – A arguida sabia e não podia ignorar que ao não entregar o menor o fazia de forma reiterada e injustificada, bem sabendo que tal resultaria, como resultou, numa absoluta impossibilidade de o assistente conviver com o menor. 18 – A Arguida conhecia a ilicitude da sua conduta, bem sabendo que a mesma era proibida e punida por lei, não se tendo, contudo, coibido de a praticar. 19 – Agiu, assim, a arguida AA de forma livre, deliberada e consciente.» Justificando a posição que toma sobre a não indiciação destes factos, nos seguintes termos: «…em relação à arguida AA, conforme também se deixou dito na decisão proferida no âmbito do processo de incumprimento que correu termos no Tribunal de Família e Menores, todo o circunstancialismo que tem envolvido o assistente e a arguida na disputa das responsabilidades parentais e as consequências que tudo isso tem tido no comportamento do filho menor, não permite afirmar que a arguida atuou com a consciência e a vontade de cometer o imputado crime. Dito de outra forma, a prova produzida nos autos não permite afirmar o preenchimento dos factos relacionados com o elemento subjetivo do tipo legal do crime em apreço. O que se extrai dos autos é a existência de uma forte e prolongada divergência quanto à regulação das responsabilidades parentais, com enormes consequências na estabilidade emocional do menor, que aparentemente se recusa ao contacto com o pai, o ora assistente. Não se alveja, assim, que a atuação da arguida seja apta a assumir aquela subjetividade necessária ao preenchimento do tipo legal do crime em apreço». Desde já adiantamos não poder acompanhar este raciocínio. É que o circunstancialismo fático considerado suficientemente indiciado – e já supratranscrito – revela que o exercício das responsabilidades parentais relativamente ao jovem DD, nascido em ../../2008, foi regulado pelo Juízo de Família e Menores de Guimarães, não obstante o que, desde ../../2020, altura em que o menino tinha apenas 11 anos de idade, a arguida não cumpre o regime de guarda alternada que foi estipulado, recusando repetidamente entregar o DD ao pai, impedindo por completo o convívio do assistente com o filho desde essa altura. Este contexto fático, aliado às mais elementares regras da experiência comum e da lógica permite concluir que a arguida, pessoa adulta e normal, ao proceder da forma descrita, sabia que estava a violar repetida e continuadamente o regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais, impedindo o convívio do assistente com o filho, o que quis e conseguiu. De toda a factualidade indiciada emanando uma atuação da arguida sempre livre, voluntária e consciente, que obviamente sabia ser proibida e punida por lei, como necessariamente o saberia qualquer pessoa com o mínimo de integração social. É certo que dos autos decorre a existência de uma grande conflitualidade entre a arguida e o assistente, que se estende ao exercício das responsabilidades parentais do filho de ambos, só que tal não assume qualquer relevância ao nível da prova indiciária dos factos descritos nos pontos 17, 18 e 19 do RAI. Por outro lado, haverá ainda que salientar que a arguida não prestou declarações no decurso do inquérito, não se vislumbrando a base probatória em que assenta a decisão recorrida, quando diz que a arguida apenas atuava de acordo com a vontade do filho. De todo o modo, ainda que assim fosse, não podemos esquecer que estamos perante um jovem que inicialmente tinha apenas 11 anos de idade, e, consequentemente, ainda sem capacidade para formar uma decisão crítica e consciente sobre vários aspetos essenciais da sua vida, nos quais se inclui o seu direito a ser próximo de ambos os progenitores e com eles conviver. Pelo que a eventual relutância do menor a acompanhar o pai também não seria aqui justificação do comportamento da arguida sua mãe. De tudo assim resultando, sem o mínimo esforço, uma atuação dolosa da arguida, o que sendo um facto da vida interior e não havendo confissão, não pode ser provado de outra forma que não seja através da conjugação da prova de factos objetivos com as regras de normalidade e da experiência comum. Neste contexto factual e legal têm que se ter também por indiciados os factos que foram considerados não indiciados na decisão recorrida, ou seja, os vertidos nos pontos 17, 18 e 19 do RAI. * Fixados os factos indiciados vejamos agora a sua subsunção jurídica ao crime que é imputado à arguida no RAI.Estabelece o artigo 249.º do Código Penal, sob a epígrafe «subtração de menor», que: «1 - Quem: a) Subtrair menor; b) Por meio de violência ou de ameaça com mal importante determinar menor a fugir; ou c) De um modo repetido e injustificado, não cumprir o regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais, ao recusar, atrasar ou dificultar significativamente a sua entrega ou acolhimento; é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias. 2 - Nos casos previstos na alínea c) do n.º 1, a pena é especialmente atenuada quando a conduta do agente tiver sido condicionada pelo respeito pela vontade do menor com idade superior a 12 anos. 3 - O procedimento criminal depende de queixa.». O tipo objetivo do crime de subtração de menor consiste na violação, repetida e injustificada, do regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais. Ao nível subjetivo exige-se que o agente atue com dolo, em qualquer das suas modalidades (artigo 14.º do Código Penal). Revertendo novamente ao caso em apreço, da exposição antecedente feita a propósito dos factos que se encontram indiciados, resulta já que o exercício das responsabilidades parentais relativamente ao jovem DD, nascido em ../../2008, foi regulado por decisão judicial, não obstante o que, desde ../../2020, altura em que o menino tinha apenas 11 anos de idade, a arguida não cumpre o regime de guarda alternada que foi estipulado, recusando repetidamente entregar o DD ao pai, privando totalmente a criança do convívio com o progenitor, que decidiu suprimir da vida do filho, com as graves consequências que tal pode causar na vida atual e futura do menino. Atuando sempre livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que estava a violar continuadamente o regime estabelecido para a convivência do menor na regulação do exercício das responsabilidades parentais, e que essa sua conduta era proibida. Encontrando-se assim preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de subtração de menor, previsto e punível pelo artigo 249.º, nº 1, al. c) do Código Penal. Pelo que por esse crime deve a arguida ser pronunciada, não podendo consequentemente subsistir a decisão recorrida, que por tal crime não a pronunciou. *** III. DECISÃOPelo exposto, acordam as juízas desta secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder provimento ao recurso do assistente BB e, em consequência, revogar a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra: - Que considere indiciados todos os factos elencados no RAI e reproduzidos na decisão recorrida (pontos 1 a 19) e pronuncie a arguida AA pela prática, como autora material, de um crime de subtração de menor, previsto e punível pelo artigo 249.º, n.º 1, al. c) do Código Penal. Sem tributação. * (Texto integralmente elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal –, encontrando-se assinado na primeira página, nos termos do artigo 19.º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.)Guimarães, 18 de junho de 2024 Fátima Furtado (Relatora) Madalena Caldeira (1ª Adjunta) Florbela Sebastião e Silva (2ª Adjunta) [1] Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V. [2] Acrescentando no local próprio os factos descritos no requerimento de abertura da instrução e desses aqueles que este Tribunal considerou e considera suficientemente indiciados e não indiciados. [3] NEVES, Castanheira, «Sumários de Processo Criminal», págs. 38 e 39. [4] Tendo em consideração aquilo que se afigura ser a deficiente elaboração do requerimento de abertura da instrução, teve este Tribunal de Instrução Criminal que reformular a factualidade imputada, ainda que mantendo o objecto do processo fixado naquele requerimento de abertura da instrução. |